terça-feira, 31 de janeiro de 2012



31 de janeiro de 2012 | N° 16964
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Bem-vinda

    Foi quarta-passada, dia do meu aniversário, de manhã, na Osvaldo Aranha, eu indo para a Reitoria da UFRGS, de carro. Parado numa sinaleira, olho à toa para a calçada: grupo anódino de gente olhando vitrine. Fixo a atenção: são quatro pessoas, homem maduro e três mulheres.

Pai, mãe e filhas? Leem anúncios de apartamentos para alugar. Tem fotos ali. Olho de novo para cada um: o homem, o pai, é quem de fato lê tudo; a mulher, a mãe, olha para ele, interrogativa; uma das gurias, filha mais velha, acompanha o olhar do pai; a outra, mais jovem, abandona aquele assunto e se volta para a avenida. O olhar dessa guria é que é.

    Na minha fantasia, tratava-se ali de escolher um apartamento para alugar, porque a filha mais velha passou no vestibular, talvez na UFRGS, um curso ali perto. A família veio do Interior, ainda feliz com o resultado do esforço da filha; está passando uns dias na casa de uma tia, uma prima solícita, que ofereceu a casa para eles virem enquanto ela mesma está na praia. A família precisa de tempo para toda a mudança, que mal começou.

    Agora a filha maior vai morar na Capital, cidade grande, misteriosa, que eles conhecem assim de passagem, o pai umas vezes veio ver o Inter, a mãe quase morou num pensionato, as gurias têm pouca intimidade aqui. E a filha universitária vai partir para outros compromissos, viver outros ritmos, ver o que nunca viu, talvez ninguém da família próxima jamais tenha visto. Ela vem conquistar o mundo, que reside aqui, em Porto Alegre.

    E a irmã mais nova? O dia era do meu aniversário, logo eu estava com o coração mais disponível para os afetos, posso ter exagerado. Mas, putz, olha ela ali: a cara meio assustada, olhando para... Para o quê? Os carros, sim, as palmeiras, o ar, os prédios, a Redenção, as várias pistas, o tumulto que nem nos afeta mais e que a ela move por dentro e pulsa na garganta.

Ela olha, pensei eu, para a cidade, essa entidade invisível e onipresente. Ela olha e, ao contrário de nossas retinas cansadas, não enxerga apenas os elementos que interessam: ela se chapa com o conjunto, sem encontrar o fio daquela meada, excitada, temerosa, desafiada, apavorada, tudo bulindo os sentidos e os sentimentos.

    Eu pensei: “Bem-vinda”. A cidade tem de bom isso, guria: aqui tudo é de todos, ninguém é de ninguém. Entrega a tua história para a cidade, para ajudar a cidade a ser o que ela é; integra a tua vida nesse bololô, vai dar certo.

    Não parei o carro, claro. O sinal esverdeou e eu arranquei, o coração apertado. Guria, é o seguinte: a cidade é assim, ninguém vai te dizer direito o que tu queres e precisas saber, nem eu, que vi o teu olhar. Descobre tu.


31 de janeiro de 2012 | N° 16964
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A dama do elevador

    Ohall de entrada do enorme prédio comercial estava repleto de pessoas impacientes com a lentidão dos elevadores. Quando um deles baixou finalmente ao térreo, lotou em segundos. Uma senhora elegante, espremida contra o painel de comando, autonomeou-se ascensorista e perguntou os andares dos passageiros a bordo Comandava segura a viagem quando uma voz se ouviu ao fundo, irada:

    – Pó, tu não ouviu que eu ia descer no oitavo?

    O reclamante era um galalau decorado de tatuagens e piercings. Um cavalheiro de porte ainda mais avantajado dirigiu-se a ele:

    – Não viu que essa dama está nos prestando um favor? Da próxima vez, suba de escada.

    O tom foi vigoroso o bastante para que o rapagão se recolhesse à sua pós-moderna insignificância.

    Peguei no Centro uma lotação com destino à Rua Dona Laura. Mal transitáramos umas quadras, percebi que estava desapercebido. Por uma distração que acomete os escribas que têm a cabeça na lua, havia esquecido a carteira em casa. Levantei da poltrona, fui ao motorista e confessei-lhe minha absoluta prontidão. Ele sorriu e comunicou-me:

    – O senhor é meu convidado neste voo.

    Mal havia arrancado o carro, percebi que um dos pneus se achava tão vazio como a cabeça de algumas celebridades. Na véspera, eu participara de um jogo de vôlei, do qual desertei aos cinco minutos, lesionado. Não divisei nas redondezas sombra de um posto de gasolina ou de uma borracharia. Assim que avistou as bandagens que eu ostentava na mão direita, aproximou-se um vendedor ambulante.

    – Não há de ser nada, doutor – declarou.

    E com a presteza de um mecânico de pit stop trocou o artefato avariado e recusou a nota de 10 que lhe estendi.

    Comprei-lhe, em retribuição, um pente de plástico, coisa de centavos.

    Por que conto estas historinhas triviais? Porque constatei que há reservas infinitas de solidariedade em uma cidade que muitos definem de desumana. Nesta mui leal e valorosa vivem legiões de pessoas generosas, fraternais, prestativas.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012


LYA LUFT*

Compustura e Caldo de Galinha

Vejo no noticioso que estamos em último lugar quanto ao retorno,para cada cidadão, dos gigantescos impostos que pagamos mesmo num cafezinho. Em muitas coisas andamos lá na rabeira do mundo, mas parece que nosso ufanismo continua pulsante.

Vai daí, acompanho meio distraída a celeuma em torno de alguma cena tórrida numa das camas do Big Brother, programa a que assisti há anos, quando ele se iniciava, achando bobamente que aquilo não iria durar.

Depois, vi fragmento e ouvi comentários, o suficiente para notar que a vulgaridade se perpetua e torna sem que se perceba: fica natural. Há quem vá me achar antiquada, alienada, severa.

Não imagino que a gente deva usar saia comprida, manga idem, feito freiras de antigamente. Detesto a antiga hipocrisia em assuntos sexuais. Naturalidade e liberdade são positivas, mas a gente não precisa exagerar... Precisamos, já grandinhas, usar saia tão curta que a maioria fica tentando puxar um centímetro mais para baixo, num desconforto idiota?

Precisamos, homens e mulheres, fingir que sexo é só o que importa, ou em idade avançada expor peles murchas em profundíssimos decotes como se o tempo nos tivesse ignorado? Um pouco de recato é questão de higiene, dia uma amiga minha, jovem e sensata. Mas haja coragem para nadar contra a correnteza, em quase todos os assuntos e modismos deste nosso tempo.

Aí vem o tal programa BBB, que virou manchete, no qual um casal (nada original, pois a isso eu mesma assisti nos primeiros tempos) faz ou finge fazer sexo embaixo da coberta sabendo que é filmado.

Nada novo, isso já se viu ali com alguns parceiros a mais na cama, ou no sofá espiando, pois, se é o olhar voraz do BB que tudo espreita, por que não? Alguém ousou reclamar, mas parece que a maioria achou tudo bobagem, todos estavam gostando, o povo espectador aplaudindo, por que não, por que não?

Afinal, não somos tropicais, liberados, avançados, modernos, embora digam que somos Terceiro Mundo – ou exatamente porque somos? Não sei se progresso se mede pela vulgaridade. Não sei se avanço se calcula conforme a deselegância, e se ascender socialmente implica baixar as calças, levantar a saia, tirar o que sobrou do sutiã. Tenho dúvidas.

Tenho insegurança a respeito do que representam essas drásticas mudanças, do antigo primeiro tímido beijo na boca cheio de encantamento e mistério, e esse ficar atual, muitas vezes ainda na infância, no qual vale quase tudo e meninas engravidam sem saber – e sem saber de quem – nesses falsamente inocentes joguinhos eróticos em salões de festa, quando a luz diminui, ou dentro de piscinas sem adulto por perto, ma com bebida.

Escrevi há tempos dois artigos dizendo que família deveria ser careta: cada dia me convenço mais de que toda a sociedade deveria ser um pouquinho mais careta. Com jovens menos pressionados a enveredar precocemente por uma sexualidade que ainda não é a deles nem psíquicas nem biologicamente.

Com adultos que não precisam inventar uma modernidade fictícia, mas ser amorosos e responsáveis – mais naturalmente alegres, não tendo de se expor de corpo e alma, feito, diz minha amiga Lygia Fagundes Telles, “carne em gancho de açougue”.

 Essa aceleração no escrachado, no pretensamente liberado, essa ânsia de ser uma celebridade, de ser notado (não necessariamente amado), essa exigência de ter imediatamente um emprego bom, fácil, muito bem pago, e todas as sensações que o mundo (da fantasia) pode oferecer, depressa, logo, agora, não têm volta.

Pois a construção de uma vida, uma profissão, uma pessoa, importo pouco diante da onde de caricaturas de mulheres, homens ou gays que invade nossas telinhas e respinga no nosso colo. E o mundo gira para a frente. Tudo está virando um grande cenário de reality show?

Que reality, aliás? Pois não me parece que essa seja a realidade concreta. E é isso que alimenta minha esperança de que, apesar de tudo, se afirme e espalhe a velha mania do bom gosto e da compostura, que, como caldo de galinha, nunca fez mal a ninguém.

* Escritora - Tradutora. Colunista da VEJA - Fonte: Revista VEJA impressa, ed. 2254, nº 5 - 01 de fevereiro de 2012.

domingo, 29 de janeiro de 2012


Danuza Leão

Juventude, velhice

Com algum cuidado com a vaidade e a sorte de ter uma boa saúde, os anos passam e a vida (quase) não muda

Vi na Folha, terça-feira última, um belo caderno especial com o nome "Sem medo de envelhecer", e como costumo me meter em coisas para as quais não fui chamada, vou dar minha opinião.

