quinta-feira, 31 de janeiro de 2008



31 de janeiro de 2008
N° 15496 - Nilson Souza


A máquina da verdade

Faz sucesso no biguebroder, como já fazia em outros programas de televisão populares, a tal máquina da verdade - um aparato capaz de detectar variações reveladoras na voz e na expressão corporal de quem está sendo submetido a um questionamento.

Trata-se de um programa de computador similar ao que a polícia israelense utiliza para interrogar terroristas.

É uma evolução do célebre polígrafo criado pelos discípulos do criminalista italiano Cesare Lombroso, mencionado recentemente neste polêmico projeto de pesquisa com adolescentes infratores.

Lombroso, só para lembrar, desenvolveu a tese do criminoso nato, que podia ser identificado por algumas características corporais - entre as quais lábios grossos e orelhas grandes, o que já me deixaria, no mínimo, na condição de suspeito.

Suas teorias foram superadas, para alívio dos feios e dos tatuados. Tendência à tatuagem era, também, um dos indicadores da propensão à delin- qüência. Hoje a moda se encarregaria de desmoralizar esta hipótese.

Mas o polígrafo da verdade sobreviveu e vem sendo aperfeiçoado pela tecnologia, que a cada dia acrescenta-lhe um novo item de precisão.

Ainda assim, os especialistas reconhecem que é possível enganar a máquina. Pessoas muito controladas, como os psicopatas, são capazes de se submeter ao teste sem maiores alterações.

Já os mais sensíveis emocionalmente correm o risco de passar por mentirosos simplesmente porque ficam nervosos quando são alvos de atenção.

Tive um colega de faculdade tão tímido que a diversão da turma era olhar para ele e dizer: "Fica vermelho!". E ele incendiava. Imaginem um sujeito desses no detector de mentiras! Aposto que passaria por inconfiável. E, por tê-lo conhecido bem, posso atestar que era quase um santo.

Dizem que o homem é o único animal capaz de ruborizar por ser também o único que tem razões para isso. Mas a maioria, sabemos, não demonstra tão facilmente seus sentimentos.

Pelo contrário, somos muito mais hábeis para fingir do que para revelar, até mesmo porque a vida em sociedade exige algum grau de hipocrisia. Se a tal máquina da verdade fosse absolutamente precisa, é provável que os conflitos humanos se multiplicassem.

De minha parte, confesso que prefiro continuar confiando na minha intuição e nas pessoas que ainda enrubescem por nada.

Aprecio a sinceridade, amo a franqueza, mas tenho uma certa reserva em relação a verdades absolutas, ainda mais quando atestadas pela precisão de uma máquina que não foi programada para entender as fraquezas humanas.

Tudo bem, podem me acusar de ser excessivamente tolerante. Daria para esperar outra coisa de quem tem lábios grossos e orelhas grandes?

Uma excelente quinta-feira ainda que com chuva por aqui.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008



30 de janeiro de 2008
N° 15495 - Martha Medeiros


Procuro-me

Lembra daquele anúncio de "procura-se" que saiu algumas vezes aqui em Zero Hora? Que coisa esquisita. "Procura-se".

Ao melhor estilo faroeste, o jornal fazendo papel de poste. À primeira vista, achei que fosse algum anúncio publicitário, mas não: uma família foi assaltada e decidiu ir à caça dos bandidos por conta própria.

É provável que houvesse algo de muito valor afetivo a ser recuperado, ou a motivação foi vingança. Seja o que for, achei tudo muito estranho e ligeiramente incômodo. Pois agora esse anúncio voltou à minha mente, e já explico por quê.

Zero Hora publicou ontem uma história hilária que me aconteceu. Quinta-feira passada, um senador italiano leu um texto meu em plenário e com isso ajudou a provocar a queda do primeiro-ministro daquele país.

Dizem que o momento da leitura do texto foi uma comoção. Só que o tal senador creditou o texto a Pablo Neruda, pois foi desse modo que ele o recebeu pela internet.

No dia seguinte, quem diria: os principais jornais da Itália estampavam uma foto minha, creditando a mim a verdadeira autoria do texto que abalou o governo. Meus 15 minutos de fama internacional.

Achei a maior graça, vou fazer o quê, chorar? Jamais um texto meu seria lido tão longe e por um motivo tão sério se não achassem que o autor era um Nobel de Literatura. Francamente, quem é que sabe que eu existo na Itália? Bom, agora sabem.

Indiretamente, saí ganhando com esse equívoco, mas vamos pensar juntos: por que o senador não leu um texto com autoria comprovada? Simples: porque foi mais um que se deixou levar pelas "facilitações" da internet.

Porque é provável que ele nunca tenha lido Neruda na vida, ou saberia reconhecer o estilo do chileno. Porque ele foi apressado e confiou demais no mundo virtual quando deveria seguir confiando em livros.

Eu sou fã da internet, mas é preciso saber usá-la com mais parcimônia. Me incomoda ver as pessoas se desabituando a privilegiar a cultura impressa, documentada, com marca registrada e direito autoral garantido.

Assim como também estão se desabituando a ter relações reais, de toque, olho no olho, emoções com algum registro sensorial comprovado.

Então volto ao assunto lá do início dessa crônica: não estaremos todos meio foragidos de nós mesmos? Inspirada naquele anúncio de "procura-se", resolvi lançar a seguinte campanha: "procuro-me".

Tenho tido provas cabais de que estou perdendo a identidade nesse mundo excessivamente virtual. Não sei você, mas vou atrás de mim mesma. Estou saindo de férias, volto assim que me encontrar.

Neste Dia Internacional do Sofá tenhamos todos, ainda que com muita chuva, uma ótima quarta-feira.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008



29 de janeiro de 2008
N° 15494 - Liberato Vieira da Cunha


Entardecer num café

Torno, depois de dois mil séculos, ao Café Mozart. O Poeta vai aparecer daqui a pouco, imagino, sentar-se comigo nesta mesa, puxar um Carlton e ordenar café preto e quindins.

O Poeta vai falar de uma borboleta, da Saga dos Forsythe, que estamos lendo juntos, o Poeta vai falar em Greta Garbo. Mas as horas fluem e o poeta não pinta.

Chove sobre o verão de Porto Alegre; a casa está quase deserta. A arquitetura do hall me lembra um navio. Estou nos mares da Grécia, penso, logo vai telefonar aquela moça alta, dizer que me espera junto ao bar do cassino do navio.

A moça alta e tão bela não liga. Isto não é um navio, é uma despedida, segundo informa no sistema de som Adriana Calcanhotto:

"E o meu coração, embora finja fazer mil viagens, fica batendo parado naquela estação."

Aumenta a chuva. Não conheço Adriana Calcanhotto, que era loira e agora é morena, ou ao contrário, e gravou um disco admirável para crianças de todas as idades.

Tudo bem, Adriana, é uma gare. Para onde vai este casal que sentou aqui ao lado, de começo tão terno, em seguida tão prisioneiro de triviais malquerenças?

Ancoram três amigos e, ainda que o inesperado frio do entardecer requeira vinho, pedem cerveja. Os dois garotos disputam as graças da garota loira, que volta os olhos para o terraço, tipo quem diz: por que esta súbita tempestade?

O garoto que tem o rosto decorado de espinhas parece estar perdendo a parada.

Atraca, lento e trêmulo, um velho, junto à porta. "O de sempre" - informa ao garçom, que lhe traz um mínimo cálice de Porto. Há perdas, desde o mármore da mesa até seus lábios, extravios de rubi e luz que jamais serão provados por ninguém.

No corredor, que foi encruzilhada de trilhos, que foi porto, acomoda-se um grupo de adolescentes. Não têm dinheiro para entrar aqui, ajustam-se às costas uns dos outros, feito uma expedição de pássaros noturnos.

A garota loira busca a boca do garoto decorado de espinhas.

O Poeta teria gostado da cena.

Mas chove melancolicamente lá fora e sou inclinado a crer que não há mais Poetas.

Uma excelente terça-feira, esta que marca o ante-penúltimo dia de janeiro de 2008

domingo, 27 de janeiro de 2008



I N Í C I O

Quando você começar a pensar que algo está completo, começará a ficar morto. A perfeição é morta; assim, os perfeccionistas são suicidas. Desejar ser perfeito é uma maneira indireta de cometer suicídio. Nada jamais é perfeito, não pode ser, porque a vida é eterna.

Nada jamais se conclui. Não existe conclusão na vida - apenas pontos cada vez mais elevados. Quando você atinge um ponto culminante, um outro está desafiando-o, chamando-o, convidando-o.

Assim, lembre-se sempre de que onde você estiver é sempre um início. Então você sempre permanece uma criança, você permanece virgem.

E esta é toda a arte da vida: permanecer virgem, permanecer novo e jovem, não corrompido pela vida, não corrompido pelo passado, não corrompido pela poeira que normalmente se junta nas estradas da jornada. Lembre-se: cada momento abre uma nova porta.

Isso é muito ilógico, porque sempre pensamos que, se houver um começo, deverá haver um fim. Mas nada pode ser feito. A vida é ilógica: ela tem um começo, mas não um fim.

Nada que está realmente vivo jamais termina, mas segue continuamente em frente.

- OSHO -

DANUZA LEÃO

Paris e a gastronomia

A partir daí, comecei a prestar mais atenção à carta dos restaurantes e descobri outras coisas instigantes

PARIS (a última) - A gente pensa -eu pensava- que, por ter estado tantas vezes na França, e até morado lá, entendia alguma coisa da cozinha francesa. Nem estou falando da mais moderna, mas da antiga, tradicional; qual nada.

A cada viagem, na companhia dos que entendem e prestando muita, mas muita atenção, chego, cada vez mais, à triste conclusão de que não entendo absolutamente nada dos segredos da gastronomia francesa.

Na minha última viagem, convidada por amigos, fui parar pela primeira vez num Bistrot à huitres, isto é, um bistrô onde só servem ostras.

Eu sabia que existem várias famílias de ostras; no inverno, é só passar na porta de um restaurante que as sirva, e do lado de fora, na rua, em cima de uma mesa, estão todas elas expostas, cada tipo dentro de uma cesta cheia de algas, com uma etiqueta em cima com o nome da qualidade. Até aí, tudo bem, tudo normal.

Mas nesse restaurante a coisa era bem mais complicada. Éramos seis, e o garçom foi perguntando a cada um qual o tipo que queria; só que a variedade é muito maior do que eu teria jamais imaginado.

Ficamos todos meio sem saber o que pedir, quando alguém teve a grande idéia: uma grande bandeja com vários tipos de ostra. Aleluia, a pátria estava salva.

Daí a pouco chegou um prato imenso, com oito qualidades diferentes, e tão lindo, que se eu tivesse uma maquininha, teria tirado uma foto. Mas a vida não é simples: o garçom explicou qual tipo deveria ser comido em primeiro lugar, qual em segundo, qual em terceiro, e assim por diante.

É claro que não guardei a ordem das coisas -será que alguém guardou?-, só da que deveria ser comida em primeiro lugar e a em último.

Fiquei um pouco atordoada com o lado cultural da experiência, e depois, conversando com amigos franceses, soube de mais coisas: que quase todo tipo de ostras é numerado pelo tamanho. Existem as 0, as 00, as 000, as 1, 2, 3 e 4, e os franceses já pedem dizendo a qualidade e o tamanho que preferem.

Além de tudo isso, há um tipo que só existe em raros restaurantes, e que só aparece dez dias por ano, que se chama a pérola dos tzars -a mais cara, é claro. Não é fácil, a França.

A partir daí, comecei a prestar mais atenção à carta dos restaurantes e descobri outras coisas tão instigantes quanto as ostras.

Um queijo parmezón, por exemplo, pode ter seis meses, ou 12, ou 18, ou 36, de maturação, e os presuntos também.

Além disso, existem as sardinhas millesimés, que levam de dois a seis anos para atingirem o máximo de seu sabor.

Essas -dizem- são maravilhosas. E em alguns restaurantes vem escrito na carta a procedência do pão e da manteiga.

Não vou falar dos queijos -são mais de 300-, nem dizer que existem os meses mais indicados para comer cada um deles, e que quando o garçom chega com a bandeja, dirige o espetáculo dizendo em que ordem devem ser provados, sendo que cada um com um determinado vinho; dos vinhos, é claro que não vou falar.

Detalhe: qualquer francês sabe de tudo isso na maior naturalidade, tanto os brasileiros sabem qual cerveja preferem.

