sexta-feira, 31 de dezembro de 2010



31/12/2010 e 01/01/2011 | N° 16566
NILSON SOUZA


Fábulas de 2010

Acabei de ler A Espécie Fabuladora, de Nancy Huston, que começa com a instigante pergunta de uma presidiária à escritora canadense: “Para que inventar histórias quando a realidade já é tão extraordinária?”. A resposta é o livro – e é imperdível. Não vou estragar o prazer de ninguém revelando o seu conteúdo.

Só peguei a pergunta como gancho para repassar nesta crônica o ano extraordinário que está terminando. Basta uma revisão superficial para constatarmos acontecimentos mais fantásticos do que em qualquer ficção.

Os terremotos também matam anjos, descobrimos logo nos primeiros dias, quando a terra tremeu no Haiti e os prédios desabaram sobre a nossa missionária da paz e das crianças desnutridas, a catarinense Zilda Arns. Depois, o Chile também tentou sair do lugar, sepultando centenas de pessoas.

Em seguida, aquele vulcão islandês que consome no nome todas as consoantes do alfabeto cobriu a Europa de fuligem, interrompendo as estradas do céu. Tão logo foram desobstruídas, um avião com 104 passageiros estatelou-se no Líbano – e dos destroços de ferro e fogo ressuscitou um menino holandês de nove anos, único sobrevivente deste enredo fantástico escrito pela realidade. E era só o começo.

É segredo, cantou a Unidos da Tijuca em seu enredo – e, num passo de mágica, em plena passarela, sem que a multidão percebesse, trocou a roupa das meninas bailarinas.

Enquanto a Espanha dava show de bola na terra de Mandela, mister WikiLeaks contava ao mundo que as tropas americanas não só detonaram civis no Afeganistão como também deixaram tudo registrado em documentos secretos. De repente, todos nos demos conta de uma nova realidade: não há mais segredo na era do iPad.

Mas ainda há muita intolerância. O Prêmio Nobel da Paz vai para... o chinês Xiaobo, inofensivo poeta, que apodrece numa prisão da ditadura porque ousou assinar um manifesto em favor de reformas democráticas em seu país.

Ano de contrastes, este: enquanto uma mulher é condenada à morte por apedrejamento, outra sai da clandestinidade para entrar na História do Brasil, pela rampa do Palácio do Planalto.

Há, sim, luz no fim do túnel do obscurantismo. A ela chegaram, depois de 77 dias de sepultamento em vida, 33 mineiros chilenos, protagonistas do mais emocionante resgate dos nossos dias e, provavelmente, de todos os tempos.

Chega ou precisa mais?

O ano confirmou a dúvida da presidiária: para que inventar histórias?

Well, chegamos ao último dia de 2010. FELLIZ ANO NOVO. Que em 2011, aconteça a realização de todos os seus sonhos.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010



29 de dezembro de 2010 | N° 16564
MARTHA MEDEIROS


Que raios estou fazendo aqui?

Não há revista ou jornal que não traga matérias sobre lugares encantadores para se conhecer. Viajar deixou de ser um luxo para se tornar quase obrigatório. São tantas promoções e pacotes, que fica mesmo difícil resistir.

Adoro viajar e adoro livros de viagem, incluindo os de ficção. Geralmente, as narrativas confirmam a ideia de que viajar abre horizontes, traz novos conhecimentos e nos aperfeiçoa como seres humanos. Compensa suportar voos atrasados, cansaço e imprevistos, pois receberemos o Éden em troca. Quanto às roubadas, ninguém dá um pio. É proibido falar “antipatizei com Paris” ou “achei o Caribe um tédio”. É de bom-tom gostar de tudo e, se a viagem for para um destino exótico, convém gostar mais ainda, para não passar recibo de preconceituoso.

Deve ser por isso que me diverti com o livro Eu, Minha (Quase) Namorada e o Guru Dela, do inglês William Sutcliffe. O livro conta a história de um garoto de 19 anos que é pressionado pelos amigos a sair de Londres para fazer uma viagem de aventura em seu período de férias.

Por quê? Ora, porque todo mundo faz. Bem que ele gostaria de passar as férias em casa se empanturrando de porcaria em frente à TV, mas acaba conhecendo uma guria que está de partida para a Índia e, muito refinado, pensa: “Essa mina está me dando mole, vou viajar com ela e me dar bem”.

A “mina” quer encontrar o próprio eu, enquanto que o garoto, nos primeiros cinco minutos em Délhi, quer encontrar uma pousada com ar condicionado. A moça encara todas as privações com enlevo, já que está num tour espiritual, enquanto nosso amigo inicia um tour pelo inferno, e cabe a nós, leitores, não ligar para o fato de não estarmos com um Balzac ou Tchekhov nas mãos.

Ler as aventuras de um estudante que declara ódio à Índia assim que aterrissa, e que odeia todos os mochileiros que lá estão, e também todos os viajantes sem dinheiro que escolhem ir para lugares insalubres com o intuito de procurar o próprio eu, nos faz viajar com ele para o adorável mundo do politicamente incorreto, que hoje é quase um ponto esquecido do mapa.

O livro é engraçadíssimo. Certamente já entramos em alguma roubada que nos fez lamentar ter nascido, porém, muito ponderados que somos, catalogamos o incidente como “uma experiência de vida”. Mas o personagem não tem essa condescendência. Ele quer cortar os pulsos e engolir três caixas de veneno pra rato. E tem motivo.

Nunca embarquei numa fria colossal, mas já passei alguns maus momentos em viagens, quase sempre por falta de informação. Mas quando sobra humor e presença de espírito, mesmo a mais medonha das viagens rende algumas risadas na volta. Ou inspira um livro cômico e despretensioso para ser lido numa tarde de verão.

Em tempo: não conheço a Índia. Me atrai mais ou menos. Sei de pessoas que veneram a cultura e as peculiaridades locais. E de pessoas que não voltariam a colocar os pés lá nem para salvar um filho. Por ora, ainda não incluí o país na lista dos “100 lugares que não posso morrer sem conhecer”, mas vá saber. Tudo é uma experiência de vida.

Aproveite o dia. Uma linda quarta-feira para você.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010



28 de dezembro de 2010 | N° 16563
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Como um romance

Às duas e meia da tarde de 24 de setembro de 1834 morreu um homem jovem em Lisboa. A autópsia revelou que a tuberculose tinha consumido quase todo o seu pulmão esquerdo. O coração e o fígado estavam hipertrofiados, os rins e o baço não gozavam de melhor saúde.

Esse homem tinha 35 anos e era D. Pedro I, Imperador do Brasil e Rei de Portugal, e acabava de vencer uma sangrenta guerra civil contra D. Miguel, seu irmão, absolutista, enquanto ele era liberal.

Esse é apenas um fragmento do livro 1822, de Laurentino Gomes, que há semanas lidera as listas dos best-sellers e promete manter-se nelas por muito tempo mais. Trata-se de um biografia do criador do Brasil, mas lê-se como um romance, aliás como 1808, a obra anterior do autor.

Até certa altura do livro, o que se vê é um personagem mais preocupado em levantar saias e levar damas para a cama – a começar pela Marquesa de Santos – do que um estadista mais preocupado em construir uma nação.

Pouco a pouco, no entanto, o marido perpetuamente infiel de D. Leopoldina assume um caráter que se sobrepõe à sua época, candidatando-o a um lugar na História. É assim especialmente quando a trajetória de sua vida se confunde com a do Império que fundou.

Foi graças em grande parte devido a ele que o Brasil se manteve íntegro – um território, um povo, uma língua –, enquanto seus vizinhos latino-americanos se decompunham em dezenas de repúblicas.

Foi assim quando soube tratar as lutas internas com isenção e sabedoria. Foi ainda assim quando entregou a guarda de seus filhos a José Bonifácio. A propósito: o capítulo que trata de sua correspondência com o futuro D. Pedro II é, no mínimo, comovedor.

O excelente Laurentino Gomes acena com um próximo volume – 1889.

A História deste país é grande demais para ficar entregue aos arquivos e fichários.

Lindo dia para você. Aproveite a terça-feira.

domingo, 26 de dezembro de 2010



26 de dezembro de 2010 | N° 16561
MARTHA MEDEIROS


A vida em um flash

O que valoriza nossas ações não é a ansiedade: é a entrega

O ano passado passou tão apressado/eu sei que foi um corre-corre-corre danado.... E pensar que Rita Lee gravou esta música, Corre-Corre, há 30 anos, quando nem corríamos tanto assim. Ou será que esta impressão de vivermos com pressa vem desde sempre?

Tudo do que reclamamos hoje já foi reclamado um século atrás, e não duvido que daqui a cem anos as pessoas digam: “No início dos anos 2000 a vida era tranquila, não havia esta urgência de hoje”.

Eu não sei quais serão as urgências futuras, mas conheço bem as nossas. Temos relógios digitais espalhados pela cidade nos lembrando que faltam 10 minutos para a reunião começar, sete minutos para o banco fechar, dois minutos para a aula do seu caçula terminar: o que você ainda faz aí, no meio da rua? Corra.

Se não são os relógios, são os espelhos. Impiedosos, avisam: você não tem mais 15 anos. Nem 20. Nem 30. Se quiser ter um filho, apresse-se. Não importa que ainda não tenha encontrado um amor estável, arranje qualquer pessoa, mas, simplesmente, apresse-se.

E o espelho segue avisando: você não tem mais 35. Nem 40. Nem 45. O futuro está encolhendo a sua frente. O que está fazendo aí parado no mesmo casamento, parado no mesmo emprego, parado em frente à tevê? Reparou como todo mundo se diverte lá fora? Não sabe que vai morrer um dia?

Sim, sabemos que não somos eternos. Os telejornais não fazem outra coisa a não ser nos lembrar disso, mostrando cenas sortidas de violência e cultivando nosso medo dia após dia. Ou então são os manuais de autoajuda e matérias de revistas que ordenam: aproveite o momento, aproveite a vida! E aproveitar a vida passou a ser sinônimo de algo que tem que ser feito emergencialmente, ou você estará jogando a vida fora.

Calma.

Nem sempre é rentável esta economia de tempo: chegar mais rápido, fazer mais rápido, consumir mais rápido. O que sobra em nossas mãos? Coisa nenhuma. Nem mesmo a lembrança do que foi realizado, só uma vaga sensação do dever cumprido, como se fôssemos soldados a serviço do calendário.

O que valoriza nossas ações não é a ansiedade: é a entrega. E entrega requer um certo relaxamento. Tempo para falar, para ouvir, para fazer, para desfazer, e fazer de novo, até acertar. Tempo para si, para o outro e para o nada.

Fazer nada virou a tarefa mais angustiante para o ser humano esquizofrênico de hoje. Não é à toa que há um bom número de pessoas que prefere não tirar férias: como preencher um dia livre? Nesta cultura atual do “não desperdício”, pobre daquele que deitar o corpo no sofá, colocar uma música para tocar e desligar o telefone. Terá que se entender com a culpa.

Dedicação, cuidado, foco, tudo isso demanda uma certa introspecção. Um pouco de resguardo. Conectar-se com os próprios pensamentos e emoções é exercício dos mais produtivos. É quando a gente, em silêncio, encontra as respostas para nossas inquietações e descobre os melhores caminhos para atingir nossos objetivos.

Pressa exige atenção para o lado de fora, apenas. E o lado de dentro? Neste corre-corre danado, talvez o que mais estejamos fazendo é justamente perder tempo.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010



24/12/2010 e 25/12/2010 | N° 16559
NILSON SOUZA


Vidas presentes

George Lucas, um dos magos do cinema, tem um projeto para ressuscitar atores falecidos, recuperando suas imagens por meio da tecnologia digital e recolocando-as na tela ao lado de personagens atuais. Tudo é possível no admirável mundo novo da computação gráfica. Quem sabe em breve não veremos Marilyn Monroe competindo em charme e beleza com Charlize Theron ou um duelo de capa e espada entre Errol Flynn e Johnny Depp?