Só que, sinceramente, não conheço bem o assunto. Vivo da mesma maneira que vivi a vida inteira; quase nada mudou. Deixei de fazer alguma coisa que fazia antes? Poucas, que não me fazem falta (a natureza é sábia), mas sei que fiquei mais impaciente com as pessoas. De resto, tudo igual, praticamente.

Tenho observado que, dependendo do país, a velhice é encarada de maneira diferente. Na Europa, por exemplo, não se refere a uma pessoa dizendo que ela é velha -nem jovem; essas palavras não são usadas quando se fala sobre alguém, seja homem, seja mulher. Ao falar, eles podem dizer eventualmente "deve ter em volta de 50" (ou 60, ou 70), e só.

O Brasil é difícil para quem não é mais uma gatinha -com os homens é diferente, é claro-, e a cada ano surge uma "safra" nova, palavra, aliás, bem deselegante; quando um novo verão se anuncia, algumas, que conseguiram alguma notoriedade no anterior, pela beleza, pelo frescor da juventude, deixam de ser famosas. Só permanecem na crista da onda as que têm um algo mais.

Com algum cuidado com a vaidade e a sorte de ter uma boa saúde, os anos passam e a vida (quase) não muda.

Todos podem -e devem- continuar trabalhando, indo à praia, viajando, dançando, comendo, bebendo, namorando, e muitos são mais felizes do que na plena juventude.

Porque sabem o que querem, não perdem tempo com o que não interessa; as mulheres, como já não têm tantas ilusões, sabem que podem ser felizes sem a necessidade de um amor, um companheiro, um marido; um homem, enfim.

Se encontrarem, ótimo, mas quando olham para trás e lembram do quanto sofreram quando se acharam apaixonadas -um homem era necessário para que uma mulher pudesse existir-, devem pensar: "ah, quanto tempo perdido".

Hoje, homens e mulheres numa faixa de idade mais alta podem fazer tudo o que querem, sem precisar nem mesmo de um amigo/a, porque são mais seguros, coisa que ninguém é quando jovem. A não ser quando desistem e passam a viver não suas próprias vidas, mas as dos filhos, e depois, as dos netos. Aí é a aposentadoria da vida, uma escolha pessoal.

A cultura brasileira é cruel no quesito idade. Dizer que uma pessoa é -ou parece- jovem é um elogio, e chamar de velho é uma maneira de insultar, geralmente usada quando não encontram outra coisa para dizer àqueles de quem não gostam, com quem não concordam.

A rigor, o assunto nem deveria existir -a não ser, é claro, para ajudar os que não podem viver com independência, precisando de cuidados especiais, o que pode acontecer com gente de qualquer idade, gente que teve a má sorte de ter problemas de saúde.

Nessa minha última viagem, percebi que em Paris, por exemplo, ninguém é apontado como gay; que seja um homem (ou mulher) que tem relações amorosas com pessoas do mesmo sexo, disso não se fala -tanto como não se fala se alguém é jovem ou não. As pessoas são como são, e ninguém perde tempo "carimbando" ninguém; simplesmente não tem importância.

Mas aqui, ai da mulher que é ou foi bonita, quando os anos vão chegando. Essas não são perdoadas, e a idade que têm é assunto de discussão, se têm dois anos a mais ou a menos.

Por isso, resolvi aumentar a minha, e se me perguntam, digo que acabei de completar 91 anos; assim, corro o risco de ouvir um "mas que incrível, não parece", o que é sempre bom de ouvir.

E como estou saindo de férias, mando um beijo e até março.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 28 de janeiro de 2012




29 de janeiro de 2012 | N° 16962

MARTHA MEDEIROS


Fakebook
 

    O Facebook tem rendido muitas risadas entre mim e minhas amigas. Temos um grupo que se reúne com certa frequência (da maneira antiga: ao vivo), e volta e meia surge o assunto. Claro que todas estão na rede social, com exceção de duas. Duas mulheres de Neanderthal, entre as quais, eu.


Antes não estávamos no Facebook porque não nos fazia a menor falta, masagora não estamos porque virou questão de honra. Tem sido uma diversão resistir à insistência de quem alega que estamos “fora do mundo”.
 

    A Danuza Leão afirma, em seu último livro, que é um mico a gente tornar público que não entende nada de rede social. É mais moderno dizer que está por dentro, mesmo que não saiba ligar um computador. Ai, Danuza, tarde demais. Já pendurei na parede meu diploma de pré-histórica. Tenho mestrado e doutorado em alienação virtual.
 

    O que não me impede de estar no Face. Não, não estou me contradizendo, tenho uma meia-dúzia de perfis na rede. Se você procurar, vai encontrar gente que extrai frases das minhas crônicas e faz uma gentil colaboração, melhorando- as, e também gente que se faz passar por mim, trocando ideias com seus adicionados como se fosse eu.
 

A generosidade desse pessoal não tem limite. Antigamente, isso seria considerado crime, agora está enquadrado como “homenagem”. Eu agradeço pra quem?
 

    “É uma terrível calamidade, para uma época, não saber mais a quem estimar.” Essa frase eu não tirei da internet, e sim de O Eterno Marido, de Dostoievski, livro escrito em 1869, quando, por incrível que pareça, eu ainda não era nascida. E você, está seguro de que seus estimados são realmente quem dizem ser?
 

    O Facebook é uma ferramenta dinâmica, agregadora, mobilizadora e tornou o e-mail obsoleto. Pena que possua algumas contraindicações, como, por exemplo, fazer com que não sejamos mais donos nem da nossa memória. No último encontro com as amigas, fomos às gargalhadas por causa de uma discussão a respeito de uma moça chamada (vou trocar o nome dela para manter sua privacidade, espero que ela não me processe por isso) Zezé Velasques.


Segundo minhas amigas que estão no Face, Zezé diz ter sido minha querida amiga do colégio. Eu nunca fui colega de nenhuma Zezé Velasques, esse nome nunca constou da minha agenda de telefones, nunca colei uma prova dessa menina, tenho certeza de que nunca disse nem oi para qualquer Zezé Velasques, mas há quem diga que estou delirando, que claro que fui colega dela no Anchieta, onde, segundo também dizem, estudei a vida toda, mesmo que no meu histórico escolar conste que dos 6 aos 17 anos eu tenha sido aluna do Bom Conselho.
 

Em quem acreditar? Não olhe pra mim, há muito que deixei de apitar na minha própria história.
 

 Aqui, de fora do mundo, meu beijo pra Zezé e pra todos que ainda conseguem lembrar dos amigos sem a ajuda de aparelhos.


Sociedades poligâmicas são mais violentas, diz pesquisa

Segundo pesquisadores, a adoção da monogamia diminui competição entre solteiros e reduz as taxas de estupros, sequestros e homicídios

Cena de 'Big Love', extinta minissérie da HBO sobre um clã polígamo. Para cientistas canadenses, esse tipo de relação acirra tensões e gera violência (Reprodução/Nova Temporada)


Como seria o mundo se a poligamia fosse a regra? Segundo um estudo feito por pesquisadores da Universidade da Columbia Britânica, no Canadá, o mundo seria mais violento, com altas taxas de estupros e homicídios.

A pesquisa, que acaba de ser publicada na revista Philosophical Transactions of the Royal Society, afirma que a monogamia se tornou a regra em quase todas as culturas do planeta justamente por evitar problemas que se tornariam crônicos em um sistema em que as pessoas têm mais de um cônjuge.

POLIGAMIA

É a união reprodutiva entre mais de dois indivíduos de uma mesma espécie. Entre os humanos, já foi a regra. O Velho Testamento faz várias referências ao assunto. O personagem Jacó, por exemplo, teve duas esposas e 12 filhos, que teriam dado origem às doze tribos de Israel.

Ainda é praticada no Oriente Médio e em partes da África e da Ásia, além dos Estados Unidos, onde seitas fundamentalistas, não reconhecidas pela organização principal da religião mórmon, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, permitem o casamento poligâmico.

Regulamentada pelo Alcorão, é relativamente comum no mundo islâmico, apesar de estar perdendo adesão. O profeta Maomé chegou a ter 16 esposas, mas hoje o permitido são, no máximo, quatro. Foi proibida no Nepal em 1963, na Índia, parcialmente, em 1955, na China em 1953 e, no Japão, em 1880. Nunca foi permitida no Brasil.

A maioria das civilizações já permitiu alguma forma de poligamia em determinado momento de sua história. Invariavelmente, a prática beneficiava (e ainda beneficia, onde ela é vigente) os sujeitos mais poderosos, que podem sustentar mais esposas. Esses fatos intrigaram os pesquisadores, que acabaram concluindo que o bem estar social motivou a institucionalização da relação monogâmica.

"Nosso objetivo foi entender a razão de o casamento monogâmico ter se tornado a regra na maioria das nações desenvolvidas nos últimos séculos, já que historicamente a maioria das culturas praticou a poligamia", afirmou Joseph Henrich, professor de antropologia cultural.

A razão, descobriu o estudo, é a estabilidade social que a monogamia traz, um contraponto às altas taxas de crimes como estupros, sequestros, roubos e homicídios das sociedades poligâmicas. Para os pesquisadores, grupos de homens solteiros são os responsáveis por crimes desse tipo.

 "A escassez de mulheres disponíveis aumenta a competição entre os solteiros", afirma Henrich. Como o número de homens e mulheres é parecido, mesmo com uma pequena maioria de mulheres, se alguns homens casam com várias mulheres, outros ficam sem nenhuma.

O maior ganho evolutivo da monogamia, conforme a pesquisa, é garantir uma distribuição igualitária de casamentos. Com a diminuição no foco da competição, as famílias podem gastar mais tempo fazendo planos, produzindo riqueza e investindo na educação dos filhos. Além disso, a menor competição aproxima a idade média de maridos e esposas, o que faz com que a mulher ganhe poder de decisão no casamento.


