sábado, 31 de outubro de 2015


01 de novembro de 2015 | N° 18342 
MARTHA MEDEIROS


O cartão do estacionamento

Nada se compara com a relação que tenho com aquele pequeno papel cuspido por máquinas a fim de liberar a entrada

Sou meio avoada, às vezes esqueço onde larguei as chaves, os óculos, mas, até aí, quem não? Nada se compara, no entanto, com a relação que tenho com aquele pequeno papel cuspido por máquinas a fim de liberar a entrada nos estacionamentos de supermercados e shoppings. Pego o tíquete e largo no console do carro. Ou pego e largo em cima do painel. Ou pego e jogo dentro da bolsa. Tudo da mesma forma mecânica como ele me foi entregue, pá pum, e bora entrar no prédio a fim de encontrar logo uma vaga.

Depois de algumas voltas, a sinalização verde em cima de uma vaga indica: liberada, é sua. Então, estaciono. E a partir daí a história de terror pode ter vários roteiros.

1) Eu esqueço a droga do tíquete dentro do carro. Vou ao cinema, vou às compras, faço o que tenho que fazer e então retorno para o carro e reparo que o tíquete ficou ali. Com ódio de mim, lá vou eu de novo para dentro do shopping ou do supermercado a fim de validá-lo para a saída. Perdi minutos que não tenho para desperdiçar.

2) Eu esqueço a droga do tíquete dentro do carro. Vou ao cinema, vou às compras, faço o que tenho que fazer e então retorno para o carro e NÃO reparo que o tíquete ficou ali. Ligo o carro, dirijo até a cancela e só então me dou conta de que não validei o tíquete, e já tem outro carro atrás de mim fazendo sinal de luz ou buzinando histérico. Não podendo dar ré, tenho que encontrar uma rota de fuga lateral ou então chamar alguém pra me ajudar e aí não estou mais com ódio de mim, e sim desejando a extinção da humanidade.

3) Eu não esqueço a droga do tíquete no carro. Carrego comigo. Vou ao cinema, ao teatro ou à Livraria Cultura, no Bourbon Country. Na hora de ir embora, subo pelas escadas rolantes e só quando estou lá em cima é que me dou conta de que os guichês de pagamento estão lá embaixo, escondidos num canto. O plano é fazer com que a gente circule pelos corredores do shopping e seja atraído por alguma vitrine, gastando mais do que o pretendido inicialmente. Genial. Porém, mais genial seria manter os guichês na saída, como era antigamente, a fim de facilitar a vida dos clientes.

4) Eu não esqueço a droga do tíquete no carro, eu faço o que tenho que fazer e antes de ir embora eu lembro de validar o tíquete no caixa do súper ou de pagá-lo no guichê do shopping, tudo direitinho. Então vou até o carro e, nesse curto trajeto entre a saída do estabelecimento e a entrada no veículo, o tíquete some. Desaparece. 

Não o encontro em local algum. Reviro a bolsa, a carteira, olho embaixo dos bancos, dentro do porta-luvas: o tíquete evaporou. Retorno para dentro do estabelecimento com a cabeça baixa e as palmas das mãos unidas e estendidas, podem me algemar. Em qualquer um desses roteiros, a conclusão é de que a culpa é toda minha: ainda vivo no tempo em que estacionamento era de graça.

01 de novembro de 2015 | N° 18342- | 
Cláudia Laitano

Pecados da carne


Bacon, salsicha, linguiça e presunto estão sendo fritados - não como as batatas e os bolinhos de chuva, mas como políticos que correm o risco de perder o mandato e cair no ostracismo. O estudo da Organização Mundial de Saúde que colocou alimentos processados ("sabidamente carcinogênicos") e carnes vermelhas ("provavelmente carcinogênicas") na companhia de cigarro, bebidas alcoólicas, amianto e exposição solar apenas confirmou uma tendência que já vinha ficando evidente nos últimos anos: a comida é o novo tabaco.

Da mesma forma como as campanhas antitabagistas conseguiram transformar leis e hábitos nos últimos 30 anos, estamos assistindo a uma acelerada mudança de cultura em relação ao que comemos - e principalmente ao que deixamos de comer. Do cardápio do McDonald's às festinhas de criança, passando pelo churrasco de domingo e o pão nosso de cada dia, essas mudanças já estão instaladas na nossa rotina. O espírito da época é fechar a boca e abrir os olhos: tem agrotóxico? entope as veias? destrói a natureza? maltrata os animais? é glúten-free?

Essa nova consciência em relação à comida pode estragar o apetite de alguns e limitar o cardápio de outros, mas não é de todo ruim. Saber é melhor do que não saber quando o assunto é saúde e preservação do planeta. Nesse sentido, não adianta ter nostalgia da inocência perdida porque é impossível voltar ao almoço de ontem. O problema é que os estudos sobre alimentos que causam doenças são muito menos conclusivos do que aqueles que demonstram, por exemplo, os malefícios do cigarro. 

Há muitas pesquisas, mas essa abundância de informações, muitas vezes contraditórias, acaba criando angústia e abrindo um enorme espaço para o sensacionalismo, a desinformação e até mesmo para uma espécie de mitologia em relação à comida, opondo veganos e carnívoros, naturebas e glutões, magrelas e rotundos, como se um lado encarasse o outro como uma turba de infiéis que deveria ser convertida o mais rápido possível.

Infiéis? Convertidos? No livro The Gluten Lie, lançado neste ano nos Estados Unidos, o estudioso de religiões Alan Levinovitz apanha essa conversa no ar e mostra que tem se tornado cada vez mais comum o uso de vocabulário moral ou religioso para falar de comida. Para o autor, muito da relação que as pessoas têm com a alimentação pode ser explicado através de padrões de pensamento religioso, e os argumentos para escolher comer carne três vezes por dia ou apenas alface costumam ser mais filosóficos ou éticos do que médicos ou científicos.

Pense nisso na hora de tentar convencer alguém a comer - ou deixar de comer - algo.

01 de novembro de 2015 | N° 18342- | 
Cláudia Laitano

Pecados da carne


Bacon, salsicha, linguiça e presunto estão sendo fritados - não como as batatas e os bolinhos de chuva, mas como políticos que correm o risco de perder o mandato e cair no ostracismo. O estudo da Organização Mundial de Saúde que colocou alimentos processados ("sabidamente carcinogênicos") e carnes vermelhas ("provavelmente carcinogênicas") na companhia de cigarro, bebidas alcoólicas, amianto e exposição solar apenas confirmou uma tendência que já vinha ficando evidente nos últimos anos: a comida é o novo tabaco.

Da mesma forma como as campanhas antitabagistas conseguiram transformar leis e hábitos nos últimos 30 anos, estamos assistindo a uma acelerada mudança de cultura em relação ao que comemos - e principalmente ao que deixamos de comer. Do cardápio do McDonald's às festinhas de criança, passando pelo churrasco de domingo e o pão nosso de cada dia, essas mudanças já estão instaladas na nossa rotina. O espírito da época é fechar a boca e abrir os olhos: tem agrotóxico? entope as veias? destrói a natureza? maltrata os animais? é glúten-free?

Essa nova consciência em relação à comida pode estragar o apetite de alguns e limitar o cardápio de outros, mas não é de todo ruim. Saber é melhor do que não saber quando o assunto é saúde e preservação do planeta. Nesse sentido, não adianta ter nostalgia da inocência perdida porque é impossível voltar ao almoço de ontem. O problema é que os estudos sobre alimentos que causam doenças são muito menos conclusivos do que aqueles que demonstram, por exemplo, os malefícios do cigarro. 