Mas, quando se trata de reencarnação, a vida real continua sendo mais fantástica do que a ficção. Eu mesmo tenho uma história dessas para contar. Por muitos anos, olhei com desdém uma foto de meus bisavós, os quais não conheci. No álbum da família, eram apenas dois velhos sentados diante de uma casa de madeira humilde – o homem com uma perna cruzada sobre a outra, barba branca e olhar fixo num futuro que também não conheceria. Pois agora acho que ele olhava para mim.

Quando me tornei adulto e comecei a deixar a barba crescer, modismo dos anos 70, ouvi várias vezes um comentário de minha mãe:

– Estás cada vez mais parecido com o meu avô.

Como só sabia do homem pela foto antiga, nunca levei muito a sério a comparação. Na semana passada, porém, sentei-me distraidamente numa cadeira da casa, cruzei a perna e olhei sem querer para um espelho que refletia a minha imagem. Levei um susto: lá estava o bisa da foto, me olhando serenamente, sem refletir o meu sobressalto. Ao menos na aparência, meu bisavô voltou em mim.

Mas um dos casos mais espantosos de ressurreição por semelhança é o da conterrânea Elis Regina, que saiu do IAPI, transformou-se numa estrela e voltou pela voz afinada de Maria Rita. Elis, na minha adolescência, era uma foto colorida pendurada na parede do meu quarto. Meu amigo Tetelo, que também já virou estrela e ainda não retornou, foi quem me ensinou a amá-la.

Se ainda estivesse por aqui, tenho certeza de que ele choraria de emoção ao ouvir Maria Rita interpretando a canção símbolo da RBS, que coincidentemente enaltece a vida. As pessoas voltam, sim, às vezes num olhar, às vezes num gesto, outras vezes num timbre vocal característico.

Para quem ouviu Elis cantando, é um presente de Natal maravilhoso ouvir Maria Rita reviver a mãe numa canção tão nossa. Basta a gente fechar os olhos e lá está Elis, balançando os braços e encantando multidões com sua voz do mais precioso cristal:

– É mentira, é verdade... E quem sabe a vida é da vida a razão...

Aproveite o dia. FELIZ NATAL...Que o Papai Noel seja generoso com vc e realize, senão todos, a maioria dos seus sonhos.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010



21 de dezembro de 2010 | N° 16556AlertaVoltar para a edição de hoje
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

O Caso Kliemann

Sou obrigado a declarar-me meio parceiro do último livro de Celito De Grandi. Acompanhei, aos 17, 18 anos, toda a formidável teia de tragédias que abalou não apenas um homem e sua família, mas toda a sociedade do Rio Grande do Sul.

Nos países do Primeiro Mundo, lá onde fica a Cultura, são naturais as investigações, pesquisas e depoimentos sobre os grandes fatos que atentaram contra a convivência civilizada. Mais do que isso, são correntes as análises a respeito das pessoas que protagonizaram esses acontecimentos. Agora, um autor gaúcho captou ambas as vertentes, para compor uma clara síntese dos dois crimes e sua circunstância.

E o mais relevante: o fez com extraordinária honestidade, com serena precisão e justo equilíbrio, com aquela isenção que é privilégio dos jornalistas que merecem o nome.

Não vou contar aqui a trama da obra, mesmo porque ela se explica por si mesma. Mas como foi um notável best-seller, ouvi diversas versões acerca de quem foi o verdadeiro assassino da bela Margit Kliemann. Isso hoje faz parte da História.

Mas é o próprio escritor que, ao descrever os traços da tragédia do palacete da Rua Barão de Santo Ângelo, desenha o retrato sem retoque do assassino, que está longe de ser o deputado Euclydes Kliemann.

Outros tempos, outros usos. Se não se houvesse formado, em setores da imprensa gaúcha, o circo ao redor do bárbaro assassinato, com a invenção de personagens, a multiplicidade de versões, a alquimia de autores, o crime dos Moinhos de Vento não se sustentaria nas manchetes mais do que umas semanas.

Mas como tudo era permitido, a começar pela Repartição Central de Polícia e as mesas das Redações, formou-se uma fabulosa trama, que arrombou a privacidade de dezenas de pessoas.

Foi exemplar, a esse respeito, a atitude superior e límpida das filhas do deputado Kliemann, respondendo com sensatez e tranquilidade as perguntas que lhes foram dirigidas agora. E modelar a forma com que Celito De Grandi abriu a porta dos guardados, para que, com ética e sensibilidade, fizesse entrar ar puro em um território que há muito clamava por claridade.

Precisamos de outros livros assim. E não apenas por reporem o sentido e o norte do real jornalismo investigativo, mas por comprovarem que o gênero é irmão da boa literatura.

Um lindo dia pra você. Saudades da Primavera, mas a partir de hoje é o verão que está ai a pleno vapor. Um gostoso Verão pra você. Hoje e amanhã estarei na terra do Erico Veríssimo

sábado, 18 de dezembro de 2010



19 de dezembro de 2010 | N° 16554
MARTHA MEDEIROS


Carta ao Papai Noel

Meu sonho é um mundo classudo e isso não tem nada a ver com roupas, carros ou joias

Se você ainda não aderiu à campanha promovida pelos Correios, de buscar uma cartinha escrita por uma criança carente e ser seu Papai Noel, largue tudo o que está fazendo e trate de colocar o gorro e vestir as botas.

Nada pode ser mais gratificante nesta época do ano do que atender ao pedido de meninos e meninas cujo sonho é ter o uniforme do seu time, ter uma casinha de bonecas, ter material escolar, ter uma bola, ter um skate. Eles não pedem novos iPods e iPhones, não pedem notebooks, games ou viagens de intercâmbio, eles pedem a nostalgia dos nossos desejos infantis. Um passo a frente para eles, um resgate importante para nós, que temos tudo, menos a lembrança de um tempo em que também sonhávamos com o prosaico.

Se eu acreditasse em Papai Noel, escreveria para ele solicitando que essas crianças sejam também atendidas naquilo que elas nem pedem: afeto, cuidado, educação e acesso ao lado onírico da vida. Que essas crianças consigam assistir aos comerciais de tevê sem se sentirem excluídas desse universo megaconsumista e tecnológico, que elas continuem sonhando com casinhas de bonecas e carrinhos, sem desmerecer o que é de plástico.

E pediria também, Papai Noel, que essas crianças tenham um pai, uma mãe, um avô, uma avó, um tio, um irmão mais velho, algum familiar que lhes dê um foco, que passe adiante um valor maior, que saiba ensiná-los a distinguir entre o fútil e o primordial, lembrando que o primordial é imaterial: valorização da música, da arte, do esporte, da saúde, dos bons modos, da elegância de atitude. Ser elegante não é coisa de gente rica.

Tem muita gente rica que nem é. Ser elegante é não poluir a cidade, não ser arrogante, não ver como inimigos os que pensam e agem de forma diferente. Papai Noel, meu sonho é um mundo classudo, e isso não tem nada a ver com roupa, carros ou joias.

Ver as pessoas se comportando com mais cortesia e amabilidade me encantaria tanto quanto apreciar uma vitrine de bonecos em Nova York, tanto quanto um desfile no Natal Luz de Gramado, seria como me transportar para aquelas bolas de vidro que a gente vira de cabeça pra baixo para fazer nevar. Não tenho nada contra a pieguice da inocência.

Pra mim, Papai Noel, queria mais compreensão. Não dos outros, mas de mim mesma. Queria entender melhor meus medos, minhas carências, minha criancice tão dissimulada em meio a afazeres pretensamente adultos. Queria escutar a menina que ainda sou, entendê-la e satisfazê-la em suas travessuras. A menina em mim esperou eu crescer para se rebelar. Hoje ela me dá ordens: vai viver, deixa de pensar!

Papai Noel, me faz parar de pensar tanto. Se eu continuar pensando tanto, ponderando tanto, deixarei de ouvir a menina em mim e de acreditar na felicidade contida nas coisas simples, como casinhas de boneca e autinhos de plástico.

Gostoso domingo para você. Bom início de semana.

Ruth de Aquino - raquino@edglobo.com.br

A mente de nossos filhos

“Uma refeição por dia em família pode diminuir em até 80% o consumo de drogas entre os filhos – e também ajuda a combater a violência na rua, na escola e em casa.” A afirmação é do psiquiatra infantil Fábio Barbirato, autor do livro A mente do seu filho. Se as crianças aprendem por imitação, que modelos nós, os pais e mães modernos do século XXI, fornecemos em casa? O que ensinamos a nossos filhos? Temos tempo de transmitir algum valor ou de escutá-los?

Nunca foi fácil educar. A fronteira entre a autoridade e a compreensão é um aprendizado. Impor regras pode descambar para a repressão, a violência verbal, moral e física. Ser amigo pode descambar para a condescendência, a tolerância excessiva, a falta de limites.

Qualquer dos extremos ajuda a formar crianças e adolescentes desequilibrados, inseguros, arrogantes e antissociais. Jovens batem nos colegas da escola, matam a pauladas torcedores de times de futebol adversários, espancam prostitutas, agridem homossexuais com lâmpadas fluorescentes, incendeiam mendigos, suicidam-se no trânsito.

Ou mergulham em drogas que incapacitam para sempre, como o crack. “Infelizmente, de duas décadas para cá, os pais, para tentar se aproximar dos filhos, resolveram se tornar amiguinhos. Saem para a noite com os filhos, sentam em uma mesa de bar e bebem todas com eles”, diz Barbirato. Mães se vestem e falam como se tivessem a idade das filhas.

Você é daqueles que ensinam a seu filho que só os fortes sobrevivem? Quando seu filho é irresponsável, você suborna o policial que o flagrou? Minimiza e diz “Tadinho dele, não queria fazer aquilo”, ou pior, “Os outros mereciam mesmo”? Ser amigo é uma coisa. Ser cúmplice é outra.

O bullying é apenas uma expressão de violência juvenil. O nome vem de bully, algo como valentão, na tradução do inglês. Nos episódios de bullying, há sempre um desequilíbrio de poder, que pode ter começado em casa, com a sensação de impunidade.

Por que dar um carro superpotente a alguém que acaba de fazer 18 anos? Sua prudência ainda está se desenvolvendo, diz Barbirato. “O menino pensa: meu pai bebe um pouquinho quando saímos e dirige – por que eu também não posso beber um pouquinho, como ele?” Nos anos 60, o jovem buscava nas drogas ilícitas algo para transcender.

Hoje, sem causa ou ideologia, o jovem quer é ficar doidão para reduzir a ansiedade ou a melancolia, e por isso submerge no crack. É a crença da onipotência. E ele não consegue mais sair. Se as crianças aprendem por imitação, que modelo os pais e mães modernos fornecem em casa?

Culpar o aumento de divórcios é uma saída simplista e preconceituosa. “Não são as separações amigáveis que concorrem para a violência. Falo sempre dos filhos daqueles casais que não sabem mais conversar, numa casa onde tudo acontece aos berros ou agressões. Atribuir a culpa à mãe que hoje precisa trabalhar fora é outra visão ultrapassada e machista demais.” Construir um senso de família vai além. Para educar, é preciso ter educação.

Já se tornou clichê valorizar a qualidade, e não a quantidade, de tempo com os filhos. Não há base estritamente científica para se afirmar que uma refeição por dia em família contribua para reduzir o desajuste dos filhos. Mas tendo a concordar com Barbirato. O convívio perdido à mesa é irreparável.

Sou mãe de dois filhos, separada, e lembro quando o mais velho, aos 18 anos, reclamou abertamente: “Mãe, nós não fazemos juntos nenhuma refeição por dia durante a semana”. Isso foi há uma década. Tive sorte, porque ele me chamou a atenção e porque desejava a minha companhia.

