sábado, 30 de agosto de 2014


31 de agosto de 2014 | N° 17908
MARTHA MEDEIROS

Histórias de amor

Você vive um amor ou uma história de amor?

Tem diferença, sim. Um amor é a realização plena de um sentimento recíproco. Passa por alguns ajustes, negociações, mas desliza. Pode perder velocidade aqui, ganhar ali, mas não é interrompido pelas dúvidas, não permite a entrada de terceiros, tem a consistência das coisas íntegras, duráveis. O amor, amor mesmo, é uma sorte que se honra, uma escolha em que se aposta diariamente, o amor é algo que nasce e frutifica.

Já uma história de amor é, como diz o termo, uma invenção. Algo para ser contado ao analista, desabafado para os amigos, uma narrativa chorosa e trágica, um acontecimento beirando o folclórico, um material bruto pedindo para ser transformado em obra de arte. Toda história de amor está impregnada de obstáculos que lhe conferem um status de ficção.

Amor proibido pela família, rejeitado pela sociedade, condenado por preconceitos, amor que exige fugir de casa, pegar em armas, trocar de identidade: virou história de amor. Perde-se um tempo enorme roteirizando o dia seguinte. Se fosse amor, simplesmente amor, o dia seguinte amanheceria pronto.

Amor que coleciona mais brigas que beijos, mais discussões que declarações, mais rendições que entrega: virou história de amor. Pode subir aos palcos, transformar-se em filme, faturar na bilheteria: tem enredo. Mas não tem continuidade. Sai de cartaz rapidinho.

Amor que sobrevive à distância, que se mantém através de cartas e telefonemas (permita-me a nostalgia, sobreviver pelo whattsapp não combina com literatura), o amor sem parceria, sem corpo presente, o amor que não se pratica, que não se lubrifica, que enferruja por falta de uso: virou história de amor. Sofrido como pedem os poemas, glorificado pela vitimização, até o dia em que a ausência do outro deixa de ser um ingrediente pitoresco e você descobre que cansou de dormir sozinha.

Amor que exige insistência, persistência, paciência: virou história de amor. Se fosse amor, nada além de amor, navegaria em águas mais tranquilas, não exigiria tanto de seus protagonistas, o entendimento seria instantâneo, sem exagero de empenho, desgaste, sofrimento. Aff. Histórias de amor são fantásticas na primeira parte, tiram o ar, movimentam a vida, mas da segunda parte em diante viram teimosia dos autores, que relutam em colocar o ponto final na saga que eles próprios criaram.

Amor ou história de amor, o que se prefere?

Aventureiros, notívagos, hereges, rabugentos, sedutores, inquietos, fetichistas, insaciáveis, pecadores, estrangeiros, narcisistas, intrépidos, dramáticos, agradecemos cada verso e cada noite mal dormida que vocês deixaram de lembrança, mas um dia a gente cresce e a fantasia cede lugar à sensatez: um amor está de bom tamanho.



31 de agosto de 2014 | N° 17908
FABRÍCIO CARPINEJAR

O enigma da bolsa das mulheres

Homem carregando bolsa de mulher é cavalheirismo ou o cúmulo da submissão?

Eu fico sempre baratinado.

Costumo carregar a bolsa de minha esposa no shopping quando leva minha carteira e algum livro. Eu me vejo culpado pelo peso extra.

Mesmo quando não sou beneficiado diretamente, bate uma compaixão em vê-la se esforçar com os ombros. Ela trocará de braço a cada dois quilômetros na esteira das lojas. Toda bolsa de mulher é uma mala sem rodinhas.

Mas tampouco entendo por que ela não faz uma limpeza pontual para aliviar o chumbo.

Não tem sentido dispor de um secador de cabelos, por exemplo, naquele passeio. Ou tem? Ou ela acredita que será disparado um alarme de incêndio acionando as mangueiras do teto em nossa cabeça? Será que ela pensa nisso (é de dar medo se prevê a vida com tanto engenho e longevidade)?

Não custaria nada, antes de sair, eliminar o que não é essencial. E não é que ela esqueceu o que havia dentro da bolsa, mulher somente faz faxina na bolsa quando adquire uma bolsa nova.

Enquanto usa, acumula o mundo em suas profundezas de couro. É sua impressora 3D, imprime objetos na hora.

Não acho correto o trabalho masculino, pois ela poderia ter sido mais econômica. Deveria aprender a lição arcando com as consequências.

Até porque o homem que aceita transportar a bolsa da mulher não será valorizado por nenhuma estranha no caminho.

É muita submissão. Ele se apagará para ser um caddie – carregador de tacos de golfe. Ninguém repara no caddie, apenas no golfista. O caddie desaparece nas corcovas do gramado.

Além da invisibilidade imediata para a concorrência, não nos vestimos para combinar com a bolsa dela. De repente, estaremos de azul marinho com uma bolsa marrom. É o fim da harmonia. Então, teríamos que mergulhar de vez na vassalagem e perguntar para a mulher qual bolsa pretende colocar para definirmos nosso figurino.

– Amor, tenho que me vestir, já escolheu a bolsa?

E também não é justo carregar algo em que não poderemos mexer. Jamais deixará que a gente pegue coisa alguma de dentro do seu conteúdo. Somos menores de idade diante de qualquer bolsa feminina.

Vejo que não permite a ação de nossa curiosidade para evitar o estresse dos interrogatórios. Questionaremos o motivo de ela estar com metade das tralhas. A conversa não desembocaria em nenhum acordo. O que é dispensável para o homem é fundamental para a mulher.

Entro em parafuso se é correto ou não fazer esta gentileza. Seremos favorecidos, por outro lado, com o acervo surpreendente. A bolsa é um pequeno ambulatório, é um toalete ambulante, é uma oficina de costura.

Sem papel higiênico no banheiro, onde encontrará um rolo salvador? Na bolsa dela! Na primeira pontada de uma enxaqueca, onde encontrará o medicamento redentor? Na bolsa dela!


