segunda-feira, 30 de novembro de 2015



30 de novembro de 2015 | N° 18371
PREMIAÇÃO

OS VENCEDORES DA FESTA DO CONHECIMENTO

3º PRÊMIO RBS DE EDUCAÇÃO e Logus A Saga do Conhecimento revelam os vencedores em uma tarde de integração no Araújo Vianna

Foi uma tarde em que os holofotes se voltaram para a educação. O 3º Prêmio RBS de Educação e o game Logus – A Saga do Conhecimento, promovidos pela Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho e pelo Grupo RBS, premiaram seus vencedores no sábado, em Porto Alegre, durante a Festa do Conhecimento, evento que transformou o Auditório Araújo Vianna em uma grande confraternização entre estudantes e professores de escolas públicas e privadas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.

O 3º Prêmio RBS de Educação reconheceu as melhores ações de incentivo à leitura em escolas dos dois Estados, e o game Logus, que mobilizou mais de 7 mil estudantes, revelou a equipe campeã da saga. Lucia Ritzel, gerente-executiva da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, afirmou que a evolução dos projetos é evidente a cada edição do evento:

– O prêmio dá visibilidade aos educadores, e isso estimula outros profissionais a pensarem em novas estratégias de leitura.

Com um projeto sobre Nelson Rodrigues, Carolina Karro da Piedade foi a primeira vencedora anunciada, na categoria Escola Privada. Professora de língua portuguesa, literatura e produção textual do Colégio Ulbra São João, em Canoas, ela promoveu seis meses de imersão na obra do jornalista e escritor pernambucano com alunos do 3º ano do Ensino Médio.

– O projeto rendeu muitos frutos, os alunos criaram o hábito de ler literatura brasileira. Eu estou muito contente com esse prêmio – comemorou Carolina.

Em Escola Pública, a vencedora foi a professora de língua portuguesa Jessica Colvara Chacon. Ela inseriu a leitura na rotina de duas turmas de 9º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Arlindo Stringhini, de Guaíba, com o estudo de obras em formato de diário.

JÚRI POPULAR REGISTRA MAIS DE 700 MIL VOTOS

O júri popular escolheu o professor Francisco Paulo Rodrigues Mestre, que leciona música na Escola Municipal de Ensino Fundamental Dr. Jairo Brum, do município de Guaporé. Ele concorria na categoria Escola Pública com um projeto chamado Audiolivro do Bem, em que duas turmas do 5º ano do Ensino Fundamental transformaram livros infantis em relatos gravados.

Na categoria Jovens Protagonistas, a estudante Roberta Ferrari, 16 anos, da Escola Estadual de Educação Básica Prudente de Morais, de Osório, foi a campeã entre os gaúchos.

Pelo projeto, idealizado com outros três colegas, estudantes do Ensino Médio selecionam fábulas de Esopo e de La Fontaine, propõem uma releitura e as apresentam a alunos do Ensino Fundamental. Roberta foi eleita pelo júri popular, que, somado à categoria das escolas, tanto do Rio Grande do Sul quanto de Santa Catarina, contabilizou mais de 700 mil de votos.

– Agora é trabalho duro para colocar nosso projeto em prática – comemorou.

Detalhe zh

No Prêmio RBS de Educação, os educadores vencedores recebem R$ 11 mil e suas instituições, R$ 6 mil. Os jovens protagonistas mais votados ganham R$ 12 mil, e suas escola R$ 3 mil.

PROJETOS INSPIRADORES

ESCOLA PÚBLICA Jessica Colvara Chacon, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Arlindo Stringhini, de Guaíba ESCOLA PRIVADA
Confira os vencedores do Rio Grande do Sul no 3º Prêmio RBS de Educação e no game Logus
Carolina Karro da Piedade, do Colégio Ulbra São João, de Canoas
JOVENS PROTAGONISTAS
Roberta Ferrari, da Escola Estadual de Educação Básica Prudente de Morais, de Osório
JÚRI POPULAR
Francisco Paulo Rodrigues Mestre, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Dr. Jairo Brum, de Guaporé
MAIOR TORCIDA
Escola Estadual de Educação Básica Prudente de Morais, de Osório
LOGUS
Escola Estadual de Educação Básica José Plácido de Castro, de Relvado



30 de novembro de 2015 | N° 18371 
DAVID COIMBRA

O que salva a vida


Houve tempo em que voejava pelo mundo um bichinho chamado periquito-da-carolina. Era uma incomum espécie de papagaio que se estabelecera no norte do planeta. Você sabe: os papagaios, como os cariocas, não gostam de frio.

O periquito-da-carolina encantava por sua beleza. Tinha penugem verde-esmeralda e a cabeça dourada. Era um passarinho pacífico, que gostava de se empoleirar em bandos nos galhos das árvores. Por isso, tornava-se alvo fácil para os caçadores. Seu comportamento era peculiar: quando um homem atirava num grupo, os sobreviventes voavam, assustados, mas, imprudentemente, davam meia-volta para acudir os feridos. E os caçadores disparavam de novo, abatendo-os às centenas.

Charles Peale, autor do livro Ornitologia Americana, descreveu, no século 19, um episódio em que atirou várias vezes contra esse belo passarinho:

“A cada descarga sucessiva, ainda que montes deles caíssem, a afeição dos sobreviventes parecia aumentar, pois, após algumas voltas, eles tornavam a pousar perto de mim, olhando para os companheiros abatidos com sintomas tão manifestos de compaixão e preocupação, que me desarmaram totalmente”.

O periquito-da-carolina, um bicho que não fazia mal algum ao homem, foi extinto pelo homem. Repare: Peale amava os pássaros. Estudou-os. Escreveu sobre eles. E, ainda assim, os matava. Isso é coisa nossa, dos seres humanos. Estamos sempre procurando motivos para matar.

Agora mesmo, um homem assassinou três pessoas numa clínica de planejamento familiar, no Colorado. Matou por ser contra o aborto e “a favor da vida”. Ou seja: extinguiu vidas para defender a vida.

Alguém haverá de dizer que isso é coisa do homem branco, capitalista, que... Balela.

Pegue o índio brasileiro, que tem fama de ser bonzinho. O índio brasileiro é responsável pela extinção da maioria dos grandes animais do continente. Havia, nas Américas, pelo menos 30 espécies de animais de porte avantajado, maiores do que pumas e ursos, que simplesmente desapareceram, devido à ação dos índios. Preguiças com o dobro do tamanho de um elefante, felinos ferozes, aves imponentes, todos foram extintos pelos indígenas muito antes da chegada do homem branco.

A diferença entre os índios e os europeus era o avanço tecnológico. Como os europeus contavam com armas melhores, conseguiam, em poucas décadas, acabar com espécies que os indígenas levariam centenas de anos para liquidar.

A sede de matar é a mesma em todos os homens, porque todos fazemos parte da mesma espécie, o sapiens.

O que pode preservar a vida de outras espécies, e a da nossa própria, não é um retorno à existência nômade, como levava a maioria dos índios, nem a abdicação à tecnologia.

Ao contrário. O que pode preservar a vida é o desenvolvimento.

Até o século 19, os bichos, as mulheres, as crianças e a natureza eram vistos e tratados de forma diferente (os homens também eram tratados de forma diferente). Foi o aumento do volume de conhecimento que mudou a maneira como o ser humano se vê e a maneira como ele vê o mundo em que habita.

