quarta-feira, 31 de dezembro de 2014


31/12/2014 e 01/01/2015 | N° 18029
MARTHA MEDEIROS

Para iniciar bem o ano

Selecionei algumas frases de pessoas célebres e outras nem tanto, a fim de montar um mosaico que nos faça relaxar e refletir sobre essa aventura insana que é viver. Levantar de manhã já pode ser considerado um esporte radical, então está aí um kit de sobrevivência para nos socorrer quando estivermos ligeiramente em pânico e levando tudo a sério demais.

– Se quiser fazer Deus rir, faça planos. (aforismo iídiche)

– É preciso ter altos e baixos. De outra forma, você não saberia a diferença. Seria tudo uniforme, linha reta, como olhar para um monitor de batimentos cardíacos. E, quando rola aquela linha reta, baby, você está morto. (Keith Richards)

– Segurança não é ausência de perigo; segurança é o gerenciamento do medo. (Wendy Reid Crisp). – Sossega, porque nada há que esperar, e por isso nada que desesperar também. (Fernando Pessoa)

– Felicidade se acha é em horinhas de descuido. (Guimarães Rosa)  – As coisas boas vêm com o tempo. As melhores, de repente. (Denise Lessa)

– Tudo é saudável, menos interrogar-se constantemente sobre o sentido dos nossos atos. (E.M. Cioran) – Desconfio/dessa coisa/de pessoas do bem/e pessoas do mal/acho que só existem/as sensíveis/e as sem sal. (Josué Orsolin)

– Ninguém vale pela sua ascendência, pelo lugar onde nasceu nem pela tradição a que pertence, mas cada um vale pelo que conseguirá fazer da sua vida. (Contardo Calligaris)

– É melhor buscar a verdade do que a glória. Que humilhação ter a aprovação dos outros como objetivo. (E.M. Cioran)

– Aquele que não dispõe de dois terços do dia para si é um escravo. (Nietzsche)

– Eu gostaria de fazer um grande filme, desde que isso não atrapalhe minha reserva para o jantar. (Woody Allen) – O objetivo da psicanálise não é curar as pessoas, mas mostrar que não há nada de errado com elas. (Adam Philips)

– O custo de uma coisa é a quantidade de vida que se tem que dar em troca. (H.D. Thoreau) – Se você for sempre o guia, só vai chegar aonde já conhece. (Maria Rezende) – Um passo à frente e já não se está no mesmo lugar. (Sandra Flanzer)

– As pessoas se dirigem a Deus para obter o impossível. Para o possível, os homens bastam. (Pedro Maciel)

– Nunca vou entrar no céu. Minha esperança é um telão do lado de fora. (Dirceu Ferreira)


– Hoje é um bom dia para continuar insistindo. (Caio Fernando Abreu) - Desejo a todos um ano que valha o esforço de viver. (Nélida Piñon)

sábado, 27 de dezembro de 2014

Este ano está se despedindo
Tenho certeza que você
tem muito a agradecer
Pegue todas as derrotas
e transforme-as em pequenas batalhas
que no confronto com a vida
você deixou de vencer
mas que certamente
a guerra já está ganha
visto que chegou até aqui
e está apto a receber um novo ano
com seus desafios e incógnitas
e viva muito cada segundo
desta esplêndida jornada
que DEUS está a lhe proporcionar
Somos vencedores
conseguimos superar mais um ano.






Que a paz, o amor,
a solidariedade...
Estejam em todos os
lugares onde formos,
e que Deus abençoe
à todos aqueles que nele
crê de todo coração,
e tenha misericórdia
dos enfermos,
e descrentes, e que
todos sejam muito felizes,
em cada dia que viver.
Feliz Ano Novo


beijinhos pra você





Feliz Ano Novo


28 de dezembro de 2014 | N° 18026
FABRÍCIO CARPINEJAR

O sofrimento não é exclusividade de ninguém

Acabamos nos envergonhando por pensar que os outros não têm problemas.

Esquecemos que a vida é generosa para todos os lados nas dívidas e nas dúvidas.

Ninguém escapa do conflito, do trabalho e das adversidades.

O sofrimento tem o cacoete de fingir exclusividade, mas ele também mora com o nosso vizinho, com o nosso colega de trabalho, com a vendedora do armazém da esquina, com o governador eleito.

Desde que me separei, eu fugia do ourives das alianças.

Eu havia pedido que desenhasse o par de joias imitando o encaixe do rolamento de um navio: pinos de um se encaixando nos furos do outro.

Os amigos me aconselharam a encomendar naquela loja pois ele, além de um grande artista, dava sorte para o casamento: seus clientes raramente se divorciavam.

Não queria que ele descobrisse que não ajudei seu aproveitamento, que puxei suas estatísticas para baixo, que não me tornei um case de seu sucesso.

Buscava me livrar do encontro à queima-roupa e da única pergunta que nos unia:

– Como vai o lindo casal?

Meu medo é que ele, ao apertar minha mão, notasse a ausência da aliança.

Eu me encabulava por não corresponder a suas expectativas, como se ele fosse um padrinho oculto, um cupido adulto, um fiador do amor.

Tinha duas missões em Porto Alegre: não frequentar os mesmos lugares da ex e do criador das alianças.

O que me facilitava era que ele contava com dois metros de altura, um farol de alcance imediato na multidão.

Via o artesão num restaurante do shopping Praia de Belas e dobrava em direção ao toalete.

Via o artesão num bar da Cidade Baixa e me camuflava na pista de dança.

Via o artesão caminhando na 24 de Outubro e atravessava a rua.

Acho que ele reparou que desaparecia em todos os lugares. Homem não é discreto quando tem medo.

Eu escolhia sempre um atalho para evitar cumprimentá-lo. Ele se transformou num SPC matrimonial, num credor imaginário.

Até que, sentado no café Dometila, na Praça Maurício Cardoso, de costas para a calçada, sinto um braço fechar meus olhos e uma voz brincar:

– Adivinha quem é?

