sábado, 29 de outubro de 2016




29 de outubro de 2016 | N° 18673 
CARPINEJAR

No tempo em que todos estavam vivos

O aniversário nunca será na fase adulta como na infância. Não haverá mais a longa véspera da meia-noite, entre dormindo e acordado, naquela vigília pelo presente. Não haverá mais o lar em completa algazarra por uma única pessoa: você no centro do mundo, uma pessoinha de pálpebras rápidas, piscando diante da mãe preparando a panela de brigadeiro, as forminhas de salgados e cuidando para o bolo não afundar acendendo e apagando a lâmpada do forno. Não haverá mais a estranha exclusividade de provar qualquer doce antes do almoço.

Um exército de mãos rompe a rotina para dar conta das atividades domésticas acrescida de novidade de seu aniversário.

E não é obrigado a fazer nada, a não ser assistir ao espetáculo de seu nascimento a ser repetido fora do ventre. Os irmãos não lhe machucam, não implicam, oferecem um indulto abençoado de gracejos. Colegas lhe tratam bem e com respeito, existe uma veneração de brilho, tios e tias mexem em seu cabelo, roubam beijos, brincam com a demarcação de sua breve existência com a marionete dos dedos.

Você só tem que apenas esperar uma surpresa depois da escola denunciada em cada riso da família. Não passou por nenhuma dor e separação para estragar a alegria, nenhuma cadeira estará vaga pela morte ao redor da mesa. Os avós estão ainda vivos e vêm de longe com suas malas xadrez do interior e pacotes improvisados longe das lojas.

A memória não é maior que a imaginação. Desperta da cama, como se fosse um sapato de couro envolvido em papel seda dentro de uma caixinha. Você colocará chapeuzinho cônico, com o elástico apertando o queixo imberbe. Soprará as velas com a ajuda dos outros, o melhor aniversário é do tempo em que não tem força no pulmão para apagar a chama da vida.

Assim que você cresce, a festa é um fingimento – um alegre fingimento, mas fingimento –, enfrentará o trabalho de convidar os amigos e de negociar os presentes, sofrerá com alguma perda e gafe. Precisará receber os convidados e não poderá parar um minuto de servir e ver se se todos estão felizes, comendo e bebendo.

Acabou a comemoração inconsciente, acabou a sensação de medo bobo, acabou o olhar guloso ao teto repleto de balões coloridos para definir qual deles levará para voar dentro do quarto.

Quando crescemos, os aniversários são solitários mesmo de casa cheia. Casado ou solteiro, ficará responsável pela sua alegria. Ninguém mais aplacará a expectativa e resolverá a carência. Persistirá a consciência de que estamos envelhecendo mais do que inaugurando uma idade.




29 de outubro de 2016 | N° 18673 
MARTHA MEDEIROS

Minha dica: “Enclausurado” merece mesmo esse título, já que é um livro que prende o leitor

Enclausurado

Quando soube que o livro Enclausurado era narrado por um feto, gelei. Não sou muito fã de narrações feitas por crianças, o que dizer de um ser que nem criança ainda é? Na mão de um escritor menos tarimbado, teria tudo para transformar-se numa bizarrice, mas estamos falando do grande Ian McEwan, cujo talento anula qualquer desconfiança. Mestre é mestre: fui direto da primeira à última página sem pausa para buscar um copo dágua. E minhas gargalhadas confirmaram o prazer da leitura. Fazia tempo que não me divertia tanto.

De dentro da barriga da mãe, escutando tudo o que ela conversa, assim como os sons que a circundam, o bebê absorve informações sobre o mundo atual, incluindo alguns segredos íntimos e bem indigestos: mamãe planeja, com o amante, matar seu pai. Infiltrado no corpo da iminente assassina, ele é uma testemunha auditiva e impotente. Só lhe resta tentar entender o que está acontecendo lá fora e torcer para que a vítima escape. Eu quase pude ver o sorriso no rosto do autor enquanto ele se dedicava à engenhosa tarefa. Como toda boa trama policial, a parte psicológica é sempre a mais saborosa.