E ainda há quem pense que é fácil sentar num restaurante de Paris para jantar.

P.S.: A proibição de fumar nos restaurantes e cafés criou um problema: como nas mesas que ficam nas calçadas o fumo é permitido, o chão fica coberto de pontas de cigarro, o que está poluindo a cidade.

Já se fala em multar quem jogar um cigarro na rua, e uma nova indústria está florescendo: a dos cinzeiros individuais, com tampa, para levar no bolso.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 26 de janeiro de 2008



27 de janeiro de 2008
N° 15492 - Martha Medeiros


Lá na infância

Por mais que tenhamos recebido afeto, é na infância que começamos a nos formar e a nos deformar

Qualquer pessoa que já tenha se separado e tenha filhos sabe como a gente se preocupa com a reação deles e procura amenizar qualquer estrago provocado por essa desestruturação. É preciso munir-se de muito respeito, delicadeza e amor para que essa ruptura seja bem assimilada e não produza traumas e inseguranças.

Muito do que somos hoje, do que sofremos e do que superamos, tem a ver com aquele lugar chamado "infância", que nem sempre é um paraíso. Por mais que tenhamos brincado e recebido afeto, é lá na infância que começamos a nos formar e a nos deformar através de medos, dúvidas, sensações de abandono e, principalmente, através da busca de identidade.

Por tudo isso, estou até agora encantada com a leitura de Marcas de Nascença, fenomenal livro da canadense Nancy Huston e que deixo como dica antes de sair de férias.

O livro é narrado por quatro crianças de uma mesma família, em épocas diferentes, todas quando tinham seis anos: primeiro, um garotinho totalmente presunçoso, morador da Califórnia, em 2004. Depois, o relato do pai dele, quando este também tinha seis anos, em 1982. A seguir, a avó, em 1962, e por fim a bisavó, em 1944.

Ou seja, é um romance genealogicamente invertido, começando logo após o 11 de Setembro e terminando durante a Segunda Guerra Mundial, mas é também um romance psicanalítico, e é aí que se torna genial:

relata com bom humor e sem sentimentalismo todo o caldeirão de emoções da infância, mostrando como nossas feridas infantis seguem abertas a longo prazo, como as fendas familiares determinam nossos futuros ódios e preconceitos e como somos "construídos" a partir das nossas dores e das nossas ilusões.

Mas tudo isso numa narrativa sem ranço, absolutamente cativante, diria até alegre, mesmo diante dessas pequenas tragédias íntimas.

A autora é bastante conhecida fora do Brasil e ela própria, aos seis anos, foi abandonada pela mãe, o que explica muito do seu fascínio sobre as marcas que a infância nos impõe vida afora.

É incrível como ela consegue traduzir os pensamentos infantis (que muitas vezes são adultos demais para a idade dos personagens, mas tudo bem), demonstrando que toda criança é uma observadora perspicaz do universo e que não despreza nada do que capta: toda informação e todo sentimento será transformado em traço de personalidade.

Comecei falando de separação, que é o fantasma familiar mais comum, mas há diversas outras questões que são consideradas "linhas de falha" pela autora e que são transmitidas de geração para geração.

Permissividade demais gerando criaturinhas manipuladoras, mudanças constantes de endereço e de cidade provocando um desenraizamento perturbador, o testemunho constante de brigas entre pessoas que se dizem amar, promessas não-cumpridas, pais que trabalham excessivamente, a religião despertando culpas, a política induzindo a discordâncias e exílios, até mesmo uma boneca muito desejada que nunca chegou às nossas mãos: tudo o que nos aconteceu na infância ou o que não nos aconteceu acaba deixando marcas para sempre. Fazer o quê?

Em vez de tentar escapar de certas lembranças, o melhor é mergulhar nelas e voltar à tona com menos desespero e mais sabedoria. Todos temos nossas dores de estimação. O que nos diferencia uns dos outros é a capacidade de conviver amigavelmente com elas.

Excelente domingo para todos nós.

Diogo Mainardi

359 passos ao redor do mundo

"Se filosofar é aprender a morrer, a paternidade é a filosofia do homem comum, a filosofia dos pobres de espírito, a filosofia das massas. É a única filosofia ao alcance de gente como Tom Cruise e eu"

Edmund Hillary morreu em 11 de janeiro. No mesmo dia, meu filho deu 359 passos. Escalar o Monte Everest, como fez Edmund Hillary, pode parecer um feito um tantinho mais notável do que dar 359 passos, como fez meu filho.

Mas, para quem tem uma paralisia cerebral como a dele, dar 359 passos seguidos, sem ajuda, sem cair, sem espatifar os dentes, é um evento épico, pelo menos na mitografia familiar.

Se meu filho é Edmund Hillary, eu só posso ser seu sherpa, Tenzing Norgay. Ele cambaleia de um lado para o outro, com sua marcha incerta, progredindo lentamente de metro em metro, eu me mantenho na retaguarda, indicando-lhe o caminho menos acidentado e salvando-o das quedas.

Os 359 passos de meu filho foram dados em Veneza. Já estamos planejando nossos próximos desafios. Em primeiro lugar, daremos 359 passos no Corcovado. Depois disso, 359 passos na Muralha da China.

Depois disso, 359 passos no Deserto do Saara. Depois disso, 359 passos na Acrópole. Depois disso, 359 passos no Monte Everest. Meu filho e eu daremos a volta ao mundo a pé, de 359 passos em 359 passos.

Sou um pai dedicado. O único aspecto frustrante de ser um pai dedicado é que agora todos os pais parecem ser igualmente dedicados. Time publicou uma reportagem sobre o assunto.

Ela mostra como os pais passaram a se sujeitar cada vez mais às necessidades dos filhos, desempenhando uma série de tarefas maternais.

De acordo com a reportagem, nós, pais dedicados, formamos uma nova categoria social. Mais do que isso: pertencemos a uma nova espécie. Até nosso nível de testosterona é inferior ao dos outros pais. Sou um sherpa hermafrodita.

Montaigne também era um pai dedicado. Num de seus ensaios, ele discorreu sobre o afeto paterno, ostentando sua filha Léonor, assim como eu ostentei meu filho Edmund Hillary e Tom Cruise ostentou sua filha Suri. Léonor foi a Suri do Renascimento. Em outro ensaio, Montaigne argumentou que filosofar é aprender a morrer.

Depois de uma longa temporada de férias com meus filhos, estou perfeitamente preparado para a morte. Além de ser emasculado por meus filhos, fui subjugado por eles. Deixei de existir.

Perdi a vontade própria. Desencarnei. Se filosofar é aprender a morrer, a paternidade é a filosofia do homem comum, a filosofia dos pobres de espírito, a filosofia das massas. É a única filosofia ao alcance de gente como Tom Cruise e eu.

No penúltimo dia de férias em Veneza, fomos a uma mostra fotográfica sobre a Aktion T4, o programa secreto de extermínio de deficientes físicos e mentais na Alemanha nazista.

Entre 1940 e 1941, 70.273 deficientes foram mortos, muitos dos quais crianças. Quando a SS assumiu o controle do programa, seu nome mudou para Aktion 14F13.

Até o fim da guerra, outros 200.000 deficientes foram mortos nas câmaras de gás dos campos de concentração. O Edmund Hillary da paralisia cerebral e seu sherpa hermafrodita ganharam uma nova meta: 359 passos em Buchenwald.

Ponto de vista: Stephen Kanitz

Analise o erro e não erre mais

"Infelizmente, a maioria das pessoas não admite quando erra. Mas o verdadeiro idiota não é aquele que comete erros, e sim aquele que não aprende com os erros cometidos"

Todos nós cometemos erros, faz parte da vida. Em vez de ficarmos remoendo os erros, o correto seria realizar o que chamamos de "post-mortem do problema" e aprender a lição.

Fazer post-mortem significa analisar as razões que nos levaram a tomar a decisão errada. Quem nos aconselhou errado, que dados errados usamos, qual foi o raciocínio ou a teoria equivocada utilizada, que dados temos hoje e quais deveríamos ter tido ao decidir, e assim por diante.

Infelizmente, a maioria das pessoas nem sequer admite quando erra, ou então não aprendeu a técnica na faculdade. Mas o verdadeiro idiota não é aquele que comete erros, e sim aquele que não aprende com os erros cometidos. Portanto, gaste sempre um tempinho analisando os seus erros de uma forma estruturada.

Façamos o post-mortem da CPMF. O deputado João Mellão se arrepende publicamente de ter votado pela CPMF e explica por quê: "O doutor Jatene, por sua biografia e reputação, emprestou credibilidade ao imposto do cheque e como conseqüência o Congresso o aprovou" – inclusive ele.

Primeira lição desse post-mortem: emoção é um péssimo critério para tomar decisões, e confiar na reputação intelectual dos outros, pior ainda. Quem tem de pensar é sempre você, e não os outros.

Ilustração Atômica Studio

A CPMF começou com a proposta do imposto único. Os assalariados passariam a pagar somente 1,7% a 2% de imposto no recebimento do salário, mais 1,7% a 2% na compra de bens e serviços.

Um total de 3,4% a 4% de imposto somente, uma maravilha. Ou seja, já dava para desconfiar que algo estava errado. O governo precisa arrecadar 37% do PIB, e não 3,4% a 4%. De onde então viria a diferença?

Dos empresários, dos atravessadores, dos capitalistas, dos especuladores, dos banqueiros, dos atacadistas, dos varejistas, das empresas, os inimigos de sempre. Só que eles representam 40% do PIB, na melhor das estimativas. Ninguém aceita pagar 83% do que ganha, é confisco, e portanto totalmente inviável.

Mesmo assim, é impressionante a quantidade de confederações do comércio e pequenos empresários que dão apoio ao imposto único. E imaginem a fila de prefeitos, governadores e ministros que se formaria atrás do ministro da Fazenda para rediscutir a divisão do imposto único.

Paralisaria o país. Foi exatamente o que aconteceu com a CPMF. Dedicada inicialmente a gastos de saúde, ela logo teve a sua fila quilométrica e destinações diversas.

A CPMF jamais deveria ter sido criada, muito menos recriada, como querem alguns.

O setor de saúde deveria lutar por parte do IPI da Souza Cruz, pelo menos o necessário para custear os estragos médicos causados pelo tabaco, como o enfisema e o câncer de pulmão. Deveria lutar pela receita das multas de quem não usa cinto de segurança para custear as cirurgias de quem se espatifa no pára-brisa de seu carro.

Deveria lutar por parte do IPI ou do ICMS das indústrias de alimentação que exageram no sal para custear as complicações médicas da hipertensão. Em administração, isso se chama custeio ABC: achar a correspondência, mesmo que indireta, entre despesas e receitas. Quanto mais cigarros forem vendidos, maior será a receita da área de saúde.

A Fiesp quer redução de impostos sem reduzir despesas de saúde. Mas como? O custeio ABC permite uma inteligente forma de reduzir tributos.

Negociar a redução de sal nos alimentos e biscoitos em troca da redução do imposto, por exemplo, algo que a Fiesp poderia fazer. Reduzir carcinogênicos em troca de redução do IPI do fumo. Imposto criado sem destinação é convite à malversação e à gastança e permite sonegação de serviços públicos acordados em lei.

Os economistas são normalmente a favor da desvinculação de receitas porque eles não são bobos. Desvincular receitas facilita a vida deles e aumenta o poder do ministro da Economia.

Nem toda despesa do governo pode ser rateada, logicamente o custeio ABC não é uma panacéia, mas tem sua aplicação em muitos casos. Na dúvida, ficaria o padrão usual: os ricos pagariam mais pelos serviços prestados pelo estado, via imposto de consumo ou imposto de renda.

Por todas essas razões, a CPMF entrará na história econômica do Brasil como um imposto mal votado, mal concebido, mal pensado, desvirtuado, cuja alíquota de 0,38% vai continuar, incorporada que foi em outros impostos que não carregam o seu nome.

Stephen Kanitz é administrador (www.kanitz.com.br)


É seguro voar de avião no Brasil?

Não é não!

Seria se muitas das decisões tomadas não fossem de cunho absolutamente político.
Alguns pontos preocupam-me e, por isso mesmo, merecem destaque.

1) A voracidade das empresas aéreas nacionais (nacionais?) em agigantar-se, ao menos no que diz respeito às três grandes: TAM, Gol e Varig. As demais ficam, como se diz na linguagem carnavalesca, na "pipoca".