Enrubesci. A voz com sotaque alemão era inconfundível. Menti que desconhecia com a esperança de decifrar rapidamente a equação do túnel do tempo e do buraco da minhoca.

– Sou eu – ele riu. Daí, me encarando sem perdão, lançou a questão:

– Me conta, como vai o casal? Baixei a cabeça e assumi: – Desculpe, nos separamos.

Ele acusou o golpe, puxou a cadeira e sentou perto de mim:

– Eu entendo, também me separei. Que tal trocar o café por algo mais forte?


– Garçom?

28 de dezembro de 2014 | N° 18026
MARTHA MEDEIROS

Espero que 2015 não seja 100%

Que tudo que eu quero que aconteça não aconteça exatamente como imagino. Que eu consiga realizar meus projetos, mas que depare com pequenas dificuldades para continuar duvidando de mim mesma. Que me surjam ideias novas para abastecer minhas colunas, e também muitos dias de branco na cabeça para eu saber que meu cérebro nem sempre obedece aos meus comandos. Que meu trabalho atinja uma eficiência de 70% e me reste 30% de desacertos para não perder a humildade.

Uma amiga me desejou uma paixão que me tire o tino, me faça cambalear pela sala, que me deixe maluca, abobalhada, sonhadora, acreditando em fadas e duendes. Francamente, isso se deseja aos inimigos. Troco essa epifania por um amor que atinja a meta de 80%, o que já é uma megassena. Que seja vibrante, sim, mas que nos mantenha com os pés no chão, conscientes de que o paraíso emocional não existe, mas pode-se chegar bem perto e será o bastante.

Que haja uma porcentagem mínima de ciúme e desacordos, para que a segurança não seja total e se queira continuar junto dia após dia, a fim de alcançar o inalcançável. Que sobre 20% de solidão, aquela solidão necessária mesmo quando estamos apaixonados, aquela solidão que fortifica a alma e que serve também, entre outras coisas, para valorizar nossos vínculos.

Que minhas amigas estejam por perto, mas não 100%, porque gosto de ter novidades para contar quando nos encontramos. Que minhas filhas estejam por perto, mas não 100%, não porque eu não queira, mas porque eu espero que elas não queiram, ou não seriam garotas antenadas e saudáveis – que jovem adulto não sonha em aventurar-se em seus próprios caminhos? Que minha família de origem – pais, irmão, cunhada, sobrinhos – esteja por perto, mas não 100%, para que continuemos a viver em harmonia (mas vou continuar falando contigo todos os dias, mãe, prometo).

Saúde de atleta? Também não. Em relação à saúde corporal, fecho negócio em 95% pra mim e 5% para o oponente, a serem distribuídos entre espirros (pra lembrar que o corpo se queixa), febrículas (pela transgressão de cair de cama no meio da tarde) e dor de cabeça na manhã seguinte a alguma farra. E deu. 5% de vulnerabilidade são suficientes para me manter alerta, fazer exercícios constantes e abandonar o vinho depois do segundo cálice. Ou do terceiro.

Quanto à saúde mental, fico com 50% sem achar que é pouco. Nem pensar em 100% de certezas, teorias, eloquências. Nem pensar – mesmo. Menos pensar e mais agir, mais impulsos, mais riscos. Estou topando dividir minha sensatez com especulações, atrevimentos e algumas fantasias ordinárias.


A vida não é impecável, por que eu seria? Em 2015, não almejo o absoluto, o total, o 100% concluído. Que sobre espaço a preencher para me manter em movimento. Feliz ano novo e incompleto pra você também.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014


24/12/2014 e 25/12/2014 | N° 18023
MARTHA MEDEIROS

Handle with care

Certamente você já leu a frase que acompanha o aviso “Fragile” em embalagens que chegam do Exterior. Duas mãos espalmadas circundam uma caixinha e a etiqueta diz: Handle with care. Manuseie com cuidado.

Uma querida amiga que mora na Suécia me mandou um e-mail nesta semana dizendo que muitas pessoas deveriam ter esse adesivo grudado no próprio corpo. Eu diria que não apenas muitas: todas. Afinal, nada mais frágil do que um ser humano.

Costumamos tratar com delicadeza as crianças, por seu tamanho e inocência, e os idosos, por sua vulnerabilidade física e por respeito, mas quando se trata da vastíssima parcela da população que se situa entre esses dois extremos, passamos por cima feito um trator desgovernado. A ideia geral é: adultos sabem se defender.

Alguns sabem, outros menos. Todos nós recebemos vários trancos da vida e acabamos desenvolvendo alguma resiliência e capacidade de nos regenerar, mas isso não quer dizer que não há dentro de nós algo que possa quebrar de forma irreversível.

E quebra mesmo. Espatifa de forma a impedir a colagem dos cacos. Handle with care.

Há por aí campanhas pregando mais gentileza e mais educação, e assino embaixo, naturalmente. Mas elas têm um caráter superficial, induzem apenas a gestos e atitudes corteses, como esperar alguém sair do elevador antes de a gente entrar, dar bom-dia a quem cruza por nós, desejar feliz Natal e boas festas. Isso é tratar bem, não tratar com cuidado.

Tratar com cuidado significa colocar-se no lugar do outro e dimensionar o quanto uma estupidez pode machucar. Significa levar em consideração as dificuldades de alguém a fim de não exigir demais de seus sentimentos e posicionamentos. Significa compreender que a comunicação é fundamental para o entendimento e a paz e que atitudes bruscas podem ser mal interpretadas. Significa honrar o laço construído e não colocar na intimidade a desculpa para agredir – agressões não podem virar hábito da casa.

O que cada pessoa leva dentro? Sonhos que podem parecer bobagem para os outros, mas que são sagrados para ela. Traumas que ainda não foram superados e que doem a cada vez que são lembrados. Vergonhas inconfessas. Feridas que custaram a cicatrizar e que basta um cutucãozinho para reabrirem. Desejos que não merecem ser ridicularizados. Necessidade de ser amado e aceito. Uma parte da infância que nunca se perdeu.