Aquele pequeno ser já formado (é o nono mês de gravidez), sem espaço para expandir-se, aguardando entediado o momento de nascer, acaba forçosamente participando do crime e recebendo informações privilegiadas: ele escuta os batimentos cardíacos de sua mãe, percebe a adrenalina provocada pelo medo dela, interpreta as nuances de seu tom de voz, sente as emoções todas que ela sente, desde o pânico contido até o prazer mais obsceno. Aliás, a descrição das relações sexuais da gestante sob o ponto de vista de quem está presenciando o ato de perto – muito, muito perto! – são absolutamente originais. E cômicas, claro.

Começou a Feira do Livro de Porto Alegre. Bancas e balaios com mil tentações, mas esta é a minha dica. Um texto espetacular e inteligente em apenas 200 páginas (sei que há pressa em voltar ao smartphone) e com um enredo que merece mesmo esse título, já que Enclausurado é um livro que prende o leitor.

Já que pretende ir à Feira, aproveite para me prestigiar no Pavilhão de Autógrafos. Aguardarei você às 17h do próximo sábado, dia 5, quando lançarei Um Lugar na Janela 2, o segundo volume dos meus relatos de viagens, em que me apresento nada enclausurada: livre e solta pelo mundo.


29 de outubro de 2016 | N° 18673 
LYA LUFT

Difícil tarefa



Quando crianças, o tempo para nós é sempre “agora”: brincar, mamãe, com sorte mais carinho do que violência, coisas desse tipo. Somos imediatistas. Depois, ainda pequenos, contamos o tempo pelas vezes em que teremos de dormir: “Quantas vezes tenho de dormir até o Natal? Até o aniversário?”.

Saindo do limbo da infância, começamos a ter projetos. Precisamos ter projetos. Nos dizem que temos de ter projetos, mais do que desejos ou sonhos, porque estamos ficando “grandes” e precisamos ser responsáveis. Alguns sonhos e desejos podem se transformar em projetos cada vez mais complexos e a mais longo prazo, à medida que nos tornamos adultos. 

Com eles chegam as frustrações: eu queria ser rico, acabei remediado, queria ser famoso, sou um anônimo. Eu queria se médico, acabei taxista. Eu queria ser modelo, virei uma acomodada dona de casa; eu quis viajar o mundo, e só agora, quase na velhice, vou conhecer o Rio.

A frustração tem a medida do desejo que não se realizou, ou da nossa incapacidade de nos adaptarmos ao real – sem perder a capacidade de voar. Não é preciso pisar na Lua para ser bem-sucedido, nem ter um Everest de dólares para se sentir bem na própria pele, isso que eu chamo de “ser feliz”. Gostar do que conseguimos: fazer caber nossas alegrias, isso que fazemos, desde que não nos humilhe nem degrade. 

Por que não posso ser bem-sucedida tendo uma casa simples mas acolhedora e uma família em que, apesar das brigas naturais, nos apoiamos uns aos outros em lugar de criticar? Por que conduzindo pessoas num táxi não posso fazer bem a elas e sustentar minha gente? Por que não sendo modelo, mesmo assim não posso me achar bonita, simpática, rica de emoções e coisas boas?

O problema maior é descobrir quem somos, o que desejamos e o que podemos. Ignorar, superar, os preconceitos, as regras, as receitas de ser bem-sucedido e feliz. Empoderamento, palavra clichê do momento (até rimou), me aborrece um pouco. Por que teríamos de ser todos poderosos? Importa, mais que isso, sermos decentes, dignos, úteis, amorosos, compassivos, criativos, e capazes de ver – mesmo na correria desta vida moderna – a beleza das nuvens disparando no céu, a dança das copas das árvores ou das ondas do mar quando venta forte. De telefonar para o amigo em dificuldade, dedicar um tempo aos filhos, ou aos pais, escutar o parceiro com carinho, enfim, sermos humanos sem maior complicação.

Para entender quem somos, quem queremos ser, quem podemos ser – não o que os outros, a turma, a sociedade, querem que sejamos –, é preciso parar pra pensar. “Parar pra pensar? Nem pensar! Se eu paro pra pensar, desmorono”, é a frase mais comum. Então esse deveria ser nosso heroísmo fundamental: interromper a agitação, um momento que seja, clarear a paisagem interior dominando a impaciência e o pessimismo. 