Há muitas pesquisas, mas essa abundância de informações, muitas vezes contraditórias, acaba criando angústia e abrindo um enorme espaço para o sensacionalismo, a desinformação e até mesmo para uma espécie de mitologia em relação à comida, opondo veganos e carnívoros, naturebas e glutões, magrelas e rotundos, como se um lado encarasse o outro como uma turba de infiéis que deveria ser convertida o mais rápido possível.

Infiéis? Convertidos? No livro The Gluten Lie, lançado neste ano nos Estados Unidos, o estudioso de religiões Alan Levinovitz apanha essa conversa no ar e mostra que tem se tornado cada vez mais comum o uso de vocabulário moral ou religioso para falar de comida. Para o autor, muito da relação que as pessoas têm com a alimentação pode ser explicado através de padrões de pensamento religioso, e os argumentos para escolher comer carne três vezes por dia ou apenas alface costumam ser mais filosóficos ou éticos do que médicos ou científicos.

Pense nisso na hora de tentar convencer alguém a comer - ou deixar de comer - algo.

01 de novembro de 2015 | N° 18342 
CARPINEJAR

Maturidade ou indiferença

– Você é jovem e ainda viajará bastante, conhecerá o mundo, não deve adiar os seus sonhos por ninguém. – Gosto do jeito que é, não mudaria coisa alguma em você.


– Sou contra pagar a conta, pois dividir valoriza o seu trabalho.

– Não tenha pressa de se envolver, vamos devagar, seguindo o seu ritmo. A relação é uma construção.

– Já teve quantas histórias? Afinal, se você transa bem é consequência daquilo que já viveu.

– Hoje é melhor eu ficar sozinho para aumentar a saudade.

– Pode se abrir e me contar o que quiser, não há com que se preocupar. Antes de tudo, somos amigos

– Não precisamos nos encontrar todo dia, desejo que não perca a sua independência.

– Você está certa, como sempre.

– Estou passando por uma fase de autoconhecimento e você tem sido extremamente compreensiva.

– Beba com as amigas, vá a festas, a sua felicidade vem em primeiro lugar.

– Eu entendo o que você sente, somos muito parecidos.

– Não quero que sacrifique a sua liberdade por mim.

– Ciúme é burrice, feito para quem busca mandar no outro.

– Estarei aqui quando precisar.

– Tem todo o meu apoio.

– Você é muito importante para mim, não há necessidade de nenhuma prova.

– Sexo não é tudo, há tanto numa relação para se aproveitar.

– Estava escrevendo para você quando me escreveu.

– Você não me sai do pensamento.

– Não ligo para a beleza, eu presto atenção na autenticidade das pessoas.

– Nossa, como você me aceita!, nunca encontrei um homem tão seguro, independente, maduro, compreensivo, equilibrado, calmo, esclarecido, nem um pouco possessivo, capaz de me incentivar sem nenhum egoísmo, sem nenhuma pressão.

(O que ela não sabe é que ele só é assim porque não está apaixonado.)

RUTH DE AQUINO
30/10/2015 - 20h17 - Atualizado 30/10/2015 20h17

Arma, para que te quero?


O “Estatuto do Armamento” fere nosso futuro. Que a sociedade reaja e políticos de bem o vetem

A bancada da bala no Congresso planeja um crime monstruoso contra corações e mentes no Brasil. Ao facilitar a compra, a posse, o porte e o uso de armas de fogo em grande escala, um bando de políticos sem compromisso com a vida humana aprovou na Câmara um texto que nada tem a ver com paz, segurança ou desarme. O texto é um “Estatuto do Armamento” para tornar o Brasil um país de caubóis dispostos a matar ou morrer.

Quais são as mudanças mais clamorosas? O registro da primeira arma passa a ser gratuito e o registro da segunda arma passa a ser mais barato. Irônica promoção, num país com recordes de homicídios. Armas passam a ser vendidas para maiores de 21 anos (e não 25). A posse de armas passa a ser definitiva (revoga-se a necessidade de revalidá-la a cada três anos). O porte, que precisava ser renovado a cada três anos, passa a ser válido por dez anos. A taxa inicial de porte, que era de R$ 1.000, cai para R$ 300. E assim temos a grande liquidação – de armas e de vidas. Corram enquanto podem.

Mais mudanças? O texto aprovado pela “comissão especial” da Câmara amplia os locais permitidos de posse e uso de armas. O que se chamava de “casa” passa a ser “qualquer compartimento privado onde alguém exerce profissão ou atividade, assim compreendidos escritórios, consultórios”. Fico imaginando empresas com funcionários armados no refeitório, no banheiro, nas instalações comuns. Tudo legal. É a expressão acabada de um pesadelo, um filme de horror.

E quem pode comprar e usar armas? No Estatuto do Desarmamento atual, ninguém que tenha algum antecedente criminal ou responda a inquérito policial e a processo criminal. No texto da bancada da bala, que “flexibiliza” o Estatuto, só os já condenados por crimes dolosos são impedidos de comprar arma. O projeto libera as armas para quem estiver sob investigação ou processo criminal. Não dá!

Isso tudo soa como escárnio num país com cerca de 53 mil assassinatos por ano, 143 assassinatos por dia, seis assassinatos por hora. Em cada 100 mil habitantes, o índice no Brasil é de quase 26 assassinatos por habitante. A Organização Mundial da Saúde considera “nível de epidemia” uma taxa de mais de dez assassinatos por 100 mil habitantes. Segundo a OMS, o Brasil é o país com maior número de homicídios no mundo. O Estatuto do Desarmamento poupou milhares de vidas, segundo o Mapa da Violência de 2015, com base em dados oficiais. E tudo isso agora vai bala abaixo? Dos deputados que votaram pelas mudanças, 11 foram financiados pela indústria de armas e munições, segundo o Instituto Sou da Paz.

“É um retrocesso”, disse o secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame. “O argumento de que se deve armar a população porque a segurança não faz seu trabalho é uma desculpa míope. Já imaginou as pessoas armadas nas ruas, os parlamentares, os agentes que cuidam de crianças e jovens, os taxistas e os motoristas de caminhão? Essa energia do Congresso deveria ser canalizada para o governo federal ajudar a desarmar o bandido, e não para manter o bandido armado e armar a sociedade.”

Como o texto ainda precisa ser aprovado em plenário e no Senado para entrar em vigor, espera-se que a sociedade reaja e que políticos de bem vetem esse monstrengo.

Parece óbvio, parece fácil. Mas não é. Faz tempo que se urde essa conspiração no Congresso, alimentada pelo lobby de armamentos, para transformar o Brasil numa versão sul-americana dos Estados Unidos, onde massacres enlutam famílias e impelem o presidente Barack Obama a brigar – sem sucesso – contra a venda indiscriminada de armas.

Armas exercem fascínio sobretudo nos homens, não nas mulheres. Entendo que exímios atiradores se achem no direito de defender a si próprios e a suas famílias em sociedades violentas. Mas eles são exceção e não precisam de mudanças na lei para se armar. É um grave erro popularizar e baratear armas de fogo. É uma irresponsabilidade induzir a população a achar que armas salvam vidas e servem para legítima defesa. A realidade é oposta: a posse de uma arma aumenta o risco de um “cidadão de bem” ser morto por um profissional do crime.

É uma inversão de significados e valores, que não ajuda em nada a educação das novas gerações. Ao facilitar compra, posse, porte e uso de armas, esse arremedo de lei encoraja uma população armada e amadora a tentar fazer justiça pelas próprias mãos. Contribui para que brigas triviais de rua, no bar ou em casa acabem em morte. Aumenta o risco de acidentes trágicos domésticos ou escolares com crianças e adolescentes. Aumenta exponencialmente o risco de crimes passionais.

O “Estatuto do Armamento” ignora que a responsabilidade por manter a paz urbana deve ser delegada unicamente às forças de segurança. Exime assim em parte os governos por seus fracassos na política de segurança pública. Esse estatuto fere de morte nosso futuro. Não passará.