As pessoas gritam e rugem umas para as outras, quando não fazem pior: ignoram umas às outras, como se todos fossem feitos de pedra, como se todos estivessem protegidos por plásticos-bolha, como se a blindagem fosse geral: é só mirar e atirar que não dá nada.


Dá sim. Pode não parecer, mas todo ser humano é um cristal.
Miro Saldanha - Covardia

João Chagas Leite-Lágrimas de flor

Cristiano Quevedo - Guri De Campo


João Chagas Leite - Conto de Fadas


Miro Saldanha-Nem eu sei

sábado, 20 de dezembro de 2014


21 de dezembro de 2014 | N° 18020
FABRICIO CARPENEJAR

A invisibilidade da Limpeza

A solidão é como limpar a casa: ninguém percebe, por mais que tenhamos a vontade imperiosa de apresentar o que fizemos. Quando faxino a residência, sempre vou me decepcionar com a reação da esposa e dos filhos. Não entendo como ainda insisto, e eles não têm nenhuma obrigação de ficar me elogiando. Mas é que me esforcei desmesuradamente em colocar o lar em dia e gostaria de ser parabenizado, festejado, aplaudido.

Eu limpo os interruptores, passo um pano nos azulejos da cozinha, esfrego o teto, elimino manchas ancestrais das panelas,espano as estantes mais altas.Queria fazer uma exposição dos meus atos, uma visita guiada de museu pelo apartamento para meus familiares, mostrando, detalhe a detalhe do que realizei.

Imagino-me caminhando lentamente,com a comitiva atrás de mim, interessada por cada mudança sutil:– Aqui eu organizei as gavetas, aqui eu levantei a bancada para tirar o pó,aqui empurrei a geladeira e recolhi fragmentos de copos, aqui encerei com aquele produto novo, recomendo, é ótimo!, aqui esfreguei os vidros pelo lado de fora, acompanhe os cantos da veneziana...

Demonstraria o antes e o depois e reconstituiria toda a lavagem do ambiente.Como se fosse um corretor descortinando o apartamento pela primeira vez aos interessados. Concluo que é uma tola quimera de minha parte.Eles entram pela porta, apressados de seus mundos, e apenas lançam um olhar geral e pouco curioso. Comentam, de modo resumido: – Que lindo!

Deu! Acabou o reconhecimento com uma breve fungada pelo perfume composto de lustra-móveis, vanilla e detergente.

Eles cheiram mais do que olham.Limpar a casa é ser invisível, é um contentamento muito particular, como a nossa solidão.Só você mesmo que segurou a vassoura ou controlou o tubo do aspirador saberá o quanto foi difícil retirar aquela cabeleira do ralo, não terá com quem partilhar, é um segredo.

Só você mesmo que ficou de quatro esfregando o piso saberá o quanto o brilho é de lua cheia.Só você mesmo que usa a tática do jornal para transparecer a vidraça saberá oque significa a transparência.As pessoas somente notam quando a casa está bagunçada, jamais quando

está limpa. Assim como você somente repara na geladeira quando algo apodrece dentro, jamais quando está carregada com as frutas generosamente lavadas. A faxina é a aceitação do tempo que temos que guardar para nós.


É uma aula sobre amadurecimento. Transformamos a nossa personalidade não para agradar alguém, e sim porque sentimos vontade de melhorar. Mudanças silenciosas, porém necessárias. Nem tudo será reconhecido. Mesmo assim, faremos por conta própria, para a nossa satisfação. Há alegrias que são unicamente nossas. Não dependemos dos outros.

21 de dezembro de 2014 | N° 18020
MARTHA MEDEIROS

Maria Adelaide

Já escrevi sobre o mendigo que encontrei em Lisboa, aquele que trata sua mendicância como um show de humor e aceita esmolas online, e hoje vou falar de Maria Adelaide, que conheci em Cascais.

Eram 15h e eu ainda não havia almoçado. Escolhi um restaurante simples, com mesinhas num calçadão. O lugar estava vazio, mas logo vi que se aproximava uma senhora de idade que gesticulava muito e abordava a todos. Cansada, sentou-se ao meu lado. Dois palmos separavam uma mesa da outra. Eu havia ganhado companhia.

Só que ela não comeu nada. Pediu apenas um uísque e a minha atenção: contou que havia sido uma famosa corretora, que ganhara muito dinheiro e perdera tudo, que fora amante de um homem casado por 20 anos, que já havia disputado corridas de carro, que havia aprendido a tourear, que estivera na inauguração de Brasília, que fora abençoada pelo Papa João Paulo II, que havia sido amiga íntima da fadista Amália Rodrigues, e eu ali, encantada com aquele personagem pronto, saído de um livro que não havia sido escrito – ainda.

Nem em tudo acreditei. O que me impressionou foi sua vitalidade: ela não parava de falar. Quando não era comigo, era com os pedestres que passavam. Para todos, tinha uma palavra. Para o turista que vinha de bicicleta: “Salta, não pode andar com isso no calçadão, ó pá”.

Para o casal de namorados: “Não confiem um no outro!”. Para o DJ que estava na janela de um bar: “Só ligue o som depois que me for!”. Ao garotão com o jeans rasgado: “Isso lá é roupa, menino?”. Mas sempre com um sorriso gigante no rosto, orgulhosa da própria inconveniência. Depois de cada abordagem, batia na própria coxa e dizia: Ssou humana, sou humana”. Seu bordão. “Sou humana.”

O pessoal logo entendia que era um personagem folclórico, mas, quando o assédio era infantil, o clima pesava. A cada criança que surgia, ela dizia aos pais: “Me empresta seu filho um bocadinho”. Os pais sorriam amarelo e afastavam os miúdos de seus braços, enquanto ela me confidenciava: “Enlouqueço com crianças”. Nunca havia sido mãe.

Pedimos a conta, paguei o uísque dela e mais uma vez me veio à cabeça a expressão “couvert artístico”, a mesma com que batizei aquela cena do mendigo na rua. Foi quando ela levantou, abriu sua bolsa e colocou em cima da minha mesa diversas folhas xerocadas onde apareciam fotos dela em Brasília, fotos dela com o Papa, com Amália Rodrigues, bilhetes pessoais, recortes de jornal. Um dossiê.