Enfrentando como podemos a realidade de um país confuso num mundo conturbado, na floresta de enganos em que se desperdiçam bons amores e desejos. Assim talvez sejam menos dolorosas as inevitáveis frustrações que por toda parte espreitam – porque viver, e conviver, sem perder a bondade nem a coragem, é difícil tarefa.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016



26 de outubro de 2016 | N° 18670 
MARTHA MEDEIROS

É por aqui?


Tinha um compromisso no bairro Bom Jesus, região de Porto Alegre que frequento quase nunca. Deram-me o endereço e uma pista de onde a casa ficava, o resto era comigo. Não uso GPS, mas, se sobrevivi até aqui sem ele, não seria agora que iria me perder. Me perdi.

Não deveria ter sido complicado, a rua é uma travessa da Protásio Alves, avenida bem conhecida da cidade. Mas existe outra coisa bem conhecida na cidade: a ausência de placas indicativas nas esquinas. Você precisa entrar na Rua das Camélias: como faz se não tem sinalização? Nem na Rua Nazaré, nem na Santa Isabel, nem na Jerusalém, nem na Rua Páscoa. Ou você é um intuitivo, ou pergunta. Assaltado pela dúvida já está, agora é torcer para não ser assaltado por um transeunte.

Citei o bairro Bom Jesus porque foi ali que passei por esta situação, mas vale para toda a Capital – placa é algo que às vezes tem em uma esquina e na outra não tem. E tudo bem.

Tudo bem pra quem? Certamente não para motoristas de táxi. Não para turistas. Não para quem está buscando um endereço longe de casa. Não para quem não vive preso a aplicativos.

Viajo bastante, e entre tantas coisas que despertam minha admiração está a sinalização urbana das demais metrópoles. Placas padronizadas em cada esquina. E em bom estado. Como é que conseguem? Deve custar uma fortuna e exigir alta tecnologia, imagino.

Porto Alegre já teve, um dia, esse luxo. Em algum ano remoto, foram colocadas placas azuis com letras brancas sinalizando cada logradouro – em postes e fachadas, e algumas até em árvores, muito bucólico. Mas a cidade cresceu. Alguns prédios foram demolidos. Postes caíram. As placas das árvores foram arrancadas por alguma ventania ou levadas por um colecionador. E a reposição foi de 0%. Não é prioritário.

Não espero que Melo ou Marchezan encontrem a solução para esse problema em seus primeiros meses de governo, eles têm medidas bem mais sérias a tomar a fim de melhorar a vida dos porto-alegrenses (acabar com os celulares nos presídios, por exemplo – aliás, uma questão: as celas possuem tomadas para que os aparelhos sejam recarregados?). Depois de o novo prefeito tratar o assunto segurança com a seriedade e rigidez que merece, espero que sobre um tempinho para essa reivindicação que parece menor, uma bobagem.

Placas de sinalização, que elitismo! Pode ser, mas não custa lembrar que a ausência de sinalização, queira ou não, sinaliza do mesmo jeito: para o descaso e o provincianismo.

Depois de dar carona para uma senhora que caminhava pelas redondezas e que foi muito prestativa, encontrei a rua desejada. Só ainda não encontrei resposta aceitável para tanto relaxamento.

sábado, 22 de outubro de 2016



22 de outubro de 2016 | N° 18667 
MARTHA MEDEIROS

Oposição contra si mesmo

Ser contra avanços legais e contra a arte, só por represália, é uma oposição tola que não dá em nada

A estupidez humana não cessa de bater seu próprio recorde. Como se sabe, gays são proibidos de doar sangue por um período de até 12 meses após terem tido relação com um parceiro do mesmo sexo. O Ministério da Saúde continua classificando os homossexuais como grupo de risco, sem considerar que muitos deles estão numa relação estável e fazem uso de preservativos.

Grupo de risco somos todos. Uma mulher que tem parceiros eventuais sem exigir camisinha é o quê? Héteros que transam com ela e com outras sem proteção, são o quê? Respondo: são doadores bem-vindos, ou seja, a restrição aos gays é discriminatória. Orientação sexual, por si só, não determina a qualidade do sangue. Foi para acabar com esse atraso que o deputado federal Jean Wyllys criou um projeto de lei, e aí reside meu desalento: por Jean Wyllys ser de esquerda, quem é de direita reluta em apoiá-lo. “O que vier dele, eu rejeito.”

