terça-feira, 28 de abril de 2009



28 de abril de 2009
N° 15953 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Um rio, um lago

Como a cidade já resolveu todos os seus problemas, volta-se a discutir se o Guaíba é um rio ou um lago. De um lado, a prefeitura considera esse belo espelho que nos abraça como um lago, obediente às conclusões do competente Atlas Ambiental deste cantinho do continente.

De outro, estudiosos argumentam que estamos diante de um curso d’água que corre de um lado para outro, sendo portanto um rio, segundo estabelece a legislação federal. No fundo – ou talvez seja melhor dizer que na superfície –, está uma questão simploriamente prática e sonante.

Nos rios, a Área de Preservação Permanente ocupa um espaço de até 500 metros junto às margens. Nos lagos, no entanto, a proteção é de apenas 30 metros, o que faz uma enorme diferença para quem quer construir um shopping ou um edifício de apartamentos.

Aqui faço ponto e vírgula para uma confissão: de minha janela contemplo a cada manhã ou um mar doce e tranquilo ou uma imensa avenida líquida que me põem em excelente disposição para enfrentar o dia. Fui condecorado com uma vista absolutamente fabulosa do Guaíba.

Me basta olhar o horizonte austral para saber se a manhã será chuvosa ou a tarde ensolarada. Acompanho as evoluções dos veleiros dos clubes náuticos e logo percebo de que quadrante sopra a aragem, ou que ventos me aguardam na rua. E sigo atento às rotas dos navios: já descobri até mesmo, demarcada por boias, a singradura de cada um.

É um panorama a que me acostumei desde os meus primeiros instantes em Porto Alegre. O avião da Varig que me trouxe de Cachoeira na idade de cinco anos sobrevoou o estuário e eu concluí na hora que em nenhum outro lugar do mundo haveria paisagem mais linda. Descobri outras depois em variados pontos do planeta, mas nenhuma que abalasse minha crença de que o Guaíba é bonito pela própria natureza.

Tenho-o agora diante do olhar. É uma coleção única de polido cristal, céus, ilhas, colinas, enseadas e nuvens. Considerando tamanho espetáculo, sou inclinado a crer que não faz sentido algum qualquer debate sobre se é um rio ou um lago. O Guaíba é belo qualquer que seja o seu nome.

Bem parabéns a todos as sogras, leitoras deste blogger. Que o dia seja iluminado para todos.

sábado, 25 de abril de 2009



26 de abril de 2009
N° 15951 - MARTHA MEDEIROS


Sapatos e sapatas

Simone de Beauvoir disse que uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher, e imagino que pra efetuar essa transformação ela precise, entre outras coisas, confirmar seu sexo através de hábitos e manias comuns à espécie. É aí que me pergunto: que tipo de mulher eu me tornei, santo Cristo?

Não gosto de falar ao telefone, por exemplo. Uso o aparelho para o que me foi ensinado: dar recados, combinar encontros, cumprimentar por uma data, agradecer uma gentileza, convidar para um jantar, resolver um pepino, marcar uma consulta, fazer um pedido. Nada que leve mais de dois ou três minutos.

Bater papo, só em ocasiões muito especiais, como matar a saudade de uma amiga que mora longe ou de um namorado que esteja viajando. De resto, e-mails. Se jogar conversa fora ao telefone for um inquestionável atributo feminino, então ainda não me tornei uma mulher comme il faut.

Tampouco me identifico com os Delírios de Consumo de Becky Bloom: acho uma chatice comprar roupa. Geralmente escolho duas ou três lojas da cidade, sempre as mesmas, e lá me resolvo a cada início de estação. Bater perna para olhar vitrine?

Só em viagem, com todo tempo do mundo, e sem ceder ao impulso de ter que entrar em cada lugar e comprar uma coisinha. Se vale para bolsas e sapatos? Vale, madames. Eu simplesmente não compreendo quem tem mais de, vá lá, 20 pares – e estou exagerando na conta porque estou incluindo tudo: tênis, sandálias de festa, escarpins, rasteirinhas, botas, chinelos de dedo e pantufas.

Pra completar meu desajuste, não sou de dar corda pra fofoca. Não gosto de falar de filhos, empregadas e liquidações. Não levo fotos em carteira. Não comemoro convites para chá-de-fralda e chá-de-panela.

Acho peito de silicone vulgar. Nunca entrei no cheque especial. Viajo com uma única mala. Repito vestidos que tenho há 10 anos. Não possuo uma única peça cor-de-rosa. Não sei fritar um ovo. Às vezes até custo a acreditar que não seja sapatona.

Pensei em pesquisar de onde saiu esse termo agressivo, sapatona, para designar mulheres homossexuais. Mas nem me dei ao trabalho, só pode ser por associação a um pé grande, como se fosse prerrogativa dos rapazes calçarem mais de 39.

Já deram uma olhada nos pezinhos das garotas de hoje? São todas ninfas diáfanas que, caso deixassem pegadas na neve, seriam confundidas com o Godzilla.

Me tornei mulher porque me tornei independente, antes de tudo. Não sou de frescura e muito menos de compulsões consumistas.

Mas ainda tenho um lado mulherzinha: choro à beça, sou louca por flores, não vivo sem meus hidratantes, aprecio o cavalheirismo, gosto de ficar de mãos dadas no cinema, devoro revistas de moda, me interesso por decoração e fico chocada quando escuto expressões grosseiras.

Ah, e calço 36.


O DIA DE ÍNDIO DE JOAQUIM BARBOSA

A descompostura quase provoca uma crise institucional no STF por causa do destempero de Joaquim Barbosa – justo ele, um ministro símbolo de coragem, cultura, inteligência e elegância

Alexandre Oltramari - Fotos Gustavo Miranda /Ag. O Globo

POLÍTICA NO TRIBUNAL

O ministro Joaquim Barbosa (à dir.) fez acusações sem provas ao presidente Gilmar Mendes: explosão de temperamento



Em 200 anos de existência, o Supremo Tribunal Federal (STF) nunca testemunhara uma explosão de temperamento tão perturbadora. Na semana passada, durante uma rude discussão sobre a aposentadoria de servidores do Paraná, o ministro Joaquim Barbosa atacou o presidente Gilmar Mendes com uma série de acusações sem fundamento que ele leu em algum panfleto partidário.

Joaquim Barbosa, culto, elegante, inteligente e corajoso relator do processo do mensalão, teve seu "dia de índio" – aquele costume civilizadíssimo de certas tribos do Xingu que concede a cada guerreiro um dia por ano em que ele pode gritar e ofender quem quiser sem sofrer retaliações.

A cena, transmitida pela tevê, começou quando Barbosa acusou Mendes de esconder informações dos colegas. Era falso. Barbosa desconhecia detalhes do processo porque estava de licença médica quando o caso foi julgado. A discussão já seria preocupante se terminasse aí. Mas ela continuou. Irritado com uma afirmação de Gilmar Mendes de que não tinha condições de dar lição a ninguém, Barbosa perdeu de vez a compostura.

"Vossa Excelência está destruindo a Justiça deste país", acusou o ministro. "Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando com seus capangas de Mato Grosso, ministro Gilmar." Mato Grosso é o estado natal do presidente do STF. Capanga é como são chamados os pistoleiros que agem ali.

A maneira inadequada com que o ministro Barbosa expôs suas divergências com o presidente do STF quase mergulhou a corte numa crise institucional. Terminado o bate-boca, o ministro se retirou do STF sem falar com ninguém. Seus colegas, porém, realizaram uma reunião fechada em busca de solução para o conflito. Houve quem defendesse a abertura de processo contra Joaquim Barbosa e até se falou na possibilidade de seu impeachment.

Afastada a sugestão mais radical, os ministros discutiram uma moção de censura pública contra Barbosa, mas também não houve consenso. A tese que prevaleceu, depois de três horas de discussão, foi a diplomática. Os ministros decidiram prestigiar Mendes, por meio de uma nota na qual lamentam o episódio e reafirmam sua confiança nele, sem mencionar uma palavra sobre o comportamento de Barbosa.

Em almoço com dois colegas no dia seguinte, Barbosa admitiu que se excedeu, principalmente ao acusar o presidente do STF de possuir "capangas", mas descartou a possibilidade de se desculpar publicamente pelo episódio. O presidente do STF, por sua vez, também preferiu encerrar o caso. "Não há crise, não há arranhão. A imagem do Judiciário é a melhor possível", disse Mendes.

Ao contrário do que a altercação da semana passada sugere, Mendes e Barbosa têm muitos pontos de comunhão profissional e pessoal. Ambos estudaram na Universidade de Brasília, ingressaram no Ministério Público por concurso e complementaram seus estudos no exterior.

A dupla também comunga o mesmo temperamento explosivo, embora esse traço de personalidade seja mais visível em Barbosa, que já se desentendeu com sete de seus colegas no STF e no Tribunal Superior Eleitoral. Mendes, ex-assessor de Fernando Henrique Cardoso e ex-ministro da Advocacia-Geral da União, foi indicado pelo presidente tucano em 2002.

Barbosa, filho de pedreiro, que sempre estudou em escola pública, recebeu a toga de Lula em 2003. Foi escolhido por seus inegáveis méritos jurídicos, mas também pela disposição do presidente da República de nomear alguém com o perfil de Barbosa.

As rusgas entre Mendes e Barbosa, evidentemente, afloraram muito mais pelo que os separa do que pelo que os une. Ambos têm visões de mundo antagônicas. Considerado um elitista pelos adversários, Mendes costuma ser criticado pela maneira arrogante com que expõe suas ideias em público.

Deve-se a ele, contudo, o recente desmonte do estado policial que começava a fincar estacas no coração da democracia brasileira. Já Joaquim Barbosa é considerado um procurador da República disfarçado de ministro.

Ele acha que o clamor popular deve ser levado em conta pelos juízes, principalmente quando se trata de punir ricos e poderosos, e discorda das críticas que Mendes tem feito à Polícia Federal e ao Ministério Público. O ministro terá uma chance e tanto de colocar em prática suas convicções.

Ele é o relator do processo criminal contra os 39 réus do mensalão, o esquema petista que desviava dinheiro público para corromper parlamentares no Congresso em troca de apoio ao governo. Barbosa já deu sinais inequívocos de que dará uma lição de isenção e coerência no caso do mensalão – este, sim, fornido de provas.

Divulgação

Rabugento e poderoso

Por que o inglês Simon Cowell é uma das personalidades mais importantes do showbiz
Sérgio Martins

INSULTOS MILIONÁRIOS

Simon Cowell: ele recebe 36 milhões de dólares por ano da rede americana Fox para estrelar American Idol

Numa entrevista recente, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, definiu desta maneira a atmosfera política ácida na capital de seu país: "Washington é como American Idol – exceto que todos são Simon Cowell". A menção a Simon Cowell é um bom indício da notoriedade que esse inglês de 49 anos conquistou – não apenas na cultura popular dos Estados Unidos, mas ao redor do mundo.

Na bancada julgadora do célebre show musical, ele tornou-se um personagem antológico: o jurado rabugento, implacável, brutal. Mas Cowell tem outra faceta, que veio ao primeiro plano nos últimos quinze dias: a de empresário do showbiz. Foi a escocesa Susan Boyle que ajudou a ressaltar esse outro lado.

A esta altura, as imagens da mulher feiosa mas de voz excepcional, interpretando de maneira emocionante a canção I Dreamed a Dream, já foram vistas mais de 100 milhões de vezes somente no site YouTube. A apresentação original, contudo, aconteceu no Britain’s Got Talent, um show de calouros da TV britânica que tem Cowell não apenas como jurado, em seu papel habitual, mas também como "dono" (ele produz o show e detém seu formato). Logo ficou claro que Cowell vai lucrar muito com a ascensão dessa diva inesperada.

A audiência do Britain’s Got Talent certamente crescerá nas próximas etapas da competição, com os ganhos publicitários que isso acarreta. Além disso, os direitos sobre a carreira musical de Susan pertencem a Cowell, que já anunciou: "É claro que vai haver um disco". Ainda que seja a mais sensacional descoberta de Cowell, Susan não é a primeira nem a única no plantel de sua empresa, a Syco.