Antecipei a hora de chegar do trabalho para poder jantar com os dois. É um momento para conversar sobre o dia. Confidências emergem. O diálogo se mantém olho no olho, e não por SMS ou e-mail.

Temas polêmicos são discutidos. É hora de falar de valores, compartilhar verdades, mesmo incômodas. De preferência, com o celular desligado! Sem tuitar, sem dispersar. A indiferença com o outro me parece hoje um grande desagregador familiar. O vício da conexão nos desconecta uns dos outros dentro do que um dia se chamou de lar.

Em 2011, jante ou almoce com seus filhos em casa – e não só aos domingos.


18 de dezembro de 2010 | N° 16553
NILSON SOUZA


Num piscar de olhos

Frequentadora assídua e involuntária deste comentário semanal, a Menina dos Meus Olhos acaba de virar um ciclo de sua vida – a passagem do Ensino Médio para a universidade. Está com 17 anos. Num piscar de olhos, a garotinha que queria sempre ser a primeira da fila pelo privilégio de pegar a mão da professora salta da infância para o mundo adulto em busca de uma profissão, de um lugar ao sol no mercado de trabalho e de seu próprio destino.

O coração aperta, sinto a areia escorrer entre os dedos, mas sei muito bem que é hora de soltar as amarras do afeto para que o barco da individualidade encontre seu rumo.

Durante os 11 anos de sua vida escolar, que acompanhei com atenção e curiosidade, procurei compartilhar com os leitores muitas de suas descobertas, sempre mantendo-a no anonimato do apelido carinhoso. Fi-lo, como diria aquele ilustre gramático, por intuir que cada leitor e cada leitora têm os seus meninos e as suas meninas dos olhos, as crianças que amamos incondicionalmente porque são a luz da nossa existência.

Sempre com o cuidado de preservar sua identidade e sua intimidade, relatei aqui algumas aventuras e desventuras dessa viagem coletiva chamada adolescência. Pelos retornos que recebi, tenho certeza de que muita gente pegou carona nos meus relatos. Uma leitora amiga e querida, inclusive, já me sugeriu que transforme em livro a passagem da Menina dos Meus Olhos por estas crônicas. Nunca tive tal pretensão, mas, por cortesia, prometi pensar no assunto.

Meu propósito sempre foi mais singelo: capturar retalhos do cotidiano da menina que vi crescer e costurá-los em textos que desafiem outras pessoas a prestar atenção nas infâncias e adolescências que as cercam.

Estou convencido de que os habitantes destes mundos de dúvidas e encantos têm muito a nos ensinar, porque são criativos, espontâneos, alegres, sinceros e carinhosos – embora, às vezes, também possam ser carentes e inseguros. Não é incomum que corram para a frente da fila apenas porque querem segurar a nossa mão.

A Menina dos Meus Olhos deixou a escola para trás, também ela com a alma dolorida por se separar de amigos e professores com quem dividiu mais da metade de sua vida.

Com eles, tenho certeza, aprendeu lições importantes para encarar o futuro. Mas a principal, a que mais me gratifica e me dá certeza de que tudo valeu a pena, é exatamente a valorização de suas amizades e de seus afetos. Se ela aprendeu a amar como é amada, tenho certeza de que nada lhe faltará.

Boa sorte, Daniele.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010



15 de dezembro de 2010 | N° 16550
MARTHA MEDEIROS


Uma casa

Nesta época do ano, fico mais observadora do que de costume. Cada pessoa que vejo passar pela rua me inspira uma história: quem será que ela ama, por quem sofre, em que trabalha, onde passou a infância? Todos nós temos uma casa da infância. Uma casa que provavelmente não existe mais porque em seu lugar foi construído um edifício. O passado morre de terraplenagem.

Hoje há apenas duas maneiras de se manter uma casa em pé, sobrevivente em meio às cidades altas. A primeira: ter gente dentro. Os moradores ainda estarem vivos e não só vivos, mas apegados às suas recordações, respeitosos do lugar onde criaram seus filhos, onde foram felizes secretamente.

Tenho uma tia que mora num casarão no bairro Petrópolis e que recebe visitas diárias de corretores, deve ser a única da redondeza que ainda não se rendeu. Podem lhe oferecer a cobertura mais espetacular do planeta, dali ela não sai. Não se trata apenas de abrir mão de uma casa em troca de um apartamento, mas de abrir mão de cada lembrança que os aposentos guardam. Toda casa antiga é uma casa dos espíritos.

A outra maneira de se manter uma casa em pé, frente à ausência de seus moradores, é transformá-la num centro cultural.

Sim, há quem as transforme em restaurantes, e não vejo mal algum nisso, mas um país precisa mais de centros culturais do que de restaurantes, ao menos o jovem Brasil, tão precário de memória.

Quem conheceu Caio Fernando Abreu sabe que a casa em que moravam seus pais, e em que ele próprio morou por alguns anos, a casa em que ele viveu seus derradeiros dias, a casa em que ele era dono de um quarto, a casa onde havia um jardim por ele vigiado, a casa do Menino Deus, essa casa era um personagem da sua história pessoal.

Essa casa hoje está à deriva e, se nada for feito, não demorará para virar mais um prédio de apartamentos. A casa onde Caio sonhou, viveu e escreveu poderá vir abaixo, a não ser que abaixo assinemos.

A Associação dos Amigos de Caio Fernando Abreu está liderando um movimento a fim de transformar a casa do Menino Deus num centro cultural que possa abrigar a extensa obra do escritor e servir de espaço para saraus, lançamentos de livros e demais manifestações artísticas.

Para isso, precisa de apoio, de boa vontade e da interferência do governo municipal, estadual e, por que não, federal, já que Caio Fernando era de Santiago do Boqueirão tanto quanto de Porto Alegre, São Paulo, Rio e, vamos além, também de Londres e Berlim. O tal cidadão do mundo.

Os amigos do Caio estão mobilizados, mas sem incentivo público e privado pouco se poderá fazer. E o que há para fazer? Comprar a casa e reformá-la. E entregá-la a uma administração eficiente e afetiva, que saiba preservar a obra de um gaúcho que tanto contribuiu para nossa cultura.

Informações: salveacasadocaio@gmail.com; amigosdocaiof@gmail.com e Liana Farias: (61) 8502-0590.

O intrépido Caio F. ficaria louco de faceiro.

Uma gostosa quarta-feira pra você. Aproveite.

domingo, 12 de dezembro de 2010


DANUZA LEÃO

Vamos combinar?

Gostaríamos de saber por que a primeira entrevista da Dilma Rousseff foi dada a um jornal americano


EM TRÊS SEMANAS, Dilma toma posse. Até lá, quem manda, ela ou Lula?

A presidente eleita se pronunciou sobre a condenação de Sakineh, a iraniana condenada à morte, e a favor dos direitos humanos (só não ficou claro se essa posição vale para todos os países); posição diferente da de Lula, que afirmou que na época disse que não iria se intrometer nos negócios internos do Irã, pois isso seria uma "avacalhação".

Como pegou mal, ofereceu asilo político à iraniana -uma piada-, e depois da declaração de Dilma, ficou calado.

Parecia que Dilma começava a se libertar, mas o novo ministério é praticamente o mesmo, apenas as peças mudaram de lugar; soube-se que ela daria quatro ministérios ao PMDB, mas acabou dando cinco, como queria o partido.

O ministro Mantega declarou que ia desacelerar as obras do PAC, Lula disse que não acredita que Dilma corte um centavo dessas obras, das quais ela é a "mãe".

Alguma coisa está errada, e não ouso dizer que estamos à beira de uma "avacalhação" porque essa palavra não deve ser pronunciada em público nem escrita.

Aliás, todos gostaríamos de saber por que razão a primeira entrevista de Dilma foi dada a um jornal americano, e não à imprensa do país que a elegeu. Já pensou se Obama, logo depois de eleito, escolhesse falar apenas a um jornal, e brasileiro?

Dilma disse que escolheria um ministério fundamentalmente técnico e que nele as mulheres teriam muito espaço; não é o que está acontecendo. Até agora, o melhor que Dilma fez foi mudar o cabelo, que em vez de ser escovado em direção às estrelas e só se manter com a ajuda de muito laquê, está mais natural, pois nenhum cabelo cresce para cima. E vamos esperar pelo vestido da posse -vermelho, claro, como é de praxe no partido.

Se um finlandês chegasse ao Brasil, ficaria muito curioso para saber a razão de tanta pressão dos partidos por ministérios, sobretudo pelos com grande orçamento para fazer grandes obras, e perguntaria o por quê. Nunca ninguém fez essa pergunta a Michel Temer, por exemplo, porque toda a população brasileira está cansada de saber a resposta, e tão acostumada com isso que acha normal.

Esse finlandês teria dificuldade também para entender o costume brasileiro de dar cargos importantes aos políticos que não foram eleitos.

A senadora Ideli Salvatti, por exemplo, candidata derrotada ao governo de Santa Catarina, vai para o pitoresco Ministério da Pesca; tudo indica que Mercadante será ministro de Ciência e Tecnologia, e o ministro da Educação, Fernando Haddad, diz que para que o desempenho dos alunos brasileiros seja melhor, precisa de mais verbas. E agora?

As exibições finais de Lula nos estertores do seu mandato estão passando da conta, mas ainda vão piorar, como aliás já se sabia que ia ser; o "cacarejo", como bem definiu o WikiLeaks, está muito além da conta e a grande curiosidade é saber o que vai fazer Lula quando acordar, dia 2 de janeiro.
Podia bem ler um livro.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 11 de dezembro de 2010



12 de dezembro de 2010 | N° 16547
MARTHA MEDEIROS


A interferência do destino

Alguém consegue ter 100% de certeza sobre as escolhas que deve fazer?

Nunca as pessoas procuraram tantas fórmulas para buscar serenidade e compreensão diante dos dilemas emocionais da vida. Muitos fazem terapia, outros se apoiam em medicamentos, há os que consomem literatura filosófica, psicanalítica ou de autoajuda, há quem busque respostas na astrologia, os que se consolam na religião, mas ainda que tudo isso (ou algo disso) ajude a lidar com os questionamentos que nos perturbam, nada parece convincente o bastante.

Alguém consegue ter 100% de certeza sobre as escolhas que deve fazer? Vai ou fica? Arrisca ou espera? Aceita ou recusa?

Todos os dias tomamos decisões, a maioria delas corriqueiras, mas há momentos em que nos sentimos paralisados pela dúvida. O tão propagado autoconhecimento nos dá uma pista sobre o caminho a seguir, mas decidir é sempre tenso e desgastante. Nessas horas de extrema fragilidade é que a gente torce para que não seja preciso decidir nada: tudo o que se quer é que o destino interfira.

E ele interfere. Um telefonema que toca, um e-mail que chega, um convite que é feito, uma pessoa que nos é apresentada. Uma trivialidade qualquer pode dar a você as respostas que não tinha. Ou simplesmente aniquilar com suas perguntas, o que é ainda melhor. Tudo o que se espera do destino é que ele assuma o comando por nós.

Exemplo: uma amiga estava tentada a ceder às investidas do ex-marido, mesmo sabendo que a relação não tinha mais combustível. Ainda sentia algo por ele, mas temia sofrer tudo o que já havia sofrido antes. Ainda assim, pensava: por que não dar outra chance? Por outro lado, vale a pena percorrer o mesmo caminho já trilhado?

Enquanto se consumia entre o medo de voltar para um amor insatisfatório e o medo de perdê-lo para sempre, o destino resolveu o caso: ao entrar no elevador pela manhã, ela encontrou um moço que estava perdido, sem saber em que andar descer para visitar um amigo. Dias depois recebeu um e-mail desse mesmo moço, e o resto da história fica a critério da imaginação de cada um.

Outro exemplo: um homem havia recebido uma proposta para trabalhar em São Paulo, mas isso significaria ter que deixar a mulher e a filha em Porto Alegre, já que a carreira bem-sucedida dela a impedia de acompanhá-lo.