Descosturou a camisa, onde achará linha e agulha? Na bolsa dela! Somando os prós e os contras, o problema existencial resultará num empate. Como voto de minerva, sugiro não carregar a bolsa, porém realizar um curso de massagem para aliviar as dores nas costas de sua esposa.

sábado, 23 de agosto de 2014


24 de agosto de 2014 | N° 17901
MARTHA MEDEIROS

Feliz aniversário

Ela sabe que é um pensamento improdutivo, mas mesmo assim se preocupa com a passagem do tempo, parece uma menina assustada diante do acúmulo de números que sua idade vem ganhando. Não entende onde foram parar seus 16 anos, seus 21, seus 29, seus 35, seus 42.

Ora, onde eles podem estar? Todos ainda dentro dela.

Ao assoprar as velas, a sensação é de que o passado também se apaga e um presente totalmente novo é inaugurado. Sendo virgem da nova idade, é como se estivesse nascendo naquele específico dia com pequenas rugas e manchas surgidas subitamente, e não trazidas do antes. Como se estivesse vindo ao mundo na manhã do festejado dia com os quilos, as dores e os limites de um adulto recém-nascido e com uma expectativa de vida mais curta, sem registro algum do tempo transcorrido até ali, aquele tempo que sumiu.

Sumiu nada.

Você tem seus 16 anos para sempre. Seus 21. Seus 25 e todos os outros números que contabilizou a cada aniversário: você tem oito anos, você tem 19, você tem 37. Você só ainda não tem o que virá, mas os anos que viveu ainda estão sendo vividos, são eles que, somados, lhe transformaram no que é hoje. Sua idade atual não é uma estreia, você não nasceu com esses anos todos que sua carteira de identidade diz que você tem. Só o dia do seu nascimento foi uma estreia. Desde então, você nunca mais saiu de cena. Ainda estão em curso seus primeiros minutos de vida.

Você ainda sente o nervosismo das primeiras vezes, as mesmas dúvidas diante das escolhas, o afeto por pessoas que foram importantes lá atrás, a adrenalina dos riscos corridos. Nada disso evaporou. O ontem segue agindo sobre você, segue interferindo na sua trajetória. É a mesma viagem, a mesma navegação. O meio de transporte é seu corpo, e ele ainda não atracou.

Mas e todo aquele peso extra que você um dia jogou ao mar? Não muda nada. A viajante que durante o percurso vem se desfazendo de algumas coisas continua sendo você. Aquele instante aos 19 anos ou aos 26 em que você cruzou o olhar com alguém que modificaria seu futuro continua acontecendo, o ponteiro continua se mexendo, o tempo não parou. Desiludem-se os amantes apaixonados que, quando se instalam num amor maduro, não encontram mais a mágica anterior que fazia o tempo parar, mas não se deve ser tão fatalista, você não tem 18 anos, ou 37, ou 53. Você tem 18, 37 e 53. No que tange o tempo vivido, não há “ou”. São várias idades contidas numa frequência cardíaca ininterrupta.


Você chegou a uma idade gloriosa, a idade de entender que não existem perdas, só ganhos. Não existe envelhecimento, e sim desenvolvimento constante. O tempo não passa, ele está sempre conosco. O novo não ficou para trás, ao contrário, o novo está adiante: na vida que ainda está por vir.

24 de agosto de 2014 | N° 17901
FABRÍCIO CARPINEJAR

O dia seguinte hoje

Ao fazer festa em casa, do que mais gosto é a bagunça.

Não da festa em si, mas daquilo que precisarei arrumar no dia seguinte.

Sou vidrado pela ideia de reconstrução de um ambiente em algumas horas.

Tudo repentinamente fora do lugar, sujo, imundo, e há o desafio de reencontrar a ordem natural das coisas.

É uma recriação do mundo num final de semana.

O corredor beira o estado de sítio, o banheiro sofreu com o desespero dos boêmios, as estantes dos livros estão cheias de bandejinhas de salgados.

Nem espero o dia seguinte.

Nada mais íntimo dentro de um casamento do que o silêncio das 6h. Todos já foram embora, felizes com a balbúrdia, e nós dois decidimos ajeitar o lar enfrentando o cansaço.

O previsível era deitar com a roupa do corpo e desmaiar, desprezando os escombros e a vida virada pelo avesso.

Mas não, eu e minha mulher adoramos o pós-festa, quando estamos sozinhos.

Reina uma sensação de paz, de sobrevivência.

A faxina é partilhar a memória do encontro. Melhor do que roda de violão.

A faxina é fixar as lembranças antes que sejam corrompidas pela enxaqueca do meio-dia.

Ela segura o lixo de 100 litros e eu vou buscando as garrafas de cerveja espalhadas pelos cantos.

Vamos conversando sobre as cenas mais engraçadas da festa, o comportamento dos amigos, as coreografias das músicas ridículas.

Cada um repassa o que viu e o que conversou. Como anfitriões, tínhamos o trabalho de nos revezar por diferentes turmas e atender a todos, não deixar ninguém excluído e isolado. Naquele momento, completamos o quebra-cabeça da noite.

– Você falou com a Vanessa? E como ela está com o marido?

– Sim, pareciam alegres. Já passou a tormenta.

De nosso papo frugal, seguimos com o rodo e a vassoura, um encarando o outro com ternura.

De vez em quando, reclamo da dor nos braços. De vez em quando, ela reclama da dor nos pés. São exclamações naturais do sacrifício que não se estendem por muito tempo.

Ela massageia rapidamente meus ombros e diz que providenciará uma massagem mais tarde. Eu tiro seus sapatos, apertos seus dedos e juro que depois pego um creme para aliviar o estresse.

A admiração é feita de pequenas pausas e promessas.

E seguimos nosso baile mudo, nossa coreografia de espuma e detergente.

Lamentamos uma mancha que não sairá no sofá ou algumas cicatrizes novas nas paredes. Não choramos por algo que tenha sido quebrado. Entendemos que a amizade é para ser usada.

Recolhemos o exército de copos e cálices, os pratos sujos, e não nos intimidamos com a quantidade de louça que ocupa a mesa inteira da cozinha.

Dividimos as tarefas: primeiro os copos, depois os pratos, em seguida os talheres. Assim não sofremos com a dimensão assustadora do compromisso.

E continuamos nossa troca de impressões ouvindo os pássaros assobiando ao longe. Não temos certeza se são os rumores das aves ou se é a claridade cantando lentamente na janela.