Além do Britain’s Got Talent, no ar desde 2007, ele está nos bastidores de um outro programa de sucesso, o The X Factor (iniciado em 2004). Estima-se que já tenha amealhado uma fortuna de mais de 200 milhões de dólares.

Cowell é filho de um ex-executivo da gravadora EMI e de uma dançarina. Entrou para a indústria musical nos anos 70 e na década seguinte lançou seu próprio selo, o Fanfare – que faliu em 1988.

Poucos meses depois, foi contratado como diretor artístico da gravadora BMG e investiu na contratação de artistas pop meio chinfrins, como o grupo Westlife e a cantora Sonia. Então, em 2001, seu amigo Simon Fuller, mentor das Spice Girls, criou um programa de calouros chamado Pop Idol e o convidou para ser jurado.

Suas tiradas contra os candidatos eram tão venenosas – e tão divertidas – que Cowell foi exportado para a versão americana do programa, o American Idol. O resto é história. Com audiência média de 25 milhões de pessoas, esse show tornou-se não apenas o carro-chefe do canal pago Fox, mas o programa mais popular da TV americana. Cowell, a estrela, tem salário de 36 milhões de dólares por ano.

DIVA INUSITADA

Susan Boyle no Britain’s Got Talent: a mais sensacional descoberta de Cowell – mas não a única

No começo deste mês, Cowell deu uma entrevista ao jornal inglês The Daily Mirror afirmando que pode deixar o American Idol no fim de 2009. Ele diz estar cansado. Deve ser verdade. Sua vida tornou-se um vaivém entre Inglaterra e Estados Unidos. Num dia ele está num lado do Atlântico, castigando calouros do American Idol; no dia seguinte, está no lado oposto, produzindo e estrelando seus próprios shows.

Nem mesmo a estafa mais profunda deve tornar fácil a decisão de abdicar da dinheirama de 36 milhões de dólares. Mas Cowell deve ter feito as contas. Seu contrato com a Fox impede que ele venda uma versão do Britain’s Got Talent (que já está em quarenta países) nos Estados Unidos. Desfeito o vínculo com a emissora, ele ganharia liberdade para levar ao país o seu próprio show.

Dias depois da já mencionada entrevista de Obama, Cowell foi ao mesmo programa, o do apresentador Jay Leno, que lhe pediu um comentário. Sua resposta: "Provavelmente Obama quis dizer que as pessoas agora estão mais inteligentes em Washington". Vá discutir com ele...


Mudanças climáticas são piores do que se pensava

Novos estudos mostram que as previsões catastróficas feitas pelo Painel da ONU em 2007 eram tímidas. A situação é mais grave
Marcela Buscato

DESMANCHE



Cientista observa blocos de gelo em processo de derretimento na Antártica. Na última década, o degelo aumentou em 75%, segundo dados revisados

Representantes da Itália e da Suíça sentaram-se à mesa de negociações para solucionar um problema que pensavam ter resolvido há quase 70 anos: onde começa e termina cada país. Em 1941, quando as fronteiras foram formalizadas, pareceu uma boa ideia usar como marco as geleiras dos cumes dos Alpes, um cartão-postal da Europa. Elas representavam uma referência atemporal. Mas, com o aquecimento global, parte da neve derreteu. E sumiu com a divisão entre os países.

Italianos e suíços resolveram o problema pacificamente: vão usar como parâmetro as rochas expostas pela ausência da neve. Mas o contratempo diplomático mostrou que os impactos mais drásticos das mudanças climáticas já estão acontecendo. E, de acordo com uma nova leva de pesquisas, mais rápido do que se previa.

Estudos recentes mostram que a velocidade do aquecimento global está acelerada se comparada ao que previram há apenas dois anos os cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), a cúpula internacional reunida pelas Nações Unidas para estudar o fenômeno. As novas pesquisas reúnem dados mais recentes que os compilados no último relatório do IPCC, que em geral datam de 2005.

Além de atuais, os últimos estudos são mais precisos porque os pesquisadores conseguiram analisar uma escala maior de tempo, o que confere exatidão à detecção de tendências. “Já estamos no pior cenário previsto pelo IPCC”, afirma a oceanógrafa americana Katherine Richardson, pesquisadora da Universidade de Copenhague, na Dinamarca.

“A situação é até pior que o estimado no caso do degelo do Ártico e da elevação do nível do mar.” (Leia a entrevista) Em março, Katherine e cientistas de vários países se reuniram em Copenhague para dar esse recado ao mundo. Foi a forma que eles encontraram para alertar os políticos que se encontrarão em dezembro, também em Copenhague, para votar um novo acordo para cortar emissões.

Ao lado do biólogo americano Christopher Field, da Instituição Carnegie para Ciência, em Washington, e do climatologista James Hansen, do Instituto Goddard da Nasa, a agência espacial americana, Katherine é uma das cientistas mais ativas no alerta sobre o aquecimento global.

Field estuda como as plantas e os ecossistemas responderão ao aumento da temperatura e tem declarado que o mundo está diante de um futuro climático além de qualquer previsão pessimista. Hansen, que desde a década de 1980 faz advertências sobre o aquecimento global, diz que a sociedade tem menos de uma década para frear as mudanças climáticas se não quiser viver em um planeta irreconhecível.

A maioria dos pesquisadores é mais reticente. Eles temem que afirmações catastróficas desestimulem as mudanças necessárias para diminuir as emissões. Um segundo motivo é o rigor científico. Como qualquer investigação científica, suas medições e análises carregam um grau de incerteza. Para não dar declarações exageradas, muitos pesquisadores acabam não enfatizando o suficiente suas conclusões.

“Sinto-me decepcionado em como demoramos para convencer a sociedade de que o aquecimento global é uma ameaça real”, diz o glaciologista americano Robert Bindschadler, pesquisador da Nasa que há 25 anos estuda o continente antártico. “A maior parte dos cientistas está perplexa com a eficiência dos céticos em destacar as incertezas de nossas pesquisas.”

Apesar da cautela dos cientistas, as evidências reunidas nos últimos quatro anos não deixam dúvidas da escalada das mudanças climáticas. E elas devem integrar o próximo relatório do IPCC, em 2014.

“Algumas consequências do aquecimento já são irreversíveis, como a expansão da área tropical no planeta”, afirma o meteorologista alemão Thomas Reichler, pesquisador da Universidade de Utah, nos Estados Unidos. Reichler diz que em Salt Lake City, onde mora, o verão já está mais seco e as chuvas devem diminuir pelo menos 10% nos próximos anos. É uma previsão preocupante para uma região desértica. “Nossas ações hoje é que ditarão quão ruim a situação vai ficar no futuro.”

Segundo os cientistas, não estamos fazendo o que poderíamos para diminuir a emissão de gás carbônico, o principal responsável pelo aquecimento global. Desde a Revolução Industrial, no século XVIII, nós o emitimos em atividades como a queima de petróleo e carvão para gerar energia.

Ele esquenta o planeta, porque forma uma camada de gás na atmosfera que retém o calor do Sol. Agora que sabemos disso, deveríamos diminuir as emissões. Em vez disso, elas estão aumentando. E em um ritmo que resultaria no pior cenário antecipado pelo IPCC: o planeta ficaria 6,4 graus célsius mais quente antes do fim do século.

O trabalho de um consórcio internacional de cientistas, o Global Carbon Project, mostrou que só entre 2000 e 2004 o crescimento anual das emissões triplicou, de 1,1% por ano nos anos 1990 para 3%. A industrialização de países como China e Índia, com base na queima de carvão, seria a principal causa desse aumento. Em 2004, os países em desenvolvimento teriam contribuído com 73% do aumento das emissões globais.

O cenário mais otimista previsto pelo relatório do IPCC (um acréscimo de “apenas” 2 graus na temperatura) já é considerado improvável. O Hadley Center, no Reino Unido, referência internacional em modelos climáticos, refez suas previsões no ano passado e sugeriu um futuro ainda mais quente. Mesmo que as emissões caiam 3% ao ano a partir de 2010, a temperatura aumentaria no mínimo 2,9 graus em 2100. No ritmo atual, seriam 7,1 graus a mais.

O impacto seria avassalador. Nas contas do IPCC, 4 graus a mais fariam com que o nível do mar subisse até 59 centímetros. Seria o suficiente para desabrigar 313 milhões de pessoas, cerca de 5% da população mundial. Hoje, essa previsão é considerada conservadora demais. Os cientistas já dão como certa uma elevação do nível do mar em 1 metro até 2100. Cerca de 600 milhões de pessoas ficariam desabrigadas.

Segundo estudos, 5% do fundo congelado do Oceano Ártico já começou a liberar metano

A revisão das projeções foi provocada por novas análises do comportamento do oceano nos últimos milhares de anos. E por novos dados que mostram a aceleração do derretimento da Antártica. Pesquisadores da Universidade da Califórnia constataram que, entre 1996 e 2006, o degelo na Antártica aumentou 75%.

A parte mais vulnerável é o oeste do continente. Lá, os cientistas observam a aceleração do derretimento de grandes geleiras como a Pine Island, que mede 250 quilômetros de comprimento. “Geleiras como essa podem derreter em uma questão de séculos”, diz Bindschadler, da Nasa. “Isso elevaria o nível do mar em 5 metros.”

CONTARDO CALLIGARIS

I love Susan Boyle

O vídeo tem a qualidade de um exemplo moral: sonhar pede coragem, resistência e seriedade

NA TERÇA-FEIRA, eu estava com minha coluna pronta (escrevo entre domingo e segunda) e, ao abrir o jornal, descobri que João Pereira Coutinho, neste mesmo espaço, também tinha-se apaixonado por Susan Boyle.

Tudo bem, não sou ciumento. Mesmo assim, por um momento, pensei escrever, na última hora, outra coluna. Mas, lendo Coutinho, percebi que a gente pode se apaixonar pela mesma pessoa por razões diferentes. Aqui vai.

Em poucos dias, dezenas de milhões de pessoas, pelo mundo afora, assistiram ao vídeo de Susan Boyle cantando "I Dreamed a Dream" (eu sonhei um sonho). Assistiram e choraram lágrimas comovidas.

Acesse a internet e veja uma das versões (por exemplo, www.youtube.com/watch?v=8OcQ9A-5noM). Se quiser mais, assista à entrevista de Susan Boyle à rede americana CBS, durante a qual Boyle canta um trecho da música a capela (watching-tv.ew.com/2009/04/susan-boyle-cbs.html).

Provavelmente, Susan Boyle gravará um CD, e o comprarei. Talvez, um dia, ela venha ao Brasil, e estarei no show, mesmo a preço de cambista. Mas nada disso se comparará com o momento extraordinário registrado no vídeo que está hoje no YouTube. Por quê?

Vamos com calma. Susan Boyle se qualificou nas preliminares para participar de "Britain's Got Talent" (a Grã-Bretanha tem talento), que é mais uma versão (inglesa) de "American Idol", o programa de televisão que começou nos EUA e foi repetido em vários países -no Brasil, "Ídolos", na TV Record. Trata-se, a cada ano, de premiar um cantor ou uma cantora, descobrindo novos talentos.

Na verdade, a seleção para chegar até à final talvez seja o que mais diverte as plateias, nos teatros de gravação ou em casa: o vexame da maioria dos concorrentes funciona como um bálsamo para todas as covardias que nos impedem de correr atrás de nossos sonhos. Algo assim: "Olhe o que aconteceu com quem ousou. Ainda bem que eu não fui!".

Susan Boyle entrou no palco como uma espécie de anticlímax; ela era tudo o que não se espera de uma aspirante a estrela: quase 48 anos, solteirona, desempregada, vestida (disse um amigo estilista) como a rainha Elizabeth se ela fosse pobre, "gordinha" e "feinha". Os diminutivos indicam que sua aparência não era extraordinária nem negativamente, mas a tornava transparente: aquela figura papel de parede, de quem ninguém se lembra se ela estava na festa ou não.