31 de outubro de 2015 | N° 18341
ARTIGOS ZH - NEWTON LUIZ TERRA*

PORTO ALEGRE: CIDADE AMIGA DO IDOSO? 



Foi com satisfação e alguma surpresa que li, na Zero Hora de 23 de outubro, que Porto Alegre recebeu da Organização Mundial da Saúde (OMS) o título de Cidade Amiga do Idoso. Cidade amiga do idoso é aquela que adapta suas estruturas e serviços para que fiquem mais acessíveis aos idosos com diferentes necessidades e capacidades. Bem como estimula o envelhecimento ativo ao criar condições de saúde, participação e segurança com o objetivo de reforçar a qualidade de vida das pessoas à medida que envelhecem. 

Em trabalho realizado em 33 cidades de 22 países, foi solicitado a aproximadamente 1,5 mil idosos que apontassem os aspectos positivos e os obstáculos que eles encontravam nas cidades em que viviam em relação a oito quesitos (prédios públicos e espaços abertos, transporte, moradia, participação social, respeito e inclusão social, participação cívica e emprego, comunicação e informação, apoio comunitário e serviços de saúde). Os problemas, as preocupações e as sugestões que foram expressos pelos idosos foram complementados pelas informações de 750 cuidadores de idosos e/ou prestadores de serviços.

A partir dessas consultas, realizadas no mundo todo, a OMS identificou as característicaschave de uma cidade amiga do idoso e lançou, em junho de 2005, o projeto Cidade Amiga do Idoso.

Em uma cidade amiga do idoso, as políticas, os serviços e as estruturas apoiam as pessoas idosas e as ajudam a envelhecer com dignidade. Será que nossa capital efetivamente ostenta essas características?

O reconhecimento pela OMS é um fato auspicioso e deve servir como motivação para que façamos uma avaliação dos quesitos analisados e que os idosos de Porto Alegre cobrem e se envolvam como parceiros dos órgãos governamentais e participem na implementação de projetos de melhoria para a sua cidade. Então, quando alcançarmos esse objetivo e encontrarmos os idosos efetivamente participando da vida social, desfrutando as belezas de nossa cidade, teremos conquistado o melhor dos títulos. Conseguir esse resultado será motivo de nos rejubilarmos e poderemos dizer que esta façanha pode servir de modelo a toda terra.

*Diretor do Instituto de Geriatria e Gerontologia da PUCRS


31 de outubro de 2015 | N° 18341
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

RETAGUARDADE AFETO


Impossível consertar se as coisas começam tão mal. No máximo, um remendo precário e toca a vida adiante.

Quando lhe chamaram de Alex, esse era todo o nome que tinha. Como mais um filho indesejado, certamente não teria escolhido nascer. Não daquele jeito. Se por pressa de se verem livres do incômodo ou por rejeição, ele desembarcou sem consulta no final do quinto mês de gestação e, para não deixar dúvida do mal amado que era, foi abandonado na rua. Ter sido colocado na tampa de um contêiner de lixo foi o tênue sinal de preocupação para que fosse visto logo e, se algum anjo estivesse atento, ainda com vida.

Foi levado a um hospital público onde fez uma parada cardíaca logo na entrada. Reanimado, aquecido e alimentado, permaneceu entre a vida e a morte durante várias semanas, sobrevivendo a uma seleção natural inacreditável. Com o passar dos meses, ficou evidente que a prematuridade, o pós-parto desprotegido e as complicações infecciosas que decorreram disso tinham deixado como sequela um retardo do desenvolvimento motor e cognitivo. A busca pela mãe resultou inútil e, depois de um ano de internação, quando alcançou condições de alta hospitalar, foi levado para uma casa de passagem, onde eram encaminhadas as primeiras tentativas de adoção, antes de as crianças serem levadas para os orfanatos.

A Iolanda, empregada doméstica e mãe solteira de dois filhos pequenos, era voluntária nesta casa e, várias vezes, preparou o Alex junto a outros coleguinhas de abandono para a inspeção de casais ansiosos por escolher os seus filhos adotivos.

Tantas vezes o ritual se repetiu, e outras tantas ele foi rejeitado que, depois de alguns meses, todos tinham entendido que o Alex nunca seria selecionado, apesar da carinha sorridente e dos bracinhos sempre estendidos em direção a qualquer estranho que significasse uma remota possibilidade de um colo.

A comemoração do terceiro aniversário do Alex foi um dia inesquecivelmente triste para todos, menos para ele, que estava animadíssimo com a agitação da festa porque ignorava que, atingida esta idade sem adoção à vista, ele devia ser levado no dia seguinte para o lar dos órfãos. Os dois anos de convívio e a afeição que o grupo desenvolvera pelo Alex explicavam as lágrimas disfarçadas de emoção que rodeavam a mesa dos doces e escaparam do controle quando várias voluntárias acorreram para ajudar o sopro fraco do Alex, insuficiente para apagar as três velinhas.

Logo depois, ele começou a circular pelo salão, de colo em colo, sem saber que cada abraço era uma despedida.

E, então, ele finalmente chegou aos braços da Iolanda. Ela, a única que não derramara uma lágrima, e ele, batendo palmas sem nenhum cuidado em dissimular a predileção. Depois de uma sessão de beijos naquela bochecha que o riso desnivelava um pouco pela paralisa facial, a Iolanda solenemente anunciou: “Meninas, arrumem a sacola com as roupas do Alex, porque ele vai pra casa comigo. Ele nasceu na miséria, vai se habituar a dividir a pobreza com a gente!”.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015



28 de outubro de 2015 | N° 18338 
MARTHA MEDEIROS

Dentro do seu corpo

Quem é dono do que acontece dentro de você?


Sua história passa por dentro do seu corpo. Você é dono de seus arranhões e também das contusões conquistadas em subidas em árvores e quedas de escadas. Dono das cicatrizes externas e internas, dos enjoos de nervosismo diante das broncas do pai, do primeiro pedido de namoro, das provas do vestibular.

Você é dono do seu joelho, do seu cotovelo, do seu estômago, da sua hérnia, da sua pedra no rim. É sua a hepatite, é sua a corrente sanguínea, a adrenalina por ter escapado por pouco de um assalto ou de um acidente.

Você é dono da sua taquicardia na hora de uma entrevista de emprego, você responde pelos quilos a mais depois de passar o fim de semana pulando de um churrasco para uma feijoada. Seus dentes são seus. Sua língua. Seu beijo.

Dentro do seu corpo estão as lágrimas represadas por dores que você esconde embaixo da pele. Esse tumor desgraçado é seu. Essa alegria infinita é sua. Você pensa porque tem um cérebro aí dentro que não é de ninguém mais. Você resolve para onde olhar com seus olhos, o que segurar com suas mãos, com quem compartilhar seu sexo. Você pode vender seu corpo, mas nunca precisou comprá-lo, tem a posse gratuita, legítima, vitalícia e intransferível.

Intransferível.

Através do corpo, você exerce as duas coisas que movem sua vida: o querer e o não querer. Se você deseja, se você resolve, se você pretende, é com o corpo que alcançará seu destino. E você também é dono da sua paralisia, se assim preferir. Tudo o que você sente, tudo o que você é, vem aí de dentro. O que você quer expelir e o que você quer cuidar. Músculos e sentimentos na mesma caixa-forte.

Você aborta se quiser. Ou gera se quiser. O corpo é seu. O embrião é seu. A história de vida é sua.

Políticos são eleitos para garantir às pessoas (a partir do nascimento, quando se tornam seres sociais) segurança, habitação, transporte, educação, saúde e trabalho. O querer e o não querer de cada um são privados. O que cada mulher traz dentro do próprio corpo é dela, não do Estado.