Ela pergunta se estou com fome. Paramos um pouco nossa arrumação para esquentar salgados e comer sentados no chão da cozinha, na posição de índios ao redor da fogueira.

Corre entre nós uma cumplicidade apaixonada, como se só nossos olhos dançassem.

O amor não é apenas uma festa, como alguns imaginam. O amor é também dividir o trabalho de limpar a casa.


Acordamos com o apartamento brilhando e nos beijamos de olhos fechados, ainda sonhando.

23 de agosto de 2014 | N° 17900
PAULO SANT’ANA

Sobreviveu à tortura

Volto hoje, como prometi anteontem, a reproduzir o relato da colunista de O Globo Miriam Leitão ao jornalista Luiz Cláudio Cunha, sobre os horrores que sofreu durante a ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964.

Meu propósito é somente o de que nunca mais se reproduza uma ditadura no Brasil.

Continua Miriam: “Não recebi um único telefonema, não vi nenhum advogado, ninguém sabia o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se as pessoas tinham ideia do meu desaparecimento.

Só três dias após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha sido presa. Ele procurou muito e só conseguiu me localizar no fim daquele dezembro. Havia outros presos no quartel, mas só ao final de três semanas fui colocada na cela com as outras presas: Angela, Badora, Beth, Magdalena, estudantes, como eu.

Fiquei 48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 quilos de peso, saí três meses depois pesando 39 quilos. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, tinha enormes chances de perder meu bebê. Foi o que o médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas, me disse o médico.

– A má notícia eu já sei, doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que fazer para aumentar as chances do meu filho.

Mas isso foi ao sair. Lá dentro, achei que não havia chance alguma para nós. Eu era levada de uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde passava por outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos, para manter o clima de terror, de intimidação. Na noite seguinte, atravessei a madrugada com uma sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois berrando, me ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar.

Um dia, achei que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento. Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: ‘Eu sou muito nova para morrer. Quero viver’”.

“Numa noite, numa sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o tempo todo me alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles me obrigou a deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam no limite do estupro, divertindo-se com tudo aquilo.

Eu estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro. Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra que enlouquecia a cachorrada: ‘Terrorista, terrorista!’.”

“Sobrevivi e meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela. Ele me deu duas netas, Manuela (três anos) e Isabel (um). Do meu filho caçula, Matheus, ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu maior patrimônio.


Minha vingança foi sobreviver.”

23 de agosto de 2014 | N° 17900
CLÁUDIA LAITANO

Irreversível

Uma história brutal, narrada do fim para o começo. No início, vemos um homem esmagar a cabeça de outro com um extintor de incêndio. Algumas sequências depois, mais violência: uma mulher é estuprada em uma passagem subterrânea de metrô. Mais adiante, ficamos sabendo que o homem massacrado da primeira cena é o estuprador, e que o assassino é o marido da vítima.

A história termina com uma cena quase bucólica de paz e tranquilidade, cronologicamente anterior aos terríveis episódios narrados no filme. O cinema concretiza o que na vida é apenas uma fantasia: inverte a lógica do tempo e dá pause em um instante de felicidade. O efeito no espectador, porém, é exatamente oposto ao do apaziguamento.

Não recomendo Irreversível (2002), do diretor franco-argentino Gaspar Noé, para ninguém que tenha por hábito evitar cenas de brutalidade explícita na arte como na vida, mas é preciso reconhecer que esse filme desconfortável e quase desmedido em sua exibição crua da violência é capaz de mobilizar no espectador a compreensão aproximada do que seja um estupro. São 10 minutos praticamente intoleráveis no cinema, em que a agressão é despida de qualquer elemento que atenue a tortura física e psicológica que está em curso.

O que chama a atenção no caso do médico Roger Abdelmassih, quase tanto quanto a facilidade com que escapou da lei até agora – o que infelizmente não chega a ser surpreendente levando-se em conta sua classe social – é o fato de suas vítimas serem mulheres de classe média e classe média alta, como ele – ou seja, com todas as condições para contratarem bons advogados e denunciarem os crimes.

Nem isso, porém, intimidou o médico, tão grande era a sua arrogância e tão respaldado ele se sentia pela profissão, pela classe social, pelo sexo e pelo tipo de crime que cometia – o tipo que faz vítimas terem vergonha de falar e autoridades terem dificuldade para ouvir.

O que nos leva a imaginar o cenário terrível de um crime parecido que tivesse como vítimas mulheres pobres, de periferia, envergonhadas, sem acesso à justiça ou à informação. Quanto tempo levaria para elas serem ouvidas? Quantos estupros pareceriam estupros demais até que alguém fosse punido?

Uma das funções do sistema penal é evitar que as vítimas tenham ganas de sair por aí esmagando a cabeça de quem cometeu um crime contra elas. É preciso punir os criminosos, portanto, não apenas para tirar o malfeitor de circulação, evitando que cometa outras infrações, mas também para dar uma satisfação às vítimas e, principalmente, para desencorajar que outros crimes aconteçam pela sensação de impunidade.


A história pessoal de quem sofreu uma violência é irreversível, e a Justiça é o único alento possível para as vítimas. Mas não apenas para elas. Porque quando um criminoso não é punido ou sua punição parece desproporcionalmente branda ou lenta, a violência, no fim das contas, é contra todos nós.
RUTH DE AQUINO
15/08/2014 21h38 - Atualizado em 17/08/2014 11h49

Quem tem medo de Marina?

Viúva política de Eduardo Campos, a coerência dela assusta a quase todos. Não é normal no Brasil
 
Os olhos de Marina Silva falaram muito na semana passada. Sombrios, avermelhados, estavam ora cabisbaixos, ora elevados ao céu em conversa particular com seus santos. Nenhuma maquiagem. Acima dos olhos, as sobrancelhas espessas, sem depilação. Abaixo dos olhos, as olheiras escuras, sem disfarce.

O coque, a echarpe preta, a austeridade, sem choro ou afobações. Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima, nascida no Acre em fevereiro de 1958, filha de seringueiros migrantes cearenses, contaminada por mercúrio aos 6 anos, analfabeta até os 16, aluna do Mobral, ex-empregada doméstica, formada em história, sobrevivente de malárias, hepatites e uma leishmaniose, continua a mesma. É evangélica, sempre se despede com um “vá com Deus”, mas não busca abertamente o voto dos crentes. Essa coerência assusta a quase todos. Não é normal no Brasil.