Nunca, em 4 bilhões de anos da história da vida, a vida foi tão defendida, preservada e estudada como agora. Nesse tempo, 99,9% das espécies foram extintas, a maioria delas não por culpa do homem. Mas agora, graças ao homem, a vida tem sido protegida, e a natureza também, como prova a conferência do clima, ora realizada em Paris.

É a ciência que nos empurra para a civilidade, é a ciência que pode nos defender. É a ciência que ilustrará homens primitivos, como o matador do Colorado, ou os fanáticos do Estado Islâmico. A ciência dos países desenvolvidos, das democracias capitalistas, do mundo onde as diferenças são respeitadas. Só a ciência nos salvará.


30 de novembro de 2015 | N° 18371 
MARCELO CARNEIRO DA CUNHA

BAD JESSICA


Jessica Jones é uma mulher poderosa em sua fragilidade emocional. Detetive particular daquelas de catálogo, que tem escritório todo esburacado e muitos casos para resolver, em boa parte, com ela mesma. Ela é durona, sensível, beldade e capaz de enfrentar criminosos e sedutores com o mesmo olhar de quem não está nem aí para nada. Ou seja: Jessica Jones é personagem de quadrinhos.

Os quadrinhos, em suas diferentes formas e estilos, têm uma coisa em comum. São juvenis – no mínimo por conta de quem os cria. Quem desenha as histórias sabe tudo de desenho, quem cria e escreve não sabe nada da vida.

Jessica Jones se diferencia da maior parte dos quadrinhos por ser adulta, pelo menos na intenção. Se você tem idade suficiente para ver a série, vai descobrir que existem cenas de sexo, mesmo que parcialmente cobertas por lençóis e cobertores, no melhor estilo roliudiano. Jessica é uma mulher moderna, e não seduz, declara. O que quer, ela faz, a não ser que seja impedida pelo seu arqui-inimigo, o bad, bad, bad Killgrave.

Killgrave é ruim de doer, de beliscar criancinha no metrô. Ele também controla a mente dela e de outras mulheres, no que Jessica Jones não é assim tão feminista, para este colunista. O mundo gira, mas os culpados de praticamente tudo que acontece são eles, esses seres detestáveis aka homens.

A série é um sucesso, mais um, da Netflix, que os emplaca com uma frequência que deve deixar muito executivo de Roliú enlouquecido. De melhor, na minha opinião, fica ela mesma, Jessica. De pior, de novo na opinião desse que vos atormenta, o fato de a série vir não da vida e de suas convexidades, mas dos quadrinhos, que acreditam que a Terra e todos os seus personagens são planos.

Jessica Jones não tem um pingo de realidade nas veias, o que não quer dizer nada, porque estamos falando de quadrinhos. A série é bacana, se faz ver, e está ali para qualquer um ver. Portanto, veja, uai.

30 de novembro de 2015 | N° 18371 
L. F. VERISSIMO

Darwin desmentido


Richard Nixon, aquele incompreendido, certa vez defendeu a nomeação de um correligionário notoriamente medíocre para um cargo federal com o argumento que a mediocridade também precisava ser representada no governo. Certo o Nixon. No caso brasileiro, por exemplo, uma maioria de congressistas capazes e honestos convive com uma boa amostra da mediocridade nacional, que não pode se queixar de estar sub-representada. 

O que mantém nossa fé na democracia representativa é a esperança, seguidamente frustrada mas sempre renovada, de que os bons prevalecerão sobre os ruins. E que uma elite moral e intelectual acabará vindo à tona, nas duas casas do Congresso, por um processo darwiniano de seleção natural. Mas a realidade política brasileira insiste em desmentir o Darwin. 

A evolução, nos nossos Legislativos, tem produzido não líderes por mérito, mas líderes por esperteza processual, como Eduardo Cunha e Renan Calheiros, e a sobrevivência dos piores. Como é que alguém como o Delcídio Amaral chega a líder da bancada do governo no Senado, se não como um prêmio à mediocridade prestativa?

O bom dessa trama florentina de delações, conspirações nos bastidores e traições em que vive a pátria desde que o juiz Moro pôs-se a campo, é que nunca faltam novidades para nos surpreender. Agora entrou em cena o filho do Cerveró, o ator Bernardo Cerveró, que, leio, fez sucesso recentemente numa peça infantil chamada O Principezinho do Deserto ou coisa parecida, e cujo gravador fatídico registrou tudo que se dizia numa reunião com o Delcídio para combinar a fuga do seu pai antes que ele contasse o que sabe sobre o escândalo da Petrobras. 

Bernardo levou sua gravação ao Ministério Público. O Pequeno Príncipe do Saint-Exupéry jamais imaginou que um dia poderia derrubar uma República. Não sei se Bernardo leu o livro, mas talvez, antes de entregar a gravação, se lembrasse de uma das frases do Príncipe: “Só conheço uma liberdade, a liberdade do pensamento”. Foi a liberdade que Bernardo preferiu para o seu pai.

Não adianta suspirar por um Congresso acima de suspeitas e livre de lideranças lamentáveis, o que equivaleria a suspirar por menos democracia ou por uma humanidade perfeita. Contentemo-nos com eventuais derrotas da mediocridade.

domingo, 29 de novembro de 2015



29 de novembro de 2015 | N° 18370 
CARPINEJAR

Fiador da desgraça

O que eu já vi de pessoas que não amam mais acabarem se envolvendo em projetos duradouros como casamento e filhos. Ensaiam o discurso do fim e alteram bruscamente a rota quando confrontados.

Em vez de recuar, apressam os passos. Em vez de soltar as amarras de uma relação problemática, apertam os laços. Em vez de sair, entram ainda mais dentro de casa. Em vez de dizer a verdade, prestam declarações eternas. Em vez de quitar os juros emocionais, realizam mais dívidas.

Estão a um triz da separação e compram anéis de noivado ou marcam igreja ou decidem ter uma criança.

Confundem a porta de saída com a de entrada, e se lançam com unhas e dentes para uma última e redentora chance, que não mudará em nada o desgaste de um longo isolamento a dois.

A boca desmente o desejo e complica o desenlace. A palavra expressa exatamente o inverso das verdadeiras intenções. Se era difícil largar, será impossível a partir de agora.

Sempre me chamou atenção o quanto existem casais caminhando ao contrário de suas decisões. Talvez por culpa. Talvez pela vergonha da solidão. Talvez pela ilusão de se ver mais responsável pela felicidade do outro do que pela própria felicidade. Talvez por comodismo. Talvez para evitar a decepção de quebrar uma promessa. Talvez pela necessidade de ser melhor do que realmente é. Talvez por não admitir que fracassou. Talvez por faltar forças para recomeçar. Talvez por entender o tempo como investimento e achar que se dedicou excessivamente para jogar tudo fora. Talvez por supor que o ruim é, ao menos, conhecido.

Qualquer que seja o motivo, o melindre de decepcionar e desagradar impulsiona os maiores erros. O receio é de quê? Que no fundo ela ou ele fale mal de você? Mas não tem como controlar os pensamentos alheios nem dentro da convivência, muito menos fora.