28 de janeiro de 2012 | N° 16961
CLÁUDIA LAITANO


Invisibilidade pública

    “Se está no elevador, a pessoa te vê e não entra. Se está no refeitório, não senta na mesma mesa. Não chama pelo nome, não pede por favor.”

    Parece África do Sul durante o apartheid, mas é Brasil, 2012. O depoimento é de uma mulher que trabalha na limpeza de um hospital na capital paulista. O simples gesto de colocar o uniforme, conta ela, já faz com que comece a ser vista de forma diferente – ou melhor, não vista.

Uma pesquisa divulgada esta semana pelo Dieese sobre trabalhadores de limpeza da cidade de São Paulo ouviu 1.851 coletores de lixo, varredores, auxiliares de limpeza e jardineiros.

De acordo com o levantamento, um em cada quatro entrevistados diz já ter sofrido discriminação relativa ao trabalho. A maior queixa: serem tratados como cidadãos de segunda categoria, indignos da cortesia mínima de um bom-dia, de um obrigado, de um por favor.

O estudo ratifica o que o psicólogo Fernando Braga da Costa já havia demonstrado no livro Homens Invisíveis, publicado em 2004, sobre sua experiência convivendo com os garis da USP. No livro, o psicólogo desenvolve a tese da “invisibilidade pública” de profissionais como faxineiros, ascensoristas, empacotadores, garis.

    A invisibilidade dos trabalhadores da limpeza é talvez apenas a mais evidente em um país culturalmente habituado a naturalizar a desigualdade de tratamento – ajustado, em muitos casos, para operar conforme a classe social do interlocutor.

Ignorar o porteiro ou tratar a faxineira como se fosse um eletrodoméstico parece tão natural quanto rir da piada sem graça do chefe ou atender um cliente conforme a roupa que ele está usando.

É uma espécie de lei não escrita da selva social brasileira: para cima tudo, para baixo justiça. Se não dá para dizer que somos os únicos do mundo a agir assim, é preciso reconhecer que, em muitos países, o trabalho é respeitado como um valor em si, independentemente do tamanho do contracheque ou do status social da função.

    Homens e mulheres invisíveis do Brasil dependem de ônibus, fazem fila no posto de saúde, estudam em escolas em que os professores fazem greve. Quando viram notícia – porque desabou a casa onde moravam ou invadiram o terreno onde construíram suas casas –, parecem personagens de uma tragédia que se desenrola em um país distante, onde a gente não vai nem a passeio.

A literatura, que poderia dar rosto e voz a esses personagens, tem se ocupado cada vez menos deles. São poucos os livros que nos levam a observar a paisagem brasileira desde uma outra perspectiva: do lado de dentro do ônibus lotado, do lado de cima da maca estacionada no corredor do hospital, do lado de quem nem sempre é brindado com a gentileza de um bom-dia quando está vestindo um uniforme ou fazendo um trabalho braçal.

    Para quem sente falta deste ponto de vista, sugiro a leitura de Passageiro do Fim do Dia, do escritor Rubens Figueiredo. Um romance obrigatório, narrado desde a perspectiva da maioria invisível de um país que só enxerga o que quer ver.


28 de janeiro de 2012 | N° 16961
NILSON SOUZA


Sr. Ciático

    Depois de seis décadas de cambalhotas, futebol, corridas e má postura, fui apresentado para um certo senhor Ciático, do qual só tinha ouvido falar superficialmente nas aulas de anatomia do meu antigo curso de Educação Física ou pelo relato de terceiros. Todos falavam muito mal dele.

Diziam que era terrível, que pegava as pessoas pela coluna e as torturava da forma mais cruel e impiedosa. Confesso que nunca dei a devida atenção a esses relatos, pois raramente consideramos a dor alheia na sua devida dimensão.

    Mas o indesejado das gentes foi chegando sorrateiro e instalou-se entre a L5 e a S1, que na linguagem do esqueleto significa quinta vértebra lombar e primeiro segmento da região do sacro – aquele rabinho que herdamos dos nosso ancestrais símios.

Na verdade, o ciático sempre esteve no seu lugar, cumprindo a sua nobre função de levar as ordens de movimento para as articulações e músculos dos membros inferiores. O que despertou sua fúria foi a hérnia de disco situada no ponto referido.

    Bom, chega de lero-lero pseudocientífico. O que quero dizer é que dói muito, uma dor incessante, terrível, desconcertante, inimaginável para quem nunca a sentiu. Parece que não vai terminar nunca. Passei vários dias sem caminhar, sem estender a perna, sem ao menos ser capaz de vestir as meias sozinho.

Para quem sempre foi metido a atleta, não poderia haver maior desespero. Meu desconforto só não foi maior porque sempre encontrei apoio afetivo e profissional.

    Está sendo um doloroso aprendizado. Uma vez fiquei preso no elevador. Durou apenas alguns minutos, mas a sensação de prisão e sufocamento quase me deixou em pânico. Desde então, sempre que falta luz, corro até o elevador para ver se ninguém ficou preso. Agora, tenho certeza, passarei a prestar mais atenção nas dores alheias.

    Pois é justamente por isso que resolvi compartilhar esta experiência pessoal com os meus leitores. Sejam vocês jovens ou maduros, atletas ou sedentários, prestem atenção no conselho da minha fisioterapeuta:

    – Sente sobre os ísquios!

    Significa sentar ereto, com o peso sobre aqueles ossinhos mais salientes da região glútea – e não escarrapachados sobre o sacro, com a coluna torta, como costumamos fazer no sofá de casa.

    Se você não fizer isso, o sr. Ciático te pega. E ele é pior que o bicho-papão.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012



25 de janeiro de 2012 | N° 16958
MARTHA MEDEIROS


Britadeiras

    O filme Precisamos Falar sobre Kevin não concorrerá ao Oscar, tampouco a excelente atriz Tilda Swinton, mas uma cena já entrou para a categoria das inesquecíveis – ao menos para mim.

    Antes, informações: o filme é a adaptação do livro homônimo de Lionel Shriver. Quem o leu não esquece o soco no estômago. É sobre um garoto perverso que termina por promover uma chacina na escola.

A história é narrada pela mãe, que conta sobre o susto que levou com o nascimento daquele bebê que ela não identificava como uma bênção dos céus, sobre sua enorme dificuldade em contornar conflitos e sua descoberta de que formar uma família feliz não é tão simples como dizem.

É a desconstrução do mito da competência materna. Orientações bem-intencionadas podem não adiantar, nosso amor pode não ser bem transmitido, nossas atitudes podem não servir de exemplo. Existe algo tão influente quanto tudo isso: nossa dor interna. Ela contamina, ela comunica, ela desgraçadamente dá o tom das relações. O livro, tanto quanto o filme, é violento pela brutalidade dos sentimentos que ficam trancafiados.

    A cena que me pareceu a mais simbólica e angustiante do filme mostra essa mãe com o filho ainda bebê – uma criança que não parava de chorar um minuto sequer. Não é incomum pais entrarem num surto de estresse com choro de crianças.

Recentemente, um americano jogou o filho de uma lancha por ele não parar de chorar, assim como outros adultos já levaram suas crianças a óbito por total descontrole emocional. No filme, a mãe não chega a esse radicalismo, ainda que esteja sempre a um segundo de explodir.

    Então. Ela passeia por uma rua movimentada da cidade com o bebê no carrinho. Ele chora. Vem chorando há dias. A mãe não dorme, não vive, apenas escuta o choro ininterrupto daquele bebê. Até que ela passa por trabalhadores que estão fazendo reparos em bueiros no meio da rua. Trabalho pesado, barulhento, infernal. Ela sai da calçada com o carrinho e chega bem perto do trabalhador que está perfurando o asfalto com uma britadeira. Bem perto mesmo.

Estaciona o carrinho ao lado da britadeira que faz um barulho torturante. Close em seu rosto: por um instante, ela tem o conforto de trocar o choro do filho por outro ruído que, aos seus ouvidos, soa como um solo de flauta.

O breve enquadramento daquela mulher com o carrinho no meio da rua e o homem trabalhando com a britadeira a seu lado é um mix de desespero e poesia como raramente vi no cinema.

    Quantas pessoas não desejariam quebrar uma perna se isso desviasse a atenção de uma dor de amor insuportável? Não é que a mãe de Kevin não aguentasse mais o barulho do choro: ela não aguentava mais o barulho da sua culpa por ser incapaz de cumprir o papel de mãe amorosa e abnegada daquele pequeno demônio de fraldas. O som da britadeira, ao menos, não tinha nada a ver com ela.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012



24 de janeiro de 2012 | N° 16957
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O mestre dos mestres

    Que dizer de um homem que foi contista, novelista, romancista, cronista, dramaturgo, jornalista, poeta, crítico e ensaísta, algumas vezes com genialidade, mas sempre com talento? Estou falando do maior escritor da literatura brasileira, Joaquim Maria Machado de Assis.

Filho de operários, ele próprio epilético, mulato e gago, criou-se no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Coroinha da igreja da Lampadosa, vendedor de doces, sem nenhum acesso a cursos regulares, aprendeu francês com o forneiro de uma confeiteira francesa.

    Autodidata, aos 16 anos publica sua primeira poesia, prelúdio de uma obra portentosa, que o levaria, na vida civil, à diretoria-geral de um dos ministérios da nação, e na literária a presidente da Academia Brasileira de Letras.

Muito mais do que isso, paralelamente, construiria uma carreira literária de que alguns pontos altos foram Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Só esses dois livros lhe garantiriam lugar de relevo em qualquer antologia universal do romance.

    Contam-me agora que o terceiro volume de sua correspondência pessoal acaba de ser publicado. É um marco para as letras nacionais. Vemos ali a intimidade de Machado de Assis dialogando com seus amigos, dentre os quais Joaquim Nabuco, seu grande admirador, Mário de Alencar, que poderia ser seu filho, ou Salvador de Mendonça.