Querendo, porém, saltar da panela e crescer também. Antes, nos tempos de Departamento de Aviação Civil (DAC), o crescimento das empresas aéreas era mais controlado. Hoje, entretanto, quem as regula é o mercado, que está aquecido no que tange a crédito.

O lado positivo disso, é precio admitir, é que o transporte aéreo está bem mais socializado: deixou de ser transporte de elite para acolher aqueles que viajam à Casas Bahia.

2) Normas, regras, doutrinas, regulamentos, podem ser flexibilizadas se for do "interesse geral da nação". Nosso prezado ministro da Defesa assumiu seu papel com posições firmes, claras, norteadoras, no sentido de se incrementar a segurança.

Hoje, esse ministro já não é mais o mesmo. Talvez ambições não tão declaradas o tenham levado a ordenar ao Conselho Nacional de Aviação (Conac) que transija com Congonhas (nosso aeroporto paulista), a fim de atender os interesses das aéreas e o clamor dos usuários, que não têm elementos suficientes para analisar riscos que correm.

Afinal, fosse eu um político, jamais desprezaria a força que uma empresa aérea pode oferecer em uma campanha política. O apoio de uma única empresa é equivalente a milhões de votos. Todas então, nem se diga.

3) A parte que diz respeito ao controle aéreo é outra questão que me preocupa. Essa parte é vital ao sistema e precisa de tempo e investimentos para se adequar à nova realidade. Para formar um controlador de tráfego leva-se tempo. Além da teoria, é necessária muita prática.

Não bastasse isso, os atuais controladores, desesperançados com a profissão que abraçaram e amam, estão indo embora, trocando seus consoles e radares por profissões públicas e privadas, visto que a maior parte deles tem o terceiro grau. Sem mencionar os fortes indícios de desrespeito das condições trabalhistas, uma vez que, como militares, o regulamento que prevalece é o da caserna.

4) Congelar o crescimento da frota nacional seria uma medida justa, correta e necessária, a fim de adequar paulatinamente o sistema de transporte aéreo civil no Brasil. Levará tempo, porém, para ajustarmos as reais necessidades com as reais possibilidades. Só assim teremos um crescimento ordenado e firme.

5) As vontades de nossos políticos são terríveis! Legislam, quando não em causa própria, fazem-no em nome de minorias que, no final das contas, não perecem em acidentes aéreos, visto que viajam em seus próprios aviões ou em aeronaves do Grupo de Transporte Especial (GTE) da FAB. Nesse caso, a distância do encosto da poltrona da frente é compatível com o comprimentos das pernas dos políticos e autoridades que ali se assentam.

O povo, ora o povo... Leva-me a crer que a Zélia Cardoso de Melo e o ministro da parabólica tinham razão.

No final, ao povo (usuários) resta correr atrás do seguro de morte, que não substitui jamais o ente perdido. Levará nessa peleja um, dois, ou dez anos, não importa! Dezenas de parentes de vítimas do acidente ocorrido em 1996 no bairro do Jabaquara, em SP, ainda não viram um tostão, porém, a(s) empresa (s) vai(ão) bem, obrigado.

(Carlos Camacho)


Preocupe-se

Documentos inéditos da Aeronáutica revelam situações de alto risco de acidentes no espaço aéreo brasileiro. Duas tragédias não foram suficientes?



No dia 12 de junho do ano passado, o airbus 319 da Presidência da República, conhecido como Aerolula, decolou do Aeroporto Internacional de Guarulhos por volta das 15h30.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participara do 7º Congresso Nacional dos Metalúrgicos da CUT e voltava para Brasília. Toda vez que o avião da Presidência da República liga o motor, o controle de tráfego aéreo redobra a atenção.

As distâncias entre as aeronaves são ampliadas e o controlador passa a tratar como prioridade o avião que aparece na tela de controle com a sigla FAB01, o principal avião da frota da Força Aérea Brasileira.

Naquele dia não foi diferente. O Aerolula era o centro das atenções. Até que uma pane na sala de controle de Guarulhos apagou três dos quatro consoles, os aparelhos que permitem a visualização das aeronaves.

Com apenas um deles funcionando, o controlador responsável pela segurança da aeronave presidencial passou a monitorar também outros 13 aviões. Naquele instante, um Boeing 777 da Alitalia, prefixo AZA677, que decolara de Guarulhos rumo à Itália, se aproximava rapidamente de um avião bimotor particular prefixo PT LYZ. Havia alto risco de colisão.

O controlador de vôo, percebendo a possibilidade do acidente, desviou a trajetória do avião italiano. Mas, como a rota das duas aeronaves previa uma curva logo adiante, o desvio determinado acabou jogando uma aeronave contra a outra.

Apenas 30 metros separaram a barriga do avião da Alitalia do teto do bimotor. Parece uma distância longa. Para aviões a uma velocidade média de 900 km/h, não é. A margem mínima de segurança, determinada por padrões internacionais, é 300 metros.

O relatório interno da Força Aérea Brasileira (FAB) classificou o incidente como grave, com risco crítico de colisão. A conclusão da investigação interna da Aeronáutica é uma síntese dos problemas do controle do tráfego aéreo brasileiro: os equipamentos falham, e os controladores trabalham em condições inadequadas e sobrecarregados.

O controlador, com 14 aviões na mesma tela, sendo um deles o Aerolula, errou. E quase causa uma tragédia.

Não foi o único caso de um quase acidente nos últimos meses. Documentos internos da Aeronáutica, a que ÉPOCA teve acesso, mostram centenas de registros de falhas no controle de tráfego aéreo.

Elas vão desde panes em equipamentos e falta de manutenção até a existência de pontos no espaço aéreo brasileiro que os radares não conseguem monitorar.

São falhas parecidas com as que contribuíram para o acidente com o Boeing da Gol em setembro de 2006. Após se chocar com um jato Legacy, o avião da Gol caiu, matando 154 pessoas.

Durante as investigações desse desastre, o país foi alertado para os problemas de pessoal e de equipamentos do controle aéreo. E passou a ter dúvidas sobre as reais condições de segurança da aviação brasileira.



Em 6 meses, 8 promessas não cumpridas

Os recuos do ministro da Defesa, Nelson Jobim
O que foi anunciado
• As companhias aéreas vão reembolsar os passageiros em caso de atraso nos vôos
• Reduzir o desconforto nos aviões, aumentando o espaço entre poltronas
• Reajustar o salários dos militares, incluindo os controladores de vôo
• Iniciar a construção de um terceiro aeroporto em São Paulo
• Conduzir a desmilitarização do controle do tráfego aéreo brasileiro
• Restringir o número de conexões no aeroporto de Congonhas, em São Paulo
• Construir uma terceira pista no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, São Paulo
O que foi feito
• Até agora, a medida não foi regulamentada. Se o reembolso vier, será em milhas
• A idéia está no limbo. Uma consulta pública ainda não obteve resultado prático
• Com o fim da CPMF, o governo suspendeu aumentos salariais
• O plano foi adiado. As obras não vão começar antes do fim de 2009
• A idéia, que partiu do Palácio do Planalto, foi engavetada
• As empresas aéreas burlaram a proibição, e o governo recuou
• O governo desistiu do projeto. Diz que fará um novo terminal de passageiros

Fotos: Adriano Machado/AE, Anderson Schneider/ ÉPOCA

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008



24 de janeiro de 2008
N° 15489 - Nilson Souza


Feia, mas linda

Um professor neozelandês acendeu o rastilho da indignação nacional esta semana ao elencar no seu site as melhores e as piores bandeiras do mundo, considerando apenas o valor estético.

A brasileira ficou em quarto lugar no ranking internacional da feiúra e foi considerada por ele a mais feia entre todas as nações independentes.

Para alfinetar mais ainda o orgulho nacional, o homem classificou como bela a bandeira argentina, pela boa escolha de cores. Nem preciso dizer que a brasileirada subiu nas tamancas, despejando na internet comentários do tipo:

- Feia é a vovozinha desse camarada!

Pobre velhinha. Jamais imaginou que seu neto provocaria tanto furor numa nação do outro lado do mundo simplesmente por considerar que as cores de nosso pavilhão nacional não combinam e também por abominar frases em bandeiras. Na verdade, nosso símbolo augusto da paz não chega a ser unanimidade nem aqui.

Muita gente torce o nariz para o lema positivista que corta o globo azulado e há também quem implique com as formas geométricas, com o colorido e até com o excesso de estrelas.

Gosto é gosto. Pelo meu, nossa bandeira é linda.

Adoro vê-la tremulando contra as nuvens nos dias de vento ou enrolada no corpo dos jovens de cara pintada que freqüentam manifestações de rua e arquibancadas de praças esportivas.

Fico feliz quando a identifico no meio de multidões estrangeiras, seja numa corrida de Fórmula-1 ou numa missa dominical em frente ao Vaticano. Já mais de uma vez, em viagens ao Exterior, deixei escapar lágrimas de saudade ao deparar com o pendão verde-amarelo.

Uma vez, em Sevilha, fiquei extasiado numa plantação de girassóis que se transformou, diante de meu olhar saudoso, numa imensa bandeira do Brasil.

Nossa bandeira é bela porque sempre a enxergo com os olhos do coração.

Pouco me importa se a união do retângulo verde com o losango de ouro e o círculo celeste fere o senso estético do mestre neozelandês.

Para mim, aquela aquarela de constelações será sempre a combinação mais harmoniosa do mundo, pois representa a terra onde nasci, os dias mais prazerosos de minha vida e as pessoas que mais amo.

Por isso, sempre vou ver naquele pano multicolorido, mesmo quando desbotado, um pedacinho do céu da minha pátria - onde poderei identificar a estrelinha branca que simboliza o meu Estado natal.

Feia, professor?

Só para quem não sabe o significado que o povo brasileiro deu para cada cor da sua bandeira.

Aquele verde é o ar que o senhor respira, aquele ouro é a riqueza do nosso planeta, o azul é a nossa aspiração de eternidade e o branco é o nosso desejo de que o senhor e a sua vovozinha vivam em paz.

Excelente quinta-feira com temperatura elevada outra vez por aqui, mas com muita Paz no Palácio Piratini.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008



23 de janeiro de 2008
N° 15488 - Martha Medeiros


Guerreiras e heróis

Não estou assistindo ao Big Brother, mas vi a chamada para o programa dia desses. Mostrava uma moça, uma das participantes, olhando pra câmera e dizendo com ar dramático: "Eu sou uma guerreira!!".

É de dar nos nervos. Guerreira por quê? Porque está participando de um programa de televisão que vai levá-la, no mínimo, à capa da Playboy?

Guerreira porque foi escolhida entre milhões de candidatos para ficar comendo do bom e do melhor e jogando conversa fora com um monte de desocupados? As pessoas não têm culpa de serem burras, mas mereciam uma surra por se levarem tão a sério.

O Big Brother é um programa de tevê como outro qualquer e não defendo sua extinção, mas é preciso ficar atento a certos exageros.

Por exemplo, é um exagero condenar o jornalista Pedro Bial por apresentá-lo, o cara está trabalhando, só isso. Por outro lado, ele perde a noção quando chama aquele pessoal de "nossos heróis".

É o mesmo caso do "guerreira": a troco de que usar essas expressões graves e superlativas para falar de uma brincadeira televisiva onde todos sairão ganhando?

O que irrita no Big Brother, mais do que sua inutilidade, é o fato de os participantes serem tratados como vítimas. Qual é? Circula pela internet um arquivo PPS que, pela primeira vez na história dos PPS, me tocou.

Ele mostra heróis de verdade: homens e mulheres que abrem mão do conforto de suas casas para fazer trabalho voluntário em aldeias na África e em clínicas móveis no Líbano.

São pessoas que oferecem ajuda humanitária internacional através do programa Médicos sem Fronteiras e que não medem esforços para dar amparo e assistência a moradores de ruas e demais necessitados, seja no fim do mundo e ou aqui mesmo nas ruas do Brasil. Isso é heróico, isso é ser guerreiro.

Quantos de nós, bem nascidos e bem criados, abrem mão de seus pequenos luxos para ajudar quem precisa?

Por isso, se você é da turma que liga pro Big Brother pra votar em paredões, pense melhor antes de erguer o telefone. Direcione sua ligação para um programa assistencial, gaste seu dinheiro com algo que realmente seja útil.