Marina é a viúva política de Eduardo Campos, queiram ou não. Talvez nunca um candidato tenha citado tanto seu vice. Ela passou dez meses ao lado de Campos, calada em público mesmo quando divergia. Era curioso o contraste físico e de personalidades. Campos esfuziante, forte, com o sorriso aberto e o brilho dos olhos azuis. Marina morena, magra, séria, sóbria e discreta. Agora, terá de falar – e muito. O que manteve Marina silenciosa nos dias após a tragédia foi um misto de luto, elegância e prudência.

Há raposas em todos os partidos – no PT, no PSDB e também no PSB – em busca dos destroços e holofotes. Querem decifrar a caixa-preta dos eleitores órfãos e herdar os votos da terceira via. A família de Campos, em meio a lágrimas e ao sofrimento, foi a primeira a legitimar Marina como herdeira natural do slogan da “coragem” para mudar o país. “Não vamos desistir do Brasil”, disse Campos. A ex-senadora Marina é a herdeira do “voto-comoção”. Todos os obituá­rios de Campos a fortalecem, porque compartilhavam valores e a dissidência do petismo.

“Se tenho um exemplo a dar com minha trajetória, é o da coragem, que não é a da força bruta, mas de saber manejar sonhos e catalisar energia”, disse Marina. A declaração poderia ter sido feita na semana passada. Foi há mais de dez anos, quando era ministra do Meio Ambiente de Lula.

Essa falta de medo está tatuada na pele de Marina. Em 1988, quando assumiu a CUT e a política do Acre depois de Chico Mendes ser assassinado, afirmou que não sofria amea­ças: “Um corpo frágil não assusta ninguém”.

Quando José Dirceu, já ex-ministro, escreveu que o mandato de Marina pertencia ao PT, ela reagiu dizendo que já havia enfrentado madeireiros, fazendeiros, cangaceiros: “Com certeza, o Zé não fez isso para me intimidar; não faz parte do caráter dele”.

Há cinco anos, em agosto de 2009, depois de engolir muito sapo, Marina trocou o PT pelo PV para se candidatar à Presidência. Era pelo verde, pelo social e por muito mais que saía de perto de Lula e da mãe do PAC, Dilma Rousseff. Colheu quase 20 milhões de votos, deixou o PV após a eleição de 2010 e tentou, no ano passado, abrir um novo partido, Rede Sustentabilidade. Nome péssimo para o marketing político – mas, de novo, coerente. Não é uma sigla vazia.

Sem o limite mínimo de assinaturas válidas, Marina ignorou os companheiros xiitas e pendurou sua Rede no PSB de Eduardo Campos em outubro de 2013. Foi uma jogada de xadrez do tipo “vocês terão de me engolir”. Ela não podia imaginar o que o tabuleiro político lhe reservava ainda nesta eleição. Na fumaça da tragédia, em suas orações diárias, a Marina fundamentalista precisa pedir três coisas: sabedoria, sabedoria, sabedoria.

Uma vez, Marina escreveu um artigo para a imprensa chamado “O improvável e o imprevisível”. Um título quase premonitório. Foi seis anos atrás, ela ainda estava no PT. Citava várias vezes a filósofa alemã Hannah Arendt para criticar a arrogância dos partidos, que se consideram donos da energia política da sociedade. Eis um trecho, editado:

“O sentido da política é a liberdade. Os cidadãos e cidadãs estão criando uma política livre, viva, na academia, nos movimentos culturais, no consumo consciente, na internet, nas empresas, nas ONGs, nas igrejas. O grande desafio da democracia é criar espaços múltiplos de participação política, nos quais os partidos sejam parceiros e não guias. Os homens, enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível. É o que a sociedade brasileira está fazendo. E os partidos ainda não se tocaram”.

Marina escreveu isso em 2008. Seu pescoço projeta veias caudalosas. Sua voz é arranhada. Rugas estão intactas. Não parece se curvar facilmente a nenhum “media training”. Por que será mesmo que tem tanta gente com medo dela?


quarta-feira, 20 de agosto de 2014


20 de agosto de 2014 | N° 17896
MARTHA MEDEIROS

Mau tempo

Quando leio notícias como a do acidente que vitimou Eduardo Campos, me dá um mal-estar não só por ser mais um aviso sobre a precariedade da vida, mas por reconhecer que, quando não se morre de doença, se morre de chuva, de vento, de tempestade. É outro tipo de morte por causa natural.

As quedas de aeronaves são bem representativas. Dificilmente caem por desgaste mecânico. Ou são abatidas pelas mãos do homem (ataque terrorista e falhas humanas) ou são abatidas pela falta de visibilidade, pela instabilidade provocada por pressões atmosféricas, por arremetidas que são sempre manobras súbitas, e por isso o frio na barriga. Os problemas técnicos na aeronave do candidato à Presidência surgiram posteriormente à arremetida – se as condições meteorológicas fossem boas, tudo indica que teria aterrissado com tranquilidade.

Acidentes de carro acontecem mais em dias de pista molhada do que seca. Engavetamentos em estradas acontecem quase sempre por causa de nevoeiros, temporais e nevascas.

Pessoas perdem tudo o que têm em enchentes e deslizamentos de terra, barcos naufragam no mar revolto, ondas gigantes invadem praias, casas são destelhadas por tufões, suicídios acontecem mais no inverno do que no verão. A tragédia, decididamente, não é solar.

A vida muda – e até termina – por uma questão que está fora do nosso controle, o clima. Há paliativos, ok. Pode-se prever e minimizar os riscos, mas não se pode evitá-los, então somos ceifados por uma potência destrutiva que não vem da maldade do homem e sim do humor da natureza e que atinge a todos: crianças, velhos, pobres, ricos, pessoas de qualquer lugar, de qualquer idade, numa loteria democrática, mas sempre injusta.