Só então perguntou o que eu fazia. Respondi que era escritora. Ela me deu um beijo no rosto como quem diz: boa piada! E se foi. Dia seguinte, passei de bicicleta por ela em outra rua. Abordava os transeuntes, claro. Ao me ver, já começou: “Salta, salta!”. De repente, me reconheceu e apreensiva, perguntou: “Você não é escritora de verdade, é?”.


“Vai render apenas uma crônica, se você permitir”. Dada a permissão, continuei a pedalar até chegar aqui.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014


17 de dezembro de 2014 | N° 18016
MARTHA MEDEIROS

A maior rua que existe

Estava descendo uma ladeira do Chiado, em Lisboa, quando passei por um mendigo. Seria mais um entre tantos que ocupam as calçadas, mas percebi que ele estava cercado de cartazes dizendo que a esmola iria para o uísque, o vinho, a cerveja, a ressaca. Um mendigo engraçadinho. Fiquei observando. Os turistas passavam, riam e distribuíam moedas não por caridade ou desencargo de consciência. Era couvert artístico.

Quando o pessoal se afastou, me aproximei dele e conversamos rapidamente. Vi que tinha um cartaz escrito “Ao menos sou sincero”.Perguntei se ele gastava mesmo em bebida e ele disse que comia alguma coisa, claro, e gastava também em locomoção, trocava de ponto, de cidade e até de país (estivera há pouco tempo em Sevilha), mas morava na rua mesmo. Ele estava sozinho naquele momento, mas o “espetáculo” não era solo, havia mais dois ou três amigos nessa onda, e com eles formava os The Lazy Beggers. Tinham até um site.

Um site?? Sim, para donativos online, assim as pessoas não precisariam se aproximar de uns sujeitos sujos e fedorentos, podiam doar dinheiro de forma rápida e segura pelo PayPal. Bem-vindos ao século 21. É a nova geração de mendigos, disse ele.

Como tudo começou? Eram artistas de rua, faziam malabarismo, tocavam alguma música, até que um dia um vira-lata que estava por perto começou a tremer e eles, de gozação, fazendo de conta que era alguma abstinência do bicho, colocaram um chapéu e um cartaz em frente ao cão dizendo “Para cocaína”. Em poucos minutos, o cachorro ganhou mais moedas do que eles na semana inteira. Adotaram-no, cuidaram dele (conheci, chama-se Nemo) e ele virou mascote da trupe.

A quem pergunta por que eles não trabalham, a resposta vem rápida: “Como, não trabalhamos? Passamos de oito a 12 horas nas ruas fazendo os outros rirem”. À noite, eles se recostam em algum canto e muitas vezes conseguem dormir em garagens de amigos conquistados nesses últimos cinco anos em que levam sua miséria na flauta.

No site, há dicas para quem quiser pedir esmola de forma criativa. Vale tudo: tocar um instrumento invisível e expor um cartaz dizendo “roubaram minha guitarra” ou colocar uma máscara com o rosto de alguma celebridade junto a um cartaz dizendo “para outra mansão”.

Funciona mais do que cartazes dizendo que se está passando fome. Lamentos não comovem mais ninguém, ele acha. As pessoas preferem remunerar o bom humor.

Por fim: o site funciona? Ele é franco: “Pouco”. As pessoas gostam de doar pessoalmente, mas como ficar fora da web? A internet é a maior rua que existe.

Dei a ele uns trocos e pedi para tirar uma foto. Ele levantou um cartaz dizendo que fotos custavam 278 euros. Tirei a foto mesmo assim e sorri. Ele respondeu: está pago.


sábado, 13 de dezembro de 2014


14 de dezembro de 2014 | N° 18013
FABRÍCIO CARPINEJAR

SOS maternidade

O que tenho de amigas, entre 20 a 35 anos, que estão desesperadas para ter um filho.

Dizem que a principal aspiração é engravidar. Contam que incham os seios ao imaginar o berço perto da cama. Não passam impunes diante de um carrinho ou de uma barriga de gestante na rua. Mas nenhuma delas mais acredita no amor. Não apostam na convivência. Se pintar um namoro é lucro, mas todo o investimento e o esforço jogam para a maternidade.

Julgam o filho indispensável. Por sua vez, o marido é tratado como secundário e, infelizmente, irrelevante. Elas não pretendem sofrer com as desventuras, as separações, a rotina em comum. Buscam atalhar, cortar caminho e ir direto ao ponto. Partem da certeza de que não dependem de nada (nem namorado, nem emprego, muito menos estabilidade). Podem recorrer à inseminação ou a um caso em que assumirão os riscos.

O que considero uma grande pena e um monumental capricho. E incluo neste processo também a adoção, que pede o equilíbrio da gangorra.

Não podemos subestimar a paternidade. Não podemos menosprezar a educação que vem do amor.

Antes de encontrar um pai para ter um bebê, deve-se amar uma companhia que se tornará pai por merecimento. E definir um pai é mais do que preencher uma linha da certidão de nascimento, é garantir o sentido da vinda ao mundo para a criança.

O filho é o resultado da intimidade, a consagração da confiança do casal, não uma solução para todas as carências de uma mulher.

Se não suporta as carências de uma relação, como tolerar as demandas infinitas de um filho? A convivência do casal é a preparação para a convivência com um filho.

Querer ter um filho somente para si não é prova de independência, e sim um apelo infantil para apressar a maturidade. Ninguém é onipotente e autossuficiente para dar conta – absolutamente sozinho – do desafio da criação.

É lindo sonhar com o enxoval, o chá de fraldas, a mão no ventre, os primeiros dos primeiros movimentos. Só que o filho precisa ser visto, desde o início, como um futuro adolescente, um futuro adulto, um futuro de conflito e oposição.

Filho não é maleável, um ser vazio para transferir arquivos. Já vem com temperamento: seu grito no nascimento é personalidade, seu riso é personalidade. E parte da personalidade do pai estará sempre ali, estando próximo ou não.