Assista ao BBB, divirta-se e dê audiência, não há nada de errado com isso, mas cada vez que tiver o impulso de ligar pra tirar fulano ou sicrana do programa, se toque: tem gente mais necessitada precisando da sua ligação.

O site do Unicef traz uma lista de entidades que você pode colaborar dando apenas um telefonema. Quer dar uma espiadinha? Então espie o que está acontecendo à nossa volta.

Uma ótima quarta feira esta que marca sempre o Dia Internacional do sofá.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008


Crônica de Távola - Terça 22-01-2008

O LADO FORTE DO FRACO

A palavra fraco é perigosa. Quer dizer várias coisas. Para não complicar, explico como a vou tomar, para os efeitos desta crônica: fraco, no sentido de suficientemente forte para não sepultar o lado mais carente, para aceitar as próprias fraquezas como expressão de uma parte do ser.

Assim colocado, fique claro que não entendo aqui fraco no sentido de boboca, ou de sem energia suficiente para enfrentar as necessárias durezas da vida.

No próprio conceito de beleza, atualmente, as moças preferem determinados tipos físicos considerados um pavor anos atrás. Hoje, um instante de timidez exala muito mais charme que quinhentos bofetões em desafetos.

Há tipos que comovem muito mais por sua fraqueza que pela força ou onipotência, bem como por uma visível emersão do fraco como sentido de beleza ou atração.

E embora toda mulher carregue seu masoquismozinho óbvio ou enrustido, hoje ela está preferindo sofrer com, que contra o homem amado.

A aceitação de núcleos menos olímpicos da personalidade coincide com um melhor autoconhecimento, graças aos avanços e à influência da psicologia. Há uma busca de integração entre os vários caracteres componentes do homem.

Essa integração leva as pessoas a aceitarem sua parte mais fraca como componente do todo, e não como defeito grave a ser sepultado nas dobras do inconsciente.

Muitas características consideradas fracas, e, por isso, guardadas, anos e anos, dentro de nós, fracas não são. Fossem, teriam morrido.

São tão fortes que não morreram apesar de nossas defesas externas terem feito tudo para ocultá-las ou ignorá-las em nossa própria personalidade.

Tanto as filosofias orientais como o cristianismo têm uma visão desse sentido do fraco que está no cerne de sua força e eternidade.

E, numa sociedade de cidades grandes, superpopulação, velocidade, barulho, onipotência, conflitos no mundo inteiro, o homem cansado olha para si mesmo, contempla o que ficou como fraco no lugar reservado (e escondido) para o que tem de criança e flor, e com ele se identifica silenciosamente.

Sente saudades de sua fraqueza, entende-a melhor, sem receios, e suspira. Feliz por ser como é. Nem falso forte, nem fraco boboca.


22 de janeiro de 2008
N° 15487 - Liberato Vieira da Cunha


E por falar em viagens

Escrever crônicas é viver em voz alta, dizia Rubem Braga. Ao que ouso acrescentar que, num jornal tão lido como Zero Hora, é também conhecer pessoas agradáveis e ser apresentado volta e meia a teses inusuais.

Libertei esses tempos no papel certos conceitos baldios sobre viagens. Uma dama que aqui chamarei de K. tomou da pena para declarar que as viagens são na real uma reverenda droga (em verdade, a palavra de que se valeu foi um tanto mais contundente).

Contou ela que chegou a ser uma turista de larguíssima milhagem, mas hoje a simples idéia de comprar uma passagem lhe provoca urticária.

Se você vai ao Exterior, argumenta, precisa estar no aeroporto duas horas antes da partida - e isso se não for época de apagão aéreo. A classe econômica dos aviões de longo curso é no geral uma lata de sardinhas.

Ninguém pode espichar as pernas, os cotovelos se colam e o serviço de bordo caiu na mesma proporção do lucro das empresas. Os hotéis, mesmo os carentes de estrelas, cobram os tubos. Nossa moeda é uma ficção.

E o pior: em toda excursão tem um chato que azucrina sem dó nem piedade a paciência de seus companheiros de jornada. Por essas e mais razões, K. não consegue entender como eu posso encontrar prazer no que em verdade é uma tortura móvel.

Bem, K., talvez pela infância que tive. Nas noites quietas de Cachoeira, a casa adormecida, eu ouvia o apito do trem noturno e me pegava sonhando com terras distantes.

Mais tarde, já em Porto Alegre, contemplava da sacada do apartamento os navios que singravam as águas do Guaíba, em demanda da lagoa, do oceano, do infinito universo que principiava além da barra de Rio Grande.

E escutava meus pais falando com seus amigos sobre a França, o país de sua terna predileção, que jamais chegaram a descobrir. (Da vez primeira em que pisei em Paris, pensei: não estou aqui por mim, mas por eles.)

Como percebes, K., é um negócio atávico.

Correr mundo é um castigo, como sustenta a tua teoria? Sinceramente, não creio. Até porque nas viagens, K., o tempo flui de um modo único e inimitável e não é raro que, em alguns minutos de plenitude, caiba a inteira eternidade.

domingo, 20 de janeiro de 2008


DANUZA LEÃO

Um avô

Um avô que me ensinasse, pelo exemplo, a ser gentil, atenta aos outros, que me desse muita atenção

PARIS - Eu já estava no meio do jantar quando eles chegaram e se sentaram na mesa ao lado. Ela uma senhora vaidosa, com os cabelos pintados, brincos, anéis, essas coisas que nós mulheres gostamos de usar.

Ele, um senhor já bem senhor, daqueles que só se vêem na França. Um senhor daqueles bem idosos de antigamente.

Pequeno, magro, os cabelos completamente brancos cortados curtos, olhos azuis e bochechas rosadas. Como era inverno, ele, muito elegante, usava um suéter, um paletó de tweed, um cachecol e um gorrinho de lã que tirou, assim que se sentou à mesa.

Dava para perceber que devia cheirar a lavanda. A pele era fina, e sem uma só ruga.

O casal não tinha a rapidez da juventude; o andar era lento, os gestos, vagarosos, e as palavras, calmas. Ele ajudou-a a tirar o casaco, esperou que ela se sentasse (na banqueta ao meu lado) e só então se sentou, diante dela.

Levaram um bom tempo para escolher o que iam comer, e era comovente ver como ele procurava saber do que ela gostaria, e dando sugestões; delicado, sempre muito atento a tudo que ela dizia, e sem nenhuma impaciência ou pressa, características dos muito jovens. E falavam baixinho.

A garrafa de vinho chegou, ele provou primeiro, disse ao garçom que estava aprovada; serviu a sua dama, em primeiro lugar, depois a ele mesmo.

Pediram uma grande bandeja de frutos do mar, e a cada um que comiam, faziam um comentário; como a maioria dos franceses, eles conheciam o assunto.

Deixaram para o final um siri imenso, e com toda a calma do mundo -e com pinças especiais- tiraram até o último pedacinho da carne, sempre comentando sobre o que estavam comendo.

Deram toda a importância do mundo ao jantar, e depois da conta paga -sem pressa- ele se levantou, puxou a mesa para que sua companheira pudesse sair, ajudou-a a colocar o cachecol, o casaco, depois vestiu o seu, colocou o gorrinho na cabeça e saíram, ela na frente, ele atrás.

Imagino que já tivessem passado há um bom tempo dos 80, mas ainda tinham o prazer da boa mesa, da boa companhia. Seriam casados?

Acho que não, velhos casais não costumam ter tantos assuntos, e raramente saem sozinhos para jantar.

Fiquei pensando em como gostaria de ter tido um avô como ele. Um avô que me levasse a um restaurante quando eu era criança, me fizesse conhecer os mistérios das ostras, a reconhecer um bom vinho.

Um avô que me ensinasse, pelo exemplo, a ser gentil, atenta aos outros, que puxasse a cadeira para mim, que me desse muita atenção, aquela que só se dá às pessoas de quem se gosta muito.

Que me forçasse, delicadamente, a pedir uma sobremesa; que me perguntasse, antes de pedir a conta, se eu estava contente, e que quando saíssemos, de mãos dadas, parasse para me comprar um saquinho de chocolates, assim por nada, só porque isso é coisa de avô.

Um avô que cheirasse a lavanda como ele devia cheirar, calmo como ele, gentil como ele, com os olhos tão azuis quanto os dele, e que gostasse muito de mim.

Só que aos três anos eu já não tinha mais nenhum avô, e como nunca tive, nunca me ocorreu que eles me faziam falta.

Mas nessa noite -e pela primeira vez- pensei em como seria bom ter tido um avô que gostasse muito de mim.

danuza.leao@uol.com.br


20 de janeiro de 2008
N° 15485 - Martha Medeiros


O direito ao sumiço

Aos 20 anos, saí pelo mundo sozinha para tentar entender o real significado de "estar" sozinha. Hoje, a tecnologia dos mil olhos não deixa mais ninguém sumir por uns tempos

São poucos os adolescentes que não sonham, um dia, em passar uma temporada fora do país. Nem todos realizam, obviamente - não é um sonho barato.

Mas juntando umas economias aqui, um fundo de garantia ali, se inscrevendo num programa de intercâmbio ou simplesmente munindo-se de coragem e uma mochila, muitos conseguem embarcar num avião: hora de dar um tempo pro Brasil, aprender outro idioma, meter a cara lá fora.

Eu tive essa oportunidade aos 20 e poucos anos. Poupei dinheiro, acumulei férias não vencidas na empresa onde trabalhava e saí para o mundo sozinha, interessada em conhecer vários lugares mas, principalmente, interessada em entender o que significava, afinal, esse "sozinha".

Que delícia. Ninguém saber onde estou, o que comi no almoço, quais os meus medos, quem eram as pessoas com quem eu cruzava.

Olhar para os lados e não reconhecer nenhum rosto, direcionar meus passos para onde eu quisesse, sem um guia, sem um acordo prévio, liberdade total. Desaparecida no mundo. Isso me conferia uma certa bravura, fortalecia minha auto-estima.

Claro que eu telefonava para casa de vez em quando e escrevia cartas, fazendo os relatos necessários e tranqüilizando o pessoal, mas eu estava sozinha da silva com meus pensamentos e emoções novas.

Aí veio a tecnologia, com seus mil olhos, e acabou com essa história de sozinha da silva. Hoje ninguém mais consegue tirar férias da família, dos amigos e da vida que conhece tão bem.

Antigamente era uma aventura fazer um auto-exílio, sumir por uns tempos. Mas isso foi antes do Skype. Do MSN. Do e-mail. Hoje, nem que você vá para outro planeta consegue desaparecer.

Claro que só usa essa parafernália tecnológica quem quer. Você pode encontrar uma dúzia de cybercafés em cada quarteirão da cidade em que está e passar reto por eles, fazer que não viu.

Mas sua mãe, seu pai, sua namorada, sua irmã, seu melhor amigo, todos eles sabem que você está vivendo coisas incríveis e querem que você conte tudinho, em detalhes.

Não custa nada mandar um sinal de vida, pô. Todos os dias, claro! Dois boletins diários: às 11h da manhã e no fim da noite, combinado.

Sei que quando chegar a hora de minhas filhas sumirem no mundo vou rezar uma novena para abençoar a sagrada internet, mas não quero esquecer jamais da importância de se respeitar o distanciamento e o prazer que o viajante sente ao estar momentaneamente fora de alcance, sem rastreamento, sem monitoração.

Para os que ficam, é um alívio poder sentir próximo aquele que está longe, mas aquele que está longe tem o direito ao sumiço - e o dever até.

Quem não desfruta do privilégio de deixar uma saudade atrás de si e curtir o "não ser", "não estar" e "não ser visto", perde uma das sensações mais excitantes da vida, que é se sentir um estrangeiro universal.

Um excelente domingo para todos nós.

sábado, 19 de janeiro de 2008


André Petry

Sonho de sinecura

"Lupi parece mas não é. Além das idéias que parecem úteis mas não são, Lupi não fala. Ele arenga às massas. Lupi não administra. Ele realiza sonhos. Comporta-se como ministro, mas não passa de um constrangimento"

O ministro Carlos Lupi, do Trabalho, está empenhado em realizar o que chama de "o meu sonho". Seu sonho é criar casas de trabalhadores brasileiros no exterior.

Nessas casas, os brasileiros que vivem lá fora terão acesso a informações sobre obtenção de visto de trabalho, legislação trabalhista e lazer.