Para completar, respondendo às perguntas de Simon Cowell (que preside o júri), ela pareceu quase tola e um tanto vulgar, balançando os quadris para dar mostra de sua juventude de espírito.

Quando Susan Boyle anunciou que seu sonho era ser cantora como Elaine Page (a inesquecível Grizabella de "Cats", em Londres, em 1981), o júri e a plateia não esconderam seu desdém.

Aí Susan Boyle começou a cantar. A performance foi propriamente incrível; por um instante, pensei que Boyle estivesse apenas mexendo os lábios enquanto tocava uma gravação: uma voz forte, limpa, segura e expressiva, fiel às emoções que se alternam ao longo das letras.

Também a música que Susan Boyle escolheu (letras de Alain Boublil) contribuiu para transformar sua performance numa espécie de exemplo moral: fala de um sonho antigo, sonhado quando "a esperança falava alto e a vida valia a pena", na época em que "os sonhos são criados, usados e desperdiçados"; mas há "tempestades" que "transformam nossos sonhos em vergonha", e, no fim, em regra, a vida massacra os sonhos que sonhamos. Então, qual é a moral da performance?

Para Coutinho, a moral é que, na vida, não basta se esforçar: é preciso ter sorte. Entendo assim: Susan, até aqui, não teve sorte, a gente se comove porque é tarde demais ou porque, enfim, o destino a encontrou em sua aldeia perdida.

Para mim, a moral é outra. Não sei se Susan teve sorte ou não. Cuidar longamente da mãe doente e cantar com os amigos no karaokê da vila é uma vida que pode valer a pena, talvez mais do que uma vida nas luzes da ribalta. O que me comoveu tem mais a ver com a coragem e a resistência de seu sonho.

Os entrevistadores da CBS perguntaram a Susan Boyle como ela conseguiu se concentrar e cantar, embora percebesse que o júri e a plateia não a levavam a sério e já estavam antecipando a zombaria. Ela respondeu, com simplicidade: "É a gente que tem de se levar à sério".

ccalligari@uol.com.br


25 de abril de 2009
N° 15950 - CLÁUDIA LAITANO


O discurso e a prática

Por trás de cada notícia de escândalo, corrupção, jeitinho, malandragem, roubalheira explícita, há uma aula de filosofia.

Um jornal ideal, além do cronista esportivo e do analista econômico, deveria contar com um colunista diário de assuntos filosóficos, alguém que nos ajudasse a entender, à luz do que os grandes pensadores já escreveram sobre o assunto, por que tanta gente, famosos e anônimos, ricos e pobres, pós-graduados e analfabetos, tem dificuldade de distinguir o certo e o errado.

É muito fácil chamar o político de ladrão, colocá-lo em uma posição moral obviamente inferior à nossa e voltar aos afazeres do dia-a-dia – como se não fôssemos todos feitos da mesma matéria que dá origem aos canalhas e aos homens honrados.

Um filósofo alemão chamado Immanuel Kant propôs uma regra infalível para avaliarmos se uma atitude é moral ou não: nunca deveríamos fazer nada que não gostaríamos que virasse uma lei universal.

Dois episódios recentes, em nada raros ou excepcionais, mostram como é frequente que o discurso sobre moral vá para um lado enquanto a prática, esta danada, vai para o outro.

No caso da “farra das passagens” – o uso das cotas de viagens dos deputados para financiar passeios ao Exterior para amigos, familiares e namoradas – chama mais a atenção a presença de políticos do chamado “grupo ético” na lista dos que usaram as passagens de forma indevida do que o escândalo em si.

O deslize dos “éticos” é mais eloquente do que todo o esforço do baixo clero do Congresso para impedir que as medidas moralizadoras discutidas na quarta-feira passada entrassem em vigor. Aqueles que brigam pelos seus privilégios com a sólida convicção de que eles são a própria razão de ser do mandato não nos ensinam nada – são o senso comum da classe política brasileira.

Mas quando os poucos que parecem genuinamente interessados em provar que é possível fazer política de uma forma diferente não conseguem perceber nada errado no fato de o dinheiro público estar sendo usado para financiar assuntos privados a conclusão óbvia é de que nem o “grupo ético” está muito seguro sobre o sentido da palavra ética.

O mesmo impacto simbólico teve o escândalo com os filhos bastardos do presidente paraguaio Fernando Lugo. O assunto virou piada – talvez porque a imagem de “macho latino” não seja de todo negativa para um político sul-americano, mesmo quando ele é um ex-bispo.

Os que discutem o assunto a sério têm questionado a obrigatoriedade do celibato ou a honestidade de um político que, como padre, já vivia uma vida dupla.

Mas o que mais chama a atenção nesse episódio não é o fato de Lugo, como tantos, ter tido uma vida sexual ativa durante o sacerdócio, inclusive relacionando-se com uma menina de apenas 16 anos.

O que realmente impressiona é o fato de que ele abandonava os filhos, como se não tivesse nenhuma responsabilidade com relação a eles, nem mesmo financeira. Como se a paternidade fosse uma questão de escolha – assim como manter-se ou não dentro da Igreja.

Em espanhol, “pai” e “padre” são a mesma palavra. Padres podem abrir mão da batina e seguir sua vida com a consciência limpa, já os pais não podem desistir dos filhos e fazer de conta que eles não existem.

Que um homem que fez isso tenha vivido boa parte de sua vida pregando a compaixão e a moral é daquelas situações que nos lembram que a alma humana pode ser um casarão cheio de quartos escuros – mesmo quando o dono da casa é um fabricante de lâmpadas.

quarta-feira, 22 de abril de 2009



22 de abril de 2009
N° 15947 - MARTHA MEDEIROS


Uma carona pra morte

Éclaro que nos comove ver pessoas que, no auge da depressão, tiram a própria vida por não enxergar mais nenhum caminho possível à frente.

É um ato de desespero quase sempre planejado e que deixa familiares e amigos de mãos atadas, impotentes. Mas nossa comiseração se transforma em raiva quando essas pessoas cometem o desatino de levar junto com elas quem não pediu pra embarcar nessa viagem sem volta.

Aconteceu em Novo Hamburgo, aconteceu em Livramento. No primeiro caso, uma mulher de 47 anos, falida, matou o marido, a irmã e a sobrinha antes de tentar um fracassado suicídio, porque julgou que estaria fazendo um bem a eles, evitando que herdassem sua colossal dívida.

No outro caso, uma mãe matou os dois filhos, de seis e oito anos de idade, antes de tirar a própria vida. Ambos os casos mostram uma prepotência sem tamanho.

Ok, para chegar a um ato extremo como o suicídio, a pessoa não está bem, não se pode cobrar dela equilíbrio, mas, ainda assim, a palavra prepotência é justificada. Se não queremos que nossos amores sofram com nossa ausência, basta ter a coragem de ficar, de seguir vivendo, a despeito de todo o sofrimento.

Porém, se não há mais como seguir adiante, que assumamos essa decisão solitariamente. É covardia querer sair de cena acompanhada, sem permitir que nossos filhos ou cônjuges permaneçam e enfrentem a própria dor. Eles se recuperarão. Será que é isso que o suicida não tolera?

Há que se ter integridade até para se matar. Os crimes passionais são outro exemplo dessa covardia, geralmente perpetuada por homens que, sem condições emocionais de aceitar que sua namorada ou esposa não os quer mais, as privam de seguir vivendo para que elas não voltem a amar: eles as matam e se matam em seguida, encerrando de vez sua trajetória de humilhação.

Volto a dizer: sei que estou me referindo a pessoas que estão psicologicamente comprometidas, fora de si. Ainda assim, me custa perdoá-las pela insanidade consumada. Onde é que fica a humildade?

Como uma pessoa pode se sentir dona da vida dos filhos, de seus parceiros, de seus familiares? Que “generosidade” é essa de procurar evitar o sofrimento dos outros, lhes ofertando a morte em troca?

Prepotência. Não encontro outra palavra para definir aquele que se julga no direito de decidir que é hora de todos partirem juntos.

terça-feira, 21 de abril de 2009



21 de abril de 2009
N° 15946 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O país dos lobos

Presenciei esses dias, aprisionado no trânsito ante um sinal vermelho, um espetáculo de violência. Uma jovem mãe, com a idade na qual as adolescentes de classe média se preparam para o vestibular ou malham nas academias, carregava no colo um bebê de poucos dias e travava uma guerra particular com outro filho, que caminhava ao seu lado.

Este menino, de uns dois anos, chorava, talvez de cansaço, talvez de fome, e a mãe lhe dirigia uma coleção de palavrões que só me deixou menos abismado do que os cascudos com que o acertava, sem dó nem piedade.

Todos vestiam trapos, padeciam de miséria e de desesperança.

Falto de ação no carro, ou, quem sabe, sobrante de omissão, me bateu uma revolta tão funda quanto inútil. Refleti, enquanto o auto arrancava, que aquela era a crua cena, a explícita razão por que tantas crianças preferem a incerteza das ruas ao território de desamor de seus próprios, precários lares.

As estatísticas estão aí, frias e terríveis, a comprovar que os maiores agressores de pequenas vítimas indefesas não são os estranhos, mas algumas das pessoas que lhes estão mais próximas. Há um incomensurável déficit de afeto e de compaixão no chamado país da cordialidade.

Nem remotamente imaginem, contudo, que a agressividade seja monopólio dos deserdados. Há enormes provisões de brutalidade, arrogância, prepotência permeando a convivência urbana em todos os andares da pirâmide social. Podem não ser tão manifestas como no rude episódio que narrei. Mas são por vezes mais torpes.

Não, eu não condeno de todo a jovem mãe que maltrata o filho. Eu a deploro, eu a lastimo. Ela própria é uma maltratada pela vida que não escolheu, mas a que foi sentenciada no áspero jogo da sobrevivência.

É o produto pronto e acabado de uma nação decomposta por disparidades iníquas. Parece claro no entanto que a doença da impiedade contagia pobres e párias, ricos e remediados.

Vêm dias em que penso que o homem é mesmo o lobo do homem. Formamos uma imensa alcateia. Dela só nos libertaremos pelo árduo aprendizado da solidariedade e do humanismo.

domingo, 19 de abril de 2009


DANUZA LEÃO

Por onde anda o amor?

Será que as pessoas ainda se apaixonam, amam como amavam, pensam no ser amado o tempo todo?

SEMANA PASSADA estava em casa vendo TV e vi que ia passar, naquela noite, "Piaf" -que eu já tinha visto duas vezes no cinema. Não resisti e fiquei esperando, impaciente, que o filme começasse.

E foi muito bom ter visto pela terceira vez, pois percebi uma coisa que tinha me escapado das duas primeiras: a música de fundo, que no filme não é cantada, é tocada quase que o tempo todo baixinho, muito sutilmente, e é uma belíssima canção, se não me engano de Raymond Asso, que se chama "Mon Légionnaire". Linda, linda, como quase todas as que Piaf cantava. E eu fico me lembrando daquela que foi uma época de ouro da música no mundo inteiro.

A partir dos anos 30, tivemos, entre compositores e intérpretes, Cole Porter, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Montand, Brel, Trenet, Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Isaurinha Garcia, e mais tarde Tom, Vinicius, Chico, Caetano, Edu, Bethânia, Gal, Roberto e tantos mais, todos diferentes, mas o que podia haver de melhor, tanto assim que suas músicas são lembradas, tocadas e cantadas até hoje no mundo todo, por todas as gerações. E houve também a disc music, com algumas inesquecíveis.

Mas a partir daí, o que aconteceu com a música? Das mais recentes, não conheço nenhuma maravilhosa, de nenhum país. Qual foi o último sucesso de que me lembro? De Rod Stewart cantando canções antigas, mais nada.