Trata-se de uma atitude fóbica, parecida com a vertigem: é tanto o medo de cair que a vontade é cair mesmo para terminar logo com o medo.

Você percebe o esgotamento da rotina e assume pendências para os próximos cinco anos. Pretende ir embora e começa uma reforma sem precedentes. Pretende ir embora e adquire um cachorro. Pretende ir embora e interrompe o anticoncepcional.

Não há limites para o boicote. Você se afoga nas lágrimas e nada em direção a uma dor maior. Você tenta disfarçar o que sente fazendo o oposto, e aumenta as expectativas e engrossa as mentiras.

Na vida amorosa, o “não” vive se escondendo perigosamente no “sim”. Até terminar do pior jeito, deixando alguém plantado no altar ou com uma criança no colo.



29 de novembro de 2015 | N° 18370 
MARTHA MEDEIROS

Sexo casual


Por mais que o sexo seja livre, considero um desperdício utilizá-lo apenas como sessão de aeróbica

A maioria das pessoas com quem convivo é casada ou está num namoro estável, mas outro dia almocei em São Paulo com uma amiga solteira, com pouco menos de 30 anos, e acabamos tendo uma conversa interessante sobre os novos formatos de relacionamentos amorosos, tudo por causa de um livro que ambas havíamos lido. Estou falando de Pagando por Sexo, do cartunista Chester Brown, em que, por meio de uma história em quadrinhos, o autor conta por que desistiu do amor romântico em troca da prostituição. Polêmico, mas um retrato interessante da desilusão atual.

Qual a importância do sexo nas relações? A monogamia ainda se sustenta? Só sexo basta?

Foi quando nós duas começamos a falar sobre rolos, essa modalidade tão em uso atualmente. Relações sem compromisso, sem rotina, sem fidelidade, sem ciúmes. Apenas com sexo de vez em quando. Precisa mais?

Essa minha amiga comentou que conhecia outra garota na faixa dos 30 que dizia já ter transado com 650 caras. Não sou boa em matemática, mas resolvi calcular: supondo que ela tenha vida sexual desde os 15, vem transando com um homem diferente a cada oito ou nove dias, ininterruptamente, sem contar as recorrências. Se não for uma profissional do ramo, é uma boba que gosta de contar vantagem. Se não for uma coisa nem outra, então o mundo mudou mais rápido do que consegui acompanhar.

Em que momento o romantismo morreu?

O rolo é vantajoso. O sem isso e sem aquilo pode ser muito benéfico numa etapa da vida em que a ninguém tem mais paciência para investimentos afetivos sérios, mas essa racionalização não me parece afrodisíaca.

Por mais que o sexo seja livre, pleno e ótimo, considero um desperdício utilizá-lo apenas como sessão de aeróbica. Pode ser sem compromisso, sem rotina, sem fidelidade e sem ciúmes, mas que graça terá se não houver um encantamento mínimo, um brilho se insinuando no fundo do olho?

Sexo casual também é encontro. E, como tal, se torna mais estimulante quando se vale de alguns aditivos que passam longe da cama. Um Whatsapp no meio da tarde dizendo que bateu saudade, um telefonema no fim da noite pra dizer “dorme bem”, uma confidência trocada, um cuidado em não magoar, pequenas gentilezas que fazem parte do jogo. Jogo? Sim, jogo. É ou não é uma relação entre adultos? Então sem falsa inocência. É um jogo.

Não se está falando de amor pra sempre, e sim de um relacionamento sem vínculos, mas que nem por isso precisa evitar pequenas graciosidades que tornam a confluência mais terna. Porque senão passa-se o rodo em centenas e só o que se leva disto é uma boa pontuação no ranking.

Sem apego, sem sentimento, sem exclusividade, sem troca, sem planos. Nada contra, cada um sabe de si. Mas acho mais palpitante com.

sábado, 21 de novembro de 2015


22 de novembro de 2015 | N° 18363 
CARPINEJAR

Viagra natural


O maior afrodisíaco do homem é se sentir desejado. É de menos a beleza e a aparência, por mais que soe cabotino de minha parte, o homem se apaixona quando vê que é desejado. Muito desejado. A descrição aumenta o prazer, a antecipação reforça a vontade.

É irrelevante se a mulher é alta ou baixa, loira ou morena, feia ou miss, com quilos a mais ou a menos, o que adiciona coragem no homem é o discurso arrebatado, a volúpia e a excitação de sua companhia.

A dúvida alimenta o imaginário feminino, por sua vez é a certeza que impulsiona o homem. A convicção. O filme precisa ser legendado e dublado ao mesmo tempo. Qualquer desconfiança do objeto amoroso desencadeia desvalia e ressentimento.

Quando a mulher desenha, diz o quanto o quer, quando promete e anuncia o que fará, quando explica o motivo dele ser o eleito, o homem pira de felicidade.

Ele joga melhor com a vantagem no placar. Odeia ser humilhado e constrangido – é um carente, é uma criança emocional, busca reconhecimento no sexo e no amor. Ele se afastará do relacionamento que subestime o seu desempenho ou o critique em demasia. Não é maduro o suficiente para rebater as ofensas e seguir adiante.

Excitação masculina é elogio, é declaração de exclusividade, é manifesto de virilidade. Facilmente influenciável, folgadamente impressionável, depende do retorno efusivo, da resposta para definir se está agradando. Pode bajular que ele não se importa, pode exagerar que oferece um desconto.

Todo homem é um político na cama, refém do Ibope, das pesquisas de opinião, da crença do voto. Não vive sem o panfleto, o folder de suas realizações e de sua propaganda eleitoral.

Sua alegria é tributária dos enredos e das fantasias, das mensagens picantes e áudios fora de hora, das insinuações ao telefone. Ele gosta da preparação, do aviso, de alguém que se renda aos códigos e dialetos da intimidade.

Pois ser procurado ou procurar é para o casal que transa pouco e não se provoca ao longo do dia, é problema de quem não está conectado sexualmente.

Mas não se deve confundir desejo com submissão. A submissão é broxante, envolve desagradável imposição e ausência de livre-arbítrio. O que ele anseia é ser escolhido pela mulher, adorado pela mulher, que ela confesse a plena excitação em seus ouvidos, que o beijo, o gemido e a palavra venham sempre misturados.



22 de novembro de 2015 | N° 18363 
MARTHA MEDEIROS

Simplicidade

Parece simples, deveria ser simples, mas quem é que simplifica a própria existência?


Em 2010, quando lancei uma coletânea de crônicas chamada Feliz por Nada, muita gente começou a me chamar para eventos a fim de que eu falasse sobre felicidade, certos de que eu dominava o tema. Agora está mudando acabo de lançar um livro chamado Simples Assim e andam me convidando para falar adivinhe sobre o quê. Pois é. O que me faz pensar que, ao lançar algum novo livro mais adiante, melhor refletir sobre o título, ou daqui a pouco serei presa por charlatanismo.

Por ora, sou especialista em simplicidade, é o que diz meu crachá. Tenho um bate-papo agendado sobre o assunto, daqui a alguns dias, na sede da The School of Life em São Paulo, então aproveito para rascunhá-lo aqui.

Do que falo quando falo em simplicidade: não de vida franciscana, e sim de vida facilitada.