No lançamento de 100.000 cartilhas que serão distribuídas nos aeroportos brasileiros e outros locais com orientações sobre a vida no exterior, o ministro definiu seu sonho: "Lá, o brasileiro vai poder escutar música popular e comer um feijãozinho amigo para matar a saudade".

É precisamente assim que se criam as sinecuras. Parecem úteis, quando na verdade são apenas mais um cabide de emprego público inútil e dispendioso.

Amparar brasileiros no exterior é missão do governo, mas fica difícil entender por que é preciso criar casas de trabalhadores quando existe o Ministério das Relações Exteriores, que consumiu mais de 750 milhões de reais no ano passado para, entre outras coisas, manter sua rede de 100 embaixadas pelo mundo e meia centena de consulados.

Em qualquer país civilizado, os servidores no exterior e as instalações diplomáticas servem para prestar assistência aos compatriotas. Se a rede brasileira lá fora faz um trabalho bom ou ruim, é outra discussão – embora seja certo que não existe para servir feijoada.

Para coroar sua desorientação, o ministro Lupi resolveu realizar seu sonho no momento em que os brasileiros começam a voltar para o Brasil.

O ritmo do crescimento econômico, a maior oferta de empregos e o dólar fraco, combinados com a ameaça crescente de recessão nos Estados Unidos, acabaram por criar esse novo quadro em que as tais casas vão ficando especialmente desnecessárias. Estima-se que haja 4 milhões de brasileiros no exterior.

Não há números precisos sobre a quantidade que já fez o caminho de volta, mas a cidade mineira de Governador Valadares, o maior símbolo da emigração nacional, já sente os efeitos dos dólares que começam a escassear.

O grosso dos emigrados está nos Estados Unidos, no Japão, no Paraguai e em alguns países europeus. Lupi já decidiu que as primeiras casas dos trabalhadores serão em cinco países: Estados Unidos, Japão, Itália e Portugal. O quinto país não foi definido. A sinecura não quer exilar-se em Assunção.

Com esse tipo de patacoada, Lupi é cada vez mais um ministro que parece mas não é. Além das idéias que parecem úteis mas não são, Lupi não fala.

Ele arenga às massas. Lupi não administra. Ele realiza sonhos. Comporta-se como ministro, quando não passa de um constrangimento. Em dezembro passado, a Comissão de Ética Pública pediu que escolhesse entre ser ministro e presidir seu partido, o PDT.

A comissão entendeu que a acumulação dos cargos fere o código de conduta das autoridades federais. Lupi saiu-se com a avaliação de que estar nos dois cargos "não é ilegal". Ninguém disse que era. Lupi diz entender de lei, mas não entende de ética.

É claro que o presidente Lula não tomou a decisão de demiti-lo, nem pediu que deixasse o comando do PDT. Assim, ministro e comissão de ética ficam mancos, parecendo ser sem sê-lo.

Para um governo que, às portas de uma crise energética, contrata Edison Lobão para as Minas e Energia, até que faz sentido. Lobão é outro que vai direto para a fila dos ministros que parecem mas não são.

Ponto de vista: Lya Luft

O jovem policial

"Se fôssemos um país mais educado, menos policiais morreriam por nós, menos cidadãos seriam assaltados e mortos, menos jovens se tornariam malfeitores, menos força teriam os narcotraficantes"

Eu estava botando gasolina no tanque de meu carro e do meu lado estavam dois carros da Brigada Militar. Dois policiais falavam com alguém do posto.

Um terceiro, bem junto da minha janela, de costas para mim, portava uma arma grande, que na minha ignorância acho que poderia ser um fuzil ou uma metralhadora. Estava ali, sozinho, e comecei a observá-lo sem que me notasse.

Tenso, alerta, consciente de sua missão, olhava para os lados empunhando sua arma com o cano voltado para baixo. Seu rosto era jovem, tão jovem que me comovi. Podia ser meu filho.

Mais: podia ser meu neto. Estava tão concentrado no seu dever, tão alerta na sua posição, que fiquei imaginando se, ou quando, ele poderia levar um tiro de algum bandido. Poderia ficar lesado gravemente.

Poderia morrer. Por mim, por você, por um de nós, em qualquer parte do Brasil, não importa que nome se dê à sua corporação nem se é da guarda estadual, municipal, federal.

Esses jovens se expõem por nós. Morrem por nós. Tentam, num país tão confuso, proteger o cidadão. A gente realmente pensa nisso? Uma vez ao dia, uma vez por semana, uma vez ao mês?

Ilustração Atômica Studio

Tentei imaginar também como eu me sentiria se um de meus netos tivesse essa profissão. Que suspiro de alívio a cada noite, ou a cada manhã, sabendo que ele estava em casa.

Que angústia sempre que se noticiasse uma perseguição, um tiroteio. Quanto ganha para se expor assim um rapaz desses? Esse tinha na mão esquerda uma fina aliança.

Podia ter filhos, com certeza muito pequenos, dada sua pouca idade. Que vida a de milhares de famílias, em troca, penso eu, de uma compensação financeira diminuta.

Impressionada com sua seriedade, com a realidade concreta daquela arma enorme, e com quanto de repente me senti em dívida com aquele quase menino, teimei em adivinhar: quanto ganharia ele? Tanto quanto uma boa empregada doméstica, que não arrisca a vida embora seja importantíssima numa casa bem organizada onde a valorizam?

Tanto quanto uma professora de escola elementar, que vende quinquilharias ou doces feitos em casa para colegas no intervalo das aulas, a fim de se sustentar?

Tanque cheio, saí rodando, pensativa: a educação e a segurança são o primeiro eixo da vida de um país digno. Elas e outros tantos fatores. Mas eu, naquele dia, quis pensar em educação e segurança.

Com elas gastam-se quilômetros de papel e uma eternidade em falação. Se fôssemos um país mais educado, menos policiais morreriam por nós, com certeza menos cidadãos seriam assaltados, violentados e mortos, menos jovens se tornariam malfeitores, menos força teriam os narcotraficantes.

Menos jovens de classe média alta se matariam nas estradas ou venderiam drogas mortais a seus colegas nas escolas ou nos bares.

O problema, o dilema, a tragédia é saber por onde começar: educação começa em casa. Mas, diz um psicólogo amigo meu, os meninos (e meninas) problemáticos (aqui não falo dos saudáveis, que constroem uma vida) em geral não têm pai ou mãe em casa, e têm poucos modelos bons a seguir.

Nas escolas, professores e professoras são mal pagos, desestimulados, sobrecarregados e desanimados (não todos, portanto não me xinguem por isso).

Nesse caso, a educação deveria começar pelo alto: pelas autoridades, pelos políticos, pelos líderes. Não posso dizer que o Brasil está sendo brindado com uma maioria de políticos modelares, de líderes positivos, de autoridades de atitude impecável.

Então vivemos um dilema triste: começar por baixo, pela faixa etária menor, pela educação em casa e nos primeiros anos na escola, ou começar a reformar a mentalidade dos altos escalões, nos quais alguns líderes se destacam pela autoridade moral e elevada postura, mas a maioria, sinto muito, está longe disso?

Não creio que haja resposta. Eu não a tenho. Quem a tiver que sugira aos governos, ou aos pais, ou aos colégios. De momento, parece-me que estamos apenas despertando para essa questão crucial, sem a qual nada se fará de importante neste nosso país das utopias.

Lya Luft é escritora

Por RODRIGO CARDOSO

Angra dos ricos

Com mansões, iates e ilhas particulares, angra dos reis é o ponto de encontro dos milionários no verão

GÔNDOLA A pedagoga Márcia Bortolai vai ao supermercado de iate uma vez por semana


No verão, existe um lugar no Brasil onde boa parte do PIB nacional se encontra para curtir os dias de calor nas águas transparentes com temperatura de 29 graus.

Onde transporte é sinônimo de lancha e não de carro. Onde a beleza e a privacidade das ilhas desertas atraem turistas bilionários como Andrea Casiraghi, herdeiro do trono de Mônaco, Athina Onassis e Paul Allen, um dos donos da Microsoft.

Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, tem duas mil praias, mas é em alto-mar que o glamour e a fama da cidade estão ancorados. Lá, ao redor de uma das 365 ilhas da baía, a diversão de gente do porte de Eike Batista, o brasileiro dono de uma fortuna estimada em R$ 17 bilhões, é atracar seu iate e passar o dia por ali – ou até mesmo dormir na embarcação.

O tricampeão de Fórmula 1 Nelson Piquet faz o mesmo, com a diferença que chega pilotando seu helicóptero e o pousa no heliponto de sua lancha, a Pilar Rossi, de 120 pés.

A poucos metros dessas mansões flutuantes, milionários como a socialite paulista Yara Baumgarten e o cirurgião plástico carioca Ivo Pitanguy já abriram suas mansões incrustadas em ilhas cinematográficas (leia quadro) para receber, respectivamente, Athina, neta do bilionário armador grego Aristóteles Onassis, e Jimmy Carter, ex-presidente dos Estados Unidos. Quinze dias atrás, o príncipe e a princesa de Mônaco, Andrea, 23 anos, e Charlotte Casiraghi, 21, visitaram Angra.

“O melhor lugar do verão foi aqui e agora”, disse Andrea a Marcelo Horta, gerente da ilha de Itanhangá, onde os herdeiros dançaram ao som de música brasileira no lounge, beberam caipivodca, comeram lula à dorê no restaurante e assistiram ao pôr-do-sol de um mirante.

Os motivos que fazem de Angra o playground preferido de gente endinheirada e do jet set internacional é resumido da seguinte forma pelo dentista carioca Olympio Faissol, 74 anos, que há 36 é dono de um pedaço de terra de 400 mil m2 na Ilha da Gipóia, área que ficou conhecida como praia do dentista:

“Não há no Brasil um local como esse, com mais de 300 ilhas, água morna o ano inteiro, sem terremoto e sem tsunami. Um lugar onde, no mar, você só encontra gente bonita e elegante.”


DESPOJADOS O príncipe Andrea e a princesa Charlotte, de Mônaco, na Ilha de Itanhangá: caipivodca, lula à dorê e MPB

É verdade que a Angra charmosa se encontra entre as águas da baía de Ilha Grande, mas há bastante luxo em terra firme, próximo à enseada. Das cerca de 25 mil casas de veraneio, algumas são verdadeiras mansões, com 18 cômodos, monitoradas por câmeras, com piscina aquecida, sauna, academia de ginástica e tevê de plasma.

No Condomínio do Frade, o mais nobre da região, que conta com campo de golfe e heliponto, alugar um imóvel por dez dias durante a temporada mais quente do ano chega a custar R$ 400 mil.

Além do conforto, do tamanho e da capacidade, o que faz um imóvel custar R$ 40 mil a diária – o equivalente ao preço de um apartamento de um dormitório em São Paulo – é a possibilidade de o abastado inquilino sair do jardim, pisar em um píer e embarcar em uma lancha atracada na porta de casa. No hotel do condomínio, o pacote de Réveillon de cinco noites para duas pessoas custava R$ 17 mil.

PARAÍSO PARA POUCOS O aluguel de uma mansão toda equipada em Angra pode chegar a R$ 40 mil por dia
Sócia do grupo Pão de Açúcar, a paulista Lucília Diniz passa 15 dias de férias em uma mansão no Condomínio do Frade, pela qual pagou R$ 170 mil de aluguel.

Ali, a empresária paulista conta com o conforto de oito quartos, nove ar-condicionados, piscina integrada com a sauna, academia de ginástica, máquina de raspadinha light no jardim e seis empregados – quatro trazidos de São Paulo e instalados em uma pousada da cidade. “Aqui esqueço da casa e penso no barco.

Acordo às 9h, tomo um café demorado e saio para alto-mar para voltar só de noite”, diz ela, ao lado da embarcação de 61 pés de sua propriedade atracada no píer da casa, a dez passos da piscina. Lucília completa: “Vou parando nas ilhas e sempre encontro gente.

Nesta temporada, encontrei a Cristiana Arcangeli (empresária do ramo de cosméticos) e o Márcio Cypriano (presidente do Bradesco).”

Com o hábito de quem aluga imóveis na região há dez anos, a empresária do Pão de Açúcar desembarca de seu helicóptero em Angra com um cardápio de 11 páginas a tiracolo, com detalhes do que deve ser servido, dia a dia, como aperitivo, almoço e jantar no barco e na casa.