Não bastasse o aborto ser proibido, agora querem transformá-lo em crime hediondo. Um político, que é um cidadão qualquer, tem o poder de decidir sobre o corpo da minha filha e o corpo da sua. Não importa a vontade delas próprias, suas questões emocionais, psicológicas, íntimas. 

Não interessa a idade que elas têm, se são religiosas ou ateias, se estão empregadas ou desempregadas, se já são mães de sete ou se jamais quiseram ser mães. Não lhes dão o direito ao medo, nenhum privilégio pela ordem de chegada, adeus ao livre-arbítrio. Engravidaram e, a partir de então, não são mais elas que escolhem.

O querer e o não querer mais pessoais do mundo, administrados por quem não tem absolutamente nada a ver com o assunto.

sábado, 24 de outubro de 2015



25 de outubro de 2015 | N° 18335 
CARPINEJAR

Brigando direito

Sou fã de seriados, venho assistindo três ao mesmo tempo: Elementary, Narcos e Newsroom.

Neste último, um dos personagens jornalistas diz para a sua colega de trabalho que vive se separando do namorado: “Vocês precisam aprender a brigar direito”.

É um conselho que deveria ser levado para o ouvido do noivo e da noiva ao pé do altar: aprender a brigar direito é reduzir os danos e evitar as rupturas (e desgastantes reconciliações).

Briga boa é discussão curta, sem tempo para envolver outras pessoas e com espaço reduzido para não produzir ressentimentos. É falar o que feriu, explicar o ponto de vista, ouvir o contraponto, acolher as desculpas e seguir em frente, sem o risco de retaliações e excessos. Dependendo do que aconteceu, um longo telefonema ou um chimarrão ao entardecer resolve a pendenga.

Briga boa é aquela que não sai de casa, permanece dentro do círculo do relacionamento, a portas fechadas. Não vira cobrança, sermão e dívida. Mágoa longa sempre gera fofocas e opiniões incontroláveis de terceiros.

Briga boa não deve ultrapassar 24h, pois o mal-estar faz vítimas rapidamente. Nem todos têm paciência para ruminar desentendimentos. O suspense pela paz desperta o pessimismo nas almas amorosas. É duro controlar a ansiedade. O tema só chegará ao terapeuta depois de passar pela comunidade inteira.

O ideal é ter simplicidade para falar o que incomoda, não dependendo de conversas sérias e avisos de despejo.

Saber brigar é solucionar o impasse procurando as palavras certas, respirando fundo, prevenindo-se das agressões gratuitas, cuidando para não recorrer a afastamentos. Ao banalizar o término, estará abrindo caminho para chantagens cada vez mais pesadas.

Briga boa significa preservar o seu par de algumas ofensas. Ultimatos são perigosos e costumam ser aceitos no momento de raiva. Desaconselhável desafiar a sua companhia com o fim – apressando a chance de ela fazer as malas. Afinal, na gritaria, é o orgulho que manda, jamais o amor.

Briga boa é manter o foco de tudo o que é vivido a dois, e não apenas sublimar um momento ruim. Acima de tudo, cabe a delicadeza de trazer o contexto do romance à tona, o dia anterior, a sequência da intimidade. Fica mais fácil compreender a falha diante do conjunto da obra.

Ninguém está livre do erro, do engano e da distração. Brigas são desabafos. Não distorça a sua natureza catártica para um desproporcional acerto de contas. Briga boa é, depois de reclamar, devolver a esperança com um beijo e um abraço apertado.


25 de outubro de 2015 | N° 18335 
MARTHA MEDEIROS

Você, eu e nossos amigos


Antes da era tecnológica, a gente via os amigos de vez em quando, em encontros eventuais. Agora, eles estão na palma da mão. Sabemos tudo o que eles pensam e o que fazem, as informações são atualizadas em minutos, e o resultado disso? Fé na humanidade.

Se depender de você, de mim e de nossos 3.768 amigos, ou 7.543, ou 21.544 (quantos amigos você tem?), o mundo está salvo. Porque, veja bem: somos todos bons. Somos todos justos. Somos todos inteligentes. Somos todos amorosos. Somos todos honestos. Escândalos políticos não têm nada a ver com a gente: somos todos críticos, atentos, lúcidos. E estamos todos estupefatos, lógico. Acreditávamos que a sociedade era íntegra, já que somos todos íntegros.

Todos nós amamos os animais, adotamos cachorros de rua, gatos abandonados, porquinhos-da-índia. Cuidamos deles, nos importamos com eles, temos por eles um amor que se equipara ao amor que sentimos por nossos filhos. Ah, nossos filhos. Somos todos pais espetaculares de filhos que não se drogam, não bebem, não são jovens indiferentes, não são preguiçosos, não são acomodados, não estão perdidos, não são sedentários. Foram crianças excepcionais e não poderia dar noutra coisa: hoje são adultos incríveis. É de família. Bênção do DNA.

Somos todos ecologistas, amantes da natureza, adoradores de crepúsculos, mares, florestas. Não pisamos na grama, não poluímos os rios, não jogamos bituca de cigarro no chão, somos a favor da energia eólica e solar, reverentes às flores, às montanhas, às cachoeiras, às árvores. Tudo documentado em fotos, milhares delas.

Somos a favor dos refugiados, das empregadas domésticas, dos gordos, dos gays, dos pobres, das mulheres, das crianças, dos negros, dos chineses, dos sírios, dos mendigos, dos feios, dos albinos, dos haitianos, dos anões, dos favelados, dos nudistas e demais minorias – minoria é gente à beça.

Somos todos conscientes e defendemos os direitos humanos. Somos todos bem-amados, bem-humorados, temos bom gosto. Todos nós respeitamos as regras de trânsito. E o nosso time só perdeu porque o juiz roubou.

Não temos religião, mas somos espiritualizados. Não fazemos parte de nenhuma ONG, mas vestimos a camiseta. Dirigimos carros, mas damos a maior força para as ciclovias. Não somos vaidosos, apenas usamos nossa imagem a fim de enaltecer boas ideias e intenções. Estamos a serviço de um mundo melhor. Somos todos messias. Todos gurus.

E todos nós votamos corretamente nas últimas eleições.

O inferno são os outros. Jamais você, eu e nossos amigos. Os 3.768, os 7.543, os 21.544 que estão conectados, que vivem na bolha da autorreverência e não possuem defeitos, a não ser este, que é meio suspeito: o de não ter defeito algum.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015



21 de outubro de 2015 | N° 18331 
MARTHA MEDEIROS

News

Alain de Botton aterrissa nas livrarias com mais uma obra dedicada à filosofia do cotidiano, desta vez abordando um tema que interessa aos jornalistas em particular e a todos em geral. Notícias – Manual do Usuário nos estimula a pensar mais profundamente sobre nossa relação com a imprensa.

Precisamos saber de tudo o que está sendo noticiado? Esse “tudo” é suficiente ou é excessivo? Qual o critério para decidir que um fato merece ser noticiado e outro não?

Há um jargão clássico do jornalismo que diz que notícia não é quando um cachorro morde um homem, e sim quando um homem morde um cachorro. O incomum pauta os veículos de comunicação. Porém, comum e incomum têm se confundido. Assassinatos, estupros, desastres: não estaria na hora de essas desgraças recorrentes dividirem a atenção com as banalidades que ficam de fora das manchetes?

Por vezes, Alain de Botton soa idealista e até um pouco ingênuo, mas é um homem que traz questionamentos relevantes. Diz ele que o noticiário não transcreve a realidade, ele molda a realidade conforme as histórias que publica. Para cada pedófilo, há milhares de pessoas que respeitam as crianças. Para cada agressor de mulheres, há milhares de homens que não reagem com violência. 