Não se tem um filho, aceita-se um filho. Requer uma responsabilidade ininterrupta, sem um dia de folga. Atirar-se para a maternidade ansiosa e inconsequentemente é um erro que gera outros erros. E não adianta esperar que a terapia resolverá tudo, a função da terapia é resolver durante os problemas.

A figura paterna representa um sadio contraponto, uma distinta possibilidade de admiração e de influência, que aumenta as chances de escolha do rebento.

Nem estou falando em “ajudar a cuidar”, expressão usada preconceituosamente para a paternidade. No casamento, homem não é coadjuvante da casa, foi um dia, mas não é mais. Tem solidão suficiente e dedicação ao lar para superar a imagem de simples apoio. Homem não é pai para acordar de madrugada ou trocar as fraldas. Não deve ser restringido à troca de turno. É importante para orientar, aconselhar, proteger, inspirar, planejar, fazer junto.


Assim como o pai é fundamental para a mãe não sufocar de amor sua criança. Retira aquela exclusividade doentia, aquela adoração desmedida, aquele monopólio da atenção. Pois a criança quando sozinha e afastada de um pai acaba substituindo as diversas necessidades psicológicas e projeções da mulher. Recebe o fardo de ser o único da vida de sua mãe. Não apenas o filho único, o único mesmo! Um rei condenado a assumir o trono ainda pequeno, antes mesmo de descobrir quem é.

14 de dezembro de 2014 | N° 18013
MARTHA MEDEIROS

Os ratos da selva

Tudo começou quando Yann Arthus-Bertrand, criador da Fundação GoodPlanet, passou um dia com um aldeão enquanto esperava o conserto do helicóptero em que viajava pelo Mali. Ele estava lá para fotografar paisagens, mas se encantou pelas expressões e pela humildade do aldeão, e foi assim que teve a ideia do projeto 7 Mil Milhões de Outros, que exibe o que pensam, sentem e sofrem habitantes de todas as raças, idades e gêneros do mundo inteiro. Parece simplório, mas é apenas simples e comovente.

Assisti à exposição de vídeos no Museu da Eletricidade, em Lisboa, e, coincidência ou não, os depoimentos liberam uma energia que faria levantar um morto. Não estaremos todos meio mortos quando se trata de enxergar profundamente os nossos vizinhos no planeta?

Não há como não se emocionar vendo, em salas escuras, o rosto em plano fechado e hiperampliado de homens e mulheres falando de suas tristezas, alegrias, recompensas, tudo com a honestidade das confissões, coisa que rede social alguma consegue igualar. Sei que o Facebook é divertido, uma cachaça, mas estamos todos ali nos exibindo através dos nossos posts. Sim, fazendo conexões também, mas estimulados, em algum grau, pela vaidade, o que não é pecado, mas evita que nosso eu sensitivo e falível se comunique olho a olho.

Os depoimentos estão todos disponíveis no site www.7milmilhoesdeoutros.org, separados por temas. Se não tiver tempo de ouvir todos, espie ao menos o mosaico. Não sentirá o mesmo impacto que a exposição proporciona, mas perceberá a riqueza emocional de cada pessoa, que é raramente manifestada e de uma beleza que ultrapassa padrões estéticos.

E também irá refletir sobre o que de fato nos define: nossas superações, nossa fé, nossos meios de sobreviver às adversidades e a potência bombástica da dor e do amor, os dois poderes que nos regem. Não há como sair dessa experiência sem se sentir um pouco miúda e envergonhada por focarmos apenas em nossos próprios problemas, como se nada mais existisse no mundo além do nosso umbigo.

Num dos depoimentos, um árabe conta que nunca havia chorado, que em sua cultura o homem sempre foi o leão da selva, até o dia em que ele colocou sua mãe num caixão e a levou ao túmulo, recordando o quanto ela detestava sair de casa. Naquele momento, ele chorou pela primeira vez e percebeu que não passava de um rato da selva.

Quando é que as pessoas revelam o seu real tamanho? Talvez não seja quando resistem, e sim quando se entregam. Os “ratos” são desprovidos de juba e majestade, reconhecem a própria fraqueza e respeitam as fraquezas alheias. Quando todos nós nos enxergarmos pra valer e descobrirmos que somos diferentes por fora, mas constituídos das mesmas emoções, aí talvez encontremos a nossa verdadeira força.



BOM FINAL DE SEMANA PRA NÓS!


Existem momentos na vida em que uma única pessoa
nos faz acreditar que de amor é que se vive.
Que prosperam no coração da gente,
a doçura de uma crença no que é eterno...
Como um amar sem fronteiras, sem limites,
sem fim.

(Cida Luz)
LINDO DIA PARA VOCÊ !
Bjs no ♥

:

sábado, 6 de dezembro de 2014


07 de dezembro de 2014 | N° 18006
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Quem segura o giz

Educação, tema que entra pelos poros: leio O Capital no Século XXI, o inesperado best-seller de história econômica de Thomas Piketty, tijolo de quase mil páginas que se deixa ler com impressionante fluência, salvo em 5% do texto, quando o economês engrossa. O livro é uma inteligente descrição e uma aguda análise da desigualdade social, de 1780 a 2010, focada nas grandes economias nacionais do mundo ocidental, mas a educação aparece como ponto focal do debate – ele constata que não existe mecanismo espontâneo para diminuição de desigualdade, e que a difusão do conhecimento e o investimento em educação formam a principal força a favor dessa diminuição.

Em bem outra escala, meus filhos estão estudando na escola pública francesa este ano. E temos visto diretamente a diferença de exigência com o Brasil (meus filhos estudam numa escola das mais qualificadas de Porto Alegre, privada, porque como todo mundo de classe média confortável eu tenho receio da escola pública em vários níveis – e me envergonho disso). Aqui, são entre seis e oito horas de vida diária deles dentro da escola, com muita exigência de conteúdo e avaliação o tempo todo. E não dói além da conta, me parece.