E se dá ao luxo de mandar seu motorista viajar cinco horas de carro apenas para trazer de São Paulo champignon fresco, tomate e um pão integral com iogurte para ela saborear em alto-mar. Lucília argumenta que não encontra os produtos de que gosta nos supermercados da região.

COMBUSTÍVEL O empresário paulista Joaquim Vieira gasta R$ 1,1 mil para encher o tanque do barco de 36 pés atracado em seu píer particular

Com o hábito de quem aluga imóveis na região há dez anos, a empresária do Pão de Açúcar desembarca de seu helicóptero em Angra com um cardápio de 11 páginas a tiracolo, com detalhes do que deve ser servido, dia a dia, como aperitivo, almoço e jantar no barco e na casa.

E se dá ao luxo de mandar seu motorista viajar cinco horas de carro apenas para trazer de São Paulo champignon fresco, tomate e um pão integral com iogurte para ela saborear em alto-mar. Lucília argumenta que não encontra os produtos de que gosta nos supermercados da região.

Angra, por sinal, é um dos poucos lugares onde supermercado pode ser feito de lancha. Não poderia ser de outra maneira, considerando que, no verão, o tráfego de barcos é tão intenso quanto o de carros – são 15 mil embarcações em alto-mar.

Uma vez por semana, a pedagoga Márcia Bortolai, que passa férias em Angra com o marido, o advogado Nelson Bortolai, e os filhos, Caio, um ano, e Felipe, dez meses, pede para o capitão de seu iate de 58 pés estacionar no píer do shopping Pirata’s Mall para fazer compras no supermercado Zona Sul.

“O Ricardo Teixeira (presidente da CBF) e o Amílcare Dallevo (dono da Rede TV!) vêm sempre fazer compras aqui. O Zeca Pagodinho também – e costuma ficar escondido atrás da escada rolante, tomando sua cervejinha longe do assédio”, conta um gerente do shopping.

Na terça-feira 15, enquanto Márcia, os filhos e duas babás e algumas amigas desembarcavam para as compras no Zona Sul, três marinheiros arrumaram a embarcação, equipada com tevê de plasma.

Os Bortolai chegaram de helicóptero em Angra e se instalaram em uma casa alugada no condomínio Village do Porto, cujo pacote de dez dias não sai por menos de R$ 40 mil.

Os programas preferidos da família são andar de carrinho de golfe pelo condomínio e, claro, zarpar para alto-mar. “Ficamos cinco, seis horas atracados ao lado de uma ilha.

Fazemos churrasco no barco e vira e mexe um amigo encosta uma lancha do lado para conversarmos”, conta Márcia. “Já fui para Saint-Tropez (na França) e para as ilhas gregas. No Brasil, não há lugar melhor para quem tem iate do que Angra. É como a Côte D’Azur, só que com água quente.”

LUXO Lucília Diniz, sócia do Pão de Açúcar, alugou uma casa de oito quartos com píer na porta por R$ 170 mil por 15 dias

Localizada numa espécie de intersecção dos três maiores geradores da riqueza brasileira (próxima dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), Angra tem cerca de 200 ilhas privadas, de acordo com a TurisAngra, a fundação que administra o turismo na cidade.

“Uma ilha chega a custar três milhões de euros”, afirma Manuel Francisco de Oliveira, presidente da TurisAngra. São conhecidos proprietários de ilhas na região Simon Aluan, executivo do Ponto Frio, Milton Soldani Afonso, fundador da Golden Cross, Adauto Marques de Paiva, dono do Café Bom Dia, e o jogador Ronaldo Nazário, o Fenômeno.

MERGULHO A diversão dos turistas é ancorar o iate próximo a uma ilha e curtir as águas transparentes com temperatura de 29 graus

O paulista Charles Bosworth, 47 anos, é um dos donos da Ilha de Itanhangá. Com 220 mil m2, o local foi arrendado por ele em outubro passado para a instalação de um lounge, spa, duas lojas (Salinas e Richard’s) e um restaurante, onde a gorjeta média deixada por mesa é de R$ 50.

“Minha profissão é cuidar da ilha”, diz Charles, ao lado da filha Carolina, 18 anos. Na segunda-feira 14, três filhas do poeta Vinicius de Moraes, que estavam com casa alugada na Ilha Comprida, almoçavam em Itanhangá acompanhadas de cinco adolescentes.

“Freqüento Angra há 19 anos, nos finais de semana. Nossos programas são di urnos, com passeios de lancha”, diz uma das filhas de Vinicius, a empresária Luciana de Moraes, 50 anos.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008



17 de janeiro de 2008
N° 15482 - Nilson Souza


Meninos apaixonados

Em vez de empunhar a arma imaginária dos artilheiros, como costumam fazer alguns conhecidos fuzileiros da bola, ele usou os dedos do gatilho para desenhar um coração.

Ao homenagear a namoradinha com um gesto explícito de paixão, o menino Alexandre Pato deu um toque de ternura adolescente ao Planeta Futebol e expôs despudoradamente, diante das câmeras e do estádio lotado, a face branda desse esporte popularizado a pontapés e a provas de virilidade.

Futebol era unicamente para machões. Agora é para quem tem coragem de encarar desafios sem mascarar a sensibilidade.

Pato não é o primeiro atleta a transformar o seu momento de vibração numa demonstração de carinho e afetividade. Já faz algum tempo que os gladiadores da bola vêm substituindo palavrões de desabafo e gestos agressivos por coreografias divertidas, manifestações de fé ou recados familiares. Invariavelmente, funciona. Muitas vezes, emociona.

Não é incomum que mesmo o torcedor mais exasperado suspenda momentaneamente sua fúria quando vê um jovem atleta correr para a beira do campo e embalar o bebê recém-nascido ou que está para nascer - mímica lançada pelo baiano Bebeto na Copa do Mundo de 1994 e que caiu no gosto da rapaziada.

O coração que Pato construiu com as mãos (e também com o próprio coração) ilustrou as páginas esportivas dos jornais da semana e passou um recado importante aos adolescentes de todo o mundo, nesta fase da vida em que as dúvidas se multiplicam e as personalidades se formam.

É possível, sim, conquistar espaço numa sociedade extremamente competitiva sem renunciar à civilidade e ao romantismo. É possível, sim, ser ao mesmo tempo valente e humano, destemido e delicado, forte e carinhoso.

Esses moços saberão um dia que também é possível amadurecer sem perder a ternura. Homens de verdade não se constrangem em agir, de vez em quando e na hora apropriada, como meninos apaixonados.

Veja-se este exemplo: há poucos dias, o compositor Dorival Caymmi comprou orquídeas para o aniversário de 86 anos de sua mulher Stella Maris e registrou no cartão:

- Não é possível amar como eu te amo. Seu marido, Dorival Caymmi. Ele desenhou o seu primeiro coração para Stella há quase sete décadas, possivelmente numa bela canção de amor e mar.

Uma excelente quinta-feira especialmente para você.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008



16 de janeiro de 2008
N° 15481 - Martha Medeiros


A janela dos outros

Gosto dos livros de ficção do psiquiatra Irvin Yalom (Quando Nietzsche Chorou, A Cura de Schopenhauer) e por isso acabei comprando também seu Os Desafios da Terapia, em que ele discute alguns relacionamentos padrões entre terapeuta e paciente, dando exemplos reais. Eu devo ter sido psicanalista em outra encarnação, tanto o assunto me fascina.

Ainda no início do livro, ele conta a história de uma paciente que tinha um relacionamento difícil com o pai. Quase nunca conversavam, mas surgiu a oportunidade de viajarem juntos de carro e ela imaginou que seria um bom momento para se aproximarem.

Durante o trajeto, o pai, que estava na direção, comentou sobre a sujeira e degradação de um córrego que acompanhava a estrada. A garota olhou para o córrego a seu lado e viu águas límpidas, um cenário de Walt Disney. E teve a certeza de que ela e o pai realmente não tinham a mesma visão da vida. Seguiram a viagem sem trocar mais palavra.

Muitos anos depois, esta mulher fez a mesma viagem, pela mesma estrada, desta vez com uma amiga. Estando agora ao volante, ela surpreendeu-se: do lado esquerdo, o córrego era realmente feio e poluído, como seu pai havia descrito, ao contrário do belo córrego que ficava do lado direito da pista.

E uma tristeza profunda se abateu sobre ela por não ter levado em consideração o então comentário de seu pai, que a esta altura já havia falecido.

Parece uma parábola, mas acontece todo dia: a gente só tem olhos para o que mostra a nossa janela, nunca a janela do outro. O que a gente vê é o que vale, não importa que alguém bem perto esteja vendo algo diferente.

A mesma estrada, para uns, é infinita, e para outros, curta. Para uns, o pedágio sai caro; para outros, não pesa no bolso. Boa parte dos brasileiros acredita que o país está melhorando, enquanto que a outra perdeu totalmente a esperança.

Alguns celebram a tecnologia como um fator evolutivo da sociedade, outros lamentam que as relações humanas estejam tão frias. Uns enxergam nossa cultura estagnada, outros aplaudem a crescente diversidade. Cada um gruda o nariz na sua janela, na sua própria paisagem.

Eu costumo dar uma espiada no ângulo de visão do vizinho. Me deixa menos enclausurada nos meus próprios pontos de vista, mas, em contrapartida, me tira a certeza de tudo.

Dependendo de onde se esteja posicionado, a razão pode estar do nosso lado, mas a perderemos assim que trocarmos de lugar. Só possuindo uma visão de 360 graus para nos declararmos sábios.

E a sabedoria recomenda que falemos menos, que batamos menos o martelo e que sejamos menos enfáticos, pois todos estão certos e todos estão errados em algum aspecto da análise. É o triunfo da dúvida.

Com temperatura beirando os trinta graus agora pela manhã e ameaças de chuva, que tenhamos todos uma ótima quarta-feira.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008



15 de janeiro de 2008
N° 15480 - Liberato Vieira da Cunha


Encontro com o mar

Meu primeiro encontro com o mar me extasiou os olhos e me inundou a alma. Não importa há quanto tempo tenha sido: não existe idade para as grandes emoções. Como se fosse hoje e instantaneamente, senti que estava diante de uma imensidão sem reprise.

Devo esclarecer que era manhã e a praia estava deserta. Vi muitos mares depois, do Pacífico ao Mediterrâneo, do Tirreno ao Adriático, do Báltico ao Jônico. Nenhum me legou tão nítido sentido de poder e vastidão quanto as águas de Capão da Canoa.

De que era feita essa impressão?

Creio que das ondas se formando como suaves, ásperas cordilheiras, que se armavam e se desfaziam entre céus e areias. Suponho que do aroma de sal da atmosfera, que me apresentava a uma nova dimensão do mundo, instigante e intraduzível. Penso que daquele horizonte infinito, que era o casamento das águas e do firmamento.

E havia ainda o fato de que Capão era algo de único e inimitável. Conheci Tramandaí e Imbé; Cidreira e Xangri-lá; Atlântida e Torres. Conheci as praias da Espanha, as da França, as do Chile, as da Califórnia. Escalei meia dúzia de verões em Punta del Este.

São todos lugares aprazíveis, alguns soberbos, outros surpreendentes, como Timmerdorfer Strand, onde as vagas são da cor violeta. Mas em Capão era diverso.

Já nem estou falando agora do impacto de seu mar em minha infância. Me transponho para a adolescência.

O que é a felicidade? Uma das definições possíveis são aquelas areias brancas, onde você deixava a ressaca do baile da noite anterior, ouvindo no radinho Spika o último sucesso do The Platters.

Outra é a absoluta paz íntima, advinda da certeza de que você nada tinha de mais importante a fazer no universo do que não perder uma reunião dançante marcada para as cinco da tarde.

E outra ainda era perceber uma sombra pairando sobre seus devaneios e abrir os olhos e ver, recém-chegada e lindíssima, a garota que você iria amar para todo o sempre.

Excelente terça-feira especialmente para você.

sábado, 12 de janeiro de 2008



13 de janeiro de 2008
N° 15478 - Martha Medeiros


Abalando estruturas

Mudanças não significam fragilidade de caráter. É preciso ter uma certa flexibilidade para evoluir e se divertir com a vida. Mais ainda: essa flexibilidade é fundamental para manter a nossa integridade

Uma amiga minha vive dizendo que odeia amarelo, que prefere tomar cianureto a usar uma roupa amarela. Quem a conhece já a ouviu dizer isso mil vezes, inclusive seu namorado.