Quando vejo moradores varrendo a lama de suas moradias no dia seguinte ao de um estrago devastador, me parece uma provocação: o céu límpido retorna ao local do crime com a maior cara de pau. O sol no dia seguinte ao de um tsunami é um convidado atrasado, alguém que não conseguiu chegar a tempo de impedir uma desolação. É bem-vindo porque traz a possibilidade de reconstrução, porém a reconciliação é provisória. Pessoas que perdem seus filhos, maridos e esposas para os desatinos climáticos são confrontadas com a total falta de lógica da existência.

Como diz uma amiga minha, “a morte é definitiva demais para o meu gosto”. De fato. E mais definitiva nos parece quando acontece de uma hora para outra, pelo capricho de nuvens pesadas, garoas insistentes, rajadas desestabilizadoras, umidades traiçoeiras, por um anoitecer prematuro, por relâmpagos, pelo cenário típico dos pesadelos, que, ironicamente, tem lá sua poesia e sua beleza, como em toda tragédia – desde que a gente sobreviva a ela, claro.


Ninguém deveria morrer de mau tempo, mas a natureza não negocia.

sábado, 16 de agosto de 2014


17 de agosto de 2014 | N° 17893
MARTHA MEDEIROS

O invariável

Outro dia escutei uma mulher separada decretar o fim da mesmice: resolveu se esbaldar na vida. Disse ela que não queria mais saber de relação fixa e que saía quase todas as noites a fim de se divertir apenas. Tem conhecido muitos caras diferentes, com alguns chega às vias de fato, e é isso aí, adeus à monotonia.

Mas o olhar dela não soltava faíscas, ao contrário, parecia bem opaco.

Naquele momento, lembrei uma frase do blog de um amigo paulista, o Eduardo Haak. Ele recentemente escreveu: “Nada é mais invariável do que as supostas variedades”. De primeira, quando li, me bateu uma estranheza, fiquei na dúvida se ele estava sendo irônico ou o quê, até que, ouvindo a moça baladeira contar de seus recordes de revezamento, me dei conta de que a situação dela era ilustrativa: toda variação que se torna sistemática também é mais do mesmo.

Ou seja, nada impede que a busca de um amor a cada sexta-feira se torne uma situação igualmente sujeita ao tédio. Virar refém da variedade pode ser uma atitude tão rotineira quanto dedicar-se a uma única pessoa por anos – arrisco até dizer que, ao dedicar-se a uma única pessoa, a chance de se ter uma vida mais dinâmica dispara.

Por quantas fases passa uma relação? O frio na barriga inicial, a paixão febril, as surpresas a cada nova revelação, as descobertas feitas a dois, a aproximação dos corpos, a intimidade cada vez maior, os amigos e a família agregando-se, cada viagem uma lua de mel, a troca de confidências, as diferenças aparecendo, os acordos feitos para manter a coisa funcionando, ajustes necessários, a paixão virando amor, a segurança da companhia um do outro, as fotografias se acumulando, planos sendo feitos a longo prazo, a primeira briga, as saudades.

A consciência de que aquela pessoa é essencial, o reatamento, as juras, os cuidados para que não desande nunca mais, todos os cinemas, cafés da manhã, leituras compartilhadas, risadas, os comentários de fim de festa, as piadas internas, a confiança, os cafunés, os pedidos de conselho, a hora de ser amigo, a hora de ser bandido, o sexo evoluindo, o amor se fortalecendo, a passagem do tempo trazendo novos desafios, o orgulho pelo que está sendo construído, os estouros, os gritos, os beijos de novo... ufa, alguém aí me alcança um copo d’água?

Amar não é para amadores, e quando a relação é honesta, sólida e os protagonistas têm algum tutano, duvido que o enfado dê as caras.

É a variedade de parceiros que evita o aborrecimento? Nunca funcionou comigo. Nem no amor, nem fora dele. A alucinada atualização de notícias, a velocidade das redes sociais, os dias pulsando em ritmo supersônico, tudo o que não permite foco e entrega, hoje em dia, só me causa bocejos. Aprofundar-se é que é a verdadeira vertigem.

17 de agosto de 2014 | N° 17893
FABRÍCIO CARPINEJAR

Está ferrado: ela sabe de tudo

Homem finge que presta atenção, já a mulher finge que não presta atenção.

Ela grava tudo o que está acontecendo.

Não precisa de câmera pela casa se você está casado.

Sua companhia não depõe as armas, não descansa os ouvidos, não perde uma conversa.

Ela lhe cuida mesmo quando é indiferente, ela lhe observa mesmo quando vira as costas, ela lhe ama mesmo quando parece não amar.

Homem realiza uma tarefa de cada vez, mulher jamais se contenta com uma tarefa.

Na aula de yoga, ela estará se alongando perfeitamente, cantando o mantra, respirando como um monge e também conferindo o estado de suas unhas, qual brecha marcará a manicure, o que almoçará, o que falta entregar do trabalho. Homem preocupado não dá conta nem de sua cãibra.

Descobrirá sua onipotência auditiva na discussão de relacionamento.

Na briga, ela lembrará o que você jurava que passou em branco. Trará o que você tinha certeza de que ela não percebeu. Comentará o que você confiava que não tinha sido registrado.

Homem acredita na impunidade de seus atos. Se aquilo não foi dito no calor da hora, então está livre do julgamento. Que nada! Não existe prescrição de crime no mundo feminino. Ainda que demore meses, anos, décadas, um dia ela vai pedir explicações.

Toda esposa é a justiça encarnada.

Se ela não falou no ato não significa que não viu, somente não quis falar.

Guardará a cena para devolver no momento certo. Seu hábito não é desmascarar uma mentira, porém preparar o flagrante.

Pode suar frio, ela sabe. Pode treinar no espelho, ela sabe. Pode forjar álibis, ela sabe. Pode ensaiar com os amigos, ela sabe. Pode esperar que ela sabe.

Mulher controla os detalhes, as palavras, revisa as frases, testa coerência e continuidade do seu raciocínio em minutos, checa seus antecedentes, cruza dados e fotos, verifica suas pequenas mudanças de comportamento, compara situações e respostas do histórico da relação.

Ela vem com um aplicativo da Polícia Federal a mais no seu DNA.

Se está distraída, esteja convicto de que está disfarçando.

Homem simula que escuta, pega a última frase que escutou e improvisa. Mulher faz o maior dos esforços para se mostrar desinteressada. Sua sensibilidade não sossega um minuto. É uma capacidade monstruosa e maravilhosa de nunca se ausentar.