Por que a diferença? Histórias muito diferentes, para começar. Na generalidade do Brasil, só agora, na virada de milênio, é que há escola para todos, ainda deficiente, enquanto na França (mas também na Argentina e no Uruguai) isso está resolvido há mais de um século. As condições objetivas das escolas também são muito diversas.

Mas há outro motivo, que aprendi há uns 30 anos, em conversa com meu amigo e parceiro Paulo Coimbra Guedes, quando trabalhávamos no colégio Anchieta. Em certo momento, começo dos anos 1980, apresentamos às coordenações um projeto de ensino de redação bastante avançado, num metiê que já tinha uma história rica naquela instituição. O projeto envolvia requintes de avaliação, em que, para dizer de modo breve, seríamos mais rigorosos na atribuição das notas – e mesmo assim, como no perverso sistema penal brasileiro para quem tem dinheiro, com quase infinitas possibilidades de recurso e perdão.

A coisa ia bem, mas começou a complicar; veio o recado, de cima, de que não deveríamos forçar muito a barra, porque os alunos, afinal, cansavam, alguns pais reclamariam... Escola privada tem clientes, que são os alunos e seus pais. E cliente precisa ser agradado. Bem, claro que gente não acostumada a trabalhar duro estranha quando precisa trabalhar duro, e era mais ou menos o caso.

O Paulo, eu e os demais colegas discutíamos tudo, tentando melhorar o trabalho mas também tentando entender o que era mesmo que significava aquilo tudo. Era evidente que aqueles alunos iam se dar bem na vida, entrar nas melhores faculdades, ter os melhores empregos, suceder pais e avós nas empresas, empreender com sucesso – e isso independia do nosso trabalho, constatávamos. Não tínhamos lido Bourdieu ainda, mas nossa intuição ia na mesma direção.

E foi o Paulo que um dia formulou bem a coisa: aqueles alunos eram, em geral, iguais às elites gaúchas. E o que queriam as elites do Estado? Qual seu projeto? Elas queriam protagonismo em alguma área ou se contentavam com a gerência?


Quem ancora um projeto de ensino não é o professor, nem é a direção da escola. Quem segura o giz, liga o computador, quem afiança a validade das regras na escola são as elites e, mais difusamente, é a generalidade da sociedade, o Estado, a Política. Mas se, e quando, elas e eles não têm objetivos ambiciosos, nem se fazem respeitar..

07 de dezembro de 2014 | N° 18006
FABRÍCIO CARPINEJAR

Coração duro de roer

É desaconselhável conviver com alguém logo depois de uma separação. As mulheres têm razão.

Não há condições de ser agradável, de ser sociável, de ser carinhoso.

Separado não admite visitas por mais de uma hora que já começa a sofrer com flashbacks.

Só consegue ser educado por uma hora. Depois disso, o desespero e a saudade tomam conta dele.

O que ele mais quer é ficar sozinho para poder se derramar. Reservar-se o direito da antipatia das lágrimas.

Depois que chora, até deseja chamar o convidado de volta, porém já é tarde.

Não há dor maior do que a separação. Quando foi amor. Quando é amor. Aliás, os tempos verbais se embaralham: ontem parece hoje, o amanhã parece ontem.

Impossível determinar se ama ou amou, nada deixou de acontecer na pele.

Além da falta de apetite e do desleixo característico, o separado alucina. Arca com infinitas crises de ansiedade, de susto, de apreensão. É uma fissura incontrolável: seu desejo é resolver a dor de qualquer jeito, e qualquer jeito é voltando para sua ex de qualquer jeito.

Olha para a janela como quem aguarda um ônibus. Encara a porta como quem espera um trem. Está atrasado de si.

Aguenta apagões consecutivos de consciência, como se estivesse sendo assaltado a cada meia hora. O separado foi terrivelmente roubado, não descobriu ainda o que levaram. Descobrirá pouco a pouco, dia a dia, despertar a despertar. Talvez tenha sido latrocínio e ele seja um fantasma pela casa.

É uma confusão mental entre o que foi e o que poderia ser. Ele lembra e imagina simultaneamente, sem definição precisa das fronteiras. De vez em quando, recorda uma experiência comovente a dois, uma conversa de cozinha, juras na cama, vindas de um passado remoto; em outras, delira o que estaria fazendo naquele instante, que palavras seriam ditas, qual música estariam ouvindo. Vive uma avalanche intermitente de sensações antigas e novas com o mesmo peso, incapaz de decifrar o que realmente é verdadeiro.

Isso quando não apanha do lado turvo do relacionamento – as discussões, as decepções, o choque de identidades –, coisas que não gostaria de ter enfrentado e que não entende como não conseguiu remediar a ponto de salvar o casamento.

Tudo o que conta aos amigos e familiares é o contrário do que sente. Reclama e ofende sua companhia para se convencer de que decidiu acertadamente, mas o que deseja é simplesmente receber o beijo e o abraço dela de volta. Inviabiliza, de modo racional e inútil, as chances de reconciliação, entretanto é o que anseia. Cria uma oposição desastrada para prevenir sua passionalidade.

Como não pode ter o que quer, mendiga milagres. Posta frases e indiretas no Facebook e no Twitter, ainda que ela esteja bloqueada, acreditando numa comunicação sobrenatural.

Nem trabalha, muito menos descansa. Reconstrói cenas de ciúme ou de redenção, fraqueja com filmes, não consegue ler um livro, manter o foco, sua atenção oscila para uma única obsessão: ligar ou não ligar, retornar ou se manter firme no propósito de se distanciar.

O separado é um doente. Deveria ser internado. Posto numa cama com soro. Sua cabeça não dá trégua, porque enfrenta um impasse entre sua razão e sua emoção, numa queda de braço que resulta sempre em fratura.

Está com o osso fora do lugar. O coração é um osso agora. Duro de roer.


Se fosse um cachorro, enterrava. Se fosse um cachorro, mas não é.

sábado, 22 de novembro de 2014


23 de novembro de 2014 | N° 17992
FABRÍCIO CARPINEJAR

Jantar com os tios do interior

É jantar fora com os pais e os tios que você se sentirá uma criança de novo. Por mais que seja adulto e independente.