Ele, por sua vez, estava ganhando mal, se sentindo desprestigiado no emprego, e a nova oferta de emprego solucionaria essa questão, mas não tinha vontade de ir sozinho para uma cidade onde não conhecia ninguém.

Fosse qual fosse a decisão tomada, haveria um custo emocional. Foi passar um feriado no Uruguai para espairecer e pensar melhor, ganhou uma bolada no cassino e investiu o dinheiro numa pequena sociedade com um ex-colega da faculdade, mudando completamente seu rumo profissional, sem precisar se mudar.

Vai ou fica? Arrisca ou espera? Aceita ou recusa? Que o destino, de vez em quando, decida por nós. A gente merece uma trégua.


11 de dezembro de 2010 | N° 16546
NILSON SOUZA


Nunca antes

Nunca antes estivemos tão expostos ao olhar alheio. O admirável mundo novo da tecnologia digital colocou no nosso cangote o Grande Irmão que tudo vê e tudo controla. Sorria, você está sendo filmado, vigiado, cadastrado, espionado, investigado, achacado. De repente, seu telefone toca e, do outro lado, tem alguém que sabe tudo sobre a sua vida, onde você mora, quantos filhos tem, o que consome, quais são os seus hábitos de lazer.

E aquela voz simpática tem alguma coisa para lhe vender ou algum negócio para lhe propor – uma promoção imperdível que vai, no mínimo, deixá-lo ainda mais vulnerável aos interesses de terceiros, quartos e quintos, já que os cadastros de clientes são negociados no mercado como pipoca na entrada do cinema.

Nunca antes fomos tantos na superfície do planeta, nem tivemos tantos carros ou convivemos desta maneira com engarrafamentos de trânsito, filas em cinemas, bancos, restaurantes e aeroportos. O mundo está lotado, as estradas estão repletas de veículos, os shoppings e supermercados estão lotados, os ingressos para qualquer espetáculo estão sempre esgotados.

Nunca antes nos comunicamos tanto, nem tivemos tantos amigos virtuais, que só conhecemos por seus perfis nas redes sociais ou por suas ideias tuitadas em meia dúzia de palavras.

Todos conquistamos o poder de tocar o mundo com a ponta dos dedos, o indicador e o polegar abrindo infinitas janelas para que possamos, também nós, espionar a vida alheia ou compartilhar a nossa própria com quem estiver online e disponível. Acabou a privacidade. No mundo interconectado, ninguém mais tem direito ao anonimato.

Nunca antes fomos tão cosmopolitas, multinacionais, cidadãos de todos os países e de nenhum, superficialmente cultos, bilíngues ófi corse, alguns até quinquilíngues, palavra que sempre sonhei usar quando tinha três tremas, mas que infelizmente só tive a oportunidade de fazer agora, depois que os olhinhos das letras foram extraídos pela reforma ortográfica. Como agora falamos com os dedos, o idioma já não importa tanto.

Nunca antes na história da humanidade estivemos tão desafiados por uma mudança de paradigma. Vivemos uma era de transformações vertiginosas, mal dá tempo de entender uma novidade tecnológica e já surgem outras mil.

Tudo muda da noite para o dia. O que era verdade ontem pode não ser mais amanhã. Nossos sentidos parecem insuficientes para captar tanta informação. Nossos cérebros parecem despreparados para entender tantas revoluções.

Nunca antes vivemos tanto, com tantos recursos e, ao mesmo tempo, com tanta urgência.

Um sábado gostoso, bom fim de semana para você.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010



07 de dezembro de 2010 | N° 16542
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Da coleção de momentos

Soa o telefone e uma voz feminina me pergunta o que achei do e-mail. Não tenho a mais remota ideia de que e-mail seja, mas respondo educadamente que achei ok. Minha amiga então se queixa de que sou um insensível. Como posso ter achado ok um recado que era uma queixa contra a vida e o mundo? Me encho então de coragem e lhe explico que ando esquecendo muitas coisas.

Li uma reportagem esses dias que parece ter sido escrita para mim. Nunca esqueço de pagar uma conta, mas 10 dias antes já me entrego a uma tortura de exata, prévia lembrança do compromisso. Apago absolutamente da memória o nome de alguém a que acabei de ser apresentado.

E na próxima vez que o vejo o trato de doutor ou professor, em ambos os casos inominado. Dos livros que estou lendo, trato de gravar o essencial, um crime, uma cena de amor, uma gafe imperdoável. E sempre me bate uma dúvida: terei fechado a porta do apartamento na saída, terei desligado o forno de micro-ondas?

Mas tudo são detalhes, pois não esqueço alguns dos mais belos momentos de minha vida.

Paris, 1980. Eu me sentia feliz pelo simples ato de respirar, vendo passar o Rio Sena de uma das mesas do Café des Beaux-Arts. Paris, mesmo ano, mesmo outono de minha primeira juventude. À saída do Le Danton, a mais linda das francesas toma minha mão e, docemente persuasiva, me convida a desvendar os mistérios que se situam entre o céu e a terra.

Berlim, 1982. Uma esplendorosa manhã de domingo e eu vendo surgir na estação de metrô de Tempelhof, no seu vestido azul, nas suas sandálias de salto, a garota que prometera me revelar todos os segredos da cidade.

Bonn, Nuremberg, Hamburgo, em diferentes anos, os encontros com as três princesas reais que iluminaram minha vida, a última delas Lady Di, que à entrada de um teatro me presenteou por três segundos com seu olhar inesquecível.

Steamboat Springs, 1984, no alto das Montanhas Rochosas, eu mostrando da janela do hotel, à mais formosa das americanas, como o paraíso havia descido ao planeta e o havia encoberto de neve.

E mais ainda os amanheceres de Roma, as flores e os livros de Barcelona, os canais de Veneza ou de Bruges, a cor violeta do Mar Báltico, os sons de um musical em Nova York. Yes, amiga, eu fui um colecionador de momentos.

Uma linda terça-feira pra vc. Para quem está de folga, aproveite a folga...As férias estão vindo ai.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010



O CRAVO NÃO BRIGOU COM A ROSA

Chegamos ao limite da insanidade da onda do politicamente correto. Soube dia desses que as crianças, nas creches e escolas, não cantam mais O cravo brigou com a rosa. A explicação da professora do filho de um camarada foi comovente: a briga entre o cravo - o homem - e a rosa - a mulher - estimula a violência entre os casais. Na nova letra "o cravo encontrou a rosa/ debaixo de uma sacada/o cravo ficou feliz /e a rosa ficou encantada".

Que diabos é isso? O próximo passo é enquadrar o cravo na Lei Maria da Penha. Será que esses doidos sabem que O cravo brigou com a rosa faz parte de uma suíte de 16 peças que Villa Lobos criou a partir de temas recolhidos no folclore brasileiro?

É Villa Lobos, cacete!

Outra música infantil que mudou de letra foi Samba Lelê. Na versão da minha infância o negócio era o seguinte: Samba Lelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Samba Lelê precisava/ É de umas boas palmadas. A palmada na bunda está proibida. Incita a violência contra a menina Lelê. A tia do maternal agora ensina assim: Samba Lelê tá doente/ Com uma febre malvada/ Assim que a febre passar/ A Lelê vai estudar.

Se eu fosse a Lelê, com uma versão dessas, torcia pra febre não passar nunca. Os amigos sabem de quem é Samba Lelê? Villa Lobos de novo. Podiam até registrar a parceria. Ficaria assim: Samba Lelê, de Heitor Villa Lobos e Tia Nilda do Jardim Escola Criança Feliz.

Comunico também que não se pode mais atirar o pau no gato, já que a música desperta nas crianças o desejo de maltratar os bichinhos. Quem entra na roda dança, nos dias atuais, não pode mais ter sete namorados para se casar com um. Sete namorados é coisa de menina fácil. Ninguém mais é pobre ou rico de marré-de-si, para não despertar na garotada o sentido da desigualdade social entre os homens.

Dia desses alguém [não me lembro exatamente quem se saiu com essa e não procurei a referência no meu babalorixá virtual, Pai Google da Aruanda] foi espinafrado porque disse que ecologia era, nos anos setenta, coisa de viado.

Qual é o problema da frase? Ecologia, de fato, era vista como coisa de viado. Eu imagino se meu avô, com a alma de cangaceiro que possuía, soubesse, em mil novecentos e setenta e poucos, que algum filho estava militando na causa da preservação do mico leão dourado, em defesa das bromélias ou coisa que o valha. Bicha louca, diria o velho.

Vivemos tempos de não me toques que eu magôo. Quer dizer que ninguém mais pode usar a expressão coisa de viado ? Que me desculpem os paladinos da cartilha da correção, mas isso é uma tremenda babaquice. O politicamente correto é a sepultura do bom humor, da criatividade, da boa sacanagem. A expressão coisa de viado não é, nem a pau (sem duplo sentido), ofensa a bicha alguma.

Daqui a pouco só chamaremos o anão - o popular pintor de roda-pé ou leão de chácara de baile infantil - de deficiente vertical . O crioulo - vulgo picolé de asfalto ou bola sete (depende do peso) - só pode ser chamado de afrodescendente.

O branquelo - o famoso branco azedo ou Omo total - é um cidadão caucasiano desprovido de pigmentação mais evidente. A mulher feia - aquela que nasceu pelo avesso, a soldado do quinto batalhão de artilharia pesada, também conhecida como o rascunho do mapa do inferno - é apenas a dona de um padrão divergente dos preceitos estéticos da contemporaneidade.

O gordo - outrora conhecido como rolha de poço, chupeta do Vesúvio, Orca, baleia assassina e bujão - é o cidadão que está fora do peso ideal. O magricela não pode ser chamado de morto de fome, pau de virar tripa e Olívia Palito. O careca não é mais o aeroporto de mosquito, tobogã de piolho e pouca telha.

Nas aulas sobre o barroco mineiro, não poderei mais citar o Aleijadinho. Direi o seguinte: o escultor Antônio Francisco Lisboa tinha necessidades especiais... Não dá. O politicamente correto também gera a morte do apelido, essa tradição fabulosa do Brasil.

O recente Estatuto do Torcedor quer, com os olhos gordos na Copa e 2014, disciplinar as manifestações das torcidas de futebol. Ao invés de mandar o juiz pra putaqueopariu e o centroavante pereba tomar no olho do cu, cantaremos nas arquibancadas o allegro da Nona Sinfonia de Beethoven, entremeado pelo coro de Jesus, alegria dos homens, do velho Bach.

Falei em velho Bach e me lembrei de outra. A velhice não existe mais. O sujeito cheio de pelancas, doente, acabado, o famoso pé na cova, aquele que dobrou o Cabo da Boa Esperança, o cliente do seguro funeral, o popular tá mais pra lá do que pra cá, já tem motivos para sorrir na beira da sepultura. A velhice agora é simplesmente a "melhor idade".

Se Deus quiser morreremos, todos, gozando da mais perfeita saúde. Defuntos? Não. Seremos os inquilinos do condomínio Cidade do pé junto.

Luiz Antônio Simas - Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor de História do ensino médio.

sábado, 4 de dezembro de 2010



05 de dezembro de 2010 | N° 16540
MARTHA MEDEIROS


Traída pela memória

A pergunta desgraçada “lembra de mim?” continua a ser feita, sobretudo em sessões de autógrafos

A pior pergunta que se pode fazer para alguém é: lembra de mim? Se a pergunta precisa ser feita, está na cara que não se trata de alguém íntimo. E se você não é íntimo, a educação pede que, cordialmente, você se apresente. Oi, sou Fulana de Tal, trabalhei contigo em tal lugar, lembra? Agora sim.

Pode até ser que continuem não lembrando, mas ao menos evita-se constrangimentos. Me parece tão simples. Sempre me identifiquei antes de sair dando tapinha nas costas dos outros.