Pois uns dias atrás ela me contou que esse seu namorado chegou em sua casa e, mesmo os dois estando a uma semana sem se ver, brigaram nos primeiros cinco minutos de conversa e ele foi embora. "Mas o que aconteceu?" perguntei. "Eu sei lá", me respondeu ela.

"Estávamos morrendo de saudades um do outro, mas começamos a discutir por causa de uma bobagem". Eu: "Que bobagem?". Então ela me disse: "Você não vai acreditar, mas ele ficou desconcertado por eu estar usando uma camiseta amarela".

Ora, ora. Era a oportunidade para eu utilizar meus dons de psicóloga de fundo de quintal. Perguntei para minha amiga: "Quer saber o que eu acho?".

A irresponsável respondeu: "Quero". Mal sabia ela que eu recém havia assistido a uma palestra sobre as armadilhas da tão prestigiada estabilidade. Arregacei as mangas e mandei ver.

Você está namorando o cara há pouco tempo. Sabemos como funcionam esses primeiros encontros. Cada um vai fornecendo informações para o outro: eu adoro rock, eu tenho alergia a frutos do mar, tenho um irmão com quem não me dou bem, prefiro campo em vez de praia, não gosto de teatro, jamais vou ter uma moto, não uso roupa amarela.

A gente então vai guardando cada uma dessas frases num baú imaginário, como se fosse um pequeno tesouro. São os dados secretos de um novo alguém que acaba de entrar em nossa vida.

Assim vamos construindo a relação com certa intimidade e segurança, até que um belo dia nosso amor propaga as maravilhas de uma peça de teatro que acabou de assistir, ou sugere 20 dias de férias numa praia deserta, ou usa uma roupa amarela. Pô, como é que dá pra confiar numa criatura dessas?

Pois dá. Aliás, é mais confiável uma criatura dessas do que aquela que se algemou em meia dúzia de "verdades" inabaláveis, que não muda jamais de opinião, que registrou em cartório sua lista de aversões.

Vale para essas bobagens de roupa amarela e praia deserta, e vale também para coisas mais sérias, como posicionamentos sobre o amor e o trabalho.

Mudanças não significam fragilidade de caráter. É preciso ter uma certa flexibilidade para evoluir e se divertir com a vida. Mas ainda: essa flexibilidade é fundamental para manter nossa integridade, por mais contraditório que pareça.

Me vieram agora à mente os altos edifícios que são construídos em cidades propensas a terremotos, que mantêm em sua estrutura um componente que permite que eles se movam durante o abalo. Um edifício que balança! Com que propósito? Justamente para não vir abaixo. Se ele não se flexibilizar, a estrutura pode ruir.

O fato de transgredirmos nossas próprias regras só demonstra que estamos conscientes de que a cada dia aprendemos um pouco mais, ou desaprendemos um pouco mais, o que também é amadurecer. Não estamos congelados em vida.

Podemos mudar de idéia, podemos nos reapresentar ao mundo, podemos nos olhar no espelho de manhã e dizer: bom dia, muito prazer. Ninguém precisa ficar desconcertado diante de alguém que se desconstrói às vezes.

Eu também não gosto de roupa amarela. Quem abrir meu armário vai encontrar basicamente peças brancas, pretas, cinzas e em algumas tonalidades de verde. No entanto, hoje de manhã saí com um casaco amarelo canário!

Tenho há mais de 10 anos e quase nunca usei. Pois hoje saí com ele para dar uma volta e retornei para casa sendo a mesmíssima pessoa, apenas um pouco mais alegre por ter me sentido diferente de mim mesma, o que é vital uma vez ao dia.

Um excelente domingo para você e uma semana super especial.

Ensaio: Roberto Pompeu de Toledo

Atrás da exata calibragem

Até onde ser mulher, até onde ser negro: os desafios de Hillary Clinton e de Barack Obama

Ser mulher e querer ser presidente dos Estados Unidos ou ser negro e querer ser presidente dos Estados Unidos são aspirações que exigem do ser humano bem mais do que se costuma exigir. Hillary Clinton e Barack Obama, os líderes na disputa pela candidatura do Partido Democrata à eleição deste ano, estão envolvidos numa empreitada hercúlea.

Ser mulher e ser negro lhes é permitido, o.k., disso eles não podem fugir – mas nada de exagerar. Saber até onde pode ser mulher, num caso, e até onde cai bem ser negro, no outro – eis um desafio visceral, que se soma aos de fazer história e ameaçar tabus. Demanda uma calibragem de cujo fino ajuste dependem a vida e a morte eleitoral.

Hillary, ao decidir se lançar na carreira política, decidiu simultaneamente renunciar à condição de mulher. Desde que, na presidência do marido, ganhou tarefas como a de coordenar a reforma do sistema público de saúde, adotou o modelo da executiva fria, forte nos números, preocupada com os pobres, sim, mas nem por isso disposta a, como a princesa Diana, posar ao lado dos famintos.

Não chegou a encarnar uma Margaret Thatcher, a menos mulher de todas as mulheres que já comandaram um país – tão difícil de imaginar pondo o neto para dormir quanto fácil de supor a varar noites em articulações com parceiros fumando charuto –, mas também se posicionou o mais distante possível do modelo fada-madrinha de Eva Perón.

No Senado, seu mais famoso voto, pelo qual hoje é insistentemente cobrada – o de apoio à invasão do Iraque –, foi voto de macho. Se fosse homem, talvez se permitisse votar contra. Sendo mulher, nunca. O voto contra poderia ser interpretado como fraqueza de mulherzinha.

Eis, no entanto, que na semana passada, na véspera da eleição prévia de New Hampshire, Hillary – coisa jamais vista! – chorou. A rigor, não foi nem choro. Numa conversa com eleitoras, uma perguntou como ela conseguia agüentar o stress da campanha, e a candidata ficou com aquilo que nos romances populares se chama de "olhos rasos de lágrimas".

A cena, de tão incomum, foi repisada mil vezes na TV. Os assessores de Hillary se apavoraram. Um homem ficar com os olhos rasos de lágrimas se tolera. Já uma mulher vira mulherzinha. Como pode uma pessoa dessas governar a maior das potências?

Já se sabe o resultado desse fugaz momento de fraqueza: a ele foi atribuído o fato de, contrariando as pesquisas, Hillary ter vencido a eleição de New Hampshire. Bendito choro. Mostrou-a humana e mulher. Mas isso não quer dizer que Hillary deva sair chorando pela campanha eleitoral afora.

Indica apenas que nem sempre é preciso ficar em guarda contra a condição de mulher, ou contra manifestações que o estereótipo dá como femininas e condena como incompatíveis com o exercício do poder.

Barack Obama, embora mulato – sua falecida mãe era branca –, é, sob certo ângulo, o negro mais negro que jamais freqüentou a política americana.

Na semana passada correram mundo fotos e filmes de sua avó paterna, uma octogenária que mora na zona rural do Quênia, na mesma aldeia em que nasceu o também falecido pai do candidato – uma avó que fala suaíli e usa os característicos vestidos, turbantes e colares coloridos. Não há no panorama político americano personagem com ascendência africana tão próxima. A mulher de Obama é negra, ou mulata, como ele.

Quer dizer: o sucesso não o levou a aderir ao padrão Pelé de certos negros brasileiros bem-sucedidos. Obama converteu-se ao cristianismo, mas a família paterna é muçulmana.

Eis, no entanto, que esse negro de trajetória tão assombrosa, um Lula em escala global, em que o Quênia faz o papel das favelas e do pau-de-arara das origens do presidente brasileiro, está a grande distância do negro típico da política americana.

O típico é o militante dos direitos civis. É Martin Luther King ou, em anos mais recentes, Jesse Jackson, que, aliás, também chegou a se lançar candidato a presidente.

Andrew Young, outro veterano militante dos direitos civis, hoje na campanha de Hillary, disse há pouco que Bill Clinton é mais negro do que Obama. "Com certeza Clinton já teve mais mulheres negras do que Obama", acrescentou. Era uma piada, claro, mas adivinha-se que uma piada saída do fundo do coração.

Obama é um negro que toma suas distâncias da política negra habitual. É aquilo que se convencionou chamar de "moderado". Por isso mesmo é um candidato competitivo, e não, como Jesse Jackson, um negro que entra nas campanhas para marcar presença.

Se houvesse só uma mulher, ou só um negro, concorrendo, em condições de vencer, à candidatura do Partido Democrata, a disputa já seria demais de boa.

Ter os dois, como está ocorrendo, é a glória, ainda que a mulher tome seus cuidados para não ser tão mulher assim, e o negro para não ser tão negro. O simbolismo permanece.

E tem valor duplicado quando posto em contraste com os horrores da era Bush e seu coquetel de guerra no Iraque, Guantánamo, oficialização da tortura e outros desastres. A glória de abrigar uma disputa eleitoral entre Hillary e Obama é da democracia americana.

Ponto de vista: Claudio de Moura Castro

Ecologia seiscentista

"Se as Ordenações Filipinas fossem vigentes e cumpridas, hoje, os problemas de desmatamento e queimadas no Brasil estariam resolvidos"

Ao Brasil falta riqueza para se igualar aos grandes incineradores de combustíveis fósseis no que diz respeito à poluição e ao aquecimento global.

Mas o país compensa isso amplamente, pois é egrégio incendiário e desmatador. Onde estão as soluções novas e milagrosas? Ou quem sabe devemos buscar essas soluções no passado?

No início do século XVII, o marco legislativo português (e brasileiro, por via de conseqüência) eram as Ordenações Filipinas. São leis extraordinariamente amplas, cobrindo até urbanismo e meio ambiente.

A tese simplória do presente ensaio é que, se as Ordenações Filipinas fossem vigentes e cumpridas, hoje, os problemas de desmatamento e queimadas no Brasil estariam resolvidos. Vejamos alguns exemplos.

É fulminante a legislação que protege as árvores consideradas úteis:

"O que cortar árvores de fruto (...) pagará a estimação dela ao seu dono em três dobro (sic). (...) E se for valia de 30 cruzados, e daí para cima, será degredado para sempre para o Brasil" (Um comentário cínico: quem sabe nosso atavismo destruidor não resulta de que para cá vieram os degredados por crimes contra a natureza?).

Já então a silvicultura era considerada uma ciência, a ser estudada e aplicada nas florestas (não é sempre o caso das nossas leis atuais):

Atômica Studio

"Sendo sumamente necessário o conhecimento da física das árvores, para que não aconteça fazer-se o corte em tempo incompetente (...) determino que façais anualmente plantar a quantidade possível daquelas árvores, mais próprias para delas depois de estarem no seu devido crescimento fazerem os cortes (...).

E toda pessoa que tomar mais quantidade de pau de que lhe for dado licença, além de o perder para minha fazenda (...) e passando de cem quintais morrerá por ele e perderá toda a sua fazenda (...). Nenhum dos sobreditos possuidores de terra poderá (...) derrubar e incendiar aquelas matas e arvoredos que se chamam e forem reputadas matas virgens".

"E quanto às roças que se por temporadas podem fazer nos matos, ou maninhos dos lugares que não são para durarem lavoura, por fraqueza da terra, onde estão, mas que um ano, dois, ou três (...) e se acharem que queimando-as, rompendo ou cortando os ditos matos ou árvores, será dano geral, ou a alguns em particular (...) não dêem as ditas terras para roças."

Não foi por falta de legislação atemorizante que o pau-brasil desapareceu:

"Primeiramente, hei por bem e mando que nenhuma pessoa possa cortar (...) o dito pau-brasil, (...) sem a expressa licença (...) e o que contrário fizer, incorrerá em pena de morte e confiscação de toda a sua fazenda".

Observamos também que o legislador seiscentista era mais sagaz do que boa parte dos de hoje. Nas Ordenações Filipinas se eliminam as motivações para queimar a terra. Se ela pegasse fogo, não poderia ser usada:

"E porque alguns, por caçarem nas queimadas, ou fazerem carvão ou pastarem com seus gados, põem escondidamente fogo nos matos, para se poderem aproveitar das queimadas, e porque não se sabem quem o fez, não são castigados, mandamos que pessoa alguma não cace em queimada, do dia que foi posto fogo, de que seguiu algum dano, a trinta dias, nem entre nelas a pastar com seu gado até a Páscoa florida, e carvoeiro algum não faça dela carvão, até dois anos."