Andei falando com uns jovens amigos e a explicação foi que, tendo o mundo se expandido tanto, criaram-se novos nichos de música, que são por sua vez apreciados por determinados nichos de pessoas. Curiosamente, as coisas não são mais tão universais como eram antes da globalização.

Mas não foi só isso que mudou. Até a bossa nova, as músicas -da França, dos EUA, do México, do Brasil- falavam de amores infelizes, de corações despedaçados, sendo que os tangos usavam e abusavam da figura da mãe -"la madrecita".

A bossa nova fez com que os amores ficassem mais leves -nem por isso as pessoas sofriam menos por amor-, mas agora eu não entendo mais nada. Vamos ao fundo da questão: será que as pessoas ainda têm uma dor de corno, daquelas de se enfiar na cama e nem querer saber se está chovendo ou fazendo sol? A julgar pelas músicas atuais, não.

Comecei falando de música, mas agora vou falar de amor. Será que as pessoas ainda se apaixonam, amam como amavam, pensavam no ser amado o tempo todo e fariam qualquer coisa -como diz "Hino ao Amor", de Piaf, renegariam sua pátria e seus amigos se lhe fosse pedido- pela pessoa que amassem?

Vamos falar de coisas bem banais: deixariam de ir a um jogo de futebol, se isso lhes fosse implorado? De ir à praia? Dariam o último pastelzinho da travessa à pessoa amada? Será que o amor está acabando?

Há muito tempo não ouço ninguém me dizer que está morrendo de paixão, nem homem nem mulher. Os homens não são muito de confessar essas coisas, mas as mulheres estão preferindo ir a uma academia de ginástica a sair com um homem com más intenções. O que é uma pena.

Porque não há nada melhor do que viver uma paixão, e se ela não der certo, sofrer muito por ela.

danuza.leao@uol.com.br


O Homem Ideal

Dia desses lia numa destas revistas femininas uma espécie de enquete, onde as mulheres respondiam como era o homem ideal. Embora muitas conclusões beirassem à incredulidade da existência do tal homem, algumas respostas eram realmente curiosas.

O homem ideal tem que ser carinhoso e romântico sem ser meloso. Responsável sem ser viciado em trabalho, que tenha uma "aura" de poder mas que não seja autoritário. Um bom percentual de vaidade se faz necessária sem lembrar Narciso e é fundamental também que seja inteligente e bem informado.

E o que me chamou mais atenção: precisa pagar a conta do restaurante pelo menos no primeiro encontro e não ficar querendo rachar sempre nos encontros posteriores.

Lendo essas exigências cheguei a ficar com pena dos homens. Deve ser difícil ser romântico e carinhoso e saber exatamente qual é a linha tênue que separa estas duas coisas da melosidade.

Complicado isso de ter "poder" — que eu suspeito seja através de um cargo profissional ou de uma boa conta bancária — sem se acostumar a ser bem servido e esquecer de ser autoritário. Como se define um homem vaidoso? O que se veste bem mas pode ter uns quilos a mais? O que se veste como um surfista e frequenta academias?

Fiquei imaginando um dia, que normalmente tem umas 17 horas úteis, de um homem ideal. Acorda às sete horas da manhã, vai para a academia malhar por uma hora. Toma banho, um rápido café da manhã (muito light), lê o jornal (ele precisa ser bem informado) e vai para o trabalho. Dedica quase quatro horas na conquista da responsabilidade e da tal conta bancária.

Almoça com alguém importante em busca do tal do poder e segue a tarde dedicando mais umas cinco ou seis horas à responsabilidade. Terminado esse expediente, o homem ideal começa outro antes de chegar em casa, onde sempre tem muitas coisas a fazer: passar na loja de moda masculina, na banca para saber das revistas mais atualizadas (as que ele não assina, claro) ou na livraria para adquirir algum livro pertinente .

Ah, sim, às vezes também na lavanderia, na floricultura (romantismo, certo?) e no barbeiro. Se ele passar em um destes lugares por semana, preencheu todos os dias, exceto o domingo, que será dedicado ao ócio, quem sabe, e ao cinema com certeza.

Chegando em casa, toma outro banho e liga para a mulher amada para combinar alguma coisa para amanhã, torcendo para que a floricultura tenha feito a entrega corretamente. Hoje, ele tem que folhear algumas revistas depois de comer qualquer coisa e continuar a leitura daquele livro e também, deus é pai: já são dez horas da noite. Com sorte, ele vai poder dormir perto da uma da madrugada, não sem antes ver o Jornal da Noite.

Amanhã ele tem o dia parecido com o de hoje, mas à noite janta com sua amada, paga a conta do restaurante. "Sua casa ou a minha", madrugada romântica e ardente e depois de amnhã às sete horas, a vida continua.

Lá pelas tantas, esse homem ideal, o príncipe poderoso, responsável, vaidoso, inteligente, culto e carinhoso, começa a ficar com cara de sapo. Porque será? Fico tentada a acreditar que ser sapo é mais confortável e que o homem ideal tende a ser um fracasso induzido pelo stress.

Seria tão bom se homens e mulheres pudessem se encontrar sem expectativas e, principalmente sem querer responder às alheias. Quem sabe, nesse dia, com essa mania insana que a gente tem de tentar ser feliz, se descubra que o homem ideal é aquele com quem estamos dividindo nosso pedaço de dia.

Talvez o homem ideal não precise ter uma lista de qualidades, mas qualidades únicas que dêem vontade de listar, só para enaltecer e não esquecer. E sobretudo, que faça uma mulher acreditar que é merecedora deste homem, ideal o bastante para se estar com ele.

Cláudia Letti

sábado, 18 de abril de 2009



19 de abril de 2009 | N° 15944
MARTHA MEDEIROS


O amor que a vida traz

Você gostaria de ter um amor que fosse estável, divertido e fácil. O objeto desse amor nem precisaria ser muito bonito, nem rico. Uma pessoa bacana, que te adorasse e fosse parceira já estaria mais do que bom. Você quer um amor assim. É pedir muito? Ora, você está sendo até modesto.

O problema é que todos imaginam um amor a seu modo, um amor cheio de pré-requisitos. Ao analisar o currículo do candidato, alguns itens de fábrica não podem faltar. O seu amor tem que gostar um pouco de cinema, nem que seja pra assistir em casa, no DVD. E seria bom que gostasse dos seus amigos.

E precisa ter um objetivo na vida. Bom humor, sim, bom humor não pode faltar. Não é querer demais, é? Ninguém está pedindo um piloto de Fórmula 1 ou uma capa da Playboy. Basta um amor desses fabricados em série, não pode ser tão impossível.

Aí a vida bate à sua porta e entrega um amor que não tem nada a ver com o que você queria. Será que se enganou de endereço? Não. Está tudo certinho, confira o protocolo. Esse é o amor que lhe cabe. É seu. Se não gostar, pode colocar no lixo, pode passar adiante, faça o que quiser. A entrega está feita, assine aqui, adeus.

E agora está você aí, com esse amor que não estava nos planos. Um amor que não é a sua cara, que não lembra em nada um amor idealizado. E, por isso mesmo, um amor que deixa você em pânico e em êxtase.

Tudo diferente do que você um dia supôs, um amor que te perturba e te exige, que não aceita as regras que você estipulou. Um amor que a cada manhã faz você pensar que de hoje não passa, mas a noite chega e esse amor perdura, um amor movido por discussões que você não esperava enfrentar e por beijos para os quais nem imaginava ter tanto fôlego.

Um amor errado como aqueles que dizem que devemos aproveitar enquanto não encontramos o certo, e o certo era aquele outro que você havia solicitado, mas a vida, que é péssima em atender pedidos, lhe trouxe esse e conforme-se, saboreie esse presente, esse suspense, esse nonsense, esse amor que você desconfia que não lhe pertence.

Aquele amor em formato de coração, amor com licor, amor de caixinha, não apareceu.

Olhe pra você vivendo esse amor a granel, esse amor escarcéu, não era bem isso que você desejava, mas é o amor que lhe foi destinado, o amor que começou por telefone, o amor que começou pela internet, que esbarrou em você no elevador, o amor que era pra não vingar e virou compromisso, olha você tendo que explicar o que não se explica, você nunca havia se dado conta de que amor não se pede, não se especifica, não se experimenta em loja – ah, este me serviu direitinho!

Aquele amor corretinho por você tão sonhado vai parar na porta de alguém que despreza amores corretos, repare em como a vida é astuciosa. Assim são as entregas de amor, todas como se viessem num caminhão da sorte, uma promoção de domingo, um prêmio buzinando lá fora, mesmo você nunca tendo apostado. Aquele amor que você encomendou não veio, parabéns! Agradeça e aproveite o que lhe foi entregue por sorteio.


Genética não é espelho
Gabriela Carelli

Nascer com patrimônio genético idêntico não significa que as pessoas crescerão tendo corpo, mente e doenças iguais.

A descoberta de que os hábitos e o estilo de vida mudam o comportamento dos genes está na raiz de uma revolução extraordinária para a medicina. Ela ajudará na criação de remédios personalizados, capazes de alterar o genoma para deter o desenvolvimento de doenças e de transtornos psíquicos

Mirian Fictner/Pluf Fotografias



ARTIMANHAS DO GENOMA

Fisicamente, as gêmeas univitelinas Adriana (à esq.) e Andréa Zamprogna, gaúchas de 33 anos, são idênticas. No comportamento, porém, são muito diferentes. Andréa é mais tímida e sofre de ansiedade. "Fomos criadas do mesmo jeito, mas nossas vidas tomaram rumos opostos", diz Adriana. A maioria das diferenças que os gêmeos univitelinos desenvolvem ao longo da vida se deve à ação do ambiente sobre os genes

O sequenciamento completo do genoma humano, obtido há seis anos, ao cabo de um esforço coletivo de pesquisadores americanos, ingleses, canadenses e neozelandeses, foi uma das mais espetaculares conquistas científicas de todos os tempos. Do estudo resultou um mapa com a posição de cada uma das múltiplas variações dos genes, os tijolos moleculares que se combinam no coração das células para definir as características físicas dos seres humanos.

Cada pessoa tem de 20.000 a 25.000 genes. Com exceção dos gêmeos univitelinos, como as gêmeas que ilustram esta reportagem, não existem dois seres humanos com a mesma combinação genética. A cor dos olhos, a tendência para engordar, o temperamento, a propensão para determinadas doenças são características definidas mais ou menos fortemente pelas bases químicas dos genes. Mapear o genoma humano foi o começo, e não o fim, de uma ambiciosa linha de investigação.

O mundo científico ficou ainda mais complexo depois do mapeamento genético feito há seis anos, quando os pesquisadores passaram a se dedicar a entender a função de cada um dos genes e, o supremo desafio, explicar as razões pelas quais eles às vezes exercem suas funções e outras parecem hibernar preguiçosamente nos cromossomos sem nunca ser ativados – ou por que mesmo pessoas com estoque hereditário idêntico, como os gêmeos univitelinos, podem carregar um mesmo gene, mas que se expressa de maneira totalmente diferente num e noutro organismo.

Para efeito de diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças, o que se descobriu depois do mapeamento do genoma constitui o começo da verdadeira revolução biológica. Equivale à abertura de uma nova porta para o conhecimento humano. Já se sabia que os fatores ambientais, ou seja, as experiências, os hábitos e o estilo de vida também influem nesses processos. Não se tinha ideia, porém, de como se dava essa influência.

Agora, não apenas se encontraram os mecanismos de ação dos fatores ambientais como se constatou que eles são muito mais atuantes na ativação ou desativação dos genes do que se pensava. Isso abre frentes extraordinárias para a medicina. No futuro próximo, entre outros recursos, será possível desenvolver remédios personalizados, destinados a fazer interferências pontuais no genoma de cada paciente.