Parece simples, deveria ser simples, mas quem é que simplifica a própria existência? Quase todo mundo pratica o autoboicote e depois joga a culpa no chefe, nos genes, no governo, no destino, nos astros. Responsabilizar-se pelas consequências do que faz? Não tem emoção, fica faltando o drama.

Chegar no horário. Não responder a provocações. Controlar o ego. Fazer check-ups periódicos. Não mentir. Não protelar. Evitar pessoas muito complicadas. Ouvir música. Manter os amigos por perto. Não desistir ao ouvir o primeiro “não”. Desistir ao ouvir o quinto “não”. Pagar as contas em dia. Produzir. Não levar tudo para o lado pessoal. Não se sentir ofendido por mais de 10 minutos. Atender os próprios desejos. Consertar o que está dando defeito. Ser gentil. Não fofocar demais. Terminar o que começou. Não fingir. Persistir. Manter o bom humor. Cumprir os deveres antes de se liberar pra farra. Não pirar.

Releia os exemplos que dei. Nada tem a ver com fortuna, status, poder. Facilitar a própria vida custa nada. Sai de graça.

Está achando óbvio, eu sei. Só que o óbvio é o primeiro a ser ignorado quando se abre os olhos pela manhã. A maioria das pessoas que conheço está neste momento concordando com esse texto, julgando-se bom exemplo do que está escrito aqui, só que não. Na prática, muitos compram briga à toa, se consideram perseguidos, não toleram imprevistos, reclamam de qualquer besteira, não sabem relativizar, se amarram, colocam os pés pelas mãos e sofrem. Claro.

Dói o que vou dizer, mas direi mesmo assim: somos todos insignificantes. Só o que nos dignifica são nossos sentimentos e nossa generosidade. Vai ser uma sorte se um dia formos lembrados pelos outros com simpatia. Entendo que todos gostariam de inspirar documentários, virar tema de samba-enredo, nome de rua, mas é pouco provável. Chamar a atenção dá uma trabalheira danada: troco fácil por uma tranquila noite de sono.

Melhor ter uma vida boa do que ficar na memória dos outros como um gênio (ou um chato) incompreendido.


22 de novembro de 2015 | N° 18363 
PAULO GERMANO

A maconha que fumei


Já fui maconheiro. Fumava de dois a três baseados por dia.

No início, era bom: tocava nos Gabardines, saudosa banda de rock dos tempos da faculdade, e as letras e melodias me assaltavam a mente e me escorriam pelos dedos com incontrolável facilidade. Uma usina de criação, era o que eu era.

O lado ruim se manifestava na rua. Havia sempre alguém me olhando. Com o tempo, havia sempre alguém me julgando – e me achando ridículo. Meu primeiro ataque de pânico foi num show do Mark Knopfler, no Gigantinho, quando tive a clara impressão de que o próprio Mark Knopfler me achava ridículo: o olhar dele me encontrava o tempo todo em meio a 14 mil pessoas que também me achavam ridículo, e tive a certeza de que Mark pensava:

– O que faz no meu show um rapaz tão ridículo? Desmaiei.

A paranoia continuou me perseguindo, não conseguia mais me aproximar de mulher nenhuma. A criatividade do início deu lugar a uma lentidão de raciocínio devastadora. Virei um recluso improdutivo. E cada vez mais me sentia burro e feio e principalmente ridículo.

Conclusão: a maconha faz mal. Talvez tenha feito pior para mim do que para outros, mas conheci e ainda conheço dezenas de usuários, já entrevistei psiquiatras e neurologistas de todas as correntes e sei que a maconha faz mal.

Se sou contra a descriminalização? Pelo contrário. Sou a favor inclusive da legalização, que golpearia um mercado negro livre de impostos, reduziria o financiamento do crime organizado – a maconha é de longe a droga mais consumida – e reconheceria os dependentes como doentes, que é o que eles são e é o que fui, e não como marginais.

Mas defender a legalização nada tem a ver com a crescente glamourização da droga entre os jovens. Na semana passada, Rihanna, umas das cantoras mais bem-sucedidas da atualidade, anunciou o lançamento de sua própria marca de maconha: MaRihanna (bom trocadilho, admito) será lançada no primeiro semestre de 2016 no Colorado, nos Estados Unidos, onde a erva é legal.

– É a primeira marca de maconha verdadeiramente mainstream no mundo, e tenho muito orgulho disso – declarou a cantora, e até agora não pude compreender o motivo do orgulho.

Há três meses, alguns artistas liderados por Gregório Duvivier postaram fotos em redes sociais acendendo um baseado. Em tese, seria uma campanha pela descriminalização da droga. Na verdade, não passava de uma apologia ao uso da droga: “Saia do armário, poste você também”, escreveu Gregório, estimulando seus seguidores a publicarem imagens com a mesma pose.

Aparentemente contestador, esse tipo de postura com arzinho rebelde não pode ser mais paradoxal quando envolve artistas identificados com bandeiras tão nobres como a liberdade feminina (no caso de Rihanna) e todos os flagelos sociais do Brasil e da humanidade (no caso de Gregório). Que sentido podem ver no incentivo ao consumo da maconha?

Do álcool à heroína, droga nenhuma faz bem a uma sociedade. Usá-las ou não é uma escolha pessoal, mas uma sociedade consciente entenderá a importância de enfraquecê-las, como o cigarro já foi enfraquecido – e só se enfraqueceu porque é uma droga legal, porque foi combatido e tratado como problema de saúde.

Quanto aos meus ataques de pânico, já passaram. Deixei a maconha faz tempo, hoje só fumo cigarro.

Sei que você torceu o nariz para a última frase. Com toda a razão.

sábado, 14 de novembro de 2015



15 de novembro de 2015 | N° 18356 
CARPINEJAR

Separação feliz


Você deve se separar quando está feliz. É meu excêntrico conselho. Porque não adianta se separar na tristeza se continua casado com a alegria do outro. É só a fase ruim passar que terá recaída e esquecerá as mágoas. É só o desentendimento esmorecer e a luz do sol bater na sala e no quarto que o amor manda de novo em casa.

Uma decisão fora de si perderá a validade quando voltar a si.

Você é capaz de rebater os ressentimentos e as brigas com facilidade, justificar o fim com rotina morna e sem sexo, mas não resistirá ao riso do seu par, às promessas de festa, aos carinhos e juras apaixonadas.

Precisa não gostar mais dentro do contentamento, para não cometer o engano de se afastar de uma das facetas de sua companhia e permanecer secretamente vinculado às demais.

A tendência é correr do namoro ou casamento no desespero, por pura ânsia, sem distanciamento do todo, sem recobrar as caminhadas deliciosas de mãos dadas e dos pés se acarinhando de noite.

Se não tem coragem de pedir o desenlace no céu, a queda é ensaio para repetir o voo. É uma sabotagem piorar o que se encontra pior – raro é definir a incompatibilidade na mansidão.

Ao fugir às pressas do que incomoda, será perseguido depois por aquilo que lhe satisfazia e não tem mais. É se dar um tempo sozinho que as lembranças irresistivelmente agradáveis tomarão conta, e se achará um idiota por não comparar o joio e o trigo, a joia e a gema.

Precisa definir o fim durante a reciprocidade, não na falta, a carência é uma miragem e produz distorções e exageros. Precisa elaborar o julgamento na presença, pois reclamar da ausência é parte da saudade.