É pior do que escoteiro: sempre alerta. É evidente que sua concentração absoluta tem efeitos colaterais: o estresse, a irritabilidade, as longas enxaquecas. Mas são consequências naturais para quem fica ligada dia e noite nas movimentações do amor.


Não tem como enganar uma mulher. A única chance é ela se enganar por vontade própria.

17 de agosto de 2014 | N° 17893
ANTONIO PRATA

2001 – Uma odisseia no espaço

Com a minha filha no colo, sentado no chão da sala, leio um livro. “Leio” é maneira de dizer: ela vira as páginas aleatoriamente, vai pousando o indicador nas figuras e eu fico falando “bola”, “avô”, “au au”, “pantufa”, “astronauta”, “isso eu não sei o que é, filhota, parece uma nuvem, mas talvez seja um ovo frito”.

Enquanto “lemos”, bebo uma água, direto da garrafinha. Já acostumado aos pequenos atos de vandalismo a que uma criança de um ano se dedica – basicamente, arremessar ao chão todo e qualquer objeto que consiga agarrar, com o intuito estritamente científico de analisar as consequências físicas e psicossociais do impacto com o solo –, atarraxo a tampa vermelha à garrafa, depois de cada gole.

Não demora para que ela se canse da “bola”, do “avô”, do “au au”, da “pantufa”, do “astronauta” – e do que, desconfio agora, seja uma ovelha voadora – para se vidrar na tampinha. Que coisa incrível, diz seu olhar, uma hora tá na garrafa, outra hora na sua mão, como gruda, como desgruda, posso tentar?

Termino a água num gole e vou tampá-la, mas minha filha é mais rápida: arranca a garrafa da minha mão direita, a tampa da esquerda e engatinha até o meio da sala. Ela olha a tampa, olha a garrafa e olha pra mim, com o mesmo entusiasmo que eu dedicaria a uma final de Copa: vai começar o grande desafio da tampa de rosca.

Ela segura a garrafa na diagonal e tenta encaixar a tampa. A tampa cai: uma, duas, três vezes. Na quarta, ela percebe que há algo errado. Suspira. Coloca a tampa de lado e, com as duas mãos, tenta deixar a garrafa de pé, no chão. Não é fácil. A gravidade é sua inimiga. (Talvez a maior de todas – empatada com a escuridão, à frente do espinafre.)

Cada vez que a garrafa tomba, ela dá um gritinho de ódio, mas não desiste. Até que, lá pela décima quinta tentativa, ela consegue. A garrafa está ali, parada no meio do tapete de sisal como o monolito no deserto, em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Ela me olha. Sabe que o jogo não está ganho, que o mais perigoso vem a seguir, mas não demonstra temor.

Ela pega a tampinha ao seu lado, vai levando em direção à garrafa e tudo, a partir daí, é em câmera lenta. Em algum lugar, toca Assim Falou Zaratustra. A tampa toca a boca da garrafa. A garrafa balança, mas não cai. Dum-dum-dum-dum-dum-dum, reverberam os tímpanos. Ela levanta um pouco a tampa. Tenta de novo. Olha pra mim. Tchanaaam, explodem os metais. Não sei que cara fazer. Não quero pressioná-la para o sucesso nem, com a minha ansiedade, condená-la ao fracasso. (Sutis são os dilemas da paternidade.)


Finalmente, ela solta a tampa. A tampa fica em cima da garrafa. Meio tortinha, não rosqueada, mas fica. Tchanaaaaaam. Ela bate palmas e ri. Eu aplaudo de volta: pequena gênia, futura arquiteta, cientista, Medalha Fields, ouro nas barras paralelas, “olha só o que você conseguiu!”, digo, com os olhos marejados. Penso em guardar a garrafa, em banhá-la em cobre, colocá-la no alto da estante, mas minha filha tem outros planos: com um tapão, lança longe garrafa e tampa, engatinha pra perto de mim e fica batendo o dedinho no livro, aberto sobre o tapete; “bola”, “avô”, “au au”, “pantufa”, “astronauta”, “ovo? Ou será uma ovelha?”.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014


13 de agosto de 2014 | N° 17889
MARTHA MEDEIROS

Onde fui amarrar meu bode?

Sempre simpatizei com essa expressão, tanto que a uso direto em conversas entre amigos, mas nunca a relacionei com meu trabalho. Pois chegou o momento: onde fui amarrar meu bode na hora em que resolvi dar pitaco sobre Torres?

Não leio o que rola nas redes sociais, mas já soube que fui esculhambada num grau temeroso: não duvido que temperem minha casquinha de siri com soda cáustica caso eu ouse retornar à cidade.

Bom, aos fatos. Quarta passada, publiquei uma bronca por a praia da minha infância não ter realizado seu potencial, com a burrada de ter falado em beleza, charme e bom gosto quando se sabe que são valores relativos, e de ainda ter concluído o texto subestimando o estrago dos prédios altos à beira-mar, como quem diz: perdido por um, perdido por mil. Com 20 anos de colunismo nas costas, eu já deveria ter aprendido algumas coisinhas sobre o poder desastroso das ironias.

A boa notícia é que estou desinformada, segundo os moradores. É possível. Fui a Torres poucas vezes nos últimos anos, por no máximo 48 horas, sendo que a última foi em fevereiro deste ano, quando me hospedei na Prainha, que é onde a Torres real ainda equaliza com a Torres da minha fantasia.

Não circulei, não fiquei 10 dias, um mês, e por isso não sabia nada sobre o que me contaram: que a atual gestão está empenhada em corrigir os descasos das gestões anteriores, que Torres faz parte de uma Rota Gastronômica, que há muitos hotéis e pousadas de primeira linha, que turistas estrangeiros costumam visitar a cidade com frequência, que um cinema 3D será inaugurado em novembro, que não há mais areia sobre o calçadão e que eu sou uma toupeira, claro.

Assim como eu não sabia dessa evolução toda, talvez muitos brasileiros também não saibam, já que Torres não costuma ser indicada como destino turístico imperdível. A revista Claudia, publicação feminina de maior circulação do país, veiculou uma matéria na edição de julho cujo título foi “Seja bem-vindo, tchê!”, em que personalidades nacionais nascidas aqui (escritores, atores, atletas, blogueiros, apresentadores, chefs de cozinha) recomendavam os lugares que não se deve deixar de visitar no Rio Grande do Sul.