Porém, todavia, entretanto, a pergunta desgraçada continua a ser feita, principalmente em sessões de autógrafos, quando se sabe que o pobre do escritor tem dificuldade para lembrar até do nome do sogro. Eu sei, eu sei, aí é que está a graça da coisa.

Estive no Rio alguns dias atrás, lançando meu novo livro, e a fila era diabólica, saía da livraria e ia até a esquina. Havia gente estaqueada há duas horas. Foi quando uma loira surgiu na minha frente sem o papelzinho onde deveria estar escrito seu nome. Nenhum problema. Abri um sorriso e perguntei: “Como você se chama?”.

Ela: “Não lembra de mim?”. Na mesma hora, encolhi meus ombros, juntei as palmas das mãos e implorei: “Não faça isso, por favor, tenha misericórdia”. Foi um erro ter me declarado assim tão vulnerável. Ela era do tipo que gostava de chutar cachorro morto.

“Trabalhei na mesma agência que tu 20 anos atrás”. “Por favor, teu nome.” “O teu ex-marido lembraria”. Não acusei o golpe, a essa altura já havia recobrado a autoestima: “Tem 300 pessoas atrás de você loucas para sair daqui e ir jantar, dá pra facilitar?”.

Ela ainda seguiu fazendo mistério, até que o povo começou a engrossar, houve ameaça de linchamento, e ela acabou cedendo. Disse o nome que jamais esquecerei, mas que, em represália, não publicarei aqui. Esse gostinho não vou lhe dar.

Voltei para Porto Alegre. Numa tarde dessas, estava em um shopping com minha filha quando um rapaz de óculos escuros se aproximou por trás e gritou “Martha! Estava mesmo precisando falar contigo”. Desespero. Perguntei com a voz trêmula: “Quem é?”, como se ele estivesse ao telefone, e não na minha frente.

Ele tirou os óculos e abriu um sorriso que pretendia ser revelador. Desespero, desespero. Então ele me abraçou calorosamente e começou a contar que eles haviam acabado de voltar da Bahia (“Eles quem, Jesus?”) e que agora estava trabalhando com charutos (“Ele trabalhava antes com o quê, armas, drogas?”) e que pre-ci-sa-va falar comigo.

Pedi candidamente que me enviasse um e-mail, de preferência anexando um currículo e uma minibiografia. Brincadeira, pedi apenas que me escrevesse. Nos despedimos como bons velhos amigos e minha filha finalmente soltou a risada que estava presa: “Tu não tem nem ideia de quem seja, né, mãe?”.

Humildemente, imploro a todos os ex-vizinhos, ex-colegas de propaganda, ex-parceiros de academia, ex-transeuntes do mesmo parque, ex-frequentadores do mesmo salão de beleza, ex-parentes chegados, ex-parceiros de elevador e até ao meu ex-marido engraçadinho: identifiquem-se.

Não é humilhante, basta um “Sou o Fulano que foi casado contigo por 17 anos, lembra?”. Humilhação passo eu a cada dia que saio de casa. Piedade.


04 de dezembro de 2010 | N° 16539
NILSON SOUZA


Onze horas e três minutos

Tenho uma certa resistência a relógios, mas sou quase obsessivo no cumprimento de horários. Faz muito tempo que não uso relógio de pulso, nem costumo recorrer a despertador para sair da cama, mas raramente me atraso para encontros e reuniões agendadas. Veio de fábrica, acho, esse relógio interno inflexível, que me faz acordar várias vezes na véspera de viagens e outros compromissos matinais.

Esta semana, juntamente com vários outros colegas de trabalho, fui homenageado por ter completado 25 anos de empresa. E, como em outras datas redondas do nosso programa de jubilados, ganhei o tradicional presente da casa: um relógio.

– É para a gente não chegar atrasado! – sempre tem um colega que brinca.

Por coincidência, tinha acabado de ler uma reportagem da revista Superinteressante sobre a marcação e a administração do tempo nesta nossa sociedade da pressa. Diz o texto que existe o tempo do relógio e o tempo que está em nossas cabeças, alheio às leis da física, determinado por fatores culturais, geográficos e até econômicos.

O primeiro tempo independe da nossa vontade, o segundo pode ser alterado pela nossa mente. Chamou-me especialmente a atenção, como habitante de uma metrópole nervosa, a informação de que uma cidade acelerada atrai gente acelerada e expulsa os lerdos. Como tenho feito um esforço constante para reduzir o ritmo, acho que corro sérios riscos de ser expurgado de minha cidade natal.

Mas, segundo uma teoria citada no texto, é a perspectiva temporal, resultado da nossa atitude em relação ao passado, ao presente e ao futuro, que dá significado à vida. Tem até um teste para identificar a perspectiva das pessoas, com ênfase na visão positiva ou negativa de cada uma destas três dimensões do tempo.

Você pode ver o passado com otimismo ou pessimismo, valorizando as lembranças boas ou as ruins. Pode ser fatalista ou prazenteiro em relação ao presente. E pode, ainda, viver com os olhos voltados para o futuro.

Não sei qual é a minha classificação. Preferi não fazer o teste, assim como prefiro não usar relógio. Deve ser alguma atitude psicológica de defesa. Sinto-me mal quando sou rotulado, sinto-me tolhido no meu livre-arbítrio. Ainda que seja um sujeito totalmente previsível, gosto de pensar que basta a minha vontade para sair da rotina, surpreender e viver emoções diferentes.

Mesmo assim, dei uma olhadinha desinteressada para o novo relógio e percebi que está parado. Marca exatamente 11 horas e três minutos. Será um registro do passado ou uma previsão para o futuro? São mesmo enigmáticos esses devoradores de tempo.

Um sábado gostoso para vc e um gostoso fim de semana.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010



01 de dezembro de 2010 | N° 16536
MARTHA MEDEIROS


Pacaio

Quando eu era menina, no colégio, havia uma brincadeira chamada “Pacaio”. Não lembro bem como funcionava na prática, só sei que a gente pensava no nome de seis guris que gostávamos (seis, que fartura!) e cada letra que formava a palavra Pacaio selava o nosso destino em relação a eles: Paixão, Amor, Casamento, Amizade, Ilusão e Ódio. Minha cabeça dava um nó. Como era possível sentir paixão por Flávio e amor por Guto e ainda assim casar com Edu?

Estava a caminho de me tornar uma mulher esquizofrênica, mas o que mais me intrigava era outra coisa: o destinatário da minha ilusão. Era batata: o nome mais importante dos seis caía sempre na letra “i”. Nem amor, nem paixão, nem casamento. Ilusão. Era tudo o que ele me ofereceria na vida. E a profecia se cumpriu.

O menino de quem eu gostava no colégio foi uma ilusão. E tudo o mais que desejei na adolescência foi uma ilusão também. Até que um dia cresci e me desapeguei desse estado lisérgico que pouco me ajudava a ir em frente. Troquei sonhos por objetivos e decretei que só a realidade me serviria. Me tornei viciada em realidade.

Ok, as ilusões fazem parte da realidade, mas nunca mais deixei que elas me sustentassem.

É possível que esse pragmatismo tenha contribuído para eu não me entusiasmar tanto pelo novo trabalho de Woody Allen, cineasta que é outro vício meu. Claro que é um filme agradável e inteligente, como tudo que ele faz, mas saí do cinema já ansiosa para assistir ao próximo, e sorte minha que ele produz em escala industrial.

Você Vai Conhecer o Homem dos seus Sonhos é uma colagem de situações triviais protagonizadas por pessoas comuns que se amparam em suas ilusões e só recuperam o verdadeiro “eu” quando se confrontam com a realidade dos fatos. É um filme terno, delicado, sensível, mas não tem graça. A ilusão não tem graça mesmo. Paixão e amor, têm. Casamento pode ter também.

Ódio, nem se fala. Mas a ilusão, tanto no cinema como na vida, só ganha alguma relevância quando se alia ao sobrenatural (não por acaso, a única personagem do filme que se dá bem com sua ilusão busca reforço no espiritismo). Ilusão, por si só, nunca levou ninguém a lugar algum e raramente rende um bom final.

terça-feira, 30 de novembro de 2010



30 de novembro de 2010 | N° 16535AlertaVoltar para a edição de hoje
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

De homens e livros

Mario Quintana escreveu que “o livro traz vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado”. E já que mencionei um de meus autores preferidos, peço licença para citar mais dois. Somerset

Maugham confessou que “quando leio um livro, tenho a impressão de lê-lo somente com os olhos, mas de vez em quando topo com uma frase que tem uma significação especial para mim, e ela se torna parte de mim”. Já Ernest Hemingway dizia que “todos os bons livros se parecem, por serem mais verdadeiros do que se tivessem acontecido realmente”.

Mergulhei nesses pensamentos o outro dia, ao fazer uma investida sobre minha própria biblioteca. De novo, era preciso separar um punhado de volumes para doação, já que o espaço de meu gabinete estava outra vez tomado por mais lombadas do que poderia suportar.

Me dediquei a esse exercício com um certo temor íntimo na alma. Explico: a literatura é ocupante bem-vinda de duas peças de minha casa. Mas e se eu estivesse descartando obras cujo valor não havia sabido reconhecer? E se eu estivesse me separando da criação de um gênio ainda desconhecido? E se eu estivesse expulsando um poeta de altíssimos méritos, ou um romancista de rútila imaginação?

O que mais receava era estar me desfazendo de um livro completo. Não um com duas capas e o recheio competente. Me refiro a um outro, que procuro desde sempre, e que traz a anatomia completa da condição humana. Não falo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Ana Karenina ou de qualquer das tragédias de Shakespeare. Esses são o zênite, até hoje conhecido, da trajetória do homem sobre a Terra.

Me reporto a uma obra que não foi até aqui descoberta, que sintetiza toda a amargura e o esplendor da raça humana. Algo de absolutamente único e inimitável, que se componha de amor e de ódio, de fé e descrença, de esperança e de mistério, de certeza e incertitude.

Enquanto separava os livros que iam ser doados, me perguntava se esse título realmente existe. E me assaltava a convicção de que está entre nós, talvez em minha biblioteca, talvez na fantasia da adolescente que lê sua novela inaugural.

Uma excelente terça-feira. Aproveite o dia

sábado, 27 de novembro de 2010



28 de novembro de 2010 | N° 16533
MARTHA MEDEIROS


Atração pelo apocalipse

Ainda é grande o número de pessoas que resiste em entrar para as estatísticas dos sem noção

Faz um tempo que estou querendo falar sobre isso, mas não sabia como, e pra falar a verdade ainda não sei. Tem a ver com a expressão todo mundo. Quem é esse tal de todo mundo?

Todo mundo está obcecado por sexo, todo mundo só dá valor ao dinheiro, todo mundo está deprimido e finge que é feliz. Será mesmo que a gente eu, você, nós todos, todo mundo caiu nessa cilada de viver de aparências?

Temos essa mania de generalizar, de passar adiante coisas que escutamos aqui e ali, de reforçar um pensamento que não é tão universal assim.

Eu mesma, às vezes, coloco tudo no mesmo saco para justificar uma ideia, mas façamos uma investigação mais minuciosa: todas as mulheres que você conhece são obcecadas por rejuvenescimento, vivem aplicando toxinas no rosto, não possuem nenhuma vida interior, nadinha? Inteligência zero?

Convivo com muitas mulheres cultas e inteligentes que são vaidosas com parcimônia e que não se rendem a métodos violentos para fingirem ser mais jovens do que são. E com homens igualmente cultos e inteligentes que são viris sem serem cafajestes. Esse “todo mundo” é uma fraude. Ainda é grande o número de pessoas que não perdeu os critérios, que resiste em entrar para as estatísticas dos sem noção e dos sem personalidade.

O que eu estou querendo dizer, caso ainda não tenha ficado claro, é que tem muita gente por aí que privilegia as coisas simples e naturais, que não faz plástica como quem faz depilação, que não transa com qualquer um só para ser moderno.