Precisa propor a partilha no período de paciência, com o juízo firme e a esperança atenta, jamais com o orgulho ferido ou em meio à coerção das gritarias e ofensas.

O problema é que os pares rompem os laços quando estão mal, inventando purgatórios entre os amigos e familiares, e depois sucumbem aos encantos quando se recuperam e se veem pacificados da raiva.

No romance, o inferno é próximo e complementar ao paraíso, mas o medo de uma semana difícil ser para sempre causa precipitações. Se a separação não é feita no momento favorável, é que ainda não está seguro da mudança.

Desamor mesmo é querer ir embora quando tem todos os motivos para ficar. Ir no melhor dia porque nem o melhor dia segura.

Se não ama mais, daí sim nem a alegria fará efeito. Nem o beijo mais longo. Nem o abraço mais demorado e mais cálido. Descobrirá que é um estranho para um estranho, e a intimidade certamente morreu.



15 de novembro de 2015 | N° 18356 
MARTHA MEDEIROS

Vida resolvida


Hoje, a vida resolvida fica para depois que o vivente bater as botas. Antes, tem nada resolvido. Nada

Conversávamos sobre um amigo que ainda reluta sobre o que gostaria de ser quando crescer quando a velha senhora liquidou o assunto: Pouca vergonha. No meu tempo, aos 35 anos as pessoas já estavam com a vida resolvida.

O jovem rapaz em questão tem exatamente 35 anos, casou e se separou, não tem filhos e está pensando em fazer outro curso na universidade, já que não se adaptou à primeira profissão que escolheu. De fato, ele não está com a vida resolvida.

Até pouco tempo atrás era assim, tínhamos um norte a seguir: escolhíamos um par e um trabalho e, dali por diante, seríamos sensatos se não trocássemos mais de rumo, gozando a aposentadoria dos desejos. Nunca mais se preocupar com nada, apenas aproveitar a tal vida resolvida.

Havia quem simulasse direitinho a acomodação, mas se já naquela época o apaziguamento não era tão bem resolvido assim, imagine hoje.

Hoje, minha senhora, a vida resolvida fica para depois que o vivente bater as botas. Aí, sim, estará tudo resolvido, bem resolvido, três palmos abaixo da terra. Antes, tem nada resolvido. Nada.

No fluir dos dias deste século 21, deixamos de ser adolescentes indecisos para nos tornar adultos indecisos, mas vamos tateando, vamos experimentando, que a palavra experiência é que tem justificado todas as atitudes: a experiência de um hobby, de uma viagem, de um amor, de outro amor, e de outro mais. 

A experiência de trabalhar com fotografia e depois trocar pela experiência de trabalhar como professor de violoncelo, e então dirigir um documentário sobre uma orquestra mirim. E depois abrir um restaurante vietnamita, que logo fechará porque surgiu a oportunidade de viver uma experiência botânica num parque no interior de Goiás. Sonhos prestes a se realizarem até que outros sonhos chamem e novas experiências se descortinem: a palavra movimento também está muito em uso, vale lembrar.

Experiência e movimento, dupla dinâmica – dinâmica mesmo – que veio substituir casamento, família e profissão, o trio que amarrava o cristão numa vida resolvida.

Bem vertiginosos, esses novos tempos em que é permitido querer tudo e querer mais, em que ser considerado uma pessoa de confiança não implica em criar raízes numa única cidade, e tampouco em ter uma única mulher ou um único marido para sempre, mas alguns ao longo de uma vida longa. Filhos do primeiro casamento, do segundo – e no terceiro, aleluia, a lua de mel merecida, com os netos visitando de vez em quando. Inventam-se atividades conforme a demanda: ainda haverá cursos profissionalizantes daqui a alguns anos? 

A conclusão de uma faculdade será requisito fundamental para garantir um futuro? Ainda existirá futuro ou o tempo se resumirá a um eterno presente, renovável a cada segunda-feira?

Experiência, movimento. A vida resolvida era segura, mas muito parada.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015



11 de novembro de 2015 | N° 18352 
MARTHA MEDEIROS

Os meus livros do ano


2015 foi o primeiro ano em que tive um perfil no Facebook. E foi o ano em que li menos. Óbvio que tem relação. Já estou tratando de diminuir o tempo que perco furungando no smartphone.

Mesmo assim, deu pra selecionar algumas dicas para estes últimos dias de Feira do Livro de Porto Alegre, atendendo a pedidos.

Começo destacando Stoner, de John Williams, cujo primeiro parágrafo é um spoiler: resume tudo o que virá pela frente. O que a gente não imagina é o quanto esse “tudo”, que abrange a vida inteira de um homem comum, pode ser fascinante. Outra história sobre um homem comum é A Morte do Pai, do norueguês Karl Ove Knausgard, que se divide em duas partes: a adolescência e a maturidade do personagem. O livro cresce do começo para o fim – assim como nós.

Tenho um fraco por Domingos Oliveira. Iniciei 2015 lendo sua ótima autobiografia, Vida Minha, e acabo de ler seu primeiro romance, Antônio: o primeiro dia da morte de um homem. Mesmo escrevendo ficção, Domingos não consegue fugir dele mesmo – ufa. Em ambos os livros, sua marca registrada: o encantamento pelas mulheres, pela vida, pela paixão. Uma prosa repleta de filosofia e um pouco de bandalheira para dar graça à coisa. Solar. Adorável.

Ainda as relações humanas: Pagando por Sexo, do cartunista Chester Brown, traz em quadrinhos uma discussão interessante sobre prostituição, baseada na trajetória pessoal do autor. Desiludido com o amor romântico, Chester decide sair apenas com garotas de programa. Uma reflexão provocativa e inteligente sobre a solidão e as dificuldades de relacionamento.

E ainda biografias: a de Oliver Sacks, Sempre em Movimento, é dinâmica como sugere o título. A neurociência acaba virando pano de fundo para o que salta das páginas: gana de viver. E Elis, uma Biografia Musical, de Arthur de Farias, é obrigatória não só para os fãs da cantora, mas para quem quer enxergar a história da MPB por dentro.

As conversas entre o cineasta José Pedro Goulart e o psicanalista Paulo Sergio Guedes renderam o vibrante É Preciso Viver no Mundo da Lua – um olhar arguto e desestressado sobre a existência.

Poesia? Todas as Mulheres, de Fabrício Carpinejar. Depois de oito anos longe dos versos, ele retoma o gênero e a verve.

Para os adolescentes, Diário de uma Sentimentalista, da jovem e afiada estreante Sthefany Lacerda, que arranca em alta velocidade rumo à conquista de uma voz madura, logo, logo.

Por fim, sugiro David Nicholls e seu Nós, trocadilho para a história de um casal que está junto há 25 anos e que tenta se desamarrar, Três Vezes ao Amanhecer, prosa espetacular do italiano Alessandro Baricco, e Os Largados, do também italiano Michele Serra, um primor de ironia.

Foi o que o Facebook permitiu, esse sanguessuga.

sábado, 7 de novembro de 2015



08 de novembro de 2015 | N° 18349 
CARPINEJAR

Glicose do afeto


Bêbado tem dono, sim. Tem endereço. Tem memória. E merece todos os cuidados.