Eles citaram as cidades da Serra, os aparados, os vinhedos, o pampa, algumas cidades do Interior e a Capital. O esquecimento da mais bela praia do litoral gaúcho pode ter sido por causa do inverno, mas aconteceu: Torres foi mencionada uma única vez. Modestamente, por mim. Que minha defesa arrole isso nos autos.

Continuo achando que Torres merecia uma infraestrutura turística de muito mais qualidade, mas já que os moradores garantem que estão chegando lá, retiro o desânimo, peço desculpas pelo mau jeito e em breve voltarei à cidade para conferir in loco. Garçom, a minha caipirinha sem cianureto, por favor.


domingo, 10 de agosto de 2014


10 de agosto de 2014 | N° 17886
PARTO O OUTRO LADO

A hora da transformação

Na madrugada de 24 de julho, na sala de parto do Hospital Moinhos de Vento, Eduardo Homrich Granzotto conseguiu traduzir em uma imagem luminosa o que um homem vê e sente no instante em que se torna pai. Ele puxou o celular e fotografou o momento exato em que o filho, Marco, passou do ventre da mãe às mãos do obstetra. Horas depois, ao deparar com a foto que nem lembrava ter feito, Eduardo emocionou-se ao ver que ela resumia e simbolizava a experiência pela qual passara.

– Mesmo sendo involuntária, a foto passa a emoção que eu estava vivendo. A pelve da Fabiana aparece iluminada, ilustrando a ideia de dar à luz, enquanto a lâmpada cirúrgica forma uma aura sobre a cabeça do obstetra na hora em que ele traz ao mundo uma nova vida – interpretou o pai.

Otorrinolaringologista, Eduardo havia recém operado um paciente quando chegou ao Moinhos de Vento, na noite do dia 23, para acompanhar uma avaliação da mulher, a dentista Fabiana Caramori Noal Granzotto. A ecografia indicou que o nascimento do primeiro filho do casal, os dois com 35 anos, era para já.

O trabalho de parto se estendeu até 4h50min, quando Eduardo foi chamado para ver o filho nascer. Ao entrar na sala, ele viu-se envolvido pela melodia de uma canção do grupo Coldplay, em versão infantil, que saía do celular do obstetra Edson Vieira da Cunha Filho. Eduardo posicionou-se atrás do leito e pousou a mão direita na cabeça de Fabiana. A mão esquerda ficou colada à perna, cerrada. Na outra ponta, o médico antecipou que Marco teria os cabelos claros e começou a incentivar Fabiana:

– Força aqui embaixo, Fabi! Aqui embaixo! Empurra o Marco para fora. É tu quem vais fazer o Marco nascer. Isso, Fabi. Não para. Não para. Vamos, guria!

Vendo o esforço da mulher, Eduardo levou também a mão esquerda à cabeça dela por um instante. Reclinou-se e beijou-lhe a testa. Sentiu que, a cada vez que ela forcejava, ele também pressionava o chão com a perna, instintivamente, para ajudar.

– Não para que está vindo! O Marco vai nascer. Não para. Força – disse Edson.  – Não é a força que me cansa, é a falta de ar – explicou Fabiana, parando para recuperar o fôlego.  – Agora ele vem! Está sobrando, esse bebê. Fabi, é um espirro que tu dás, e nasce o Marco.

Sem perceber, Eduardo começou a pressionar com força a cabeça da mulher, para baixo, como se assim pudesse empurrar o filho para fora – Fabiana contaria que a pressão do marido na cabeça era uma das lembranças marcantes do parto. Logo em seguida, um choro espalhou-se pela sala.

– Oi, Marco véio! – saudou o obstetra.

Nesse instante, Eduardo esqueceu a câmera no pescoço e apanhou o celular para a primeira foto do filho. Em seguida, colocou-se ao lado da cama, inclinou a cabeça e contemplou o menino bem de perto, demoradamente. Os olhos marejaram.

– Tudo o que eu tinha só imaginado por nove meses se materializou ali. Foi como olhar uma obra de arte. É como diz meu tio: a mulher sente a criança durante toda a gestação, mas o pai fica de fora até o nascimento. Quando nasce, é muito forte, cai a ficha. A gente fica olhando o bebê e aquilo vai pesando: “Puxa, é um ser vivo que veio de mim”. É assim que aflora o amor de pai – descreveu.

Quatro dias depois, Eduardo já se reconhecia como uma pessoa transformada pela nova condição:

– Apesar de ser tão recente, já dá para dizer que sou outra pessoa. Antes eu comia em qualquer lugar. Agora tento me organizar para almoçar em casa. No consultório, comecei a atender crianças de forma distinta. Não sei dizer o que mudou, mas tive a sensação de que é diferente, com mais carinho ainda na hora de examinar. E até o jeito de dirigir é outro, com mais cuidado na distância entre os carros, na troca de pistas, na velocidade. Um filho faz a gente mudar. Mudar para melhor.


FELIZ DIA DOS PAIS para os pais de hoje e os futuros.
Arquivo Aberto - Ode ao pai

Caxias do Sul, 1974 - TITE
10/08/2014  02h39

Minha formação como homem sempre foi moldada dentro do futebol. Desde criança, as referências que tive em relação a valores, comportamento, retidão foram de meu pai, através de vivências que tive dentro das quatro linhas do gramado junto dele ou observando-o agir.

Meu pai, Genor Bachi, era um descendente de italiano apaixonado por futebol e técnico de times do interior do Rio Grande do Sul. Sempre tive nele meu grande exemplo. Óbvio que ele tinha defeitos, e faço aqui este registro por um senso de justiça, porque se fosse apenas ouvir meu amor de filho, só enalteceria suas virtudes. Minha mãe, Ivone Bachi, hoje com 78 anos, era o outro pilar da casa e, junto com ele, criou três filhos.