    Nessas páginas, escritas sem nenhuma pretensão literária, espelham-se o perfil e a alma do mestre dos mestres. O criador de Capitu, esse mistério de olhos de ressaca, não é conhecido lá fora, onde fica a civilização. Pouco a pouco vão surgindo no entanto traduções e interpretações, nos Estados Unidos e na Europa, que o colocam entre os grandes da literatura do Novo Mundo.

    Pior para o Velho Mundo, onde Machado poderia ombrear-se com um Stendhal. Algum dia chegará sua vez de ser reconhecido e aclamado. Até lá, contentemo-nos ao menos com a mensagem íntima de suas cartas.


24 de janeiro de 2012 | N° 16957
CLÁUDIO MORENO


Homens e mulheres (12)

    26 – O amigo infiel – Era costume, para a mulher grega, depor pequenas oferendas no altar da deusa de sua preferência. Os templos ficavam repletos de coisinhas típicas do quotidiano das devotas – tiaras, pequenas estatuetas, fitas bordadas, bonecas da infância –, mas o grande escolhido de todos os tempos sempre foi o espelho, objeto que os antigos associavam exclusivamente ao mundo feminino.

Um observador superficial poderia dizer que se tratava de uma simples questão de vaidade; poetas e filósofos, contudo, perceberam que o espelho exercia um misterioso fascínio sobre a mulher porque servia – se é que ainda não serve – para nos lembrar da fugacidade da beleza e da juventude, como ficou imortalizado pelo lamento de Laís, uma das mais famosas cortesãs da Antiguidade, ao depor seu precioso espelhinho no altar de Afrodite: “Eu, Laís, que tive a Grécia a meus pés e por quem tantos homens suspiravam, dedico a Afrodite, que nunca deixará de ser bela, o espelho da minha juventude.

Ele agora só me faz sofrer, e dobrado: já não posso me ver como eu era, nem quero me ver como sou”.

    27 – O amor conjugal – A história, relatada por Valério Máximo em seu Fatos e Ditos Memoráveis, tem um quê de ingênuo, mas é inesquecível: contam que um dia os criados de Tibério Graco, tribuno romano, descobriram duas serpentes escondidas no quarto de seu amo. Intrigado, Tibério foi consultar um especialista em sinais divinos para saber qual era o sentido deste estranho achado. A resposta não podia ser mais terrível: ele deveria matar uma das serpentes e libertar a outra, mas qualquer escolha que fizesse traria uma trágica consequência.

Se libertasse a fêmea, ele próprio morreria; se libertasse o macho, a morte viria em seguida para Cornélia, sua esposa. Ora, Tibério, ao que dizem, amava profundamente sua mulher e não hesitou em assumir o risco, mandando libertar a fêmea e eliminar o macho. Coincidência ou não, pouco tempo depois ele veio a falecer; muitos autores criticaram a superstição do tribuno, mas nenhum deixou de reconhecer que ele, se era tolo e inocente bastante para dar ouvidos àqueles impostores e charlatães, era um homem de rara coragem e um marido como poucos.

    28 – A mulher de Periandro – Ter o que vestir sempre foi uma fonte de ansiedade para as damas do passado, até mesmo aquelas que já não habitavam este mundo. Que o diga Periandro, tirano de Corinto: embora fosse viúvo, costumava se aconselhar sobre assuntos muito importantes com o espírito da falecida.

Quando fez a primeira consulta, contudo, ela reclamou que estava nua, negando-se a responder enquanto não tivesse algo decente no corpo. O tirano então organizou um grande festival em honra de Hera e fez todas as mulheres ricas despirem suas roupas, que foram incineradas numa grande pira em nome da esposa – ao que parece, resolvendo definitivamente o problema, pois a partir desse dia o espírito da mulher passou a ser extremamente colaborativo.


24 de janeiro de 2012 | N° 16957
FABRÍCIO CARPINEJAR


A maldição da garoupa

    Eu ria do meu amigo Manoel. Avarento que só vendo. Sua tática era carregar uma nota de cem reais como desculpa para não pagar nada pela frente.

    Não é que ele não tivesse dinheiro, o coitadinho não contava na hora com notas menores.

    Diante do estacionamento, ele me dizia: “Paga para mim que não tenho troco”. Na banca de revistas, “paga para mim que não tenho troco”. Depois de uma cerveja, “paga para mim que não tenho troco”.

    A garoupa salvava seu zoológico. Eu gastava tudo.

    Salafrário! Sua companhia me multava como um Ibama. Sua companhia me convertia num traficante de animais. Meu Pantanal financeiro morria a seu lado, à míngua de água. Dos meus bolsos, ouvia os últimos suspiros da tartaruga-de-pente, da garça, da arara, do mico-leão-dourado e da onça-pintada. Não restava uma pena, uma escama, para reconstituir a história de minha generosidade.

    Ele terminava o dia sem gastar um vintém. Lustrava o porquinho comigo, preservava a poupança. E ainda dissimulava a mesquinhez com simpatia filantrópica. Em sua concepção, facilitava a vida dos comerciantes ao não tirar o dinheiro miúdo da caixa registradora. Apelidei Manoel ironicamente de Lei do Troco, aquela do ônibus.

    Apesar da minha raiva justificada, havia uma verdade sutil por detrás de sua atitude.

    Manoel compreendeu a maldição da nota de cem reais. O fardo da nota de cem reais.

    Todas as vezes em que levo a mais alta efígie da República, não posso usar.

    É trocar a nota que a grana se vai num minuto. Some. Desaparece. Escorre para o ralo.

    É magia negra. Algo inexplicável. Mais demorado gastar uma nota de R$ 20 do que uma de R$ 100. Os filhos farejam quando acabamos de desmembrar a quantia, as dívidas são informadas, as contas nos acham na rua.

    Existem gnomos credores dentro da carteira, que devoram o cardume filhote da garoupa, deve ser isso.

    Como um valor pode desaparecer momentaneamente? Vejo-me como vítima de um truque de prestidigitação, de um golpe de ilusionismo do Banco Central.

    Você evita torrar os cem reais, faz solenidade, economiza a folhinha durante sete dias.

    É comprar com ela uma cartela de aspirina que perde o controle da situação. Sobram R$ 98, quase a mesma coisa, quase. Mas o montante evapora em menos de duas horas.

    Há uma imunidade parlamentar na cédula azul, que permite que ela resista mais. Quando vira outro bicho, desaparece.

    Tanto que Eike Batista se recusa a carregar notas de cem reais. O homem mais rico do Brasil não é bobo de arriscar sua fortuna numa superstição.

domingo, 22 de janeiro de 2012


Danuza Leão

Paris 2012

As lojas eram as mais lindas do mundo, eu tinha vontade de comprar tudo, de comer tudo, de ver e olhar tudo

Paris, com mais um A, com menos um A, não importa -não para mim. Mas a cidade está diferente; é claro que tudo muda, mas Paris mudar é um desconsolo.

Todas as vezes que vim a Paris -e não foram poucas- foi um encantamento. As lojas eram as mais lindas do mundo, eu tinha vontade de comprar tudo, de comer tudo, de ver e olhar tudo. Paris mudou? Mudou, sim. Não a cidade, é claro, mas o clima.

Foi difícil me dar conta do que estava acontecendo. Quis conservar meus sonhos, não perder minhas ilusões, mas tive que escolher entre viver em um mundo idealizado ou botar o pé na real.

Nem foi exatamente uma escolha; afinal, as coisas estavam ali na minha frente, e eu só não as veria se não quisesse -e eu vi.

Eu poderia perfeitamente ter feito algumas compras, o que faz parte de qualquer viagem (minha); mas não fiz, porque não tive vontade de ter nada do que as lojas ofereciam. Nada, e o pouquíssimo que comprei, era tudo made in China (aliás, algumas poucas lojas estão colocando na vitrine um cartaz informando que toda sua mercadoria é de fabricação francesa).

E voltando à gastronomia, não tive uma decepção, tive várias. Meu hotel é em St. Germain, e sempre foi uma dificuldade escolher onde ir jantar, tantas (e tão boas) eram as opções. Pois até agora, só as ostras não me decepcionaram. Os restaurantes estão servindo comida congelada, põem em cima um pouco de molho e umas folhinhas verdes para dar um ar de ter sido feita naquele dia, et voilà.

Ainda existem, é claro, bons bistrots -mas é preciso procurar bem-, e eu reencontrei o meu, que se chama Vins et Terroirs, na rue St. André des Arts. Se você for lá, entre e diga que é meu amigo (mesmo não sendo) e será tratado como um rei. É barato, a cozinha, típica de bistrô, você vai ser superbem acolhido e comer bem.

Ontem à noite, depois do jantar, sentei num café, num lugar bem turístico, para tomar um chá. Era uma rua de pedestres muito animada, pois em volta existem outros cafés e alguns restaurantes. Como a temperatura neste inverno está entre 10º e 16º C, fiquei numa mesa do lado de fora.

Enquanto estava lá, vi um mendigo tentando roubar outro mendigo que dormia em cima de um colchão na porta de um prédio (o que dormia foi salvo por seu cachorro, que começou a latir alto e o outro teve que sair correndo). Mendigo roubando mendigo? Em Paris? Detalhe: o mendigo em questão usava um celular -todos usam.

Meu hotel era ao lado, numa ruazinha calma, e fiquei com medo de voltar para casa.

Mas não era em Paris que as mulheres podiam usar joias, sair à noite sem problema de violência? Era. E passear na avenida mais bonita do mundo, a Champs Elysées, está tão perigoso quanto na avenida Atlântica, no Rio.

As duas ruas conhecidas como as mais chiques da cidade, talvez do mundo -a av. Montaigne e o Faubourg St. Honoré-, estão uma desolação, e a moda francesa, sei lá.

É a crise? Não sei, mas as duas únicas lojas razoavelmente interessantes são a do costureiro belga Dries Van Noten e a do americano Ralph Lauren; dá para acreditar?