Sem dúvida que é importante revelar os podres da sociedade, mas não se deve esquecer que as notícias que chegam sobre a nação não são a nação, e sim uma parte dela. Imprensa responsável é aquela que também abre espaço para notícias que possibilitem a criação de uma imagem de comunidade que nos pareça boa e sadia, a fim de fazer com que tenhamos vontade de contribuir para que ela se desenvolva.

A questão dos refugiados é um bom exemplo: todos se sensibilizam com sua situação, mas por quantos minutos? Três, quatro? Enquanto durar a matéria na tevê? Não sabemos como é a vida corriqueira de quem vive em países com uma cultura tão diversa. O que comem no café da manhã, como namoram, o que fazem no fim de semana, como criam os filhos, que músicas escutam. Não há o olhar microscópico sobre seu universo, são apenas estranhos com o qual não nos identificamos, e essa falta de empatia mantém seu drama longe das nossas preocupações imediatas.

Amanhã, haverá novas más notícias nos jornais. Elas fazem parte do cotidiano, mas não contam a história toda. Por isso, para rebater o desânimo e contrabalançar, não custa dar uma espiada em alguns sites com conteúdo integralmente positivo que andam pipocando por aí. E nunca deixar de assistir a documentários, ler livros, ver filmes, aprofundar-se. Quanto mais abrangente nossa visão das coisas, menos desumano nos parecerá este mundo.

sábado, 17 de outubro de 2015



18 de outubro de 2015 | N° 18328 
CARPINEJAR

Liberdade é poder brigar


Se a minha mulher fizesse tudo o que eu quero, eu seria livre, mas ela não. Se eu fizesse tudo o que a minha mulher quer, ela seria livre, mas eu não. Como ambos não realizam o que o outro sempre deseja, vivemos brigando. Ou discutimos por ciúme. Ou por algum descaso. Ou para manter a vontade de cada um.

E não brigamos por qualquer coisa, isso é neurose, porém brigamos para manter pontos fundamentais das nossas personalidades. Quem enxerga de fora não alcança o motivo de nossa união, já que parecemos divergentes, explosivos, passionais. Dá a entender que somos infelizes e gostamos de nos maltratar, mas é um grande equívoco.

Nunca renunciei a minha liberdade. Ela nunca renunciou a sua liberdade. Brigar é a prova de que somos livres dentro do casamento. Nenhum dos dois sacrificou a sua independência para agradar o outro. Nenhum dos dois é submisso. Nenhum dos dois abdicou de suas convicções. Nenhum dos dois se sujeitou a uma placidez consensual.

Estamos convivendo, cedendo o possível e nos entendendo devagar, como deve ser qualquer democracia amorosa, a partir de exaustivas conversas e tentativas.

O respeito vem das brigas superadas, a maturidade vem com o tempo, méritos e medalhas de uma longa depuração das dissidências. Casal que não se desentende não é mais casal, e sim uma dupla: um grande e um pequeno, um gato e um rato, um dominador e um submisso, um tirano e um explorado.

Significa que um dos dois se apagou completamente e diz amém para toda reivindicação que surge. As rusgas, os atritos e as confusões familiares, desde que episódicas, são absolutamente naturais para quem ama. Não é nenhum vexame ou mico. Não é uma exceção. Não é um dia ruim.

Dependem de terapia de casal aqueles que se calam para não ter trabalho, não os briguentos, não os ruidosos, não os exagerados, que encontram um jeito de imprimir o seu posicionamento. Liberdade não é concordância, liberdade é ter a chance sempre de discordar, de escolher, de se opor, mesmo que seja errado ou inadequado.

Quando vejo um par que se expressa, que se pronuncia com firmeza, que troca farpas, acentuados de algazarra, saio de perto, e não por vergonha, é que não me preocupo, sei que estão bem e juntos, sei que estão protagonizando mais um capítulo de aguda sinceridade.

Já quando reparo em um par obediente, calado, já pressinto que me aproximei de um cativeiro em vez de um lar. Alguém fez um refém e não pediu resgate, alguém explora a bondade alheia e escraviza.

Liberdade numa união é poder defender a própria liberdade. Já prisão é não oferecer resistência, é desistir de falar, é não comentar nada para não desapontar, é não explicar seus pensamentos contrários.

Idealizamos o casamento como se fôssemos solteiros, e não convivendo com uma pessoa absolutamente diferente, com uma vocação diferente, com um sonho diferente. Igualar-se mata a relação. O que salva o amor é jamais suprimir a identidade em nome do mais forte.



18 de outubro de 2015 | N° 18328 
MARTHA MEDEIROS

Eu não sou assim


Quando você estiver discutindo com o amor da sua vida, adotando um tom alto demais porque precisa que ele entenda o tamanho do desespero que está sentindo, quando você, aos gritos, começar a trazer à tona coisas que ele fez muito tempo atrás a fim de incluí-las na sua argumentação, quando só lhe restarem palavrões na boca, quando você sentir que está perdendo a razão e também a compostura, acalme-se e diga para si mesmo: Eu não sou assim.

Se você não é barraqueira e nunca foi deselegante, contenha-se. É triste ter que se afastar tanto de si mesmo a fim de manter alguém próximo. Deixe-o ir, então. Ele partirá de qualquer jeito. Fique em você mesma.

Quando você estiver dizendo coisas que não tem vontade de dizer, quando sentir que está assumindo um personagem apenas porque é isso que a sua plateia está exigindo, quando você não reconhecer a autenticidade da própria voz, cale-se e pense: “Eu não sou assim”. Certamente a pessoa que está com você não deseja você, apenas alguém que você é capaz de interpretar. Deixe-a partir, se ela não se satisfaz com sua naturalidade, e simplesmente mantenha-se em si.

Quando você for impelida a trair porque não está mais vivendo a vida que sonhou, quando for induzida a mentir para que a casa não caia, quando sentir-se obrigada a arranjar desculpas para disfarçar o próprio desejo, pergunte-se: sou assim? Ardilosa, falsa, camuflada? Se você não é assim, se nunca foi assim, melhor enfrentar a verdade, como fazem os corajosos.

Quando você estiver num local que não lhe agrada, conversando com pessoas que não admira, rindo forçadamente de piadas que lhe soam grosseiras, quando estiver prometendo visitas que sabe que não fará, submetendo-se a situações bizarras ou vexatórias, escute o que seu desconforto está alertando: “Eu não sou assim”. Muitas vezes, especialmente no início da idade adulta, temos que nos adequar a certas contingências sociais se delas depende nossa sobrevivência, mas se você já percorreu um bom caminho, construiu uma vida digna e conhece a si mesma melhor do que ninguém, não precisa se moldar a mais nada, conquistou o direito de ser integralmente quem é.

Quando você estiver sendo condescendente sem receber em troca o carinho que merece, quando você perceber-se desacomodada no que deveria ser aconchegante, quando sentir que está se adaptando com dificuldade ao que não lhe convém, tente perceber se está sendo educada ou se está sendo submissa – não são sinônimos. Educação é básico, mas não exige docilidade fingida nem servilismo humilhante. Pegue sua bolsa e tome o rumo de casa sempre que estiver escutando de si mesma: “Eu não sou assim”.

A não ser que você seja. Se você já percorreu um bom caminho, construiu uma vida digna e conhece a si mesma melhor do que ninguém, não precisa se moldar a mais nada

quarta-feira, 14 de outubro de 2015



14 de outubro de 2015 | N° 18324 
MARTHA MEDEIROS

Menos governo


Só agora assisti ao documentário Pro Dia Nascer Feliz, de João Jardim, que foi premiado anos atrás em vários festivais de cinema. A câmera se infiltra em salas de aula da periferia e em escolas de elite também, enquanto o diretor extrai depoimentos de professores e, principalmente, de estudantes que têm entre 12 e 16 anos. Como é a relação deles com a escola? O que aprendem, o que pensam, o que sentem, o que sonham, como lidam com a autoridade e com os colegas, que futuro aguarda por eles?