Quem abusa de bêbado já extraviou o caráter. Quem troça de bêbado não guarda lembrança dos extremos da adolescência e da fragilidade do corpo. Quem zomba de bêbado não enfrentou a severa humildade de dormir abraçado numa privada.

Não se fica com mulher embriagada ou que não responde pelos seus atos. É covardia, golpe baixo, desaforo. O que se deve fazer é dar carona e largá-la em casa – nada mais do que isso. Sedução requer igualdade de condições. Se ela não desfruta de equilíbrio para rejeitá-lo, não resta prêmio em conquistá-la. Zerar na noite é melhor do que não poder se olhar no espelho de manhã.

Não é homem aquele que se aproveita do porre alheio para tirar vantagem. Não cultiva o próprio respeito. Não conta com a mínima compreensão de solidariedade, de educação, de decência (palavra em desuso, infelizmente).

Bêbado é um cachorro atravessando a BR – precisamos diminuir a velocidade para não atropelar.

Não existe nenhuma graça de ver alguém cambaleando, derrubando copos e objetos em dança suicida. O riso excessivo é enganador, significa descontrole, deixou de ser divertido há quatro copos. O sofrimento se expressa também na comédia.

Sempre que um amigo passa de seu limite na bebida, eu sereno imediatamente. Acordo impulsivamente do efeito do álcool.

Um amigo em apuros é o meu café, o meu guaraná cerebral. Desperto de qualquer torpor. Não acentuo o constrangimento e não finjo euforia para cavar confissões e frases engraçadas.

Não debocho dele. Ele não se torna uma piada pela fala presa, pelos tombos ou gafes desesperadas. Não o exponho para os outros. Falo cada vez mais com calma, soletrando, explicando o que está acontecendo e que é recomendável recuar com água ou refrigerante. Sou o chato, sou o careta, sou o pai de meu comparsa, sou a figura que ele vai odiar na balada e chamar de estraga-prazer. Pois tentarei ajudar enquanto ele somente busca enlouquecer. Meus ombros serão passarelas, jamais permitirei que ele seja um mico de auditório, ainda que eu cumpra o papel desagradável de leão de chácara.

É o meu momento de protegê-lo de si mesmo – seu pior inimigo.



08 de novembro de 2015 | N° 18349 
MARTHA MEDEIROS

Amor ao primeiro acorde

Sei que, quando menos esperar, minha música vai tocar bem perto de mim, assim como um amor que a gente sabe que é nosso

Sempre considerei romântico o amor à primeira vista. Você vê alguém de relance e tem certeza de que é a pessoa que sempre quis encontrar, aquela que se encaixa no seu ideal, mas aí você descobre, no dia seguinte, que aquela pessoa não mora na mesma cidade, ninguém sabe seu nome, onde trabalha e que fim levou. A criatura desaparece de cena e você fica apenas com aquele rosto gravado na memória, e a partir de então passa a procurar esse rosto em todas as ruas que atravessa, em todos os bares que frequenta, em todos os aeroportos.

Vivi uma experiência semelhante, mas não envolve uma pessoa, e sim uma música. Eu a escutei há muito tempo numa trilha de filme (desconfio que foi dentro do cinema, nem certeza disso eu tenho). Na época não me liguei tanto – gostei do que ouvi e depois esqueci. Esqueci o filme, inclusive. Ficou tudo retido no passado.

Dois anos atrás eu estava em Londres, caminhando por uma rua de Notting Hill, quando escutei a tal música num alto-falante de um quiosque onde alguém vendia CDs, LPs e outras raridades. Talvez por estar sozinha na capital inglesa, conectada com minhas emoções mais íntimas, escutá-la de novo me comoveu.

Eu não tinha um smartphone para acionar o Shazam a fim de descobrir o que estava tocando. Resolvi apelar para um aplicativo menos tecnológico: a confiança. Fui até o cara do quiosque e perguntei pela música. E aí deu tudo errado. Em vez de ele me dizer que música era aquela, ele me mostrou a capa do CD que estava tocando. Uma coletânea. O sol estava forte naquele sábado e havia muitas outras pessoas em volta manuseando discos e querendo a atenção do vendedor. Passei a enxergar só o braço dele estendido com o meu objeto do desejo nas mãos, enquanto atendia outros clientes. Parecia uma fruteira. Saquei uma nota de cinco libras, peguei o CD e fui embora.

No meu flat não havia onde escutá-lo. Passei os olhos pela lista de músicas e intérpretes e não reconheci nada. Tudo bem. A dúvida manteria o clima de “provoque a sede até não aguentar mais”.

Dias depois, de volta ao Brasil, beijei e abracei minhas filhas, tomei um longo banho e então abri a mala. Tirei de dentro o CD. Rasguei o lacre. E, segurando-o feito um Santo Graal, me encaminhei até o aparelho de som. Não era a primeira faixa. Nem a segunda. Nem a terceira, nenhuma delas. Minha música não estava naquele disco. Picaretas existem em todo lugar.

Passei o CD adiante, não me interessei por nada que tocava nele. Até hoje procuro a minha música em cada loja em que há som ambiente, em cada playlist de festa, nas estações de rádio que ouço no carro e na web, nas trilhas sonoras de minisséries e na casa de amigos. Estou calma. Sei que, quando menos esperar, ela vai tocar bem perto de mim, assim como um amor que a gente sabe que é nosso e que só é preciso paciência até que se revele. E então teremos o resto da vida.


RUTH DE AQUINO
06/11/2015 - 22h01 - Atualizado 07/11/2015 00h55

AgoraÉqueSouEla

Para minha mãe, que, há quase 70 anos, deixou o marido para escrever seu destino. Obrigada, mãe, eu adoro ser mulher


Minha mãe faria 93 anos na semana passada, mas partiu no domingo de Carnaval. Deixou em mim uma saudade imensa e lições de coragem. Dinah ainda não tinha 30 anos quando fugiu do marido, que batia nela. Largou o lar em Campos, Estado do Rio de Janeiro. Deixou seus bens – e, um deles, o maior. Deixou o filho mais velho, levou no colo o menor, bebê. Tinha medo de ser perseguida e morta se levasse os dois filhos. Os irmãos dela a convenceram a agir assim. “Leve só o bebê, senão ele vai atrás de você!”

Não posso nem imaginar sua dor. Não havia divórcio nos anos 1950. Minha mãe veio para o Rio trabalhar com meu avô. Era “desquitada”. Sinônimo de tantos adjetivos depreciativos naqueles tempos. Linda morena, vista como “ameaça” pelas casadas, vista como “fácil” pelos casados. Nem a Igreja a aceitava. Católica ao extremo, perdera o direito de comungar. Foi quando conheceu meu pai na plateia de uma peça de teatro.

Apaixonaram-se à primeira vista. Ele, solteiro, enfrentou a oposição materna para se juntar a minha mãe. Minha avó paterna, gaúcha, era um poço de rigidez. Não via com bons olhos a união de seu caçula com uma desquitada com filho. Resignou-se, mas não me lembro de ter visto minha avó sorrir nas visitas dominicais. A união de meus pais produziu duas filhas e se estendeu “até que a morte os separou”, em fevereiro.