Eles manterão uma conversa fora do seu alcance, rememorando nomes apagados, mortos, distantes.

A parentela italiana não dá mole. Assume a condição de testemunha alimentar da reconstrução da genealogia familiar, gozará do privilégio de acompanhar a biografia oral, na íntegra, de seus antepassados.

Mesmo que tenha avançado uma geração, eles ainda estão uma geração à frente.

A princípio, participará do entrevero. Experimentará rápida glória social, que poderia ser resolvida no abraço de chegada. Eles vão perguntar o que anda fazendo, o desempenho do trabalho, o status de seu relacionamento, para logo se dispersar aos assuntos que mais interessam: quem morreu, quem adoeceu, quem se separou, quem está bem de vida, quem faliu, quem mudou de orientação sexual, quem engravidou. É uma agência de notícias da última metade do século. Os ouvidos adoecem devagar.

Até porque tia que é tia do interior fala baixo, enquanto o tio bebe tudo o que não deve. É um casal infalível: nenhum atrapalha o prazer do outro.

Ainda estão no aperitivo e você tem a convicção de que assiste a um documentário do Discovery. Carece de legendas para descansar os olhos. Naquele breve encontro, ouviu uma cota superior a um mês de trololó com seus amigos.

Como é difícil se inserir no debate, fica esperando a comida. Olhando para o infinito de uma televisão ligada e sem som, no fundo do ambiente. Quando se flagra fazendo leitura labial da novela é que está entediado e seu corpo e espírito estão definitivamente divorciados. Desapareceu materialmente dali.

A infância vem à tona. Quer ir embora. Quer dormir. Quer retornar para casa.

Acabou sua paciência. Precisa ser simpático, agradável, maduro, mas não tem mais como se comportar. A aparência vai se afundando com aquelas vozes distantes que parecem sobrevoar seu quarto depois das 23h. Recorda que, quando pequeno, fechava as pálpebras escutando as gargalhadas dos adultos na sala, os únicos que tinham o direito de dormir tarde.

Sim, voltou a ser um menino birrento, apesar da barba cobrindo o rosto. Impossível concorrer com a idade dos tios e seu apetite interminável de colocar o papo em dia. Estão recém na década passada e não demonstram o mínimo cansaço ou intenção de apressar os fatos.

Já observa o garçom com ternura, já repara quem fecha a conta com inveja, já começa a puxar a toalha, já começa a brincar com os palitos Gina e o saleiro, já torce para que ninguém peça a sobremesa, já puxa o braço do pai, já a mãe intervém e suplica para que tenha modos: “Vamos ouvir o que sua tia está contando, é importante!”.

Só falta descer para debaixo da mesa e brincar com os joelhos da família. Entrou no restaurante com a altivez de homem feito e sairá com alma de cachorro.


Será sempre a criança daquela família, sonhando com sua cama e arrependido de aceitar o convite para programa de gente grande.

23 de novembro de 2014 | N° 17992
MARTHA MEDEIROS

Luz fria

Resisti enquanto pude. Fazia estoque de lâmpadas incandescentes em casa. Quando já não encontrava as de 100 watts, comprava as de 60. Se não tinha num supermercado, buscava em outro. Batia ponto em casas de ferragens, dava incertas em lojas de luminárias, enfim, uma perseguidora incansável das lâmpadas incandescentes.

Enganando a mim mesma, claro. Se a imprensa não parava de avisar que as lâmpadas incandescentes estavam sendo substituídas pelas fluorescentes, mais compatíveis com o projeto de eficiência elétrica nacional, por que eu não me rendia de uma vez? É que, dependendo da situação, é mais cômodo se fazer de desatenta.

Só que chega o dia em que cansa lutar contra. Essa semana, interrompi minha resistência à novidade, resolvi sucumbir. Comprei uma lâmpada fluorescente para o abajur do meu quarto. Na verdade, tenho dois abajures no quarto, um em cada lado da cama. O que está do meu lado ainda possui uma lâmpada das antigas, amarelada, acolhedora. Como a do lado oposto havia queimado, resolvi trocar por esta nova, econômica, durável, sensacional. Devidamente atarrachada, acendi ambas para ver se havia diferença mesmo.

Que choque.

Sei, não é um conflito, um problema, uma catástrofe, nada disso. Estamos falando de lâmpadas, um troço banal. Porém menos banal para mim, que sou dependente de luzes indiretas.

Viciada em abajur, admito. Não suporto luz vinda do teto, excessiva, invasiva, desumana. Eu preciso de clima, de aconchego, de atmosfera. Poderia cultivar um luxo mais besta, mas cultivo este, que é reles. Eu gosto de luz poética, cálida, que me faça sentir em casa, e não num escritório.

As lâmpadas fluorescentes oferecem uma luz branca, racional, uma luz para pessoas jurídicas. Por que devo me conformar? Eu sei, eu sei, é preciso pensar em economia e durabilidade, mas poxa, eu trabalho tanto, gostaria de continuar arcando com o pequeno luxo de uma luz que me acarinhe, que me romantize, que me faça sentir num filme francês.

No entanto, mesmo que eu reclame para o bispo, nada mudará. É preciso pensar na coletividade. Não resta opção. As lâmpadas incandescentes foram retiradas do mercado. Tudo pela melhora da qualidade de vida, por um mundo mais sustentável. Desisto.

Uma vez escrevi uma crônica chamada “Melhorar para pior”. Dei vários exemplos: balneários com estradinha de chão batido x balneários asfaltados, cadeiras de palhinha x cadeiras de acrílico, pousadas rústicas com o namorado x resorts all inclusive com a família. Não falei de lâmpadas, na ocasião, porque o assunto não estava em pauta, mas agora o século 21 completou o serviço da modernidade. Adeus às lâmpadas arcaicas, o momento é das lâmpadas inteligentes.