Tenho o hábito -e a sorte- de poder viajar todo fim de cada ano, e meu destino sempre foi Paris; apesar de tudo, com um A a mais ou a menos, e apesar da globalização, Paris será sempre Paris, e sempre haverá cafés como os de antes, bons bistrôs - mas cuidado com os lugares muito turísticos;

em viagem sempre acontecem erros, a gente procura, erra mas também acerta, e deve se lembrar sempre de Humphrey Bogart se despedindo de Ingrid Bergman, no final de "Casablanca", quando ele disse a ela "we will always have Paris".

Nós também sempre teremos Paris. Será?

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 21 de janeiro de 2012



22 de janeiro de 2012 | N° 16955
MARTHA MEDEIROS


Não canse quem te quer bem

Uns mais, outros menos, todos passam dos limites na arte de encher os tubos

    Foi durante o programa Saia Justa que a atriz Camila Morgado, discutindo sobre a chatice dos outros (e a nossa própria), lançou a frase: Não canse quem te quer bem. Diz ela que ouviu isso em algum lugar, mas enquanto não consegue lembrar a fonte, dou a ela a posse provisória desse achado.

    Não canse quem te quer bem. Ah, se conseguíssemos manter sob controle nosso ímpeto de apoquentar. Mas não. Uns mais, outros menos, todos passam do limite na arte de encher os tubos. Ou contando uma história que não acaba nunca, ou pior: contando uma história que não acaba nunca cujos protagonistas ninguém ouviu falar. Deveria ser crime inafiançável ficar contando longos causos sobre gente que não conhecemos e por quem não temos o menor interesse. Se for história de doença, então, cadeira elétrica.

    Não canse quem te quer bem. Evite repetir sempre a mesma queixa. Desabafar com amigos, ok. Pedir conselho, ok também, é uma demonstração de carinho e confiança. Agora, ficar anos alugando os ouvidos alheios com as mesmas reclamações, dá licença. Troque o disco. Seus amigos gostam tanto de você, merecem saber que você é capaz de diversificar suas lamúrias.

    Não canse quem te quer bem. Garçons foram treinados para te querer bem. Então não peça para trocar todos os ingredientes do risoto que você solicitou – escolha uma pizza e fim.

    Seu namorado te quer muito bem. Não o obrigue a esperar pelos 20 vestidos que você vai experimentar antes de sair – pense antes no que vai usar. E discutir a relação, só uma vez por ano, se não houver outra saída.

    Sua namorada também te quer muito bem. Não a amole pedindo para ela posar para 297 fotos no fim de semana em Gramado. Todo mundo já sabe como é Gramado. Tirem duas, como lembrança, e aproveitem o resto do tempo.

    Não canse quem te quer bem. Não peça dinheiro emprestado pra quem vai ficar constrangido em negar. Não exija uma dedicatória especial só porque você é parente do autor do livro. E não exagere ao mostrar fotografias. Se o local que você visitou é realmente incrível, mostre três, quatro no máximo. Na verdade, fotografia a gente só mostra pra mãe e para aqueles que também aparecem na foto.

    Não canse quem te quer bem. Não faça seus filhos demonstrarem dotes artísticos (cantar, dançar, tocar violão) na frente das visitas. Por amor a eles e pelas visitas.

    Implicâncias quase sempre são demonstrações de afeto. Você não implica com quem te esnoba, apenas com quem possui laços fraternos. Se um amigo é barrigudo, será sobre a barriga dele que faremos piada.

Se temos uma amiga que sempre chega atrasada, o atraso dela será brindado com sarcasmo. Se nosso filho é cabeludo, “quando é que tu vai cortar esse cabelo, guri?” será a pergunta que faremos de segunda a domingo. Implicar é uma maneira de confirmar a intimidade. Mas os íntimos poderiam se elogiar, pra variar.

    Não canse quem te quer bem. Se não consegue resistir a dar uma chateada, seja mala com pessoas que não te conhecem. Só esses poderão se afastar, cortar o assunto, te dar um chega pra lá. Quem te quer bem vai te ouvir até o fim e ainda vai fazer de conta que está se divertindo. Coitado. Prive-o desse infortúnio. Ele não tem culpa de gostar de você.



21 de janeiro de 2012 | N° 16954
NILSON SOUZA


Aplausos para a honestidade

    Compartilhei nos últimos dias com meu círculo de amigos um desses vídeos de internet que merecem ser rotulados de imperdíveis. Trata-se de uma propaganda da Coca-Cola, feita na véspera do clássico do futebol português Benfica x Sporting – um jogo que despertava grande interesse do público.

Pois exatamente no Estádio da Luz, onde estavam sendo vendidos os ingressos, os autores da ideia do comercial deixaram uma carteira no chão, com a identidade de um sócio do Sporting e um bilhete para a concorrida decisão.

O objetivo era testar a reação das pessoas que encontrassem a carteira do rival – e que estavam sendo filmadas por câmeras ocultas. Pois 95% dos torcedores que depararam com o achado dirigiram-se ao balcão de recepção para entregar não só a carteira, mas também o ingresso.

Todos os que devolveram foram saudados por funcionários da empresa patrocinadora e premiados com uma entrada para o jogo. O desfecho é emocionante: quando o filme da pegadinha passa no telão do estádio, 60 mil pessoas aplaudem de pé (http://www.youtube.com/watch?v=xxFbpmDMD0E).

    Os aplausos para a honestidade, que também são um reconhecimento à inteligência de quem bolou o comercial, suscitam imediata comparação com a nossa realidade. Muitas das pessoas que viram o vídeo fizeram o mesmo comentário:

    – Se fosse aqui, dava o contrário. Apenas uns 5% devolveriam.

    Fiquei pensando nestas observações. Será que somos mesmo um povo com pouco apreço por este valor tão caro ou andamos com a nossa autoestima abalada? A verdade é que os relatos de falcatruas costumam ganhar mais destaque do que histórias de integridade, até mesmo porque pessoas honestas não andam alardeando suas virtudes. Apesar dos comentários negativos, todos os conhecidos gostaram do vídeo.

    – É de arrepiar! – ouvi de um.

    Ora, se a honestidade nos encanta, então temos, sim, vocação para o exercício deste princípio ético que está na base da civilização. Se passarmos da teoria à prática, não são poucos os brasileiros que devolvem troco errado, respeitam sinalização de trânsito e vagas de deficientes, jamais levam para casa alguma coisa que não lhes pertence.

Não tenho percentuais, mas conheço muita gente que faz a coisa certa mesmo quando ninguém está observando. Este registro é a minha maneira de bater palmas para eles.

Carol Nogueira - Daniel, participante do BBB12 - Daniel, participante do BBB12 (Divulgação/TV Globo/Frederico Rozário)

Mãe do modelo Daniel acusa a Globo de racismo

Para Maria Aparecida Echaniz, todo BBB tem movimento sob o edredon e nunca ninguém foi expulso. Agente do modelo coloca a culpa em Monique: "Ela estava dando mole para ele e agora não quer admitir que fez sexo na casa"

A expulsão do modelo Daniel Echaniz do Big Brother Brasil 12, sob a suspeita de ter abusado de Monique, sua colega de confinamento, após uma bebedeira na primeira festa, começa a ganhar contornos de batalha judicial. Embora a direção da TV Globo tenha tomado o cuidado de evitar a palavra “estupro” – justificou a expulsão por comportamento inadequado às regras do programa -, a mãe do modelo, Maria Aparecida Echaniz, considerou injusta a exclusão e atribuiu o desfecho do caso a racismo.

“Movimentação debaixo de edredom sempre aconteceu, em todos os BBBs. Por que só ele foi expulso desta vez?”, questionou Maria Aparecida. “Ele é negro, então começa a formar o quebra-cabeça, não tem muito o que explicar: isso é discriminação. Se ele foi expulso pelo que aconteceu debaixo do edredom, então os dois deveriam ter sido excluídos, porque ele não fez nada sozinho.”

Maria Aparecida diz que ainda não conversou com o filho e que ninguém da Rede Globo ou da direção do BBB a procurou para dar explicações. “Talvez não queiram me abalar, não sabem como vou receber a notícia, mas o fato é que já estou informada, pela TV e pela imprensa, que começou a me ligar”, afirmou.

Embora ainda não tenha tomado decisões sobre o que fazer, ela não descarta uma ação na Justiça. “Não vou tomar nenhuma decisão agora, vou esperar a cabeça acalmar, descansar, porque não durmo desde ontem”, explicou. “Depois é preciso pensar no que fazer, porque nada nesse mundo é de graça.”

Maria Aparecida diz ter certeza de que o filho não estuprou Monique. “Ele é alegre, nunca deu trabalho na vida, sempre foi estudioso e verdadeiro, nunca falou de ninguém pelas costas”, afirma. “Não é por ser meu filho, não, mas ele é uma pessoa muito correta.”

Daniel Echaniz, após a eliminação, foi encaminhado para um hotel, onde está à disposição do delegado que investiga a suspeita de estupro. A mãe diz que ele também prestaria depoimento, mas não sabe dizer se já foi ouvido. Maria Aparecida diz estar assustada com a proporção que o caso tomou. "Eu e meus outros filhos estamos mal, não tenho nem dormido direito”, afirmou. “Imagino que a mãe da Monique esteja passando pela mesma coisa, ninguém gosta de ter um filho exposto dessa forma.”

“Deu mole” – Quem também saiu em defesa de Daniel na tarde desta terça foi seu agente, Sérgio Mattos. Dono da agência 40 Graus e conhecido como um dos maiores caça-talentos do Rio, ele não acredita em estupro e diz que Daniel "é do bem". "Ele sempre foi um ótimo profissional, fez bons trabalhos com o Mario Testino, fotografou com Isabeli Fontana, Raica...

Todo mundo elogia ele, nunca teve nenhum problema de comportamento”, explica. “Ele estava bem na carreira internacional, morava em Milão, mas voltou ao Brasil para morar em São Paulo e estudar teatro."