Quando o filme acabou, juntei meus restos e saí da sala arrastando os pés. A esperança havia espocado em uma cena ou outra, mas, de modo geral, a sensação com que fiquei é de que o Brasil só tem uma saída: reunir todo o dinheiro que sobrou das maracutaias e investir tudo em educação. Tudo. Fazer uma revolução radical no país através da educação. Se o governo fizesse isso, não precisaria fazer mais nada, do resto cuidaríamos nós.

Sei que é uma utopia, mas qual a alternativa? Não existe futuro enquanto a garotada continuar desassistida, carente, cumprindo mecanicamente um currículo que não tem aplicação prática em seu desenvolvimento e se tornando vítima fácil da depressão. Se o governo não dá conta, então o que precisamos é de menos governo. Tchau, governo.

Para que precisamos dele? O alto escalão se ocupa apenas em negociar cargos entre si, em fazer conchavos, em acumular milhões em contas na Suíça. Esqueceram por completo que existe um país implorando por ajuda. O povo brasileiro deixou de existir para quem, a priori, deveria zelar por ele. Poderiam ser indiciados por mais esse crime: abandono de lar.

Bem feito pra nós, que nos acostumamos com a ideia paternalista de que o governo (qualquer governo) existe para solucionar nossos problemas, que é só dele a responsabilidade pelo nosso bem-estar. Deu nisso: um povo mimado. Impossível não perceber a infantilização que há na troca de farpas entre simpatizantes de partidos oponentes, agindo feito crianças: “Foi ele que começou!”.

O que importa isso agora? Estamos todos de castigo.

O jeito é tentar se emancipar. Tomar conta da nossa rua, do nosso bairro, da nossa vida. Ser solidário com os outros, fazer mais voluntariado. Formar grupos de interesse comum, se unir com quem possui os mesmos propósitos, inventar novas maneiras de prosperar. Ser mais independente. Trocar o ressentimento pela proatividade. Usar a internet não para brigar, mas para compartilhar palestras, vídeos criativos, discussões bem embasadas, lançar novos serviços. Aproximar-se da literatura, da música, da filosofia, do esporte, da natureza, da psicologia, da arte, a fim de pensar no país de forma mais positiva e educar-se a si mesmo.

Utopia, de novo? Desculpe, é que ser realista não está funcionando.

sábado, 10 de outubro de 2015



11 de outubro de 2015 | N° 18321 
CARPINEJAR

A solidariedade com a tristeza do outro


Ceder é transcender. Não tenho mais nenhum interesse na vida de mandar no relacionamento: eu me respeito e respeito o outro.

Não planejo nada além de dois dias. Trata-se de um prazo razoável. Porque nunca sei das inconstâncias de meu humor e o de minha mulher e de meus filhos. Não faço mais arrastão, aquilo de marcar uma saída e não aceitar qualquer mudança de plano.

A onipotência (a ânsia de controlar a tudo e a todos) é um risco altíssimo para o casal. Sou mais de acordar com calma e ver como estão as coisas.

Desagradável é a disputa de poder no final de semana. Agendar um passeio e descobrir na hora de se arrumar que a mulher não está mais a fim. Ou porque sofre de enxaqueca ou não dormiu bem ou resta trabalho inacabado, motivos que não existiam antes da promessa.

O que pode acontecer?

Primeira hipótese: você teimar em manter o compromisso e chantagear a esposa para acompanhá-lo pelo simples argumento de que já estava combinado há tempo. Ela poderá ir, absolutamente contrariada, e passará o passeio inteiro com a cara emburrada, desprovida de qualquer vontade de sorrir.

Assim como você comprou briga para sair, agora comprará nova refrega, já que ela não se encontra do modo como imaginou. Não parece nem um pouco disposta.

Ficará furioso que ela não colabora, não ajuda, não se esforça para tornar agradável. Mas ela já havia dito que não tinha nenhuma vontade, você que não foi compreensivo. Não há como funcionar. O que deseja é praticamente o impossível, que a felicidade seja um feitiço e acenda a luz dos olhos dela com uma salva de palmas. A alegria jamais será obrigação, e sim estado de espírito.

Não é que ela não quer ser feliz, não conta com inspiração para ser feliz. Felicidade é contexto, atmosfera, disposição. Não adiantou seguir com o roteiro. Discutirão sem parar, apesar do sol e da comida maravilhosa do restaurante.

Segunda hipótese: também pode colocar tudo a perder permanecendo em casa como provocação. Desmarca, finge que aceita o desânimo dela, porém emburrece e faz qualquer movimento de mau-humor. Não acolhe o impedimento como natural, seu interesse é boicotar as mínimas atitudes dali por diante e mostrar que ela estragou o seu final de semana.

Aponta o egoísmo da tristeza dela e não percebe que o seu contentamento ainda é mais egoísta.

Não custa mudar de opinião e oferecer um voto de confiança. Entender que a nossa companhia não vem partilhando da mesma frequência. Representa um momento, não é para sempre.

Forçar o entusiasmo provocará apenas culpa. Aproveite a folga para ler, ver filme, conversar com os amigos.

Milagrosamente é somente sair de perto, dar espaço para a solidão, não pressionar, que ela virá depois disposta a passear. Quem cede sempre é recompensado com amor. A desobrigação gera a escolha. A escolha é liberdade.



11 de outubro de 2015 | N° 18321 
MARTHA MEDEIROS

Nós, os primogênitos

Certamente há dúzias de estudos, ensaios e teses sobre as características do primeiro filho da família, porém nunca me aprofundei a respeito. Ainda assim, sempre estico os ouvidos quando o assunto surge, só pra ver se confirmo as conclusões que extraio da minha própria observação.
Nós, os filhos mais velhos, fomos a origem de uma emoção colossal, já que a experiência inédita de se tornar mãe e pai se deu através do nosso nascimento. Esse exagero de amor e de expectativa em relação a nós deve ter surtido algum efeito positivo em nossa formação, afinal, fomos os protagonistas do primeiro parto, do primeiro choro, do primeiro dentinho, das primeiras mil fotos clicadas. Não é possível que o primogênito não se sinta um astro de cinema. É muito fanatismo por uma criatura de cerca de 50 cm e pouco mais de 3 quilos.

Dizem que a saúde emocional de cada ser humano é proporcional aos cuidados que recebeu nos primeiros dois anos de vida. Sobre isso já li. Então, se nesse curto período tudo transcorreu como nos comerciais da Johnson & Johnson, o primogênito se tornará um cidadão seguro e confiante. Pois é.

Só que logo depois vem outro filho. Os pais, já tarimbados, se permitem relaxar um pouco. Se antes a chupeta caía no chão e eles lavavam em água fervente, agora o bico cai, eles dão uma assoprada e recolocam na boca do segundinho, que sobrevive. Se eles foram quase xiitas com o primeiro filho, tal era o medo que ele quebrasse, com o tempo descobrem que existe algo chamado anticorpo, e, afinal, para que tanto stress? O filho mais velho, tão ajuizado, já está até ajudando a cuidar do maninho.

Pois é, pois é.

Os pais ofertam ao primogênito um amor absoluto, o tratam como rei e têm medo que ele quebre: nada mais justo que a criança retribua, não quebrando mesmo. Nem fisicamente, nem moralmente. E assim o filho mais velho cresce focado, maduro, responsável, bom exemplo, enquanto que o que veio depois não se obriga a ser exemplo de coisa nenhuma, faz o que bem entende e sente zero culpa – não raro dá problema de montão, mas acaba sempre perdoado. É o famoso “queridinho da mamãe”. Se não é sempre assim, é quase.