Tem muita gente que não investe todo seu salário em grifes, tem muita gente que nunca foi entrevistada, nem consultada, nem faz parte dessas estatísticas duvidosas que dizem que está “todo mundo” considerando que ser bonito e sarado é o passaporte para a felicidade.

Programas de tevê, imprensa sensacionalista, novelas, tudo isso diverte, mas nem sempre é uma amostra fidedigna do universo. Representam uma pequena parcela da sociedade que se sustenta no egocentrismo, porém por trás dos holofotes há uma imensidão de pessoas livres de pressões estéticas.

O verdadeiro “todo mundo” é amplo, imenso. Não se reduz a criaturas que dizem amém a meia-dúzia de regrinhas de revista, que seguem padrões estereotipados para se sentirem alguém. A autenticidade morreu? Morreu nada. Me recuso a acreditar que está todo mundo burro. Não estou idealizando uma sociedade heterogênea: ela é heterogênea de fato.

Chega de insistir nessa ideia de que todos são fúteis, que a sociedade apodreceu. Há muita gente por aí, uma infinidade de cabeças boas que curtem um por-do-sol, que estão se lixando para prazeres falsificados e que valorizam a paz de espírito antes de qualquer coisa.

Chega desses desenganos públicos que viram pauta jornalística, chega desse apocalipse moral vendido como regra. Há muitos estúpidos entre nós, mas eles ainda não são “todo mundo”.

Um gostoso domingo. Bom final de semana

quarta-feira, 24 de novembro de 2010



24 de novembro de 2010 | N° 16529
MARTHA MEDEIROS


Fator de descarte

Estávamos, eu e uma amiga, conversando sobre antigos namorados, quando ela me contou uma história engraçada que havia acontecido com ela há muito tempo. Estava saindo com um cara que já demonstrara não ser exatamente um príncipe encantado, mas vá lá, ela seguia tentando, até que um dia estavam dentro do carro e o rádio começou a tocar uma música do Tom Jobim.

Ele disse: “Não suporto esse xarope” e trocou de estação. Ela não teve dúvida: trocou de namorado. Não gostar de Tom Jobim foi o que ela chama de “fator de descarte”. Me assegurou que todos nós, homens e mulheres, temos pelo menos um fator que faz com que paremos de investir numa paquera. Um fator que é intransponível. E então ela me perguntou: qual é o teu?

Fiz um rápido retrospecto da minha vida amorosa – rápido mesmo, porque o elenco é pequeno – e cheguei à conclusão de que meu único fator de descarte seria a violência e a canalhice. Eu não me relacionaria com ninguém que ameaçasse minha integridade física e também com ninguém que não tivesse princípios éticos.

Fora isso, não me importo que o candidato a príncipe não goste de Tom Jobim ou que seja gremista, baixinho, caolho e manque de uma perna, desde que possua o meu “fator de exigência”, que é único, subjetivo e não vou revelar qual é.

Essa história de “fator de descarte” explica a existência de tantos desencontros amorosos, de tanta gente continuar comendo mosca quando poderia estar vivendo uma relação, no mínimo, surpreendente. A longa lista de “isso não tolero” é praticamente um passaporte para a solidão.

As pessoas não dão chance para os diferentes, para os que não têm o mesmo nível cultural ou o mesmo padrão econômico. Desejam alguém que pense igual, se comporte igual, tenha os mesmos gostos, o mesmo tipo de amigos, preferências idênticas.

No entanto, quem garante que um fã de Tom Jobim não possa ser um buldogue no convívio diário? E quem garante que um fã do padre Fábio de Melo não possa levar uma mulher às alturas? Hosana nas alturas!

Eu prefiro Tom Jobim a qualquer padre, pagodeiro ou sertanejo, e acredito que ter afinidades é decisivo para o sucesso de uma relação a dois, mas às vezes um prefere Paris e outro prefere acampar em Rolante, e aí, como faz?

Relacionar-se é a oportunidade suprema de invadir universos desconhecidos e extrair diversão das indiadas. Claro que há grande chance de virar um deus nos acuda, mas não se pode cultivar ideias imutáveis, tipo “jamais trocarei uma noite no Cafe de la Musique por um churrasquinho de gato na Lomba do Pinheiro”.

Exagerei, né? Churrasquinho de gato na Lomba do Pinheiro, francamente. Só se o cara – ou a fulana – cumprir muito à risca seu fator de exigência. No que diz respeito ao meu, é algo subjetivo, já falei. Altamente psicológico.

Pense naquilo que é imprescindível para justificar que você se envolva com outra pessoa a ponto de abrir mão da sua liberdade. Pois então: eis o seu fator de exigência. É isso que importa. De resto, deixe pra ouvir Garota de Ipanema em casa, Tom Jobim não vai fugir.

Ainda que com chuva um lindo dia para vc. Aproveite

terça-feira, 23 de novembro de 2010



23 de novembro de 2010 | N° 16528
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Idade da Pedra

Toda essa inglória batalha em torno do Enem me faz recordar a época em que tudo era mais exato, mais prático e mais simples. Não estou falando de eras imemoriais, mas do princípio dos anos 60, quando cada faculdade aplicava provas por ela mesma elaboradas para escolher os estudantes que iriam frequentar seus cursos.

Para mim, foi uma dura luta ingressar no primeiro ano da Faculdade de Direito da UFRGS. Durante três meses, eu despertava às quatro e meia da madrugada e, às cinco, depois do banho e do café, imergia no mundo da Filosofia, do Português, do Francês e do Latim.

Me entreguei a isso com tanta seriedade que às vezes passava da hora do almoço e eu ainda estava envolvido com a análise sintática de uma estrofe de Camões, ou com uma reflexão abissal de Karl Jaspers.

Não me dediquei por inteiro a esse desafio. De tarde, depois de uma sesta reparadora, ia procurar meus amigos ou, de preferência, minhas amigas, aquelas pelas quais eu tinha particular apreço e consideração.

Os exames eram duplos. Além de você encarar as provas escritas, tinha ainda de enfrentar as orais. Quer dizer: você era chamado a sentar diante da banca e responder ao que aquelas sumidades perguntassem sobre Francês/Inglês (a escolha era sua), Português, Latim e Filosofia.

Mas aí havia lugar para um jogo de cintura. O professor Armando Câmara costumava indagar a definição de valor. E aí você rebatia: “Valor é o próprio ser, visualizado intelectualmente numa perspectiva de finalidade”. Pronto: nota 10. O professor Carlos Jorge Appel não deixava de sondar seus conhecimentos sobre Fernando Pessoa. E aí você recitava: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”. Outro 10.

Só derrapei mesmo na prova de Latim. A primeira questão, que valia dois pontos, era escandir uns versos de Virgílio. Eu dominava a escansão tão inteiramente que a deixei para o final do exame, e aí me esqueci de preenchê-la. Foram os dois pontos que me faltaram para ser o primeiro lugar no vestibular.

Hoje tudo mudou. A massificada e trágica comédia de erros do Enem mostra que regredimos à Idade da Pedra na seleção de alunos para a Universidade.

Excelente terça-feira pra vc. aproveite o dia.

sábado, 20 de novembro de 2010



21 de novembro de 2010 | N° 16526
MARTHA MEDEIROS


Solitary man

Estamos sempre em dívida com a nossa juventude, e a tentação de voltar a ela é mais forte do que a nossa racionalidade

Não deveria sacrificar minha paz de espírito com bobagem, mas o fato é que ainda me irrito com as traduções de filmes feitas no Brasil. A última extravagância se deu com o recente filme de Michael Douglas, por isso mantive o título original encabeçando essa crônica, já que me nego a reproduzir O Solteirão, como está nos cartazes dos cinemas. Não se trata da história de um solteirão, mas nada como um apelo fácil para atrair público.

O filme mostra o desenrolar da vida de um homem de 60 anos que, durante um check up de rotina, descobre que talvez tenha algumas complicações cardíacas. Talvez. Não há nada confirmado. O médico pede novos exames para ter certeza, mas o paciente decide não ir adiante na investigação da sua saúde. Mesmo sem ter um resultado definitivo, resolve que é hora de aproveitar a vida. E, para ele, aproveitar a vida significa mandar às favas a ética.

Falastrão e arrogante, o personagem só faz besteira, uma atrás da outra. Passa por cima dos sentimentos alheios feito um trator. Pensa que está curtindo à beça, mas na verdade está pagando um tributo à morte. É ela que está no comando, fazendo dele um marionete dos mais patéticos.

Além de jogar toda uma carreira profissional no lixo, o homem não pode ver alguém usando saia que se transforma num predador incontrolável, mesmo que haja um alerta de “perigo” piscando a sua frente. Pouco importa se a presa for a filha adolescente da sua namorada ou o grande amor do seu melhor amigo. A morte está à espreita, é a última chance de ser jovem de novo. Atacar!

Michael Douglas interpreta o papel com muita dignidade, e é irônico que ele próprio, hoje, esteja gravemente doente. Brincando numa entrevista, ele disse que nunca pensou em ir tão longe na divulgação de um filme. Mas o fato é que a morte ronda a todos, personagens reais ou fictícios, e cabe a nós combatê-la com maturidade em vez de se deixar levar pelo descontrole.

O bom senso recomendaria que, na perspectiva de se estar vivendo os últimos anos, privilegiássemos o que de fato possui valor: os amores conquistados e essenciais. Mas estamos sempre em dívida com a nossa juventude, e a tentação de voltar a ela para incrementar nossa biografia é mais forte que nossa racionalidade. Daí para a patetice é um pulo.

Mesmo inescrupuloso, simpatizamos com o personagem de Michael Douglas porque, de certa forma, somos todos um bando de assustados tentando vencer o invencível.

Há um pouco dele em nós, e “um pouco” é medida tolerável, não compromete nossas atitudes. Mas o personagem, ao contrário, perde totalmente os critérios e dá bandeira da sua enorme fragilidade.

Ora, vamos todos morrer, mas isso não é desculpa para não se respeitar as regras do jogo. E a regra do jogo é clara: o que nos fará feliz na iminência do fim é exatamente o que já nos fazia feliz antes. O resto é pânico, só.

Um lindo domingo pra vc. Aproveite

quarta-feira, 17 de novembro de 2010



17 de novembro de 2010 | N° 16522
MARTHA MEDEIROS


A cabeça dos outros

A revista Veja desta semana traz uma reportagem perturbadora sobre os motivos que levam alguém a matar outra pessoa. Foram entrevistados mais de 90 homicidas, e as respostas, quase todas, coincidiram. Eles sentem medo ao assaltar. Estabelecem um roteiro prévio e ficam em pânico quando algo ameaça sair errado. Qualquer movimento não previsto é razão para atirar. E atiram.

Nada de novo: todo mundo sabe que reagir a um assalto é o caminho mais curto para uma tragédia. Nunca passei por isso e espero ter o sangue-frio necessário quando chegar minha vez, mas como deter o impulso de puxar um freio de mão, abrir um vidro, soltar o cinto de segurança, tudo o que pode ser considerado “imprevisto” pelos delinquentes?

Eu, por exemplo, quando passo por um susto violento, travo, fico sem voz. Ela não sai de jeito nenhum. Se acaso me perguntarem alguma coisa, como provar que meu silêncio não é uma provocação, e sim uma reação fora do meu controle?

Melhor nem pensar.

O que me ficou disso tudo é que somos prisioneiros não só da nossa cabeça, mas da cabeça dos outros também, do que eles pensam a nosso respeito, do que imaginam que iremos fazer, das conclusões a que chegam, das interpretações que fazem sobre o que lhes contamos.

Não há escapatória. Estamos sujeitos ao que nossas narrativas revelam, e elas nem sempre revelam nossa pureza. Estamos sujeitos ao que nossos atos revelam, e eles nem sempre revelam o que sentimos. O que somos de verdade e o que queremos de fato, só nós sabemos. Só nós. Sós.