Lailson Santos

PESQUISA DO FUTURO

O aposentado Daphnis de Lauro, de 84 anos, e sua mulher, Esther Citti, de 80, não desenvolveram nenhum tipo de doença relacionada ao envelhecimento. Pessoas como eles estão sendo recrutadas pela geneticista Mayana Zatz para formar um banco genético com amostras de DNA de idosos saudáveis. No futuro, com os avanços que se esperam na genética, as informações serão usadas para entender melhor as doenças e combatê-las

O tipo de alimentação, o nível de atividade física, o tabagismo, o uso de medicamentos, as experiências emocionais – todos esses fatores agem para "ligar" ou "desligar" determinados genes, ou seja, torná-los ativos ou conservá-los adormecidos. Nos dois casos, ocorrem alterações físicas e psicológicas em seu portador. Essas mudanças podem ser para o bem ou para o mal, atenuando sintomas de doenças ou provocando seu desenvolvimento.

Os gatilhos que ativam ou desativam os genes são acionados por trechos do genoma que até pouco tempo atrás os cientistas tinham por inúteis – o chamado DNA lixo. Agora se sabe que eles servem de elemento de ligação entre os fatores ambientais e os genes. Esse ramo da genética que estuda a interação entre o ambiente e o genoma é conhecido como epigenética.

O geneticista americano Randy Jirtle, da Universidade Duke, usa uma analogia para explicá-lo. Disse Jirtle a VEJA: "Imagine o material genético existente no organismo como um computador. O genoma é o hardware. Para que a máquina funcione, é preciso ter softwares. Os mecanismos epigenéticos são os softwares. Eles produzem resultados distintos rodando sobre um mesmo hardware, ou seja, o genoma herdado dos pais".

Até recentemente, acreditava-se que as alterações epigenéticas ocorriam apenas na fase de desenvolvimento fetal. Enquanto o embrião se forma, a ação dos genes pode ser modificada pelos nutrientes que chegam a ele pelo cordão umbilical. É por isso que se aconselha às mães a ingestão de ácido fólico, uma das variantes da vitamina B.

O consumo dessa substância, nos três primeiros meses de gravidez, pode desligar genes relacionados às más-formações congênitas. Agora, sabe-se que as mudanças no genoma acontecem ao longo da vida. A maior prova disso está no estudo feito com gêmeos univitelinos. Idênticos, eles possuem o mesmo código genético. No entanto, os genomas de ambos se tornam diferentes no decorrer dos anos, o que comprova a ação do ambiente no código genético.

O estudo mais significativo sobre a influência da epigenética em gêmeos foi feito pelo Centro Nacional de Investigações Oncológicas da Espanha. Os geneticistas avaliaram quarenta pares de gêmeos univitelinos, com idade entre 3 e 74 anos. Os pares de gêmeos mais jovens, e também aqueles que tinham o mesmo estilo de vida, possuíam genomas muito semelhantes.

Em pares de gêmeos mais velhos, principalmente aqueles com hábitos distintos, os cientistas encontraram diversas diferenças nos padrões genéticos. "É impressionante como uma pequena diferença na vivência ou mesmo na dieta pode fazer um dos gêmeos desenvolver um câncer e o outro, não", disse a VEJA o geneticista Moshe Szyf, da Universidade McGill, no Canadá.

Marcos Rosa

GENE QUE AMEDRONTA

O empresário Marcelo Rodrigues Afonso passou parte da infância à procura do pai, alcoólatra, nos botequins do bairro onde morava. Seu avô paterno tinha o mesmo vício. Marcelo não bebe. Mesmo assim, frequenta um grupo de apoio. "Tenho medo de ter herdado o gene do alcoolismo e, um dia, prejudicar a vida da minha mulher e dos meus filhos", diz

Ao apontarem para a cura de doenças atacando-as na escala infinitesimal dos genes, as novas descobertas da ciência representam um novo marco na linha de pensamento iniciada no século XIX pelo naturalista inglês Charles Darwin, autor da teoria da evolução. Darwin foi contemporâneo do monge agostiniano austríaco Gregor Johann Mendel (1822-1884), mas, certamente, não teve acesso às pesquisas pioneiras dele sobre a transmissão de caracteres hereditários em ervilhas.

Mendel só viria a ter seus méritos reconhecidos mesmo quase meio século depois da morte de ambos, quando os resultados de suas pesquisas, de tão exatos, passaram a ser tidos como leis biológicas.

Sem Mendel e, obviamente, sem saber da existência do DNA, dos cromossomos ou dos genes, Darwin formulou um mecanismo de transmissão de caracteres entre gerações que se baseava no que ele chamou de "células gêmulas". Essas células viajariam pelo corpo até os órgãos sexuais e de lá passariam às gerações seguintes.

O mecanismo pelo qual a informação genética é transmitida através das gerações finalmente foi elucidado em 1953, com a descoberta da dupla-hélice do DNA pelos cientistas James Watson e Francis Crick.

Essa descoberta abriu caminhos para a fertilização assistida, para a clonagem de seres vivos e para a produção de alimentos transgênicos. Também permitiu os testes de paternidade e o teste do pezinho em recém-nascidos – exame capaz de detectar anomalias e evitar o retardo mental, a cegueira e a surdez. A nova fronteira da genética é estabelecer de forma precisa como o ambiente influencia os genes.


Internet, o bem e o mal

"É triste que um meio de comunicação, pesquisa, lazer e descobertas como a internet seja usado tantas vezes para fins tão negativos"

Com suas maravilhas e armadilhas, a internet faz parte de meu cotidiano há muitos anos: fui dos primeiros escritores brasileiros a usar computador. Com ele, a cada manhã começa meu dia de trabalho, buscas e descobertas, pesquisa e comunicação.

A internet, que isola os misantropos avessos aos afetos, une os que gostariam de estar juntos ou partilham as mesmas ideias, mas também serve para toda sorte de fins destrutivos, que vão da calúnia política à vingança pessoal.

Ilustração Atômica Studio

Talvez seja uma falha, mas nem tenho site: gosto da minha privacidade, num mundo que adora os holofotes e quer ser filmado, fotografado, estar em youtube e orkut, visto por webcams ou celulares indiscretos, por vezes perversos.

De um lado, o vulgar: ditas celebridades curtem viver e morrer em cena, e fazem questão de mostrar, se possível, as entranhas. Exibem-se bundas e peitos, detalhes picantes (em geral desinteressantes) da vida pessoal, frivolidades, histeria ou maledicências.

De outro lado, o grave. Exemplo: rapazes filmam num celular oculto cenas pessoais com suas namoradas ou amigas e as espalham via internet; com fotografias inocentes, criam-se imagens maldosas que acabam num youtube ou orkut, para alegria dos mentalmente maldotados. É bem triste que um meio de comunicação, pesquisa, lazer e descobertas como a internet seja usado tantas vezes para fins tão negativos.

Ter um blog me cansaria: leio os de jornalistas cuja opinião vai me interessar no curso do dia e dos acontecimentos mais singulares. Mas um blog meu seria extremamente sem graça, então dispenso disso a mim mesma e meus leitores. Alguém estranhou que eu não estivesse no Orkut, no qual, por um tempo, houve, entre outras mil coisas, duas tribos: os que me amavam e os que me detestavam.

Visitar um lugar assim me cansaria mortalmente, e o tédio é um de meus inimigos. Minha alegria está em curtir meus amores, os lugares que me encantam ou abrigam, os livros e a música, e a natureza. Incluo entre meus prazeres as melhores coisas que internet e televisão proporcionam. (Excluam-se programas que divulgam o patético convívio numa casa-jaula humana. Se ainda não foram filmados usando o vaso sanitário, aguardem.)

Nos questionamentos sobre crianças e adolescentes que lidam com os meios eletrônicos, tenho uma sugestão: dar-lhes discernimento para que possam entender e escolher.

Continua, porém, o drama da involuntária, muitas vezes nem sabida, exposição de pessoas desavisadas à maledicência e à calúnia, à invasão não consentida da privacidade pelas câmeras, às montagens sobre fotos banais, às informações falsas que alguns julgam engraçadas – toda sorte de maldade de que as vítimas não podem se defender.

Tais indignidades jamais seriam feitas em público, ou assinadas embaixo: florescem na sombra da covardia e da mediocridade, do desrespeito e de poucas luzes intelectuais.

Se é ingenuidade ou desinformação mandar via internet textos apócrifos de Clarice, Drummond ou Borges, inventar uma falsa despedida de García Márquez anunciando que está à beira da morte ou atribuir a Fernando Pessoa versinhos derramados, é cretino e mau denegrir pessoas que nem sabem o que lhes está acontecendo. Já existe uma instrumentação legal para caçar e punir pedófilos que tentam assassinar moralmente menores de idade.

Agora, urge que se crie um equivalente para casos como os que acabo de citar, pois causam dor a quem não merece nem pode se explicar. E que ele seja muito eficaz: para que gente indefesa não tenha exibidas, por desaviso e inexperiência, intimidades próprias; nem se escrachem, por malignidade e deficiência mental, intimidades alheias.

Dois defeitos são inatos e incorrigíveis no ser humano, e de ambos nos livre o destino: burrice e mau caráter. O uso doentio de um instrumento tão fantástico quanto a internet, quando não é psicopatia, é uma conjunção desses dois melancólicos atributos.

Ruth de Aquino

O primeiro amor em Copacabana

Meu primeiro caso de amor e ódio acabou na praia, depois que ele tentou me afogar. Eu tinha 16 anos

Nosso cronista genial Nélson Rodrigues dizia que toda mulher gosta de apanhar. Pensando bem, nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais. E apenas as neuróticas reagem.

Nélson sabia penetrar com humor e ironia na alma dos conflitos de amor. Naqueles tempos, a traição feminina ainda era aceita como justificativa moral para matar. A mulher pertencia socialmente a um homem. Tudo passa, menos a adúltera – outra máxima rodriguiana.

O motivo para assassinar era nobre: lavar a honra. E os crimes eram passionais. Eram crimes “por amor”. E por amor se matava. A edição de ÉPOCA da semana passada deu o nome certo aos fatos.

O motoboy Marcelo Barbosa, de 29 anos, confessou ter matado “por ódio”, com quatro tiros pelas costas, a ex-namorada de 23 anos, morena Marina, recepcionista de academia de ginástica em São Paulo. Ele está preso, aguarda julgamento. Rapazes como Marcelo matam suas ex-namoradas, às vezes adolescentes, por ciúme e rejeição. Uma mulher apanha a cada 15 segundos no Brasil; 50 mil são mortas no mundo a cada ano por companheiros ou ex. São crônicas da morte anunciadas por agressões cotidianas.

Há quase 40 anos, quando os palavrões e o biquíni grávido de Leila Diniz ainda chocavam a sociedade, entendíamos o silêncio das mulheres espancadas e dependentes. Hoje, a gente se pergunta por quê. Se todas as transgressões femininas já foram cometidas, por que elas não se rebelam nos primeiros tapas? Por que se arrependem quando denunciam, retiram a queixa, voltam, acreditam e tornam a levar porrada?

Uma amiga socióloga no Paraná está prestes a concluir um estudo nacional sobre a violência doméstica. Nas entrevistas, ela sente pena, mas também raiva secreta das mulheres, porque os dramas se repetem, não importa a classe social. São anos ou décadas de agressões em casa, que variam apenas de intensidade. Quase um padrão. O homem encrespa o tom da voz, humilha, passa aos palavrões, golpeia primeiro sem machucar muito, depois perde o controle, aí pede desculpas e promete “nunca mais”.

Algumas se libertam. Seriam burras, ingênuas, submissas, masoquistas? Temo sempre mais pelas meninas, como a jovem Eloá, sequestrada e morta aos 15 anos pelo ex-namorado Lindemberg. Porque elas não têm referência nem maturidade. E também porque me lembro de mim aos 16 anos.

Temo sempre pelas meninas. Eu me lembro de mim aos 16 anos. Meu namorado quase me matou afogada. Por ciúme

Meu primeiro namorado quase me matou, por afogamento, na Praia de Copacabana. O namoro já durava dois anos. No início, não notei nada. Num certo dia, ele começou a me interrogar. Aonde você foi? Como estava vestida? Alguém mexeu com você? A que horas chegou em casa?