Muito já acusei minha mãe de proteger meu irmão caçula, e ela sempre gargalha diante dessa queixa clássica – simplesmente diz que sou louca. E como aqui se faz, aqui se paga, minha filha mais velha me acusa da mesma coisa, diz que protejo sua irmã mais moça, e claro que me defendo dizendo que ela está maluca, para manter o ciclo ativo. E assim a vida se repete através das gerações, restando apenas nossa torcida para que no final o amor justifique tudo, inclusive as consequências emocionais das responsabilidades e mimos que impomos diferentemente a cada filho.

Só lembrando que o primogênito, cedo ou tarde, se dará o direito de pirar. Não é uma ameaça, apenas uma questão de lógica.

RUTH DE AQUINO

Fidelidade se compra?

As manobras de Dilma para angariar apoio não estão dando certo. A reforma ministerial dá frutos podres

Não, presidente Dilma Rousseff. Talvez seja tarde para descobrir o óbvio. Fidelidade se constrói, respeito se conquista, amor se cultiva. Mesmo num país em que os partidos políticos se desmoralizam a tal ponto que tudo parece estar à venda no Congresso – do voto à consciência –, Dilma percebe que é hoje uma mulher traída e uma líder mal-amada.

Não importa quantos cargos ela tenha distribuído, quantas concessões tenha feito. Não importa quantos mimos tenha oferecido a seus concubinos. Eles traem. Conspiram. Querem mais. A insatisfação costuma conduzir à infidelidade. Se até os partidos comprados traem Dilma, a rebeldia não se explica apenas pelo vício da prostituição do poder. Nem os pares de Dilma se afeiçoaram a ela – muitos, se não falam mal pela frente, o fazem pelas costas.

Toma lá. E não dá cá. De todas as derrotas sofridas por Dilma nos últimos dias – e não foram poucas –, a falta de quórum na Câmara para votar seus vetos às pautas-bomba pode ter sido a que mais a magoou. Um sinal do que vem por aí. Sua maior luta, hoje, é travada nas duas Casas, e não com juízes, procuradores, jornalistas ou eleitores. “Juntos, somos imbatíveis”, disse Dilma em Barreiras, na Bahia. Juntos... com quem, exatamente? Com senadores e deputados.

As manobras de Dilma para angariar apoio não estão dando certo. A “reforma ministerial”, de custo moral e ético muito alto, dá frutos podres. Delcídio do Amaral (PT-MS), líder do governo no Senado, diz: “Acho que alguma coisa não está funcionando”. Acha mesmo ou tem certeza? O líder do PR na Câmara, Maurício Lessa, afirma: “O governo não pode achar que resolve a vida só com o PMDB”. Não mesmo. Há um novo bloco de partidos revoltados. O “baixo clero” pode ser muito baixo. O que é pior: os dois maridos oficiais – o PT e o PMDB – não estão unidos em torno da matriarca.

O elemento peemedebista Eduardo Cunha, presidente da Câmara, cada vez mais afundado em suas contas movediças, familiares e milionárias em dólares na Suíça, exerce poder avassalador contra Dilma – mas pode cair antes de qualquer um em Brasília. Comprovadas as contas secretas e a origem de corrupção, Cunha não poderá continuar a presidir a Câmara. Simples assim. Não tem moral para falar de moral. Dilma e Lula sonham em lavar Cunha a jato.

Não sinto pena de Dilma. Ela fez por merecer o pesadelo atual. Muito pior foi o pesadelo em que ela jogou o Brasil, ao usar no ano passado R$ 106 bilhões em barbeiragens fiscais para enganar o eleitor mais crédulo. Criou uma Ilha da Fantasia em que o estudante, a dona de casa, o trabalhador, o pequeno empresário, o jovem idealista, a classe média e os mais carentes se inspiraram para reelegê-la.

Dos R$ 106 bilhões, R$ 40 bilhões de bancos públicos foram usados nas pedaladas – o termo usado para adiar pagamentos e maquiar as contas públicas. Estamos, todos nós, pagando agora por isso. Nos primeiros oito meses de 2015, como foi publicado no jornal O Globo na sexta-feira, o Tesouro Nacional já repassou a BNDES, Banco do Brasil e FGTS R$ 14,4 bilhões. Objetivo? Cobrir os gastos com juros subsidiados de programas federais no ano passado. Esse é o preço, até agora, da operação-bomba para reeleger Dilma.

Nunca antes na história um presidente pedalou com um doping dessa magnitude. Nunca antes se usou tamanho artifício para mascarar uma gestão incompetente e temerária e alimentar o marketing piegas da mãe do PAC. É uma constatação financeira, técnica, nada ideológica ou política. Basta examinar os gráficos, ano a ano. São números, não palavras. Não há subjetividade nem torcida contra.

Quando Dilma vê “luz no fim do túnel”, é natural. Não tem saída a não ser parecer otimista. Jaques Wagner, o novo escudeiro imposto por Lula na Casa Civil, é só elogios: “A presidente é uma guerreira, ela opera muito bem diante da dificuldade... ela entende que (a reprovação das contas pelo Tribunal de Contas da União) é uma página virada e que a batalha definitiva será no Congresso”. Leia-se batalha para continuar a governar. Batalha para não sofrer impeachment. Para não desmilinguir.

A reprovação das contas de Dilma pelo TCU já era esperada. Mas não por essa goleada de 8 a zero. Unânime, inédita, histórica. Dilma se preocupa com o uso que o Congresso fará dessa derrota. O país tenta olhar o lado bom. O da prestação de contas. Contas fiscais e morais. Afinal, quem quer fidelidade precisa ser fiel, em primeiro lugar. Precisa ser responsável. A moeda que conta para nós é esta, a da responsabilidade com a nação e com os eleitores. Tanto a presidente quanto o Congresso deveriam saber que não é possível cobrar sacrifício ou fidelidade de quem se sente espoliado ou traído.


10 de outubro de 2015 | N° 18320
CAPA

Amar (em) Porto Alegre


RBS TV ESTREIA hoje Notas de Amor, minissérie com episódios inspirados em canções do Musical Saracura

 Muitos afetos se concentram em Notas de Amor, minissérie em quatro episódios que a RBS TV exibe a partir de hoje dentro do programa Mistura, às 14h. O projeto idealizado e dirigido pela cineasta Liliana Sulzbach presta tributo ao Musical Saracura, grupo que marcou época no Rio Grande do Sul na virada dos anos 1970 para os 80 com sua lírica fusão de rock e regionalismo. E é também uma homenagem a Porto Alegre. Maltratada e descuidada nos últimos anos, a cidade tem sua beleza realçada em cenários e ângulos que escapam do olhar apressado do dia a dia, em especial as regiões banhadas pelo Guaíba.

Em parceria com os escritores Carol Bensimon e Fabrício Carpinejar, Liliana desenvolveu argumentos em torno de quatro canções do único LP lançado pelo Saracura, em 1982: Nada Mais, Flor, Marcou Bobeira e Toda Moça. Integrantes remanescentes do grupo, Nico Nicolaiewsky, Silvio Marques e Fernando Pezão (Flávio Chaminé morreu em 2004) envolveram-se no projeto que teve início em 2013 e que, além da minissérie, previa um documentário sobre o Saracura e a volta da banda aos palcos. Sob o baque da morte de Nico, em 2014, Liliana, Silvio e Pezão levaram a minissérie adiante.

– Discutimos sobre o uso das canções originais na trilha, mas optamos por regravações com artistas influenciados pelo Saracura, como o Thedy Corrêa (em Nada Mais) e o Humberto Gessinger (em Marcou Bobeira) – diz a diretora.