O planeta é povoado por bilhões de solitários tentando se comunicar em meio a situações de euforia, desespero, descrença e êxtase. Quantas vezes tentaram adivinhar o que sentíamos, e erraram. Julgaram nossas ações, e erraram. Tiveram certeza sobre nossos propósitos, e erraram. Balas perdidas disparadas a esmo, bilhões tentando compreender uns aos outros e passando longe do alvo. Reverenciamos tanto a conexão, mas ela segue mais rara do que nunca.

A cabeça do outro é nosso juiz mais implacável. Acreditamos que temos controle sobre nosso destino, mas esse controle está atrelado ao pensamento do outro sobre nós, o sentimento (ou ressentimento) que ele nutre a despeito de todas as nossas boas intenções.

Nossos pais, nossos amigos, nossos filhos, nossos clientes, nosso amor: tudo andará bem desde que sejamos fiéis ao que estava previsto. Mas somos seres imprevisíveis por natureza, o que nos faz passar a vida inteira correndo riscos.

Bem só queria pedir perdão pelo horário da postagem, mas estou em um Congresso Internacional sobre Inovação aqui em Porto alegre e ai sinceramente não deu para postar antes. Bom soninho para vocês e os votos de uma linda quinta-feira.

terça-feira, 16 de novembro de 2010



16 de novembro de 2010 | N° 16521
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Raízes da alma

Quando eu frequentava o Clássico – que era um curso de três anos que tinha antes do vestibular – estudei as tragédias gregas. Aprendi então que elas costumavam terminar mal, que o destino jogava um papel importante na trama e que o papel dos heróis tinha características fatídicas. Me ensinaram ainda que o gênero foi imitado através dos séculos, sem maior êxito, em especial pelo teatro francês.

Alguém poderá perguntar por que assunto tão complexo era parte do cardápio da escola média. A resposta é simples. Édipo, Jocasta, Antígona e companhia integravam o currículo porque o curso se atrevia a mergulhar nas raízes da alma humana.

Leio agora na Veja que tramitam hoje no Congresso Nacional 76 projetos de lei que visam a incluir novas matérias na grade letiva. Se forem aprovados, os estudantes terão aulas sobre cooperativismo, para orientá-los a refutar o capitalismo.

Ora, uma cooperativa é uma sociedade que objetiva desenvolver a economia de seus membros através do apoio mútuo. Não se destina a rebater o capitalismo, hoje presente até na China.

Os alunos absorverão também algo chamado de educação para as mídias, uma espécie de olhar crítico sobre o noticiário. Será esforço perdido. A melhor educação para as mídias é proporcionada todos os dias pelos jornais, rádios e emissoras de TV. Baseia-se num pressuposto elementar: a veracidade, a exatidão, a isenção e a honestidade de cada linha difundida.

E sobrou ainda lugar para o esperanto. A língua auxiliar internacional criada por Zamenhof promoveria a comunicação entre sociedades distantes, quando não antípodas. Esse papel é hoje do inglês, como já foi do francês e do latim.

Não tenho absolutamente nada contra o cooperativismo, a leitura crítica das mídias ou o esperanto. Bem ao contrário. O que me preocupa é a real prioridade de todas essas propostas para os adolescentes brasileiros.

No Clássico, estudei filosofia, latim, francês, sociologia, espanhol, sem esquecer matemática, química e física. Uma reforma do ensino mal aplicada e pior digerida baniu todas essas disciplinas dos currículos de formação humanística. Toda a educação se empobreceu com isso.

A hora é de resgatá-las, com a importância a elas devida, já que vem aí um novo governo.

Ótima terça-feira e uma gostosa semana pra vc

sábado, 13 de novembro de 2010



14 de novembro de 2010 | N° 16519
MARTHA MEDEIROS


Um universo chamado aeroporto

Talvez o fascínio seja este: quando viajamos, nunca parecemos muito conosco

Ainda não me decidi sobre o que sinto a respeito de aeroportos. Atualmente me provocam impaciência e cansaço, mas afora os momentos de estresse causados por atrasos, eles também exercem sobre mim um certo fascínio.

E eu não devo ser a única, caso contrário o escritor Alain de Botton não teria aceito a proposta que lhe fizeram de passar uma semana morando em Heathrow, principal aeroporto de Londres, para escrever um livro sobre o assunto.

O livro traz muitas fotos e alguns comentários sobre esse microcosmo que serve de cenário para despedidas, reencontros, esperas, angústias e êxtases. Não é leitura obrigatória, longe disso. Há uma certa encheção de linguiça, como todo livro encomendado, mas ele desperta em nós um olhar mais atento sobre o que se passa nos terminais aéreos.

Todo mundo tem uma história de aeroporto pra contar. Eu tenho algumas que até já transformei em crônicas, como da vez em que um cidadão quase sentou em cima do meu colo na sala de embarque, me revelando um poder que eu desconhecia que tinha, o da invisibilidade.

Ou da minha surpresa ao ver que alguns executivos costumam ter dificuldade de se separar de seus travesseiros, levando-os embaixo do braço quando partem para suas reuniões em São Paulo.

Já vi um adolescente tentar abrir a porta da aeronave em pleno voo – eu sei que não há como ter sucesso na empreitada, mas não queira assistir à cena. Já passei pela desolação de ver todas as bagagens serem retiradas da esteira e a minha não chegar, me obrigando a ir para um hotel em Barcelona só com a roupa do corpo.

E nunca esqueci de quando eu estava aguardando a chamada de um voo justamente em Heathrow, quando um cavalheiro vagamente familiar sentou ao meu lado. Harrison Ford, apenas. Por que não foi ele que tentou sentar no meu colo é algo que a Justiça divina ainda tem que me explicar.

Bom, esses casos estariam no meu livro sobre aeroportos, caso eu tivesse escrito um. No de Alain de Botton, o que mais curti foi a parte em que ele fala sobre como nos sentimos ao ser revistados. Abrir a bagagem, descalçar os sapatos, tirar o cinto, passar pelo detector de metais, tudo isso gera em nós uma inexplicável sensação de culpa, por mais inocentes que sejamos.

Comigo, ao menos, se confirma. Se a averiguação é lenta, começo a suar frio e fico aguardando o momento em que encontrarão armas ou drogas nos meus pertences, e quando o meu passaporte é aberto na folha onde está minha foto, adoto minha melhor cara de terrorista e torço para que o policial não perceba que o documento é falso.

Porém, desprezando toda minha ansiedade, ele carimba e me deixa passar, sem reparar que aquela da foto não parece comigo. No fundo, o fascínio talvez seja este: quando viajamos, nunca parecemos muito conosco. Aeroportos nada mais são que embaixadas do nosso estrangeirismo latente.

Um lindo domingo pra vc. Uma gostosa semana


13 de novembro de 2010 | N° 16518
NILSON SOUZA


Parêntese

Acabou. E, se não acabou ainda, vai acabar logo, logo.

Depois de ler uma entrevista com o professor dinamarquês Thomas Pettitt, publicada pelo Globo, me convenci de que não devemos nos iludir em relação à sobrevivência da palavra impressa nos moldes em que a conhecemos atualmente.

Resumindo a tese do homem dos quatro tês: livros e jornais estão prestes a se tornar peças de museu. De acordo com sua teoria, estamos chegando ao fim do que ele batizou de Parêntese de Gutenberg – o período de cerca de 400 anos em que prevaleceu a imprensa (não apenas no sentido de jornalismo) como forma de comunicação, de divulgação de ideias e de preservação da história.

Antes de Gutenberg, ele lembra, a cultura era transmitida oralmente, por meio de canções, contação de histórias e encenações. Valia o som e o imediatismo. Com a invenção do tipo móvel, a verdade deslocou-se para o papel.

Tudo o que era impresso passou a ter valor – e assim permanecemos até hoje. Porém, o rádio, a TV e o cinema já passaram a privilegiar a oralidade. E agora, com as novas mídias, passamos a falar com os dedos. Tudo é tão imediato, que a escrita ficou muito mais próxima da fala. Logo, adverte o professor, todos os livros e jornais estarão digitalizados – e ingressaremos numa nova era, muito semelhante à que existia antes da invenção da imprensa. Daí o Parêntese de Gutenberg, o intervalo de tempo em que a palavra impressa teve o seu valor, talvez apenas um breve hiato na história da humanidade.

Vai mais longe a tese do dinamarquês. A era do livro também teria gerado uma visão de mundo que separa as coisas em categorias rígidas, segundo ele menos definidas antes de serem prensadas no papel. Pois agora, por conta da revolução digital, estaríamos voltando a um período de tolerância maior, de mais misturas e menos classificações.

Tudo porque a escrita era considerada mais verdadeira do que a fala, assim como uma encadernação de couro impõe mais respeito do que um manuscrito. Pois os e-mails fecharam este parêntese.

– E a verdade, onde fica? – perguntou o entrevistador. Fica exatamente como na Idade Média, quando as notícias chegavam aos lugares remotos por mensageiros e viajantes estrangeiros. As pessoas tinham que decidir em quem acreditar. E davam crédito a quem conquistava a fama de falar sempre a verdade. Ou seja: valia (e vai continuar valendo, se me permitem um último parêntese) a reputação do mensageiro.

Digite-se e publique-se.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010



10 de novembro de 2010 | N° 16515
MARTHA MEDEIROS


Agilidade não é a nossa praia

A morte do surfista Thiago Rufatto, que ficou preso numa rede de pesca em Capão da Canoa na semana passada, representa, além de uma tragédia pessoal para sua família e amigos, mais um exemplo da morosidade do Rio Grande do Sul. Ele não foi o primeiro, nem o segundo surfista a ser vítima da falta de sinalização: foi o 49º.

E, ainda assim, esses esportistas seguem contando apenas com placas fincadas na areia alertando sobre áreas reservadas para pesca, como se lá no meio do mar fosse possível visualizá-las e como se não houvesse correntes que nos deslocam dentro d’água sem a gente perceber.

Por que não há sinalização dentro do mar, através de boias? Provavelmente porque antes seria preciso fazer 400 reuniões, plebiscitos, pesquisas de opinião pública, orçamentos, consultas à Marinha, estudos sobre impacto ambiental e ainda ouvir o que dizem os astrólogos a respeito. Agilidade não é a nossa praia.

O novo Teatro da Ospa não ter sido construído até hoje, a ponto de desestimular o maestro Isaac Karabtchevsky a seguir dirigindo sua orquestra, é de envergonhar. O projeto de revitalização do cais do porto já deveria ter sido concluído há no mínimo 10 anos, mas parece que temos um fascínio patológico por maquetes e plantas baixas.

Basta que haja um projeto no papel para que pareça que está tudo andando. Somos os reis dos projetos: aeromóvel, ciclovias, revitalização da orla. Que beleza de metrópole poderíamos ser, e de “poderíamos ser” vamos vivendo.

Óbvio que a Redenção já deveria ter sido cercada para preservação de seus jardins e maior segurança da população, mas oh, que disparate, e nossa liberdade de ir e vir? Ninguém pensa um segundo antes de colocar grade na basculante do banheiro, mas quando se trata do patrimônio público, todo mundo vira bicho-grilo.

O Central Park, de Nova York, o Hyde Park, de Londres, e o Jardim de Luxemburgo, de Paris, só para citar três cartões-postais universais, são cercados e nem por isso perdem seu impacto de beleza e a integração com a população. Mas aqui tudo tem que ser debatido por pelo menos 20 anos até se chegar a um consenso. Eu também adoraria que para tudo existisse um consenso, não fosse isso um contrassenso. Não é possível agradar a todos, quem não sabe?

Totalitarismo é algo que ninguém deseja, mas firmeza é outra coisa. Pense nas decisões que são tomadas na sua casa, entre quatro paredes: quando cada um tem uma opinião diferente e a conversa se estende além do razoável, alguém precisa interromper o blá-blá-blá e agir, em vez de ficar esperando que os astros se alinhem no céu e provoquem um entendimento transcendental.