Eu respondia. Quando me rebelava, ele me apertava o braço. Beliscava. Passou a puxar meus cabelos, que desciam à cintura. Eu não sabia bem como agir. Com ele, descobri a sexualidade e me perguntava se assim era o amor na vida real. Não contava nada a ninguém por vergonha.

Comecei a sentir medo. Ameaçava terminar, mas ele se derramava em desculpas e chorava. Até o dia em que chegou à praia e eu estava no mar, conversando com um amigo surfista, depois da arrebentação.

Ele nadou rápido, era halterofilista, e pude perceber o olhar de ódio antes de ele me aplicar um caldo, sem dar uma palavra, e manter a mão sobre minha cabeça, no fundo do mar, me impedindo de voltar à tona.

Eu engolia água e achei que fosse morrer. Quando ele me soltou e eu subi, chorava engasgada e fui socorrida, levada à areia. Talvez ele quisesse apenas me dar um susto. Eu me assustei para o resto da vida. Ali terminava meu primeiro e único caso de amor e ódio.

Nunca mais um homem me submeteu a interrogatório. Nunca mais namorei um homem ciumento ou agressivo. Dei sorte. Não morri nem me viciei. Pais e mães deveriam sempre conversar com suas filhas e seus filhos antes de suas primeiras investidas amorosas. Explicar que violência não é amor.

A imensa maioria dos homens ama suas mulheres com paixão, carinho e desejo, sem agredi-las. Casos como esses e o da ex-namorada do jornalista Pimenta Neves, morta a tiros, são a exceção, não a regra. Mas é inaceitável o número de crimes. Todos temos de aprender a lidar com o ciúme de modo não violento. Especialmente os homens.


18 de abril de 2009
N° 15943 - CLÁUDIA LAITANO


Velhos sátiros

Carlos Drummond de Andrade deixou três livros inéditos no pequeno escritório da Rua Conselheiro Lafayette, em Ipanema, onde trabalhou durante os últimos 25 anos de sua vida. Poesia Errante ainda não estava finalizado, e Farewell, como o nome entrega, deveria ser a despedida oficial, o último capítulo de uma carreira de mais de 60 anos de inestimáveis serviços prestados à poesia em língua portuguesa.

O terceiro original engavetado, O Amor Natural, era o prazer mais ou menos secreto de Drummond, uma coletânea de poemas eróticos que ele preferiu não publicar em vida. Na pasta de cartolina ordinária em que guardou os originais deste livro nascido para ser póstumo, Drummond colocou o artigo “O” sobre o “A” de amor, sugerindo, marotamente, a auréola sobre a cabeça de um santo.

Quando veio a público, em 1992, cinco anos depois da morte do poeta, O Amor Natural causou o previsível escândalo. São poemas escancaradamente despudorados, uma galeria de partes íntimas e de gestos lúbricos que dificilmente o leitor comum associaria à figura do velho poeta de físico franzino e temperamento discreto.

Entre bocas errantes, línguas inquietas, gritos e gemidos, Drummond celebra o sexo de forma viril e apaixonada, mas o inquietante do livro não é exatamente seu conteúdo erótico explícito, mas o fato de ter sido escrito por um senhor de mais de 70 anos, idade em que se esperam grandes questionamentos sobre o sentido da existência e a proximidade da morte, mas não versos como “Era manhã de setembro e ela me beijava o membro”.

No disco que lançou esta semana, Zii e Zie, Caetano Veloso, 66 anos, também escancara as urgências do desejo na maturidade sem ligar para as conveniências da idade – cantando versos, não exatamente memoráveis, como “Uma menina preta de biquíni amarelo/ Na frente da onda/ Que onda, que onda, que onda que dá/ Que bunda, que bunda!” (A Cor Amarela) ou “Tarado, tarado, tarado/ Tarado ni você” (Tarado Ni Você).

Um mundo, vasto mundo, de acontecimentos separa as gerações de Caetano Veloso e Carlos Drummond de Andrade. O primeiro viveu a juventude nos anos 20 e 30, quando uma nesga de perna entrevista no bonde já era suficiente para abastecer dias e noites de delírios eróticos. O segundo é da turma que inventou o “é proibido proibir” e terminou de desinventar o pecado.

Mas ainda que seus versos desbocados reflitam, inevitavelmente, todas as diferenças entre as duas gerações que dividiram o século 20 ao meio, talvez haja algo em comum nessa necessidade de falar de sexo de forma aparentemente tão abusada ali quando a passagem do tempo começa a impor ao corpo sua inevitável cota de limitações.

Para os mais jovens, a ilusão de que a idade neutraliza o desejo talvez ajude a suportar a ideia da velhice – o que explica, em parte, o desconforto que os velhinhos sacanas provocam, mesmo quando são artistas de talento.

Mas o que Drummond, mais radicalmente, e agora Caetano estão dizendo quando, de cabelos brancos, celebram o sempre renovado deslumbramento por peitos, coxas e bundas é que o sexo pode ser a mais divertida, e contundente, negação da morte – e que a anarquia do desejo, mais do que a esperança, provavelmente é a última que morre.

sexta-feira, 17 de abril de 2009



Sugestões - Lançamentos

- ESTAVA ESCURO E ESTRANHAMENTE CALMO, do designer e escritor alemão Einar Turkowski, é a história ilustrada de um homem misterioso que desambarca em uma ilha e muda sua pacata rotina. Mora numa casa abandonada, onde, todas as noites, surgem peixes pendurados de cabeça para baixo.

Os vizinhos querem descobrir o segredo. A obra recebeu os principais prêmios internacionais de literatura infantil e de ilustração de Bratislava em 2007.O livro tem 24 páginas e custa R$ 39.00. Cosac Naify, telefone (55) 3218-1473.

- AMAZÔNIA - 20° ANDAR - DE IPANEMA AO TOPO DO MUDO, UMA JORNADA NA TRILHA DE CHICO MENDES, do escritor e jornalista Guilherme Fiúza, narra, em tom de livro-reportagem, a história da estilista Bia e do empresário José Augusto, que largam tudo no Rio e vão para o interior do Acre. São muitas, muitas aventuras. 272 páginas, R$ 42,00. Editora Record, telefone 21-2585-2000.

- A VOZ DO POSTE, de Moacyr Scliar, autor de quase cem livros, narra a trajetória de Josias, filho mais velho de Samuel e Raquel, na imaginária Santiago do Oeste. Os pais o queriam médico. Ele quis ser locutor de rádio. O vizinho dono de rádio ajudou-o a criar A Voz do Poste, serviço de altofalantes pendurados nos postes da praça. Josias precisava conquistar o ouvinte mais importante, seu pai. 120 páginas, Editora Rocco, telefone 21-3525-2000.

- DAS VIAGENS DO JUCA PELA NATUREZA, da fotógrafa e escritora Amélia Toledo, mostra, através da ficção, as pedras, suas histórias e suas estranhas relações com os seres humanos. As fotografias em cores de pedras e animais dão relevo à obra, que foi fruto de patrocínio da F/Nazca e apoios da Galeria Nara Roesler e município de São Paulo. 120 páginas, R$ 35,00. Iluminuras, telefone 11-3031-6161.

E VERSOS

Um poema agora

Quem sabe um poema agora
que as ilusões últimas aconteceram
que os sonhos foram enterrados
com o luto abrasador dos anos
e que no horizonte uma luz aponta
algo tão inédito
que o coração infla e a mente vibra.
Quem sabe dizer do futuro
agora que o passado encerra
e tornar a construir castelos
de estrutura mais sólida
e de portas e janelas abertas
ao ar tépido da aurora.
Quem sabe um poema esperançoso
agora que da tristeza fez-se a história
e de conquistas pequenas
de passo em passo a vitória.
Quem sabe um poema colorido outrora.

*Magda Loguercio Carvalho, em Noite Alta, Editora Movimento, telefone 3232-0071

Uma ótima sexta-feira e um excelente fim de semana

quarta-feira, 15 de abril de 2009



15 de abril de 2009
N° 15939 - MARTHA MEDEIROS


Adriano, o imperador

Se eu já entendia pouco de futebol quando frequentava os estádios, hoje entendo menos ainda. Sigo torcedora do Inter e da Seleção, mas me peça para dizer o nome de 10 jogadores brasileiros que estejam na ativa e eu vou me resumir aos inevitáveis Ronaldinhos e a mais alguns poucos.

Adriano não entraria nesse “alguns poucos”. Não lembrava da sua existência até ler a respeito da sua decisão de dar um tempo para os campos: o craque resolveu repensar sua vida, enquanto retoma velhos hábitos, como andar de chinelo de dedos e ficar de prosa com os amigos que deixou na Vila Cruzeiro, lugar onde se criou.

A notícia de sua temporária desistência tem sido acompanhada por um inevitável “aí tem”. Especula-se sobre uso de drogas, depressão, baladas, mesmo o jogador afirmando que não é nada disso. Pode ser que aí tenha ou que não tenha: só ele conhece seus motivos secretos, e talvez nem sejam secretos – vamos supor que ele esteja sendo sincero.

É muito difícil a opinião pública acreditar que alguém que conseguiu realizar um sonho que outras milhões de pessoas também sonharam (e não alcançaram) de repente desista de tudo sem explicações mais bombásticas do que um simples “não quero mais”.

Adriano, que era um moleque de periferia, começou a jogar bola e através dela ganhou notoriedade e muito dinheiro. Rompeu fronteiras, foi viver na Europa e teve o mulherio a seus pés, como acontece com qualquer celebridade do esporte.

O mesmo pode acontecer com um ator amador que desponta para o estrelato depois de uma novela, ou com um cantor que vivia no morro e ganhou fama internacional, ou com uma garota que não era ninguém e hoje é modelo e vive num dúplex em Manhattan.

A gente sabe que uns poucos eleitos realizam seu conto de fadas. O que não costuma acontecer é o eleito se sentir oprimido por essa nova vida – ou ele se adapta naturalmente ou se adapta na marra, mas largar o osso, nem pensar.

“Quero ser o Adriano de antes”, disse o jogador em entrevista coletiva. E todo mundo lhe apontou o dedo como se ali houvesse um farsante. É obrigatório seguir em frente, é proibido dar meia-volta.

Ainda mais quando o “antes” é totalmente desglamorizado, quando o “antes” é um lugar sem fotógrafos, quando o “antes” é superpovoado por gente que sonha justamente em sair dali. Como Adriano se atreveu a buscar outro caminho para a felicidade que não o do sucesso?

Para alguns, viver no Exterior sem amigos e sem referências culturais é um suplício que não vale as mordomias que se recebe em troca. Não é comum, mas qualquer pessoa tem o direito de achar enfadonho viver sob holofotes e ter seu desempenho julgado o tempo todo, e em função disso questionar o rumo que sua vida está tomando.

Qualquer Adriano ou José ou Maria que ganhe um salário milionário e tenha passe livre para as benesses da vida pode não ver encanto nisso. Recusar oportunidades de crescimento não parece uma atitude esperta, mas não deixa de ser interessante testemunhar alguém desdenhando a glória numa época em que a glória passou a ser uma obsessão coletiva.

segunda-feira, 13 de abril de 2009



13 de abril de 2009
N° 15937 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Assim falou Hemingway

A.E. Hotchner, autor da melhor biografia de Hemingway em seus anos finais, torna a desembarcar na língua portuguesa. Desta vez o leitor é presenteado com A Boa Vida segundo Hemingway, uma edição da Larrousse que reúne as melhores citações do autor de Por quem os Sinos Dobram. Aqui vai uma amostra do livro:

O amor é infinitamente mais duradouro que o ódio.

A coragem é uma questão de consciência de uma pessoa, e não tem qualquer compromisso com a avaliação dos outros.

Não sei distinguir entre judeus e não-judeus, pois não consigo distinguir um judeu de qualquer outra pessoa.

A disciplina é muito mais desejável do que a inspiração.

Não pretendo ser um crítico de arte. Tudo o que quero é olhar para os quadros, satisfazer-me com eles e aprender com eles.