Para explicar as cenas sob o edredom, Mattos colocou a culpa em Monique. “A menina estava dando mole para ele”, afirmou. “O problema é que ela não tem coragem de assumir que fez sexo dentro da casa.”

Mattos já havia sido execrado no Twitter, ainda no domingo, por lançar opiniões semelhantes para defender seu cliente em um tuíte em que perguntava: “Monique geme dormindo?". Hoje, ele tentou justificar o tuíte. “Escrevi o que vi no vídeo: ela mexe o braço e geme”, afirmou.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012



18 de janeiro de 2012 | N° 16951
MARTHA MEDEIROS


Arrogância não ensina

    Quando soube da polêmica causada pela redação da prova de vestibular da UFRGS deste ano, corri para ler seu enunciado. Estava com uma leve suspeita de que o barulho era desproporcional ao fato. Que nada, os vestibulandos têm todo o direito de chiar. Foi provocação.

    A vida hoje não é melhor ou pior do que em outros tempos, é diferente. Décadas atrás, aprendiam-se latim e francês nas escolas, e a leitura de clássicos não amedrontava. Na ausência de TV e internet, a introspecção favorecia uma vida intelectual mais rica. A comunicação – fator de evolução de todas as sociedades – se dava em bases mais sólidas.

    Porém, muita coisa mudou. A tecnologia decretou novos hábitos e costumes. Mexeu com o vocabulário e com os sistemas de interatividade. A educação perdeu espaço para a economia. A população quadriplicou. O mundo virou uma aldeia global. A informação passou a chegar a qualquer canto, mas nem assim a alienação foi exterminada, ao contrário, se propagou. O mundo hoje é mais individualista, mais brega e mais burro. Generalizando, é.

    Os idealizadores da prova de redação da UFRGS sabem disso, e essa consciência faz deles pessoas mais cultas e inteligentes do que a maioria. Bravo. Cultura é um valor inquestionável, e pobre do país que desprestigia o conhecimento. Porém, não houve bom senso na elaboração da prova, e bom senso também é uma forma de inteligência.

    Pouquíssimos jovens – aliás, raros adultos também – sabem quem é Adamastor, se uma figura mitológica ou se o dono do botequim da esquina. E não é imprescindível que saibam se querem se tornar bons médicos, bons engenheiros, bons jornalistas.

Aos 17 e 18 anos, faixa etária de quem pleiteia uma vaga na faculdade, o importante é saber escrever corretamente, desenvolver um raciocínio lógico, não se perder em abstrações, ter firmeza de caráter, conhecer o significado da palavra ética, ter um projeto de vida que vá muito além da ganância e... ops, me excedi.

Vamos ficar apenas com “saber escrever corretamente” e “desenvolver um raciocínio lógico” – as outras exigências eles terão que demonstrar para a vida, não para uma banca acadêmica de avaliadores.

    Indo direto ao ponto: o enunciado da redação foi pedante. Poderiam ter solicitado o desenvolvimento do mesmo tema – o papel do idioma na formação da identidade de um país – sem fazer “buuuu” para essa garotada que é chegada a cenas de terror, sim, mas no cinema. Qual o motivo de nausear estudantes que, pela situação competitiva em que se encontram, já estão suficientemente nervosos? Com que propósito, senão arrogância?

    O ensino precisa melhorar muito no Brasil. Exigir mais dos alunos. Se adaptar às novas ferramentas. Formar cidadãos mais preparados. Valorizar a História, o português, investir nos alicerces que sustentam nossa evolução. Ninguém discute: estamos retrocedendo. Mas que não se queira avançar na marra, através da humilhação.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012



17 de janeiro de 2012 | N° 16950
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A freira e o conde

    Havia na cidade de Trier, em recuados tempos, cinco famílias que se orgulhavam de seus brasões. Quatro eram dotadas não só de títulos de nobreza, como apreciáveis bens de fortuna. A quinta se resumia a um derradeiro conde, que, embora pudesse traçar sua árvore genealógica até a época de Carlos Magno, era inteiramente desprovido de metal sonante.

    Chamava-se Roderico e mantinha juntos corpo e alma graças a uns últimos servos fiéis, que cultivavam as terras restantes de seu arruinado palácio.

    Sucedeu no entanto que Roderico enfermou-se de invencível paixão por uma mulher proibida. Sóror Kathleen tenha sido aprisionada num mosteiro por seu severo pai, pelas razões de ser impenitente leitora de obras profanas e recusar meia dúzia de ricos pretendentes. Ora, em certa ocasião de reforma no mosteiro, as freiras foram obrigadas a assistir a missa na catedral. Foi onde Roderico a descobriu, caindo de amores por ela.

    Engenhou um modo de atraí-la. Informado de sua perigosa queda pelos livros, começou a postar-se no adro da Sé, mergulhado em grossos volumes, que constavam no índex da Santa Madre. Kathleen a princípio fitou-o dissimulada, logo com curiosidade. Ao fim de um mês já não escondia seu aberto interesse.

    Roderico optou por uma silenciosa estratégia. Instruiu seu valete a entregar em surdina a Kathleen uma brevíssima mensagem: “O esplendor das termas é magnífico na penumbra da madrugada”.

    A partir dali o conde e a freira passaram a se encontrar, por volta da uma da matina, nas ruínas romanas. Não se sabe se debateram sobre os censuráveis filósofos gregos ou os versos de Ovídio. Parece razoável porém supor que se entregaram a dulcíssimos diálogos de entrega e posse, indo um pouco além da mera teoria.

    Fugiram num amanhecer de dezembro. Kathleen despachou seu zeloso pai ao paraíso.

    Dizem que hoje é venerada em Trier como a precursora das feministas.

sábado, 14 de janeiro de 2012



15 de janeiro de 2012 | N° 16948
MARTHA MEDEIROS


 Vinte segundos de insanidade: por que não

   Fui assistir a Compramos um Zoológico nem tanto pelo casal protagonista, Matt Damon e Scarlett Johansson, e sim porque gosto muito do trabalho do diretor Cameron Crowe e sabia que ao menos a trilha sonora estaria garantida, nisso ele é craque. O filme não tem a pegada dos trabalhos anteriores dele, mas não foi perda de tempo.

É um filme terno, leve, bem família, ao estilo Walt Disney, com todos os elementos que caracterizam esse tipo de produção: órfãos, bichos, romance, uma garotinha que é um encanto e a confortadora previsibilidade protegendo contra qualquer susto.

    Além da trilha sonora, que realmente não desapontou, o filme vale pela bela cena final epor uma pequena frase interrogativa que se destaca no roteiro. Mas, antes, a história do filme: um homem na faixa dos 30-40 anos fica viúvo e resolve dar uma mexida na rotina.

Ao buscar uma nova casa, acaba adquirindo uma residência abandonada de 18 hectares que abriga um zoológico prestes a ser desativado caso o novo dono da propriedade não invista pesadamente no negócio. Você tem ideia de como se administra um zoológico? Matt Damon também não, e os filhos dele, muito menos. Por que alguém se disponibilizaria para esse fracasso anunciado?

    Ao ser questionado sobre a roubada em que se meteu, o personagem de Damon não encontra uma resposta plausível. Só lhe resta devolver a pergunta com outra pergunta: por que não?

    É um filme sobre possibilidades nunca antes cogitadas. É sempre mais confortável transitar em terreno conhecido, mas que transformação advém da comodidade? Nenhuma.

No filme, o pai ensina para o filho adolescente: há um momento na vida – ou até mais de um – em que é preciso reunir 20 segundos de coragem, sem pensar nasconsequências. Bastam 20 segundos para se declarar a alguém sem nenhuma segurança de reciprocidade, ou 20 segundos para dizer a um corretor: fico com essa casa estropiada. Vinte segundos de ousadia, por que não?

    Perguntar-se “por que não?” me parece estimulante para come- Vinte segundos de insanidade: çar um novo ano. Exigem tanta explicação para nossas escolhas, tantas teorias e argumentações que justifiquem nossas atitudes, que se torna libertador devolver aos nossos inquisidores um “por que não?”.

Qual é o problema de se aventurar?Mesmo os ponderados – dos quais sou representante de turma – reconhecemque chega uma hora em que o convite para arriscar merece ser atendido. O pior que pode acontecer é tudo dar errado. Pior em termos. Dar errado não é tão ruim diante alternativa de nunca ter tentado.

    Eu não compraria um zoológico nem sob a mira de umrifle automático, mas a história aconteceu de verdade e, bem, o resto o filme conta. Se você prefere um cinema mais adulto e palpitante, assista ao ótimo Tudo pelo Poder, que mostra por que os idealismos são tão frágeis nos dias de hoje, mas se o objetivo for diversão, comoção e uma pitada de incentivo para se viver de uma forma menos burocrática, Compramos um Zoológico, por que não?

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012



11 de janeiro de 2012 | N° 16944
MARTHA MEDEIROS


Dias de superfície

    Quando era adolescente, passava as férias de verão em Torres ou, na melhor das hipóteses, em alguma praia de Santa Catarina. Até que soube de uma amiga que viajaria para Morro de São Paulo, uma ilha no litoral da Bahia. Nunca tinha escutado falar do lugar.

Segundo ela, era um reduto de hippies, com difícil acesso, sem pavimentação, sem carros e sem luz elétrica. A energia vinha de um gerador a diesel que funcionava até as 22h (a luz elétrica chegou em 1986, e o telefone em 1988). Eu ouvia sobre esse paraíso pitoresco comovida com o desprendimento da minha amiga, mas, por dentro, pensava: nem morta.

    Pois passei esse fim de ano adivinhe onde? Pois é. Já estendi minha canga em praias as mais diversas, mas poucas me impressionaram tanto como as de Morro de São Paulo. O mar verde esmeralda, a vegetação nativa, as fazendas onde se plantavam cocos, piaçava e dendê, a fortaleza e o farol que protegeram a ilha contra invasões no século 17, segue tudo lá, porém agora com luz elétrica e infraestrutura.