É o mesmo raciocínio de quem não assistiu ao estupendo Aquarius por achar que é filme de petista (!!!). A posição política de alguns integrantes da equipe, manifestada na pré-estreia em Cannes, foi vista como um desaforo e gerou um revide provinciano: “Ou você pensa como eu, ou tudo o que você faz não presta”. O mesmo vale para quem deixou de admirar Chico Buarque. “Se não houver afinidade partidária, não te escuto, não te vejo, não te leio.”

Por outro lado, vi muitos esquerdistas comemorando o fato de Eduardo Cunha ter levado uma sapatada de uma senhora no aeroporto Santos Dumont. “Esta me representa!” foi a frase repetida nas redes, ditas pelas mesmas pessoas que, no ano passado, ficaram indignadas por Guido Mantega ter sido hostilizado num restaurante em São Paulo – exemplo clássico de dois pesos, duas medidas. 

Quem não gostaria de dar uma sapatada numa criatura abjeta? Mas é para evitar que liberemos nossos impulsos ao bel-prazer, causando linchamentos físicos e morais, que existe um troço chamado lei. Quando ela vale só para alguns casos (os que nos interessam), temos um problema, Houston.

O conceito de esquerda e direita parecia superado, mas voltou forte e ainda mais dividido nestes tempos tecnológicos, em que o contato direto e instantâneo entre as partes acirra a disputa pela razão. O resultado é a rivalidade destemperada entre “Nós x Vocês”, sendo que ninguém leva em conta que “Vocês” podem ter boas ideias a despeito de não jogarem no nosso time.

Ser contra avanços legais e contra a arte, só por represália, é ser contra si próprio, uma oposição tola que dá em nada.



22 de outubro de 2016 | N° 18667 
LYA LUFT

O terrível e o sublime

Que somos animais predadores com vernizinho de civilidade, ou de humanidade, se quiserem, isso me parece óbvio. Basta soltar as amarras num impulso de raiva, num momento de ódio, num fanatismo qualquer, e lá vamos nós, nada bonzinhos, matando, esquartejando, estuprando, aniquilando com mísseis ou espalhando morte e tripas com algum homem-bomba. Lá vamos nós treinar menininhos para matarem com fuzis maiores do que eles. Lá vamos nós queimar prisioneiros vivos dentro de jaulas aos olhos de uma multidão, ou matar nas ruas só porque “hoje deu vontade”.

Onde, quando ouvi ou li coisas parecidas? Foi no Holocausto? Está sendo em tantos holocaustos atuais? Foi Nero, que mandou matar a mãe e matou com pontapés na barriga sua mulher grávida, que mandava empalar cristãos cobertos de óleo em postes, para queimarem iluminando seus jardins? Nero, incompreensivelmente discípulo do meu amado filósofo Sêneca, cujos pensamentos sábios, harmoniosos, nobres e tranquilizadores leio e releio desde adolescente? 

Comentei com um de meus filhos, quando falávamos mais uma vez sobre a violência no Brasil e também aqui, que, lendo um bocado de História, até acho que melhoramos muito. Não havia imprensa, não havia organizações, não havia democracia que botasse limite na ferocidade humana.

Mas hoje, mesmo tendo avançado em relação às barbáries passadas, aqui nas nossas ruas não temos sossego. A cada dia, alguém que conheço ou que é conhecido de algum amigo é assaltado, e tudo termina com o suspiro de alívio: “Ainda bem que só levaram minha carteira, meu carro, não minha vida nem minha mulher ou meus filhos. Tivemos sorte”.

Que vida é essa, que pensamento funesto? Terrível atestado da nossa vergonha e conformidade, e da incompetência de quem deveria administrar o país. O crime começa a compensar. O criminoso nos controla. Saímos pouco à noite, e com receio; não paramos o carro nos sinais vermelhos a altas horas, o que aliás nos foi há tempos sugerido por uma autoridade de segurança, se não me engano. Em cidades como Rio, e lugares do Norte e Nordeste, está vivo o espírito dos jagunços, tiroteios, mortes, roubos de grandes quantias, bancos arrombados, cofres explodidos. Criminosos fugidos, às vezes mortos eles e os policiais. Mas a loucura prossegue, e cresce.