É tudo tão lindo nesta luz indistinta. Degas poderia ter pintado e usado a luz de modo que as coisas resultariam mais verdadeiras do que nós as vemos agora. Esta é a função do artista.

Para poder escrever sobre a vida, primeiro você deve vivê-la.

Durante um longo tempo, tentei simplesmente escrever o melhor que podia. Algumas vezes tenho sorte, e escrevo melhor do que posso.

Bebe-se para ter prazer, não para escapar de algo.

O homem deve conseguir livrar-se de sua culpa, ou então desistir de ser homem.

A melhor munição contra as mentiras é a verdade, mas não há munição alguma contra as fofocas.

A coisa mais rara que existe é encontrar felicidade entre as pessoas inteligentes.

Nunca joguei na roleta sem que eu abandonasse o jogo quando estava ganhando muito.

Todas as coisas verdadeiramente perversas começam a partir da inocência.

O homem não é feito para a derrota. Um homem pode ser destruído, mas não derrotado.

Uma excelente segunda-feira e uma ótima semana para você.

sábado, 11 de abril de 2009



12 de abril de 2009
N° 15936 - MARTHA MEDEIROS


Cresça e divirta-se

Tenho viajado bastante para acompanhar algumas pré-estreias do filme Divã, baseado no meu livro homônimo. Delícia de tarefa, ainda mais quando a gente gosta de verdade do trabalho realizado, e esse filme realmente ficou enxuto, delicado e emocionante. Além disso, ainda consegue me provocar.

A personagem Mercedes (vivida pela incrível Lilia Cabral) está fazendo análise e leva pro consultório muitos questionamentos sobre sua vida. Até que, passado um tempo, finalmente relaxa e se dá conta de que não há outra saída a não ser conviver com suas irrealizações. Diante disso, o analista sugere alta, no que ela rebate: Alta? Logo agora que estou me divertindo?.

Eu tinha esquecido dessa parte do livro, e quando vi no filme, me pareceu tão cristalino: um dos sintomas do amadurecimento é justamente o resgate da nossa jovialidade, só que não a jovialidade do corpo, que isso só se consegue até certo ponto, mas a jovialidade do espírito, tão mais prioritária.

Você é adulto mesmo? Então pare de reclamar, pare de buscar o impossível, pare de exigir perfeição de si mesmo, pare de querer encontrar lógica pra tudo, pare de contabilizar prós e contras, pare de julgar os outros, pare de tentar manter sua vida sob rígido controle. Simplesmente, divirta-se.

Não que seja fácil. Enquanto que um corpo sarado se obtém com exercício, musculação, dieta e discernimento quanto aos hábitos cotidianos, a leveza de espírito requer justamente o contrário: a liberação das correntes. A aventura do não-domínio.

Permitir-se o erro. Não se sacrificar em demasia, já que estamos todos caminhando rumo a um mesmo destino, que não é nada espetacular. É preciso perceber a hora de tirar o pé do acelerador, afinal, quem quer cruzar a linha de chegada? Mil vezes curtir a travessia.

Dia desses recebi o e-mail de uma mulher revoltada, baixo-astral, carente de frescor, e fiquei imaginando como deve ser difícil viver sem abstração e sem ver graça na vida, enclausurada na dor. Ela não estava me xingando pessoalmente, e sim manifestando sua contrariedade em relação ao universo, apenas isso: odiava o mundo. Não a conheço, pode sofrer de depressão, ter um problema sério, sei lá.

Mas há pessoas que apresentam quadro depressivo e ainda assim não perdem o humor nem que queiram: tiveram a sorte de nascer com esse refinado instinto de sobrevivência.

Dores, cada um tem as suas. Mas o que nos faz cultivá-las por décadas? Creio que nos apegamos com desespero a elas por não ter o que colocar no lugar, caso a dor se vá. E então se fica ruminando, alimentando a própria “má sorte”, num processo de vitimização que chega ao nível do absurdo. Por que fazemos isso conosco?

Amadurecer talvez seja descobrir que sofrer algumas perdas é inevitável, mas que não precisamos nos agarrar à dor para justificar nossa existência.

Boa noite a você leitor(a) deste blogger. Que o coelhinho seja generoso com você e possa trazer-lhe tudo o que esperas e realizar, senão todos, parte dos seus sonhos.


Daqui eu não saio
Carolina Romanini - Eduardo Marques/Tempo Editorial

Uma geração de jovens que já trabalham e ganham seu dinheiro mas resistem à ideia de deixar a casa dos pais estabelece um novo padrão de comportamento



Relação de cumplicidade
Os gêmeos Roberto, advogado, e Mônica, analista de RH, de 31 anos, com os pais, Ricardo e Denise: os namorados sempre foram bem-vindos na casa. "Não vejo sentido em morar só", diz Roberto

O natural que os jovens, assim que começam a trabalhar e a ganhar o próprio dinheiro, sonhem em deixar a casa dos pais. Conquistar a independência, ter o seu canto, receber os amigos e namorados na hora que quiser – tudo isso faz parte do rito de passagem para a fase da vida em que a noção de responsabilidade adquire um significado mais amplo.

Essa ordem natural das coisas vem sendo desafiada por muitos adultos jovens. Embora já trabalhem, eles preferem permanecer na casa da família – e nem sequer têm planos de morar sozinhos.

São os chamados jovens cangurus, uma analogia com os mamíferos da Austrália que andam de carona na bolsa abdominal da mãe. Segundo o instituto de pesquisas LatinPanel, de São Paulo, há hoje no Brasil 3,3 milhões de famílias das classes média e alta com filhos cangurus. Isso equivale a 7% das famílias do país.

A maioria deles se encontra na faixa dos 25 a 30 anos, mas, entre os já quase quarentões, 15% ainda moram com os pais (veja o quadro abaixo). Quando se considera que até meados do século XX as mulheres – e muitos homens – só deixavam a casa paterna para casar, surge a questão: terá havido um retrocesso na independência conquistada pelos jovens? Não é bem assim. Os jovens cangurus têm boas razões para ficar em casa.
Foto Will & Deni Mcintyre/Latinstock



O primeiro motivo que desestimula os jovens de conquistar o próprio espaço é que eles desfrutam em casa toda a liberdade que desejam. Filhos cangurus quase sempre têm pais liberais, que respeitam sua individualidade e não entram em conflito com eles – desde que o respeito seja mútuo, é claro.

A família do engenheiro Ricardo Saporiti e de sua mulher, Denise, advogada, de Florianópolis, se encaixa nesse modelo. Seus filhos, os gêmeos Roberto e Mônica, de 31 anos, são formados, pós-graduados e independentes do ponto de vista financeiro.

Ele é advogado e ela, analista de RH. Nenhum dos dois pensa em sair de casa. Explica Mônica: "Quando pesamos os prós e os contras para ficar em casa, só vemos prós. Nunca tivemos problema em trazer os amigos para cá. Os namorados também sempre foram bem-vindos, e, quando éramos adolescentes, meus pais não brigavam se quiséssemos tomar uma cerveja".

Diz Roberto: "Não vejo sentido em sair daqui para morar sozinho, na mesma cidade que meus pais. Só quando casar". O psiquiatra Içami Tiba, autor de vários livros sobre o comportamento dos jovens, avalia que a cumplicidade está na base da relação entre jovens cangurus e seus pais. "Essa nova relação familiar só é possível quando os pais deixam de ver os filhos como subordinados a eles e se tornam seus companheiros", diz Tiba.

A liberdade que os jovens cangurus têm na casa dos pais leva ao segundo motivo citado por eles para não deixá-la – a manutenção do padrão de vida que desfrutam. Roupa lavada, empregada doméstica à disposição e comida na mesa são alguns dos luxos dos quais teriam de abrir mão.

"Sair de casa só quando eu tiver condições de manter o meu padrão de vida ou melhorá-lo", diz Mariane Ferraresi, especialista em marketing de 26 anos, de São Paulo. Ela já pensou em dividir um apartamento alugado com uma prima, mas voltou atrás. Seus pais, Rivail Ferraresi, empresário, e Miriam Miguel, assistente de vendas, deram apoio total à sua decisão.

Enquanto continua na casa dos pais, Mariane investe em uma nova carreira como chef de cozinha. Ela aproveita o dinheiro que sobra no fim do mês para comprar livros de culinária, utensílios de cozinha e ingredientes para testar receitas. "Se eu tivesse escolhido morar fora, provavelmente não teria me permitido o luxo de investir nessa nova carreira", explica.

Fotos Lailson Santos


Aposta nas panelas

A especialista em marketing Mariane, de 26 anos, com os pais, Rivail e Miriam: o dinheiro que sobra do salário é investido na carreira de chef de cozinha. "Se eu tivesse escolhido morar fora, não conseguiria me dar a esse luxo", ela diz

O terceiro motivo que leva os jovens cangurus a permanecer na casa dos pais é a possibilidade de usar o próprio dinheiro no aperfeiçoamento de sua formação acadêmica. A competitividade do mercado, em todas as áreas, exige que os jovens tenham um currículo cada vez mais atraente.

Além disso, os empregadores fazem questão de experiência anterior na área – que geralmente é adquirida em trabalhos mal remunerados. "É mais fácil investir em qualificação profissional sem preocupações com o aluguel e tudo o que envolve a manutenção de uma casa", diz o publicitário paulista André Grilo, de 37 anos.

Com remuneração suficiente para deixar a casa dos pais desde que concluiu a faculdade, em 1997, André preferiu investir o dinheiro em um ano de intercâmbio em Londres e seis cursos de especialização. Há quatro anos, montou sua própria agência de publicidade e, se tudo correr como planeja, antes de completar 40 anos terá guardado quantia suficiente para sair de casa.

A permanência de jovens adultos que já trabalham na casa dos pais é comum em muitos países. Na Itália, esse tipo de conduta é uma tradição. Os italianos chamam esses personagens de bamboccioni, ou crianças grandes – é voz corrente no país que as mães estimulam a permanência em casa pela afetuosidade exuberante que demonstram com relação aos filhos. Já os japoneses são menos simpáticos ao se referir aos jovens cangurus.

Eles são chamados de solteiros parasitas. "Em países como o Brasil, a Itália e o Japão, a demora para sair de casa é típica de uma geração que posterga a adolescência, o casamento e a paternidade, quando não desiste de vez dos filhos", disse a VEJA a psicóloga Barbara Hofer, da Universidade de Middlebury, em Vermont, nos Estados Unidos, que estuda o fenômeno há quatro anos.



Verba extra para estudar

O publicitário André Grilo, de 37 anos, já tem um negócio próprio, mas não se muda da casa onde cresceu. "Só assim consegui bancar um intercâmbio em Londres e seis cursos de especialização", ele diz

Nos Estados Unidos, os jovens cangurus são chamados de filhos bumerangues e têm um perfil diferente. Pelos costumes americanos, ao ingressarem na faculdade, os jovens saem de casa e vão morar em repúblicas de estudante ou no próprio câmpus. Depois de formados, espera-se que eles logo arrumem emprego na área em que se especializaram e não voltem mais para a casa dos pais.

Essa tradição é interrompida quando o nível de desemprego nos Estados Unidos se eleva. Foi o que aconteceu em 2003, quando mais da metade dos recém-formados americanos retomou o caminho de casa. "Com a crise econômica atual, espera-se um número recorde de estudantes que não conseguirão emprego ao se formar e terão de voltar a morar com os pais", prevê a psicóloga Barbara Hofer.

Embora os costumes no Brasil sejam diferentes, é bem provável que esse efeito colateral da crise também se abata sobre o país, multiplicando a quantidade de jovens cangurus.


Claudio de Moura Castro claudio&moura&castro@cmcastro.com.br

Embromação a distância?

"No seu conjunto, as avaliações não deixam dúvidas: é possível aprender a distância"

Novidade incerta? Mais um conto do vigário? Ilustres filósofos e distinguidos educadores torcem o nariz para o ensino a distância (EAD).