Arquivo Pessoal    
Tite (1º da esq. para a dir. em pé) e seu pai (penúltimo, de bigode) no Juvenil de São Braz nos anos 70

Foi meu pai quem me levou pela primeira vez para assistir a uma partida de futebol, no estádio do Juventude, de Caxias do Sul, time do coração dele. O jogo era à noite: os refletores, a energia do estádio, os atletas, aquilo para mim foi o máximo. Foi ele, técnico do time Juvenil de São Braz, quem me deu, aos 13 anos, muito mais novo que os guris que jogavam, a primeira oportunidade de estrear em uma partida de futebol, no segundo quadro do time.

Foram cinco minutos apenas dentro de campo usando a camiseta do time, que parecia uma grande saia que ia até os joelhos. Aqueles minutos representaram para mim a entrada na vida da competição, da entrega, da busca pelo melhor desempenho. Estava subentendida a mensagem do pai: "Vai, filho, te apresento à vida real, ao que tu gostas de fazer".

Ele sempre teve um senso de justiça e igualdade muito presente. Quando um jogo na cidade podia ter problemas de disciplina, chamavam meu pai para árbitro. Trago isso como pilar da minha formação: não vencer a qualquer custo, e sim vencer sendo melhor que os outros.

Certa vez, já com 16 anos, eu jogava uma partida contra um time adversário muito violento, que distribuía pontapés. Sofri uma falta pesada e fui ao chão cheio de dores e de lá percebi um silêncio daqueles que não se costuma presenciar em campos de futebol. Era meu pai, entrando no campo e dizendo para os jogadores do outro time: "Se continuar batendo no guri, vou entrar e bater em ti".

Eu o observava muito e tinha nele um parâmetro na vida. A ponto de, já com 18 anos, como jogador profissional do Caxias, procurá-lo nas arquibancadas sempre antes de começar um treinamento. Ele nunca me falava que ia, mas eu sabia que ele estava lá, num local discreto, para me acompanhar.

Meu pai passou a me ver como adulto no dia em que, nós dois sozinhos, sem ninguém por perto, ele me ofereceu um copo de cerveja. Na minha cabeça, era a passagem do Adenor criança à fase adulta.

Virei jogador profissional, encerrei precocemente a carreira aos 27 e tornei-me treinador, igual ao pai. Sempre que podia eu voltava para casa para recarregar minhas baterias, e ele demonstrava seu carinho me recebendo e preparando um churrasco, costela de preferência, ou perdiz com polenta. Durante as refeições, o conselho: "Coloca os jovens para jogar". Assim como ele me colocou, aos 13 anos.

Quando foi internado, eu ia visitá-lo. Após certo tempo, ele me olhava e dizia que estava bom, que eu deveria retornar ao trabalho para cuidar dos treinamentos. Senso de responsabilidade. Meu pai faleceu tempos depois, mas o carrego comigo sempre. Nas atitudes, nos exemplos. Só tive coragem de dizer que o amava e de lhe beijar o rosto já com mais de 30 anos. Mas o fiz.


Minha primeira reação quando conquistei o Campeonato Brasileiro de 2011 pelo Corinthians foi olhar para o céu e oferecer o título a ele, que me ensinou o caminho do merecimento. Assim como, por gratidão a tudo que ele me fez, pela certeza do legado da educação que me deu, faço questão de dizer: "Pai, os títulos que conquistei são antes teus. Obrigado!".

sábado, 9 de agosto de 2014


10 de agosto de 2014 | N° 17886
FABRÍCIO CARPINEJAR

O colo da letra

Na infância, desprezava a assinatura.

A vida vinha anônima, abundante. Não precisava ser alguém para ser feliz. Nem colocava autoria no desenho, em nenhum lugar. Aquilo que era mundo era meu.

Mas, aos 12 anos, minha mãe chegou com a tarefa que estragou o paraíso da impunidade.

– Treina sua assinatura que amanhã faremos sua carteira de identidade. – Como assim?

– Deve assinar seu nome e depois não pode mais mudar.

Minha história pode ser dividida antes do RG e depois do RG. É como se fosse vítima de abrupta redução da maioridade penal.

A missão me paralisou. Como assinar e não mais mudar? Como oferecer uma forma para sempre?

Foi uma condenação assustadora. Eu me vi preenchendo cadernos de caligrafias diariamente até os 80 anos.

De uma hora para outra, restava-me criar uma personalidade. Um risco autoral. Assumir uma responsabilidade infinita.

Nem tinha noção por onde começar.

Lembrei da profissão de meu pai – escritor – e que ele autografava seus livros para os leitores. Tinha traquejo, experiência, jorrava seu nome com extrema facilidade e sem variação.

Tomei sua assinatura emendada e passei a imitar com o apoio de um papel vegetal.

A grafia paterna se movimentava como um desenho. Um ideograma.

Seu “c” era uma pista de skate. Seu “a” era igual ao “o”, só que vinha na contramão, da direita para esquerda. Seu “l” era uma árvore desfolhada. Seu “j” levantava um sol no acento. E o “r” se derramava como um escorregador.

Já não se assemelhava a uma assinatura, mas ao Parque Marinha do Brasil.

Por um breve momento, eu esqueci a tarefa e me divertia na praça de suas letras. Ficava na fila indiana com os colegas para descer nos brinquedos.

Inventava cenas e diálogos em meio ao sol da página em branco. Meu pai me empurrava no balanço. Meu pai disputava corrida da escada à lixeira laranja. Meu pai cuidava de mim com sua boina, seu casaco de couro e sua gargalhada alta e amiga.

Descobri que letra é feita para sonhar. Assim que criei minha assinatura. Espantada. Grande. Estranha. Absoluto espelho do meu pai.

Exercitei ao longo da madrugada meu nome como se fosse uma continuação do nome do meu pai. Uma extensão de nossas pernas caminhando juntos. Inventei uma centopeia de tinta – minhas botas ortopédicas prosseguindo seus sapatos pretos de bico fino.

Não há nada mais íntimo do que ser um copista e segurar – com a imaginação – a mão de quem a gente admira. Ao falsificar seu traço, me tornei verdadeiro. Ao assinar, dou a mão ao meu pai.

Quando autografo minhas obras, a assinatura do meu pai está por baixo. É a minha sombra. É o meu apoio. É o meu fundo. Ele vive me oferecendo colo por toda a eternidade das palavras.