É uma atitude antipática? Que seja. Sempre haverá os do contra, e, se eles ficarem desgostosos com a situação, paciência. O que não se pode é passar a vida aguardando uma aprovação absoluta. Um pouco de audácia e rapidez incrementaria bastante o nosso tão alardeado orgulho gaúcho.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010



03 de novembro de 2010 | N° 16508
MARTHA MEDEIROS


Memória musical

Sem que ninguém tenha me pedido nada, quero endossar publicamente uma iniciativa de Zero Hora que merece atenção, não por ser promovida pelo jornal para o qual escrevo, mas pela sua utilidade na formação do ser humano. Ok, soa pretensioso, mas é disso que se trata mesmo, formação.

Falo da “Discoteca Básica”, composta por 25 CDs do que de melhor já foi produzido pela música popular brasileira nas últimas décadas. Quando vi a seleção de discos, me belisquei. Quase tudo tive em vinil, e por uma bobeira indesculpável, passei adiante. É a chance que tenho de resgatar momentos preciosos da minha cultura musical.

Quando as pessoas perguntam os livros que me inspiraram na adolescência, cito alguns autores, mas nunca deixo de salientar que a música me foi igualmente inspiradora. Não sei que espécie de infância eu teria se não fosse embalada pelo som dos quatro baianos geniais, mais Jorge Ben, Rita Lee, Chico Buarque, Elis Regina e tantos outros. Pois agora tenho a chance de trazê-los de volta pra casa.

Alguns discos dessa seleção foram como pai e mãe pra mim. Fruto Proibido, de Rita Lee, me fez identificar a ovelha negra que somos todos, em alguma etapa da vida. Acabou Chorare foi a trilha sonora de um namoro da época da faculdade com um fotógrafo que me deixou de herança o amor pelos Novos Baianos.

Secos & Molhados é o disco que fez eu descobrir que meus pais não eram tão conservadores assim, pois não se assustaram com os trejeitos do invertebrado Ney Matogrosso e me levaram pela mão até o Gigantinho, quando eu tinha 12 anos, para ver toda aquela transgressão de perto. Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, foi uma espécie de iniciação à ópera. Somos todos Iguais nesta Noite, de Ivan Lins, me educou para a celebração da vida.

O disco da Blitz me estimulou a ver o mundo com olhos mais divertidos. E o disco do Zé Ramalho me ensinou outro tipo de oração. Eles me fizeram ir além da cartilha dos bancos escolares.

Se eu pudesse completar a coleção, ainda haveria lugar para o disco Alucinação do Belchior, o primeiro disco da Gal, com Não Identificado, o disco do Toquinho e Vinicius de 1971, o primeiro da Angela Rô Rô com a imortal Amor, meu Grande Amor, o Fullgás da Marina, o Face a Face da Simone, o antológico disco de estreia das Frenéticas, o disco de 1970 do Tim Maia (Primavera e Azul da Cor do Mar), algum disco de Sá, Rodrix e Guarabira, os nossos Almôndegas, algum do início do Legião Urbana e, pomba, cadê o rei?

Roberto Carlos merecia entrar na lista com a trilha sonora do filme Em Ritmo de Aventura. Atenção, Zero Hora: há material suficiente para uma Discoteca Básica parte 2.

Hoje, os filhos já não ouvem música com os pais. Cada um fica no isolamento do seu quarto, baixando seus hits no computador, hipnóticos em seus fones de ouvidos. Não faltam bons nomes atuais, como Adriana Calcanhoto, Lenine e Zeca Baleiro, mas nada se compara ao assombro que caracterizou a MPB dos anos 70. Quem viveu lembra. Se não lembra, tem a chance agora.

Aproveite o dia. Uma linda quarta-feira pra vc

terça-feira, 2 de novembro de 2010



02 de novembro de 2010 | N° 16507
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Tão longe, tão perto

Eram um amigo e uma amiga, tão próximos quanto distantes. Haviam trabalhado uma vez num projeto que tinha certo parentesco com softwares, e como é impossível falar eternamente sobre softwares repartiram um verniz de segredos mútuos, e foi tudo.

Aí ambos tomaram seus rumos. Uma noite, na saída do teatro, trocaram palavras corteses. Ela estava belíssima e só. O papo foi-se alongando, pois chovia e os táxis eram raros. Havia perto um café e, num impulso, ele a convidou para um vinho. Discutiram a peça, dividiram capítulos recentes de suas biografias, recordaram conhecidos comuns. Na saída o homem disse:

“Sabe do que eu gostaria? Topar contigo mais seguido.”No dia seguinte recebeu um telefonema. Era ela:

“Me elogiaram muito esse filme do Guion. E se a gente fosse conferir?”

Não se limitaram a conferir. Escalaram num bar do shopping. Ele percebeu que os olhos dela estavam vermelhos.

“A história te comoveu tanto assim?”, perguntou. “Não, ando vivendo um período complicado.”

O homem a escutou atencioso, serviu-lhe uns palpites, que ela agradeceu observando:

“Sou mesmo uma boba sentimental.” Um mês depois, foi ele quem ligou:

“Ouvi comentarem que esse novo restaurante da Padre Chagas serve um risoto imperdível.”

“A balança vai brigar comigo”, riu ela.

O almoço se estendeu até três da tarde, mas a única briga de que trataram foi uma batalha que ele vinha travando com o seu chefe.

“Que fiz eu até hoje? Quem sou de verdade? Um executivo de certa competência. Onde foram parar meus sonhos?”

Ela tomou-lhe a mão, compreensiva e ternamente, deu-lhe uns conselhos que ele ouviu agradecido e volveram a separar-se.

Provavelmente teriam continuado amigos, próximos e distantes, um convocando o outro sempre que precisava de um ombro. Ora, ocorreu que o homem sofreu um acidente. Os médicos o consertaram, mas foi obrigado a amargar um mês sem poder abandonar o gesso.

Ela lhe surgiu com armas e bagagens e autonomeou-se sua enfermeira. Foram 30 dias em que se romperam as eclusas de confidências até então represadas. Já não eram crianças, e quando o declararam salvo ele falou:

“Por que você não fica?” Ela ficou. E já não mais distantes, senão que docemente próximos, perceberam que não há idade para o amor.

Reverencie aos que se foram. Lindo dia pra você.

sábado, 30 de outubro de 2010



31 de outubro de 2010 | N° 16505
MARTHA MEDEIROS


A última que morre

Sem querer ofender ninguém: a esperança ficou obsoleta

Atualmente, há tanta informação para digerir que não sobra espaço na cabeça para questionar ditados já consagrados. Então, seguimos repetindo, dia após dia, frases que nos parecem definitivas, como A esperança é a última que morre, sem nos darmos conta de que elas não são definitivas coisa nenhuma. Por que manter um estado de ilusão eterno? Em certas circunstâncias, é muito bom perder a esperança.

Esperança não transforma o mundo. Não muda a sua vida. Apenas oferece um breve conforto, faz de conta que as coisas se arranjarão sozinhas através do pensamento positivo. Mas uma coisa é confiar em bons prognósticos, mentalizar situações agradáveis, e outra bem diferente é ficar esperando milagres. Sem querer ofender ninguém: a esperança se tornou obsoleta.

Você tem esperança de quê? De um mundo melhor, de um país mais justo? Ainda? Ok, gostaríamos que as coisas fossem diferentes, mas a diferença só se efetiva por meio de ações e reações. Quando você tem esperança, tudo o que precisa fazer é ficar sentado aguardando. Já quando ela morre, acaba a morosidade. Você vira a página, troca de capítulo, vai batalhar por outra coisa. Alguém que cansou de esperar é sempre mais produtivo.

Dificilmente analisamos as desistências por um foco salutar. Elas podem ser o combustível para o início de outro projeto, de um desejo novo. Nem tudo nasceu para dar certo.

Algumas coisas são tortas por natureza, são boas uns 25%, e os outros 75% não tem pai-nosso que dê jeito. Ficar paralisado diante de algo que nunca vai mudar é estratégia de preguiçoso. Diante do que não muda, só há uma coisa a fazer: mudar a si mesmo, sacrificando as suas antigas e boas intenções.

Ter esperança de um mundo melhor é um sentimento megalômano. Desista de pensar no mundo, não seja tão ambicioso. Ele nunca vai ser muito melhor do que é, mas seu prédio pode ser, o seu local de trabalho pode ser, já que microcosmos não funcionam à base de esperança, e sim de realizações.

Não que eu proponha radicalizar. A gente pode ter um pouquinho de esperança, claro, desde que ela tenha um prazo de validade, não se transforme numa acomodação vitalícia. Tenha esperança até a página 15. Se a história não avança, não é preciso morrer decrépito segurando o mesmo livro na mão. Ele vai continuar chato, vai continuar engessando você.

O desejo é que deve ser o último a morrer. Ele, sim, merece o prestígio que a esperança, essa velha senhora, ainda pensa que tem.

Gostoso domingo de eleição pra você. Vote consciente. Feliz Dia das Bruxas né.


30 de outubro de 2010 | N° 16504
NILSON SOUZA


Catadores de milho

Minha professora de datilografia perdeu tempo comigo. Sim, venho de um tempo em que datilografar (pretérito pré-histórico do verbo digitar) era um diferencial competitivo no mercado de trabalho. Aprendi a escrever com os 10 dedos, sem olhar para o teclado, e achava que essa habilidade me faria um profissional diferenciado. Mesmo quando os computadores substituíram as máquinas de escrever, com o acréscimo de duas dezenas de teclas ao tradicional teclado alfanumérico, mantive a capacidade de transformar toques digitais em texto sem tirar os olhos da tela.

Mas agora o golpe tecnológico parece ser fatal, com a introdução em nossas vidas de aparelhos sensíveis ao toque na tela – todos esses que têm um “i” minúsculo na frente do nome. O iPad, que é o brinquedo da hora, permite chamar um teclado em sua tela plana, mas sem espaço para que as mãos pensem por conta própria. Vamos virar todos, novamente, catadores de milho. Outro dia fiquei observando uma colega escrever no seu novíssimo equipamento e percebi que ela usava apenas os indicadores, sem desviar o olhar da tela.

Percebi, então, que estamos todos nivelados. Claro que alguns jovens, que já nasceram no ambiente digital, terão mais facilidade e rapidez para encontrar o caminho certo, mas duvido que alguém volte a redigir um texto sem olhar para as próprias mãos.

Tem gente que resolve o cubo mágico com os olhos vendados, mas, para isso, a sensibilidade nos dedos é tão fundamental quanto guardar os movimentos corretos na memória. Mas temos dedos demais para digitar o teclado virtual projetado na tela plana.

O polegar e o indicador são suficientes, tanto para abrir e fechar ícones quanto para dedografar caracteres.

Dona Nilda, a professora de datilografia, me obrigava a escrever com as mãos cobertas. Foram tantas repetições do asdfg çlkjh, que acabei gravando esta referência para digitar qualquer texto com os olhos fechados. Lembro-me, ainda, de uma poesia que escrevi dezenas de vezes para exibir minha capacidade de produzir um texto sem acompanhar os dedos com os olhos.

O autor era um tal Osmar ou Vilmar, só sei que terminava em mar: “Maria, flor da açucena/ era uma companheirinha/ de escola que outrora eu tinha/ eu pequeno, ela pequena./ Quando com a mão pequenina,/ ela o seu nome escrevia,/ eu lhe falava, Maria/ em mar meu nome termina,/ em mar o teu principia./ Eis porém que veio um dia,/ que o mar afastar-nos veio,/ e eu parti por mundo alheio,/ sem nunca mais ver Maria”.

Pobre Osmar!

E hoje eu acrescentaria: eis porém que veio um dia/ a tal de tecnologia/ e acabou com a poesia/ do tempo da datilografia.

Um fim de semana gostoso e um lindo feriado para você. Aproveite esse finzinho de outubro. Novembro vem ai a largos passos