Logo após a criação dos selos de correio, os novidadeiros correram a inventar um ensino por correspondência. Isso foi na Inglaterra, em meados do século XIX. No limiar do século XX, os Estados Unidos já ofereciam cursos superiores pelo correio. Na década de 30, três quartos dos engenheiros russos foram formados assim. Ou seja, novo não é.

Ilustração Atômica Studio

EAD significa que alunos e professores estão espacialmente separados – pelo menos boa parte do tempo. O modo como vão se comunicar as duas partes depende da tecnologia existente. No começo, era só por correio. Depois apareceu o rádio – com enorme eficácia e baixíssimo custo. Mais tarde veio a TV, área em que Brasil e México são líderes mundiais (com o Telecurso e a Telesecundaria).

Com a internet, EAD vira e-learning, oferecendo, em tempo real, a possibilidade de ida e volta da comunicação. Na prática, a tecnologia nova se soma à velha, não a substitui: bons programas usam livros, o venerando correio, TV e internet. Quando possíveis, os encontros presenciais são altamente produtivos, como é o caso do nosso ensino superior que adota centros de recepção, com apoio de professores "ao vivo" para os alunos.

Há embromação, como seria esperado. Há apostilas digitalizadas vendidas como cursos de nomes pomposos. Mas e daí? Que área escapa dos vigaristas? Vemos no EAD até cuidados inexistentes no ensino presencial, como a exigência de provas presenciais e fiscalização dos postos de recepção organizada (nos cursos superiores).

Nos cursos curtos, não há esse problema. Mas, no caso dos longos, o calcanhar de aquiles do EAD é a dificuldade de manter a motivação dos alunos. Evitar o abandono é uma luta ingente. Na prática, exige pessoas mais maduras e mais disciplinadas, pois são quatro anos estudando sozinhas.

As telessalas, que reúnem os alunos com um monitor, têm o papel fundamental de criar um grupo solidário e dar ritmo aos estudos. E, se o patrão paga a conta, cai a deserção, pois abandonar o curso atrapalha a carreira. Também estimula a persistência se o diploma abre portas para empregos e traz benefícios tangíveis – o que explica o sucesso do Telecurso.

Mas falta perguntar: funciona? Prestam os resultados? Felizmente, houve muita avaliação. Vejamos dois exemplos bem diferentes. Na década de 70, com Lúcia Guaranys, avaliei os típicos cursos de radiotécnico e outros, anunciados nas mídias populares.

Para os que conseguiam se graduar, os resultados eram espetaculares. Em média, os alunos levavam menos de um ano para recuperar os gastos com o curso. Em um mestrado de engenharia elétrica de Stanford, foi feito um vídeo que era, em seguida, apresentado para engenheiros da HP. Uma pesquisa mostrou que, no final do curso, os engenheiros da HP tiravam notas melhores do que os alunos presenciais. Os efeitos do Telecurso são também muito sólidos.

Para os que se escandalizam com a qualidade do nosso ensino superior, sua versão EAD é ainda mais nefanda. Contudo, o Enade (o novo Provão) trouxe novidades interessantes. Em metade dos cursos avaliados, os programas a distância mostram resultados melhores do que os presenciais! Por quê?

Sabe-se que a aprendizagem "ativa" (em que o aluno lê, escreve, busca, responde) é superior à "passiva" (em que o aluno apenas ouve o professor). Na prática, em boa parte das nossas faculdades, estudar é apenas passar vinte horas por semana ouvindo o professor ou cochilando.

Mas isso não é possível no EAD. Para preencher o tempo legalmente estipulado, o aluno tem de ler, fazer exercícios, buscar informações etc. Portanto, mesmo nos cursos sem maiores distinções, o EAD acaba sendo uma aprendizagem interativa, com todas as vantagens que decorrem daí.

No seu conjunto, as avaliações não deixam dúvidas: é possível aprender a distância. Cada vez mais, o presencial se combina com segmentos a distância, com o uso da internet, e-learning, vídeos do tipo YouTube e até com o prosaico celular. A educação presencial bolorenta está sendo ameaçada pelas múltiplas combinações do presencial com tecnologia e distância.

Claudio de Moura Castro é economista

Cristiane Segatto

A pílula do esquecimento

Cientistas tentam apagar más lembranças. Isso é bom ou ruim?

Todos nós temos pelo menos uma lembrança que gostaríamos de esquecer. Eu tenho duas. Adoraria tomar uma pílula e tirar de vez da minha cabeça a cena do raio que quase me fulminou há 16 anos, enquanto eu fazia uma reportagem no Parque de Ibitipoca, em Minas Gerais.

Até hoje me lembro da força que me levantou do chão e me atirou para frente. Revejo a faísca que correu pelo chão e sinto o cheiro de enxofre que ficou no ar. A descarga elétrica fez meu cérebro sofrer. Durante alguns minutos não conseguia sentir o lado direito do meu corpo. Sobrevivi. Meus neurônios ainda funcionam. A lembrança ficou.

O outro evento que gostaria de apagar foi igualmente marcante. É a do bando de traficantes que me atacou na Favela de Heliópolis, em São Paulo, em 2000, enquanto eu fazia uma reportagem de saúde. Fui ameaçada com um revólver, levei chutes nas pernas e coronhadas na cabeça. Estava grávida de sete meses. Eu e minha filha sobrevivemos. De novo, a péssima lembrança ficou.

Memórias traumáticas são o foco de investigação de cientistas comandados pelo neurocientista Todd C. Sacktor, da State University of New York. Quando ocorre um evento traumático, ele é registrado por várias células do cérebro que funcionam em cadeia. Segundo Sacktor, a comunicação entre elas parece ser feita por uma substância chamada de PKMzeta. As células funcionam em rede como se fossem um grupo de testemunhas de um terremoto devastador.

Sacktor faz parte de um consórcio de cientistas interessados na possibilidade de “editar” memórias. Em testes com animais, uma equipe do Weizmann Institute of Science, em Israel, diz ter conseguido interferir no funcionamento da substância PKMzeta.

Eles teriam alcançado esse feito ao injetar no cérebro dos animais uma única dose de uma droga experimental (identificada pela sigla ZIP). Segundo eles, a droga fez com que ratos esquecessem a repugnância que haviam desenvolvido pelo sabor de um alimento que os deixou doente três meses antes.

As pesquisas estão só começando. Ainda vai demorar muito tempo até que uma pílula como essa esteja disponível para uso humano – se é que um dia vai estar. Mas esse tipo de pesquisa abre espaço para longos debates.

“A possibilidade de editar memórias provoca enormes discussões éticas”, disse o neurobiologista Steven E. Hyman ao jornal The New York Times. Hyman acredita que uma droga como essa seria muito útil porque ajudaria uma pessoa a amenizar memórias traumáticas. “Por outro lado, também poderia ser usada para aliviar a consciência do mau comportamento e até de crimes”, diz.

O debate sobre a “edição” de memórias é a base do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, estrelado por Jim Carrey. Joel, o personagem vivido pelo ator, recorre a uma clínica neurológica para tirar da cabeça a namorada, Clementine (Kate Winslet). Por meio de imagens de ressonância magnética e objetos que o fazem lembrar da moça, os médicos localizam no cérebro o ponto exato onde reside a memória indesejada e destroem neurônios, apagando as lembranças.

Por enquanto, a limpeza radical de arquivos mentais só existe no cinema. Mas as pesquisas sobre a "pílula do esquecimento" ainda vão dar muito o que falar. Se uma pessoa nada mais é do que o conjunto de suas memórias, seria ético receitar uma pílula capaz de apagar lembranças? Caso um remédio como esse estivesse disponível no fatídico 11 de setembro, o destino dos americanos, do Iraque e do mundo teria sido diferente?

Lembro (e esta lembrança faço questão de não apagar!!!) de ter conversado sobre isso há alguns anos com o neurocientista Iván Izquierdo, professor da PUC do Rio Grande do Sul. Argentino naturalizado brasileiro, Izquierdo é reconhecido no mundo todo como um dos mais ativos pesquisadores da memória. Tem mais de 600 artigos publicados em revistas científicas. Perguntei a ele se as vítimas do 11 de setembro deveriam tomar a "pílula do esquecimento" caso ela existisse. Ele respondeu:

"Acho que não. Os americanos não devem apagar essa memória. Precisam se lembrar de que foram atacados. Não é desejável que os cidadãos se lembrem daquilo o tempo todo. Se fosse assim, a sociedade ficaria brutalizada. Mas é preciso aprender a atribuir a cada lembrança seu real valor. Existem tratamentos que ajudam a calibrar o peso das memórias e guardá-las assim".

Relembrar um pensamento de Izquierdo é um privilégio. Pensando bem, acho que ele tem razão. Já não quero apagar minhas duas experiências traumáticas. Preciso delas para ter certeza de que enfrentei o pior e sobrevivi. E para me lembrar todos os dias de que a sorte nunca me abandonou.

E você? Gostaria de apagar más lembranças? Tomaria a "pílula do esquecimento" se ela estivesse disponível?

quarta-feira, 8 de abril de 2009



08 de abril de 2009
N° 15932 - MARTHA MEDEIROS


Bíceps mal utilizados

Aconteceu nas recentes férias de verão. Estávamos eu e minhas filhas dentro do carro, estacionadas num mirador de frente para o mar, esperando o sol se pôr bem na nossa frente, enquanto apreciávamos os veleiros e ouvíamos bossa nova, ou seja, só faltava entrar o logotipo de algum cartão de crédito dizendo que certas coisas não tem preço e blablablá.

Conversa vai, conversa vem, estacionou ao lado do nosso carro um outro carro. Era um casal que, pelo visto, também curtia um drive-in natureba. Ele eu não consegui ver direito, mas ela era inesquecível: uma loira estonteante de blusa bem decotada e exibindo uns 50 centímetros de bíceps. Normal. Travestis também curtem uma cena de cartão-postal.

Estávamos, assim, todos numa boa compartilhando a despedida da tarde, quando a loira abriu o vidro do carro, colocou o bração pra fora e jogou um saco enorme de salgadinho no chão. Fechou o vidro e continuou a apreciar a natureza que ela ajudava um pouquinho a destruir. Não tive dúvida: desci do carro, juntei o pacote, bati na janela e perguntei com o meu melhor sorriso: isso é seu?

Minhas filhas ficaram tensas, achando que meu gesto poderia parecer um ato de preconceito. Não, meninas. Travesti, padre, matador profissional, guarda noturno de zoológico, garota fantástica, goleador do Milan, diretor de escola de samba, não importa quem seja: um mínimo de consciência se exige. Há menos de 10 metros havia uma lixeira.

Se a moça não queria desfilar seus bíceps para o povo, que pedisse para o seu acompanhante levar a embalagem vazia ao lugar que lhe era destinado, ou então que esperasse chegar em casa para se desfazer dos restos mortais do seu lanche, mas largar a dois metros do mar é provocação.

Pois bem. Ela abriu a janela do carro bufando. Minhas filhas acertaram na mosca, a moça não gostou nadinha da minha intervenção. O que eu estava pensando, que era melhor do que ela? Resmungou qualquer coisa e fechou o vidro sem querer mais assunto, dando-se o direito de ser porca, afinal, não estamos numa democracia?

Segui com o pacote na mão e levei-o eu mesma até o lixo. Era o que eu deveria ter feito desde o início, mas são raros os momentos em que me descontrolo, e um deles é quando vejo alguém jogar uma garrafa plástica, uma carteira de cigarros ou qualquer outra embalagem no chão.

Tendo oportunidade, vou até a pessoa e devolvo com educação e eufemismo: tome, você deixou cair.

Se a criatura tiver um mínimo de noção sobre cidadania, vai pegar seu lixo de volta e não repetirá a bobagem que fez. Mas a arrogância é tanta que não há eufemismo que dê jeito. Preconceito tenho é contra grossura – não a dos bíceps, que até aprecio muito, mas de atitude.

Aproveite o dia - Uma óitma quarta-feira Santa