O combate à poluição das águas é analogamente drástico:

"E pessoa alguma, não lance nos rios e lagoas em qualquer tempo (...) algum material com que se o peixe mata e quem o fizer, pela primeira vez seja degredado (...). E sendo de menor qualidade, seja publicamente açoitado (...) ."

Lendo as Ordenações Filipinas, percebemos que os problemas e soluções são antigos.

1) Nelas há uma forte preocupação com a aplicação da ciência para a conservação dos recursos naturais.

2) Há uma decisão inequívoca de usar as leis para impedir sua degradação – nada mais atual (mas as penas de açoite ou de morte talvez careçam hoje de popularidade).

3) Revelam sagacidade na sua formulação. 4) Contudo, o arraso que fizemos em nossas terras e águas mostra que não bastam boas leis, é preciso que sejam aplicadas com eficácia e energia. Esse tem sido o grande problema desde então.

Claudio de Moura Castro é economista – Claudio&Moura&Castro@cmcastro.com.br


Mudança radical

Na adolescência, a atriz Flávia Alessandra costumava ficar horas sob o sol, com o corpo besuntado de Coca-Cola e óleo de urucum, para ganhar cor. Há dez anos, ela passou a defender-se dos raios solares. Agora, protegida como convém, Flávia bronzeia-se sem riscos

Os conhecimentos sobre a radiação ultravioleta e o aperfeiçoamento tecnológico dos filtros possibilitaram que os banhos de sol se tornassem um grande aliado da saúde e da estética

Adriana Dias Lopes

Carioquíssima, a atriz Flávia Alessandra nutre pelo sol um sentimento próximo ao da veneração. Nos seus verões adolescentes, ela se estirava sob os raios escaldantes, com o corpo besuntado por um bronzeador caseiro à base de Coca-Cola e óleo de urucum.

"Achava um charme ficar vermelha nos primeiros dias", lembra. Como quase todo mundo, ela encarava a ardência e as bolhas como uma passagem obrigatória para a morenice.

No fim dos anos 80, com o bombardeio de informações sobre os malefícios do abuso da radiação ultravioleta para a pele, a atriz começou a preocupar-se com o assunto e a refugiar-se nas sombras de varandas e guarda-sóis. Hoje, aos 34 anos, ela está em paz com o sol.

Aprendeu como tirar proveito dos dias ensolarados, sem riscos à saúde. "Voltei aos tempos de menina e até me permito pegar aquele solão do meio-dia", diz. Até recentemente, o único banho de sol considerado 100% seguro era o de bebê, aquele de antes das 10 da manhã ou de depois das 4 da tarde com duração de minutos.

Com os avanços nos conhecimentos sobre a radiação solar e seu impacto sobre o organismo e o aprimoramento tecnológico dos protetores solares, pode-se dizer que o verão de 2008 – o mais quente da última década, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) – é a estação de alforria do sol.

Está liberado inclusive o "solão do meio-dia". As pesquisas médicas mais recentes indicam que os benefícios dos raios solares superam seus possíveis malefícios para a pele.

A exposição solar faz bem para o esqueleto, fortalece o sistema imunológico e regula a pressão arterial. Pode, ainda, prevenir o diabetes tipo 2 e até alguns tipos de câncer, como os de mama, próstata, pulmão e intestino. O sol tem, inclusive, ação antidepressiva. É uma alegria – basta saber usá-lo.

Depois de mais de dez anos relegado ao papel de vilão, o sol ascendeu ao posto de aliado da boa saúde porque se comprovou a sua estreita relação com a vitamina D, essencial ao funcionamento adequado do organismo. A explicação é que, na superfície da pele, existem substâncias precursoras desse micronutriente.

Quando os raios ultravioleta, especialmente os do tipo B (UVB), incidem sobre a derme, as moléculas de tais substâncias são transformadas em vitamina D – a qual, em seguida, cai na corrente sanguínea e é transportada para diversos órgãos (veja o quadro na pág. 73). Desde meados da década de 90, associa-se a vitamina D a processos deflagrados por 200 genes.

Ou seja, ela está presente na multiplicação de certos tipos de célula, na liberação de hormônios, na absorção de nutrientes e na manutenção do ritmo dos batimentos cardíacos.

Uma das mais fascinantes e inovadoras linhas de pesquisa sobre as benesses do sol para a saúde é a que investiga o papel da vitamina D na prevenção a diversos tipos de câncer. Há pelo menos uma centena de estudos sobre esse tema em andamento.

O mais recente foi publicado pela revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Liderados pelo médico Johan Moan, da Universidade de Oslo, pesquisadores noruegueses e americanos compararam os níveis de vitamina D no sangue de habitantes de países dos hemisférios Norte e Sul.

Entre os ingleses e os noruegueses, que habitam a porção superior do planeta, com menos insolação, as quantidades de vitamina D chegam a ser um quinto das registradas entre os australianos.

Paralelamente, os pesquisadores constataram que a incidência de tumores malignos de próstata, mama, pulmão e intestino dobra nessas regiões mais frias.

Segundo dados do Inpe, a intensidade da radiação solar no verão do Hemisfério Sul é 7% maior, em média, do que no verão do Hemisfério Norte. Se os noruegueses se expusessem ao sol duas vezes mais do que estão habituados a fazer, conforme o levantamento da equipe de Moan, 3.000 mortes por câncer poderiam ser evitadas a cada ano.

Para chegar às quantidades ideais de vitamina D, é preciso muito pouco. Basta expor as pernas ou os braços ao sol, duas vezes por semana, de cinco a trinta minutos, conforme o tipo de pele (veja o quadro).

O aproveitamento máximo dos raios requer que não se use protetor durante esse período de exposição – depois disso, só com protetor, é claro. Sem esse pequeno banho de sol, aumenta exponencialmente o risco de hipovitaminose D.

Calcula-se que 1 bilhão de pessoas, ao redor do mundo, tenham o problema. Sete de cada dez americanos com mais de 70 anos sofrem da carência do micronutriente. Os mais velhos são mais suscetíveis porque tendem a sair menos de casa. Ou seja, pegam menos sol.

Já se verificou também que os negros são mais propensos à doença do que os brancos. Quanto mais escura é a pele, menor é a quantidade de radiação solar absorvida por ela. A melanina, o pigmento que enegrece, funciona como um filtro natural.

Um negro chega a produzir 100 vezes mais melanina do que um branco de pele claríssima. É por isso que, para produzir vitamina D nas quantidades preconizadas pelos médicos, uma mulher como a atriz Taís Araújo tem de tomar seis vezes mais sol do que a modelo e apresentadora Ana Hickmann, por exemplo.

Não é por causa da síntese de vitamina D que os brasileiros se refestelam nas praias e piscinas sob o sol de verão. Eles querem mesmo é pegar uma cor.

E é aqui que os filtros solares se fazem imprescindíveis. Os primeiros estudos que associam os banhos de sol sem proteção aos cânceres cutâneos datam da década de 40.

O conceito de proteção contra os raios solares começou a ser estabelecido no decorrer da II Guerra Mundial. Nos campos de batalha, para protegerem o rosto da exposição prolongada ao sol, alguns soldados americanos lambuzavam a face com uma graxa vermelha desenvolvida no fundo do quintal do farmacêutico Benjamin Greene, de Miami.

A partir dessa graxa vermelha surgiram, dez anos depois, os primeiros bloqueadores físicos produzidos em escala industrial. Feitos à base de óxido de zinco, eles protegiam contra 90% da radiação solar.

O único inconveniente era a sua apresentação: uma pomada branca, densa, difícil de espalhar. Até hoje há diversos bloqueadores físicos no mercado (veja o quadro). Como não são absorvidos pela pele, eles entram principalmente na formulação de cosméticos fotoprotetores, como as bases de maquiagem.

Nos anos 50, surgiram os protetores químicos, cujo aperfeiçoamento resultou nos filtros que eu, você e a torcida do Flamengo usamos atualmente. Eles são constituídos por moléculas que captam e enfraquecem os raios solares, anulando os seus efeitos danosos. Em termos de proteção, não há diferença entre os bloqueadores químicos e os físicos.

A vantagem destes últimos é que eles são fáceis de espalhar, não deixam o corpo melado ou o rosto brilhante. Tais características, somadas à maior quantidade de informação, aumentaram sobremaneira a adesão dos brasileiros ao uso dos filtros solares. Em 2001, foram produzidos no país 3 milhões de toneladas de protetor solar. A projeção para 2008 é que esse volume dobrará.

Hoje em dia, a indústria conta com pelo menos uma centena de moléculas anti-sol. Combinadas entre si, elas possibilitam a criação de produtos com diferentes fatores de proteção solar, conhecidos pela sigla FPS.

A tecnologia necessária para definir o FPS de um filtro foi desenvolvida na década de 70. Até pouco tempo atrás, acreditava-se que, quanto maior o número correspondente ao FPS, maior seria o seu tempo de ação.

Ou seja, uma pessoa de pele morena, como a modelo Raica Oliveira, que usasse um protetor de fator 5 poderia ficar estirada sob o sol por duas horas e cinco minutos, com uma única aplicação.

Se ela, no entanto, espalhasse pelo corpo um fotoprotetor de fator 10, poderia, teoricamente, ficar mais de quatro horas sem ter de reaplicar o produto. Essa aritmética revelou-se falsa. Está provado que, independentemente do fator de proteção ou do tipo de pele, os filtros deixam de fazer efeito depois de duas horas.

"Além disso, as análises laboratoriais mais recentes mostram que, a partir do fator 30, a capacidade de proteção dos filtros é praticamente a mesma", diz Omar Lupi, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia. Nenhum filtro é capaz de barrar 100% dos raios solares.

Um fotoprotetor de fator 30 bloqueia 97,6% dos raios ultravioleta do tipo B (UVB), aqueles que queimam a pele e estão relacionados ao aparecimento da maioria dos casos de câncer de pele. Um protetor 50 filtra 98% da radiação. São os raios que escapam à ação dos filtros que permitem o bronzeamento.

A ação benéfica do sol é um fato, mas, paradoxalmente, ele nunca foi tão perigoso. Isso por causa dos rombos na camada de ozônio. Localizada entre 25 e 35 quilômetros da superfície da Terra, ela filtra dois tipos de raio ultravioleta. Um deles é o tipo A (UVA), que acelera o envelhecimento da pele, por penetrar em camadas mais profundas. A capa de ozônio consegue bloquear 5% da radiação UVA e 95% dos raios UVB.

De acordo com os cientistas, a cada vinte anos, 4% da camada de ozônio é destruída pela ação de poluentes lançados na atmosfera. Resumo de todas essas estatísticas: sim, sua impressão está correta. O sol, a cada verão, apresenta-se mais e mais ardido. Já pensou se não existissem os protetores?

Raios de saúde e alegria

O sol é a principal fonte de vitamina D do organismo. Esse micronutriente é essencial para a saúde. Alguns de seus benefícios:

Ossos – A vitamina D aumenta a absorção de cálcio pelos ossos – o que faz com que os banhos de sol sejam indicados para combater o raquitismo na infância e a osteoporose na velhice

Sistema imunológico – A exposição ao sol ajuda a fortalecer o sistema imunológico. Com células de defesa mais vigorosas, o risco de infecções diminui

Pâncreas – Níveis adequados de vitamina D estão associados a uma redução no risco de diabetes tipo 2. O micronutriente ajuda as células pancreáticas a liberar insulina, o hormônio regulador das taxas de açúcar no sangue

Cérebro – O sol tem ação antidepressiva. A vitamina D está relacionada a um aumento na liberação de substâncias cerebrais associadas à sensação de bem-estar e euforia, como as endorfinas

Próstata, mama, pulmão e intestino – Como a vitamina D tem um papel essencial no processo de multiplicação celular, a sua falta está associada a um aumento no risco de câncer, sobretudo de próstata, mama, pulmão e intestino. A incidência dessas doenças chega a ser 50% inferior em regiões ensolaradas

Rins – A vitamina D está envolvida na síntese de renina, hormônio de controle da pressão arterial. Por isso, os hipertensos podem se beneficiar dos banhos de sol freqüentes

A BULA DO SOL

Para que todos esses benefícios sejam conseguidos, basta expor os braços ou as pernas ao sol, duas vezes por semana, por períodos de cinco a trinta minutos, dependendo do tipo de pele de cada um (veja o quadro)

O banho de sol deve ser sem protetor