Carro ainda não entra, e não faz a menor falta. O sistema de transporte interno (dois ou três jipes inveterados, charretes e os próprios pés) dá conta do recado.

    São cinco as praias principais, batizadas sem nenhum arroubo de criatividade: chamam-se Primeira Praia, Segunda Praia, Terceira Praia e Quarta Praia. A quinta escapou da simplificação e chama-se Praia do Encanto, um fim de mundo lindo e ermo, que faz você se perguntar: será que morri e fui pro céu? Nenhuma alma à vista. Ideal para quem está sendo procurado pela polícia.

    Quem gosta de agito, luaus, balada, deve se hospedar na Primeira ou na Segunda. Os indecisos, na Terceira. Os que querem descanso de fato, com silêncio, tranquilidade, visual imaculado e apenas um ou dois botequinhos com mesas na areia vendendo lagosta como se fosse siri, vão para a Quarta, a eleita desta colunista.

    Mas o que mais me chamou atenção nesse oásis foram as marés. Em Morro, nessa época do ano, o movimento das marés se dá com uma rapidez mágica – ou eu andei tomando muita caipirinha.

Por exemplo: você senta dentro do mar com água pela cintura, curtindo os peixes coloridos que praticamente vêm comer na sua mão, e em poucos minutos está sentada na areia úmida feito uma criança, só falta o balde e a pazinha para começar a construir seu castelo. O mar se recolhe como se pressagiasse a chegada de um tsunami.

    Lembrei de uma outra amiga que reclamava de pessoas que não tinham proa oceânica e viviam com água pela canela – uma metáfora poética para identificar aqueles que nasceram para a superfície, e não para mergulhar nas profundezas. Morro de São Paulo a desapontaria.

É preciso andar muitos metros mar adentro para encontrar algum tipo de profundeza. As piscinas naturais da Quarta Praia são rasas, e no raso ficam também nossos problemas. Um lugar onde não se corre o risco de pensar demais, de ir fundo em coisa alguma. Paz e amor, bebê. A herança dos hippies a maré nunca levou.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012



10 de janeiro de 2012 | N° 16943
CLÁUDIO MORENO


Isso nunca vai mudar

    Um dos temas mais explorados da cultura ocidental sempre foi a fragilidade do homem diante da implacável passagem do tempo. Não são poucas as histórias que nos obrigam a enxergar esta incômoda mas simples verdade: nada existe para sempre – nem pessoas, nem impérios, nem mesmo as montanhas de puro granito.

Cedo ou tarde, a gente se dá conta disso, e a literatura e a filosofia se encarregam de descrever as mil maneiras que existem de conviver com esta ideia.

    Um exemplo famosíssimo foram as lágrimas de Xerxes, que Heródoto imortalizou numa passagem de suas Histórias. Quando os persas se preparavam para invadir a Grécia pela segunda vez, foram se concentrar diante do estreito do Helesponto (hoje, Dardanelos), última barreira a separá-los da Europa.

Ali, conforme instruções, haviam construído um trono de mármore branco no topo de uma colina, de onde o grande Xerxes ia inspecionar suas tropas e dar a ordem definitiva de avançar.

Daquele ponto elevado, que permitia descortinar mar e terra ao mesmo tempo, a vista era impressionante: as águas do estreito estavam coalhadas de navios persas, enquanto, em terra, as incontáveis formações de soldados e cavaleiros cobriam cada palmo da praia e da planície.

Então Xerxes, que assistia ao desfile cheio de orgulho por seu próprio poder, subitamente irrompeu num choro incontrolável. Quando um velho conselheiro indagou o que havia, ele respondeu, em lágrimas, que acabava de lhe ocorrer que nem ele, nem qualquer daqueles homens – quase meio milhão! – estariam vivos passados cem anos...

    Melhor ainda é a história recolhida por Borges: o rei Davi pediu a um ourives que criasse um anel que o lembrasse de não se deixar dominar pela soberba nos momentos de júbilo, nem se abater nos momentos de tristeza.

    E como vou fazer isso?

    – Tu deverás descobrir. Para isso és um artífice.

    Ao sair do palácio, o velho, que não sabia como poderia satisfazer o soberano, trazia o semblante tão angustiado que um jovem veio perguntar que mal o estava afligindo. Ao saber do que se tratava, o rapaz, sem hesitar, aconselhou o velho a fazer um anel de ouro com a inscrição “Isso também passará” – e assim fez o ourives. O jovem, dizem, era o próprio Salomão, filho de Davi, que assombraria o mundo com sua sabedoria.

    Suas palavras parecem muito mais adequadas para resumir nossa humana condição do que o triste lamento de Xerxes: queiramos ou não, tudo passará, e não somos donos nem mestres de nosso destino para controlar o eterno vaivém entre a alegria e a tristeza, entre o infortúnio e o bem-estar. Salomão, ao que parece, tinha entendido que essa passagem constante entre o que foi e o que vai ser é, simplesmente, o que a gente costuma chamar de “vida”.


10 de janeiro de 2012 | N° 16943
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Uma injeção de otimismo

    De vez em quando o país recebe uma injeção de otimismo. Agora foi o anúncio de que somos a sexta economia do mundo, no conceito do PIB, superior à da Inglaterra.

    Até 2015, segundo as projeções mais recentes do FMI, devemos ultrapassar a França. Isso não é nenhum milagre. Moeda forte, inflação baixa e disciplina fiscal concorrem para sobressairmos numa época em que a Europa vive uma crise de estagnação.

    Hoje, conta a Veja desta semana, são os europeus e os americanos que buscam atrair a ajuda financeira do Brasil.

    Isso não significa que superamos todos os nossos desafios. É também a revista, que fez uma pesquisa sobre como o Brasil é visto em 18 outras nações, que pondera que serão necessárias décadas até que o país alcançar um padrão de vida similar ao das sociedades desenvolvidas.

    Se o crescimento de hoje deixa o Brasil mais atraente aos investidores internacionais, se instauramos um regime de responsabilidade fiscal, ainda nos custará sangue, suor e lágrimas para superar as imensas desigualdades sociais.

    Basta percorrer a periferia de uma grande cidade para constatar a enormidade de problemas que desafiam os governantes e, antes deles, a própria sociedade.

    O que vemos são amontoados de subabitações, órfãos de educação, saúde, transporte, segurança. O que constatamos são o abandono, a angústia e a desesperança.

    Mesmo nas cidades mais ricas o quadro é o mesmo. Miséria, analfabetismo, doença e fome. Os programas do governo federal, como o Bolsa-Família, apesar de bem intencionados, não conseguem enfrentar de todo reptos gigantescos.

    Hoje os brasileiros aparecem, lembra a revista, entre os maiores consumidores mundiais de carros, computadores e telefones celulares. Isso não significa no entanto que o país tenha-se transformado em uma nação desenvolvida.

    Fazemos parte desse incerto território que hoje merece o nome de países emergentes.

    Dizem que o Brasil terá o padrão de nações europeias dentro de 10 ou 20 anos.

    O objetivo é desejável e os novos números do PIB, animadores.

    Mas precisamos especialmente de uma consciência de responsabilidade social que elimine ou reduza diferenças, tornando-nos um país que deixe a humilhante posição de octogésimo-quarto colocado no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano.

domingo, 8 de janeiro de 2012


Danuza Leão

Paris

Quem tem o paladar mais apurado percebe que alguma coisa está errada, mas não sabe o quê

Coisas muito estranhas estão acontecendo em Paris, no terreno da gastronomia.

Os restaurantes que frequento não são os mais chiques, mais estrelados, mais caros; são bistrôs simples, normais, onde sempre comi muito bem -até porque em qualquer café em Paris uma omelete costuma ser deliciosa, e uma entrecôte, perfeita, já que a gastronomia é parte importante da cultura do país.

Não procuro comidas complicadas e modernas: prefiro as mais tradicionais, não sou uma expert, mas sei perfeitamente se o que estou comendo está bom ou não.

Cheguei e fui logo procurar um dos restaurantes de que mais gosto, já pensando em pedir aquele prato de que mais gosto.

Primeira decepção: o menu havia mudado, os pratos eram outros -na mudança de estação eles trocam, mas não era o caso. Ok, isso acontece, mas o que comi não estava bom; o cozinheiro mudou, pensei, acontece.

No dia seguinte, fui a um café que costumo frequentar, um café simples, para comer uma coisa simples, tipo ovos mexidos com presunto. Nem consultei o menu, fui logo pedindo, e tive uma surpresa: eles não tinham ovos de nenhum jeito, e me foi apresentado um menu -novo.

Para não complicar, pedi um steak tartare, e me serviram um montinho de carne moída, com uma espécie de bolo de batata saído do microondas; em separado, sal, pimenta do reino e um vidro de mostarda, apenas. Não deu. Coisas parecidas aconteceram em mais três ou quatro lugares, e achei tudo tão estranho, que fui pesquisar.

Pergunta daqui, pergunta dali, soube do que está acontecendo em parte dos restaurantes de Paris. Muitos deles aderiram à comida prêt-à-manger (pronta para comer).

A coisa começa lá atrás: como os encargos sociais na França são muito altos, é normal, num restaurante tipo simples, um único garçom se encarregar do serviço de 30 pessoas: ele anota cada pedido (dois pratos por pessoa), se a carne é bem ou mal passada, o tipo de vinho etc.

Mas um chef -o cozinheiro- custa caro, e ainda tem os ajudantes etc. Resultado: existem atualmente, em torno de Paris, indústrias que se ocupam em facilitar a vida dos donos dos restaurantes.

É assim: o dono da indústria e o restaurateur, juntos, elaboram o menu, eliminando tudo o que precise ser feito na hora.