Silvio faz a releitura de Flor, e Nina Nicolaiewsky, filha de Nico, interpreta Toda Moça. Com roteiros de Liliana e Carol, os episódios conectam-se um ao outro por meio de personagens às voltas com distintas manifestações do amor: reencontros, separações, afinidades e descobertas. Um fio de suspense amarra as quatro histórias – a investigação sobre o acidente com o avião que leva um fictício secretário de meio ambiente da Capital envolvido no debate sobre especulação imobiliária às margens do Guaíba. O modelo internacional Jorge Gelati faz participação especial como o político.

– É uma série em que nada é o que parece ser. O Guaíba não é rio, é lago. Aquele namoro terminou, mas não acabou – explica Liliana.

Diretora de documentários premiados, como o Cárcere e a Rua (2004) e A Cidade (2012), Liliana resume a experiência de realizar com sua produtora, a Tempo, um projeto de ficção com estrutura complexa:

– Você pode fazer um documentário com quatro pessoas. Notas de Amor foi uma experiência impressionante. Uma equipe numerosa, muitas locações externas, tudo precisava funcionar como um relógio. Apesar da pressão, eu me sinto leve. De um documentário, saio carregando o peso da questão social, do envolvimento com os personagens. E Notas de Amor também tem um grande tema, que é essa questão envolvendo o Guaíba.

marcelo.perrone@zerohora.com.br

quarta-feira, 7 de outubro de 2015



07 de outubro de 2015 | N° 18317 
MARTHA MEDEIROS

Nando


Com o celular na mão, percorro a timeline de pessoas que conheço e ali vejo de tudo, desde bailes de debutantes até manifestações políticas raivosas, desde homenagens aos animais de estimação até piadas cruéis. Pela maioria, passo batido, mas curto as indicações culturais, as viagens, o bom humor, as alegrias alheias. Ainda assim, me pergunto: onde me situo em meio a tantas ideias, tanta informação, tantos perfis?

Off-line é que me reencontrei. Celular mudo dentro da bolsa, dei atenção plena a ele no palco, seduzindo e capturando a todos, música após música. Cada pedacinho de letra cantado com a alma me fazia sentir privilegiada por assistir a ele ao vivo pela primeira vez, domingo passado. Estou falando do show de Nando Reis, ex-Titãs, ex-namorado de Marisa Monte, ex-melhor amigo de Cássia Eller e ex-feio – porque até bonitinho se tornou depois de tanto sucesso.

Nando Reis, que eu só conhecia desses estereótipos, desses resumos, recuperou minha inocência, me fez sorrir por dentro, acho que até meio ruborizada fiquei.

Quem tem projeção hoje em dia? Aquela criatura sinistra que preside a Câmara, os ladrões que se apoderam do dinheiro público, os protagonistas de conchavos e alianças vexatórias a fim de manterem o poder. Logo, é questão de sobrevivência fugir para um território neutro a fim de escutar um branquela ruivo, às vezes desafinado, que canta e celebra o amor. Soa como petulância invocar esse assunto em meio às turbulências políticas, mas é disso que se trata a coluna de hoje: o amor.

Nando Reis, acompanhado apenas de dois violões, fez um espetáculo doce. Roqueiro em seu DNA, mas doce, cálido, poético. Não só pela poesia de suas canções, mas também por ter lido, entre uma música e outra, poemas de Vinicius de Moraes, Fernando Pessoa, Paulo Mendes Campos. Naquele teatro escuro, eu pensava: o que vale na vida, afinal? O que acontece lá fora ou aqui? Como equalizar essas divergências?

A resposta estava dentro de mim. Sempre está dentro de nós. A realidade é a narrativa que contamos a nós mesmos. A minha poderia começar assim: “Estranho seria se eu não me apaixonasse por você...”, que é o primeiro verso da música All Star, composta por ele e eternizada por Cássia anos atrás.

Nando, estranho seria se eu não me apaixonasse por você, se eu não me comovesse, se eu não passasse aquelas duas horas do show recordando meus ex-amores e sonhando com os amores que virão, estranho seria se não me arrepiasse com a possibilidade de um novo encantamento, estranho seria se eu não me enternecesse ao ver alguém tão entregue à própria verdade e ao sentimento, estranho seria se todos nós, na plateia, não nos rendêssemos à raridade da emoção, essa que tanto apanha da razão, mas que ainda insiste, valentemente insiste em manter sua voz.

sábado, 3 de outubro de 2015



04 de outubro de 2015 | N° 18314 
ROBERTO ROMANO

Servidão voluntária



É fácil notar indivíduos inteligentes e cultos que apoiam governos tirânicos e religiões genocidas. Ao dobrar a cerviz eles se reduzem a instrumentos descartáveis. A solidariedade perversa em política gera o que Merleau-Ponty intitula “a comunhão negra dos santos” (Nota sobre Maquiavel). Os piores malefícios ocorrem se ordenados por hierarcas cuja ideologia a tudo e a todos justifica. Salvo os inimigos.

Mesmo quando vítimas da máquina partidária, militantes ideologizados guardam fidelidade canina. É o caso do Partido Comunista e dirigentes perseguidos por Stalin. A técnica predileta, nos tribunais farsantes de 1936, era colocar o réu em frágil situação psicológica. Sabedores da sua inocência, os promotores lhes perguntavam: “O Partido diz que você é culpado. 

Sua língua nega a verdade do seu partido?”. Ir contra o “seu” partido seria destruir a própria vida, os valores defendidos no pretérito. Mas aqueles princípios eram arruinados pela polícia, promotores e juízes a soldo do “paizinho dos povos”. Situação surreal: garantir a própria inocência seria provar que o governo dos antigos camaradas era escabrosa farsa. Eles aceitaram a culpa farsesca em nome de um passado abolido.

E falo de pessoas eruditas, como Bukharin, Kamenev, Zinoviev e outros.

Em tempos obscurantistas da Igreja Católica, a censura e o castigo tinham um nome: sacrificium intellectus. Segundo Inácio de Loyola tal seria “o terceiro e mais elevado grau de obediência”. Trata-se de ardil para tanger o ser livre ao rebanho. A desculpa da técnica encontra-se na suposta frase de Tertuliano, “credo quia absurdum”, creio porque é absurdo. Como numerosas falas inverídicas, tal enunciado só com muita ardilosidade pode ser lido em Tertuliano. 

Ele faz companhia ao “Paris vale uma missa” jamais dito por Henrique IV; “se eles não têm pão, comam brioches”, de Maria Antonieta; “que grande artista vai perder o mundo” atribuído a Nero. Max Weber generaliza o silêncio obsequioso para toda religião. A depender de suas circunstâncias, elas sempre exigem do fiel… a fidelidade contra o intelecto.

Sempre que num coletivo impera o credo quia absurdum, e as falas são administradas por líderes – não por acaso, Stalin se interessou por linguística – religiosos ou civis, grassa um ódio ao pensamento crítico que aterroriza quem ousa raciocinar, pedir provas factuais ou lógicas das autoridades. É a misologia, termo inventado por Platão.

Quais origens possui o manso, obediente silêncio obsequioso mantido pelos tesoureiros petistas condenados pela justiça? Nos casos Delúbio e Vaccari, a comunhão negra dos santos funciona a pleno vapor. E nela reside a ideologia segundo a qual, para usar a tese de Trotsky: “o partido sempre tem razão (…) só podemos estar certos com e pelo Partido (…) e se o Partido adota uma decisão que um ou outro julga injusta, ele deve dizer, justo ou injusto é o meu partido e eu apoio as consequências daquela decisão até o fim”(26/5/1924). Até o fim, as piores coisas resultaram e ainda virão de tamanho servilismo voluntário.