Meu pai não quis que minha mãe continuasse a trabalhar fora. E ela obedeceu. Mas sempre teve muita personalidade e banhava de luz os ambientes. Defendia as filhas, queria que perseguíssemos nossos sonhos. Alfabetizou as filhas em casa, com a ajuda de quadro-negro, giz, livros, cadernos. Fomos para a escola tirando 10 com estrelinha em ditados e redações, graças a suas aulas de ortografia e caligrafia.

Meus pais se casaram oficialmente depois que saiu, em 1977, a lei do divórcio. Quando penso que o divórcio no Brasil só foi legalizado há menos de 40 anos, e que a mulher era obrigada a mudar de nome quando se casasse, e precisava se submeter ao marido em quase tudo, acho uma enormidade o que se avançou em tão pouco tempo. Graças ao feminismo ou às que se insurgiram – e que as mais novinhas se lembrem sempre disso.

Liberdade não se dá, se conquista. E há um longo caminho pela frente. Não tenho nada contra a fé religiosa, mas todas as igrejas são instituições patriarcais e prestaram historicamente um enorme desserviço aos direitos da mulher como ser humano pleno e autônomo. E isso persiste até hoje.

Minha mãe tinha vergonha do desquite. Só descobri na adolescência que eles não eram casados oficialmente. Ela não falava no assunto. Senti orgulho quando soube o que minha mãe precisou fazer para continuar viva e recomeçar, num tempo de trevas e preconceito. Falei a ela de meu orgulho, inúmeras vezes. Mas a morena Dinah tinha um mantra: “Tenha filhos homens, Ruth. Torço por netos homens. Mulher sofre mais”. E sua força mental foi maior que tudo. Eu tive dois filhos homens. Minha irmã teve três filhos homens.

Entre os temas femininos que ressurgiram como bandeiras, está a violência contra a mulher – estupros, espancamentos, assassinatos. Apesar da Lei Maria da Penha, de 2006, uma mulher apanha a cada 15 segundos no Brasil. Segundo a ONU, sete em cada dez mulheres no mundo sofrerão algum tipo de violência física ou sexual ao longo da vida. É espantoso e amedrontador. Já escrevi uma coluna, “O primeiro amor em Copacabana”, contando como, aos 16 anos, quase morri afogada, nas mãos de um namorado ciumento.

No Rio, o indicado pelo prefeito Eduardo Paes a sua sucessão, Pedro Paulo, não conseguirá sair ileso das agressões contra a ex-mulher, Alexandra. Em fevereiro de 2010 ela foi ao IML, e o exame do corpo de delito apontou chutes nas coxas, socos no olho e na boca, dente quebrado. Secretário executivo de Coordenação de Paes, Pedro Paulo admite ter tido uma “briga de casal”, na qual ele foi “arranhado”. “Foi um episódio triste, de descontrole, mas superamos. Traí minha mulher e me arrependo profundamente.”

Pedro Paulo insiste que, por ter sido um incidente isolado, não pode ser enquadrado como violência doméstica. O pior, Pedro Paulo, é que, quando uma briga degringola para esse grau de agressão, nada mais é do que isso: “violência doméstica”. Basta um dia. E, como deputado, secretário e pré-candidato à prefeitura, terá de assumir o ônus.

Certa vez (você lembra?), o infame ex-goleiro Bruno, do Flamengo, condenado por homicídio, defendeu publicamente seu colega Adriano, que batera na namorada: “Qual de vocês nunca saiu na mão com a mulher?”.

Por tudo isso – e mais um pouco – dedico esta coluna a minha mãe, que, há quase 70 anos, decidiu escrever seu destino. Obrigada, mãe, eu adoro ser mulher.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015



04 de novembro de 2015 | N° 18345 
MARTHA MEDEIROS

Na real


Quando falo sobre minha atividade como escritora, alguns me julgam modesta, mas de modesta não tenho nada. O que tenho é uma maneira muito própria de encarar meu trabalho. É uma aventura, uma sorte, uma oportunidade, nada mais.

Como o estrelismo anda em alta, acabo passando por humilde, mas lendo o livro Grande Magia, de Elizabeth Gilbert, encontrei alguém que também tem uma ideia pé no chão sobre o que é ser um artista.

Elizabeth é autora de vários livros. Entre eles, o best-seller Comer, Rezar, Amar. Está lançando agora Grande Magia – Vida criativa sem medo, em que relata sua trajetória profissional e dá uma situada sobre como a coisa funciona.

Assumidamente autoajuda, ela incentiva o iniciante a não ter medo de ser rejeitado, medo de parecer um narcisista, medo de que todo mundo já tenha feito melhor do que ele, medo de não ter talento, medo de magoar os parentes, medo de não fazer sucesso. Comece logo, ordena ela. Criar é para os corajosos.

E faz um lembrete importante: não busque a originalidade. Eu tenho batido nessa tecla nos eventos literários em que participo, mas Elizabeth Gilbert é mais famosa do que eu, então ouça o que ela diz: “A maioria das coisas já foi realizada – mas ainda não foram realizadas por você”. Ou seja, troque originalidade por autenticidade. Faça do seu jeito e veremos o que acontece.

Pode acontecer nada. Sua arte provavelmente não será importante para os outros. Assim é. Você não veio ao mundo para salvar ninguém. Apenas faça aquilo que sabe e que lhe dá prazer. Se for bom, o resto virá por consequência. Se não for bom, ao menos você apostou. É o que somos todos: apostadores.

A certa altura, ela reproduz no livro uma resposta que Werner Herzog deu a um cineasta independente que se dizia incompreendido, esnobado, preterido, injustiçado e pobre. “O mundo não tem culpa de você ter decidido ser artista. Não é tarefa do mundo gostar dos filmes que você faz e, sem dúvida, ele não tem nenhuma obrigação de financiar seus sonhos. Ninguém está interessado. Se precisar, roube uma câmera, mas pare de reclamar e volte ao trabalho.”

O problema é que ninguém quer ser reconhecido apenas como um criador disciplinado e meia-boca. As pessoas sonham em se transformar em ícones. Ou um Walter Salles, ou nada. Ou uma Clarice Lispector, ou nem vale iniciar. Se os Titãs conseguiram, por que não eu?

Melhor reduzir as expectativas. O sucesso é um acidente. Simplesmente entre no jogo e pratique muito. Utilize seus momentos de ócio, pois durante o horário comercial será preciso dedicar-se a uma profissão que lhe sustente. Ser artista não é sua profissão. Provavelmente nunca será. E daí? Você não quer se divertir?

Se esse for o real propósito, aí, sim, a tal magia pode acontecer.

terça-feira, 3 de novembro de 2015



03 de novembro de 2015 | N° 18344 
CARPINEJAR

Minha Porto Alegre


Como é difícil mostrar a própria cidade. Dois amigos argentinos – Lorenzo e Tomás – vieram visitar Porto Alegre depois de tanto professar a minha paixão. Acostumados com as praias brasileiras, chegaram aqui por absoluta crença nos meus elogios escandalosos para a capital gaúcha.

Fiquei encarregado de provar o meu gosto, e somente me confundi e me amargurei. Apresentei a Usina do Gasômetro no entardecer e aconteceu num dia nublado e o sol não deitou no horizonte, não prateou o Guaíba, e os olhos castanhos da água não se transmudaram em verdes pela luz refletida.