As porções são confeccionadas, colocadas em embalagens a vácuo, e às 5h da manhã o caminhão faz a entrega, que vai diretamente para o freezer. O dono do restaurante economiza no salário do chef, elimina as perdas, pois os pratos podem permanecer congelados por vários dias, e fica todo mundo feliz; quase todo mundo, aliás.

Os clientes que têm o paladar mais apurado percebem que alguma coisa está errada, mas não sabem bem o quê, e as coisas ficam por isso mesmo.

Isso acontece sobretudo nos pontos mais turísticos, como em St. Germain, meu bairro do coração. Mas um amigo me contou que foi ao l'Ami Louis, pediu um foie gras e achou que fosse sorvete.

O problema é grave, já que a gastronomia, na França, é coisa séria. Mesmo com a chegada da nouvelle cuisine, dos novos chefs, dos laboratórios na Espanha, a cozinha francesa tradicional sempre permaneceu no alto do pedestal, como uma das joias da coroa.

Ok, o mundo mudou, vamos admitir: e em muitas coisas, para pior. Vou passar o resto das minhas férias em Paris buscando restaurantes onde se come bem, de acordo com as velhas tradições; e se você está planejando sua viagem, fique atento. Evite restaurantes com longos cardápios, pois é aí que mora o perigo.

E se o prato que você pediu estiver com cara e gosto de comida de avião, marque no seu caderninho para não voltar lá nunca mais.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 7 de janeiro de 2012




08 de janeiro de 2012 | N° 16940
MARTHA MEDEIROS


Esquecimento e memória

Outro dia li um ensaio interessante sobre a arte de esquecer. Dizia que a memória até pode ajudar a conservar nossa história, mas que o esquecimento é fundamental para a regeneração da vida, que só esquecendo o passado podemos nos dedicar a planejar o futuro, algo assim.

É uma tese controversa. Avanços históricos, sociais e tecnológicos estão intimamente ligados ao conhecimento do que já se fez antes. Já nas questões pessoais, um pouquinho de esquecimento pode, realmente, ajudar a desatar nós e a seguir em frente, mas isso em se tratando de pessoas que possuam mesmo um futuro.

Para pessoas mais idosas, não pode haver velhice pior do que aquela em que se está mergulhado no breu.

    Inúmeras doenças degenerativas corroem a memória, deixando a pessoa enredada no presente instante. Ela esquece o que comeu no almoço, esquece com quem estava conversando há meia hora e sobre o quê. Menos mal que, mesmo com esse esquecimento de fatos imediatos, consegue produzir flashbacks, lembrar da infância, de acontecimentos remotos. Mas se a memória for inteirinha para o brejo, de que adiantou ter vivido?

    Não consigo imaginar chegar lá adiante, velhinha, depois de ter atravessado tantos conflitos, tantos amores, cometido tantos erros e tantos acertos, e não poder comemorá-los, todos.

O que justifica uma vida não são nossas boas intenções, nossas ideias jogadas ao vento, nossos quases: vida é a coisa realizada. O que se fez e o que se sentiu. Se elas forem esquecidas, esvaziam-se nossos 80 anos, nossos 90 ou cem anos. Qualquer longevidade passará a valer um segundo.

    Quero olhar para as fotos e me reconhecer no sentido mais amplo, enxergar o que eu sentia naquele momento do clique, dizer “parece que foi ontem” sem sofrimento. Quero lembrar de sabores, de sorrisos, de gestos, esses flashes que vêm e povoam a estrada atrás de nós. Quero inclusive lembrar dos arrependimentos e das dores, que vistos de longe parecerão menores, e essenciais. Quero rir muito do meu passado. Rir muito de mim, me recordando de trás pra frente.

    Porque se não for assim, nossa vida terá valido para os outros, os que nos lembram, mas não terá valido para nós mesmos. Seremos uns desmemoriados sem alicerces, vagando num presente ilusório, desaparecendo a cada minuto que passa.

    O esquecimento é um anestésico que não me tenta. Se temos que morrer um dia (que jeito), que seja abraçados às nossas recordações. A integridade de uma vida está em seu reconhecimento, mesmo que se reconheça, junto às boas lembranças, a proximidade do fim. É o preço. Pior é morrer com a bênção de não se dar conta da morte iminente, mas com o destino cruel de não poder avaliar, através da memória, se valeu ou não a pena.





07 de janeiro de 2012 | N° 16939

NILSON SOUZA



Heróis invisíveis



    Somos um povo carente de heróis. Por isso, rotulamos de semideuses nossos ídolos esportivos, nossos artistas mais talentosos e até mesmo figuras caricatas que, por algum motivo, alcançaram projeção. O heroísmo, na sua origem, caracteriza-se por ser um ato moralmente justificável, mas este aspecto nem sempre é levado em conta na avaliação popular. Na maioria das vezes, o que conta é a visibilidade.



    O primeiro herói de 2012 foi um pedreiro de Belo Horizonte que encarou duas vezes a fúria da enchente na capital mineira para tirar pessoas presas em carros arrastados pela água. Neste caso, o homem mereceu a louvação, pois mostrou coragem e determinação para salvar a vida de pessoas desconhecidas.



Ainda assim, só recebeu reconhecimento porque alguém filmou o seu ato e as imagens foram reproduzidas na televisão – ainda a principal vitrine das mais notáveis aventuras humanas. A tevê consagra, mas também deforma. Basta lembrar Pedro Bial chamando os participantes do Big Brother de “nossos heróis”.



    Herói, diz a definição, é aquele que reúne virtudes como fé, coragem, força de vontade, determinação e paciência – e as utiliza por uma causa nobre. O pedreiro Charles, naquele momento de tensão do aguaceiro de Belzonte, cumpriu alguns desses pré-requisitos. Também tiro o meu chapéu simbólico para ele. Mas gostaria de lembrar que o país tem muitos outros heróis invisíveis, que raramente recebem reconhecimento porque praticam suas ações longe das câmeras e dos holofotes.



    A lista é grande e poderia, sem qualquer demagogia, começar pelos trabalhadores que ralam para ganhar a vida honestamente, muitas vezes tendo que sustentar famílias numerosas. Mas não é a eles que quero homenagear neste texto. Meus heróis anônimos são os casais que adotam crianças doentes, muitas delas enjeitadas por serem portadoras de deficiência.



Meus heróis anônimos são os pais e mães que abdicam de suas próprias vidas para cuidar de filhos que vieram ao mundo sem todas as ferramentas de sobrevivência. Meus heróis anônimos são os médicos, enfermeiras e cuidadores que dedicam o melhor de sua habilidade e muito do seu tempo para amenizar o sofrimento de pacientes que sequer conhecem.



Meus heróis anônimos são os professores e professoras que vão além da obrigação do ofício, lançando sobre os alunos um olhar de humanidade para ajudá-los a se tornarem pessoas dignas e íntegras. Meus heróis anônimos são todos os brasileiros que se preocupam com os seus semelhantes, tanto ou mais do que consigo mesmo, sem esperar reconhecimento.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012



04 de janeiro de 2012 | N° 16936
MARTHA MEDEIROS


Missão impossível

    No mais novo e divertido filme da série Missão Impossível, Tom Cruise costura, chuleia e prega botão no trânsito de Dubai. Faz ultrapassagens miraculosas, tira finos, quase atropela uma cáfila de camelos, detona com um Jaguar e sai ileso feito o Papa-Léguas. A plateia delira: eis um valente super-herói.

Aí o filme termina, as luzes se acendem e cada um volta pra sua vidinha sem efeito especial, em seu carro meia-boca e sabendo-se longe de ser um ás em qualquer coisa. Somos homens e mulheres comuns, nem tão belos e com uma profissão pouco empolgante. O que poderíamos ter de semelhante com um personagem tão incrivelmente cartunesco? Ora, ora, também podemos ter inimigos! Então, elegemos os outros motoristas como nossos opositores e assim transformamos a vidinha modorrenta num videogame.

    Assim perdura nosso complexo de vira-lata. Quanto mais o cara acelera, faz ultrapassagens arriscadas e tem pressa em chegar antes que o motorista de trás, mais ele atesta sua infantilidade, sua inferioridade e seu despreparo para uma vida consciente e adulta. São babacas que possuem uma visão completamente deturpada de si mesmos. Contraditórios, eles se orgulham por beber, por não usar cinto e por dirigir agressivamente, sem se dar conta de que estão demonstrando o quanto são de segunda categoria.

O que importa é conhecer os truques para voar pelas estradas, sair sem um arranhão e ainda seduzir a garota mais bonita – que é outra babaca se aguenta tudo isso quieta.

    Nossas estradas não são o bicho, a sinalização é deficiente, mas nada é de pior qualidade que nossos motoristas. São homens (e algumas mulheres também) impotentes para avançar em suas profissões, impotentes para ultrapassar a concorrência com uma ideia mais criativa, impotentes para conquistar o respeito da sua turma, impotentes para educar os filhos com responsabilidade, e por isso recorrem a malabarismos e palhaçadas no asfalto.

Usam o carro como um meio de transporte não de um lugar para o outro, mas de um status para o outro – só que são promovidos a delinquentes, não a agentes secretos.

    Para eles, inimigos são os que obedecem às leis, os que têm cautela quando chove, os que reduzem em curvas perigosas e “atrapalham” os velozes. Será missão impossível reajustar esse foco?

A guerra no trânsito só terá menos vítimas quando motoristas imaturos tiverem amor próprio suficiente para não precisarem se exibir. Ninguém se torna mais admirável por chegar primeiro, por arriscar a vida e protagonizar cenas dignas de um filme de ação.

Esses continuarão menores que Tom Cruise (que já é pequeno) e sendo meros figurantes de uma viagem que exige bravura, sim, mas de outro tipo. A bravura de proteger sua família, de não enxergar os outros como rivais e de ter habilidade para dirigir a própria vida – que exige bem mais que um volante e um acelerador: exige cérebro.

    Meninos de 18 anos, meninos de 42, meninos de 67: dirijam com prudência se forem homens.