Sinceramente? Tenho vontade de parar o tempo. Evoluir é muito frio


quarta-feira, 19 de novembro de 2014


19 de novembro de 2014 | N° 17988
MARTHA MEDEIROS

Por que gosto de teatro

Assisti ao Bruno Mazzeo no espetáculo Sexo, Drogas e Rock’n’roll, um título com aroma de naftalina, porém não há nada de antigo na peça – a não ser o saudoso politicamente incorreto, que caiu em desuso e, de tão patrulhado, só se encontra no mercado negro.

Pois, então, eu estava no teatro e pensava nisso, em como são poucos os espaços hoje para se permitir uma liberdade gaiata sem temer críticas, perseguições, acusações. Acho que gosto de teatro por isso: porque ele não é impresso, gravado, postado, tuitado, não produz provas contra si mesmo.

É exibido em um determinado tempo e espaço apenas para um seleto grupo que não tem em mãos controles remotos, telefones, nada que interfira na cena – a plateia fica rendida e concentrada em absorver o que escuta e enxerga, ciente de que, ao cerrar das cortinas, tudo se evaporará. O que foi visto ficará sem registro palpável. Teatro é uma ilusão: tudo é possível, tudo acontece, mas sobrevive só o que você permitir que sobreviva – dentro de você.

Cinema tem um pouco disso, mas é possível rever o filme na tevê ou no YouTube, ou comprar uma cópia para ter em casa, então ele se torna palpável, ganha longevidade. É analisado, estudado, decifrado, editado, e como tudo que permanece, tem um destino cruel: envelhece – a não ser que tenha nascido para clássico.

Teatro não envelhece, foi apenas um sonho bom. Ou um sonho ruim. É volátil, uma conexão temporária, sem amarras. É uma relação aberta, uma ficada, desperta paixões momentâneas, te faz rir, chorar, te pega pela mão e te leva para um lugar desconhecido, parece tão real, e de repente você acorda e vê que não. Real foi o que você sentiu, apenas. Você volta para casa e pode contar para os outros o que aconteceu, mas não pode mostrar.

Então, estava eu lá no teatro rindo das situações apresentadas no palco e ao mesmo tempo pensando sobre elas, mergulhada naqueles 60 minutos em que estava sendo homenageada por uma alegoria ao vivo, e que se dissolveria – dissolução que outra espectadora não aceitava, ela não parava de fotografar e assim tentava capturar o sonho, prendê-lo como a um pássaro em uma gaiola da Apple, da Samsung, desvirtuando a mágica. Ela não entendia nada de teatro, claro. No teatro, quem tem que ser capturado somos nós.

E, uma vez capturados, sermos despidos dos nossos preconceitos, das nossas defesas, da nossa censura e do nosso desejo infantil de que tenham tato conosco – tato é muito bom nas relações cotidianas, mas teatro não é lugar para diplomacia. O teatro tem licença para provocar, irritar, constranger, iluminar, elevar, surpreender, encantar, desencantar. Podemos não gostar da peça, mas há que se reconhecer o respeito que tiveram conosco ao nos tratarem sem condescendência. O teatro confia nos sonhadores.


sábado, 15 de novembro de 2014


16 de novembro de 2014 | N° 17985
MARTHA MEDEIROS

Escritor mesmo

Sempre me considerei uma mulher adaptável. Me convide para um baile na corte ou um churrasco na laje, e me sentirei em casa pelo simples fato de estar bem assentada em mim. O que vier eu destrincho, desdobro.

Isso até outro dia, quando voltei a frequentar a única espécie de roda que me faz tremer na base: a dos festivais literários. No início correu tudo bem, conversei com colegas que conhecia de vista ou de nome, rimos muito, viramos uma turma, mas houve um momento em que os astros deram uma pirueta nos céus e desconfiguraram a cena: sem entender como, fui parar numa mesa de restaurante com três figurões da literatura com quem nunca havia interagido antes. Calma, qual o espanto? É só participar do papo, você já fez isso mil vezes.

Aí é que está. O papo foi sobre as variadas vertentes do judaísmo. A filosofia alemã do século 18. Os mais influentes documentários políticos da história. As consequências da xenofobia francesa para a economia. Quando escutei um deles declarar furioso “Nem arrastado eu moraria em Paris”, pedi licença, me levantei e fui ao encontro de uma blogueira divertida que amaria estudar em Paris, casar em Paris, ser infeliz em Paris.

Há gente que vive de escrever e há os escritores mesmo. Aqueles da mesa eram escritores mesmo. Alto padrão intelectual. Colecionadores de prêmios. Catedráticos viajados, virtuoses da língua, candidatos fortíssimos à Academia Brasileira de Letras. Eu? Uma penetra. Mesmo.

Esse episódio me fez lembrar uma conversa que tive com um amigo da adolescência que convive comigo desde sempre, sabe a gaiata que sou, e que me disse que muita gente que não me conhece pensa que, se me levar a um restaurante, vai ter que enfrentar essa mesma discussão filosófico-cultural. Dei risada. Ele me olhou bem sério e disse que não era brincadeira: escritores assustam, ele garantiu. Quase chorando, perguntei: isso significa que estou ferrada? Ele me abraçou e disse: está, amiga. Se quiser sair e namorar, entre no Facebook e procure a turma da praia, do colégio, do clube, do bairro, aqueles que conviveram com você antes de você ter dado certo.

Fiquei tão desolada que ele me pagou outra cerveja.

Era machista sua avaliação, mas, quando me vi cercada pelo grupo erudito, entendi. Se aquela era a imagem que se fazia dos escritores, coitados de nós. Estávamos em maus lençóis. Quem se aproximasse acreditaria estar condenado a debates e palestras até durante o bem-bom.

Há os escritores mesmo, cuja sabedoria sobressai desde o aperitivo até a sobremesa (e têm todo o meu respeito), e há aqueles que apenas tiveram o privilégio de publicar seus textos e que dão pitacos sobre cultura pop, cinema, viagens, televisão, futebol, encrencas, roubadas, amores, alegrias, assumindo o mundanismo que os constitui. Não sou uma escritora mesmo. Não sou nada que mereça o “mesmo” como reforço. Meio baile na corte, meio churrasco na laje. Mesmo, mesmo, bem intencionada – e só.