A curiosidade não produzia atenção, não prolongava nenhum lugar na memória da dupla estrangeira. Eles me olharam com pena, como que pedindo mais, e levei os dois para a Feira do Livro, mas ambos conheciam um projeto semelhante em Córdoba, não se mostraram arrebatados e não tinha jeito de singularizar a minha cidade. 

As palavras escapavam. E corri para o terraço da Casa de Cultura Mario Quintana e o meu espanhol era curto para explicar a importância de nosso poeta pensador. E fomos ao porto do Guaíba, ao morro Santa Tereza, aos chopes na ladeira, e a comoção não vinha e a monotonia já parecia eterna.

Eu estava cansado de falar, gesticular e rir de nervoso. Desisti de esclarecer a minha cidade. Entendi que é o mesmo que justificar o porquê de amarmos uma mulher. Como expor visivelmente o que é subjetivo? Como descrever a minha emoção de atravessar a Rua da Praia, calçadão que frequento desde menino? Como detalhar o efeito de caminhar em bairros com a copa fechada das árvores? Como alfabetizar o arrepio, o coração acelerado, o sotaque, o aconchego de um chimarrão na Redenção?

É igual a fundamentar o amor pela esposa, já que não alcançarão o poder da nossa cumplicidade, a telepatia das mãos dela em meu rosto, as longas conversas de apoio quando quero desistir de tudo, o sabor do nosso beijo, as festas e gafes conjuntas, as vitórias e superações sigilosas.

Porto Alegre é inexplicável para os turistas e, paradoxalmente, adorada pelos seus moradores. Os meus amigos só enxergavam os defeitos, e eu com as virtudes engasgadas na garganta.

Voltei para casa ouvindo Nelson Coelho de Castro no carro e cantando sozinho o que é intraduzível, o que não tem rima em outra língua, o que não tem versão em outro crepúsculo.

A única forma de conhecer uma cidade é amando.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015



02 de novembro de 2015 | N° 18343 
DAVID COIMBRA

O mundo é bonito


Já vi coisas bonitas na vida. Já me emocionei com a beleza do mundo. Lembro de quando me pus diante do Duomo de Milão pela primeira vez. Muito tinha lido sobre essa grande catedral gótica e estava ansioso para conhecê-la. Quando enfim pisei na praça em frente à igreja e levantei os olhos para suas paredes brancas, falhou-me a respiração. Era mais magnífica do que podia ter imaginado. E, como um bobo deslumbrado, senti os olhos umedecidos. Mas me contive. Não chorei. Sou do IAPI, afinal.


Fiquei encantado com a beleza de outras cidades. Roma, por seu significado histórico. Paris, porque Paris é Paris. E a mais bela entre todas as belas: o Rio.

Em meio a 10 arco-íris formados pelas Cataratas do Iguaçu, sentindo no peito o poder da natureza, gritei de alegria.

E também me enlevei pelo encanto de certas mulheres. Uma mulher que de repente espia o vento lá fora ou que baixa os olhos e perscruta pensativa os nós dos dedos, que observa os homens grandiosos com condescendência suave, que pendura uma vírgula de melancolia na comissura dos lábios, uma mulher assim com uma pequena tristeza dançando numa esquina da alma, essa é uma mulher para quem você olha e não consegue mais deixar de olhar.

A beleza serve para tocar o espírito.

Agora, estou vivendo numa linda região do planeta, esse gelado e luminoso norte dos Estados Unidos. Outro dia, saí a caminhar e, numa esquina, vi uma arvorezinha. Chamo-a de arvorezinha porque ela é minúscula, perto dos carvalhos imponentes da cidade. Essa arvorezinha está plantada no jardim de uma casa sem qualquer requinte, engastada numa ladeira pouco íngreme, bem na esquina de duas ruas onde não passa carro nenhum. O jardim é aberto, não tem cerca. Se você quiser, pode pisar na terra e tocar na arvorezinha. Foi exatamente o que fiz.

Havia parado a fim de admirar as folhas avermelhadas da arvorezinha. Não sei com certeza se aquilo era vermelho. Talvez fosse rosa ou roxo. Sei que era tão bonito. A copa da arvorezinha não era densa, mas era ampla, como se quisesse dar um abraço.

Foi sentindo isso, sentindo como se estivesse sendo abraçado, que entrei no jardim, me aproximei da arvorezinha e parei sob sua sombra vermelha. Toquei de leve no tronco fino. Levantei o braço. E acariciei uma folha. Virei-me, então, para continuar a caminhada, e aí vi que alguém me observava. Era uma senhora, decerto a dona da casa, parada de pé, ao lado da escada. Olhei-a, surpreso. Ia me desculpar pela invasão, mas ela falou antes. Disse, sorrindo:

– O mundo é bonito. Concordei: – É bonito...

E fui embora, agradecido e um pouco emocionado. Mas só um pouco. Sou do IAPI, afinal.



02 de novembro de 2015 | N° 18343
ARTIGO - DOM LEOMAR BRUSTOLIN*

O ENTARDECER DA VIDA


No entardecer da vida, seremos julgados pelo amor. Assim São João da Cruz, místico espanhol do século 17, sentenciou sobre o fim de nossos dias. Tratar da morte geralmente é muito difícil, porque as pessoas a pensam fora da vida. Morrer faz parte do viver. Gastar tempo, consumir energia, renunciar algo, perder: tudo revela diariamente que a vida é como uma vela que se consome para produzir luz. 

Não duramos eternamente na Terra. Na vida, há também cansaço e busca de repouso. Depois de uma jornada de trabalho, é preciso descansar. Passado o domingo ensolarado, segue o pôr do sol. E quanta beleza há num final de tarde!

Preparar-se para o entardecer da vida não é olhar para a noite da morte, mas perceber que o sol continua a brilhar na vida eterna, onde é sempre dia. Se pensássemos apenas no morrer, colocaríamos o sentido de tudo somente no final da existência. Muitas pessoas tenderam para essa posição e acabaram perdendo o sabor dos dias na Terra. A tentação maior, contudo, é pensar somente no agora, no material, na vida saudável, jovem e bela. Isso é provisório demais e pode gerar um desespero quando os limites começam a aparecer.

A consciência reprimida da morte mata-nos já em vida, e tornamo-nos apáticos em relação aos outros e a nós mesmos. A morte deve fazer parte da estrutura do ser, porquanto não se pode viver sem morrer. Cada processo vital contém em si também um processo mortal.

Tratar da morte sem abordar a vida resulta numa incompletude que revela a falta de algo fundamental, pois a vida e a morte perfazem um todo e complementam-se. Morremos sempre. Morre o idoso, farto de dias, mas morre também o jovem, sedento de vida. Para alguns, a morte conclui a existência; para outros, ela a interrompe. Diz-se até que, ao nascer, o ser humano já é suficientemente velho para morrer. Diante da morte não há argumento e nem respostas. Há somente o ato de fé.

Os cristãos definem a morte como passagem da vida limitada para uma vida plena, em Deus. Ensina o cristianismo que, em Jesus Cristo, apesar de vivermos na limitação do tempo, já somos eternos, porque somos filhos de Deus. É por isso que os cristãos já sabem ser ressuscitados, e a morte não pode lhes separar de Cristo, como proclama Paulo Apóstolo.

Bispo auxiliar de Porto Alegre*