Meus filhos brincavam nos terrenos baldios perto de casa, há algumas décadas, e ninguém se preocupava com a possibilidade de tragédias hoje banais. Ao escurecer, a gente chegava na esquina, chamava “Venham tomar banho e jantar!”. E vinham, suados, cansados e felizes, os pais de nossos netos, que já não andam sozinhos nem até a escola. Sei que é ingenuidade querer de volta aqueles tempos, mas podíamos estar mais civilizados.

O consolo é que essa humanidade sedenta de sangue também produz milagres como as obras de arte e seus autores. Van Gogh, Monet, Mozart e Bach, Shakespeare e Pessoa, todos os sublimes: os artistas. Mas também os mais cotidianos gestos dos jovens alegres e saudáveis, das crianças carinhosas, dos pais maravilhados, tudo o que nos faz acreditar que não produzimos só barbárie e repulsa, mas claridade, beleza e – apesar de tudo – esperança.



22 de outubro de 2016 | N° 18667 
CARPINEJAR

Longevidade do amor

Sempre que duas casadas se encontram disputam quem está mais tempo com o seu par. Existe uma concorrência pelo troféu moral. Elas nem percebem a mania, é um cacoete involuntário, como coçar os olhos diante do sono.

Fui visitar o ateliê da estilista Solaine Piccoli, que vem confeccionando o vestido de noiva da minha mulher. Proibido de espiar os movimentos no provador pela superstição da cerimônia, puxei conversa à toa e perguntei quanto tempo ela tinha de casada. Solaine encheu a boca: 43 anos juntinho de Ernani.

Cândida, a sua assessora, se sentiu ofendida com a realeza da amiga e atalhou:

– Eu estou casada há 39 anos, mas namoro o meu marido há 44. Se é por isso vou completar bodas de rubi no ano que vem. Solaine não se deu por vencida:

– Mas, se é por namoro, eu estou há 49 anos com Ernani e completarei bodas de ouro. Só eu devo ter visto Cândida bufando de raiva. Buscou disfarçar a contrariedade e logo emendou:

– Mas eu conheço de vista o meu marido há 51 anos. Amizade também conta, não?

– Pode contar, como quiser. Daí tenho 60 anos de amor à primeira vista e comemoro bodas de diamante – replicou Solaine.

A partir de uma pergunta banal, fui exposto a um coliseu de leoas famintas pela posteridade romântica. Pretendiam ganhar o título de maior longevidade no amor. Não aceitavam a proximidade da adversária.

Para assinalar a vitória da intimidade, usavam qualquer indício remoto de antiguidade dos laços com os seus homens, desde aceno a esbarrão na rua.

As amigas colocavam a cumplicidade em risco. Gritavam, esperneavam, batiam na mesa. No calor da discussão, jogavam pesado, dispostas a desclassificar a rival questionando separações em algum período e somando finais de semana longe.

Não entendia absolutamente nada. Ambas atingiam seis décadas e uns quebrados de convivência com os seus maridos naquela conversa, apelando para os mais platônicos sinais, e eu não conseguia fechar as contas. Não aparentavam, cada uma delas, mais de 50 anos de idade. Já eram mais casadas do que nascidas.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016


19 de outubro de 2016 | N° 18664 
MARTHA MEDEIROS

Poesia e liberdade

Assim que soube da escolha de Bob Dylan como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, meu primeiro pensamento foi: como assim, e Philip Roth? Porém, minha indignação corporativista durou poucos minutos, nem cinco. Poesia não é monopólio dos livros, e Bob Dylan foi premiado por causa dela, por esse gênero que dificilmente se traduz e que não tem endereço fixo.

Poesia é um troço tão livre, que confunde. A gente se acostumou a confiná-la em versos, sonetos e hai-kais geralmente impressos ou recitados em saraus – quase nunca a percebemos num formato popular como uma canção. Todos sabem o que é um poema. São aquelas frases bonitas que alguns não compreendem, mas que dão uma levitada na alma. São colocações que todos reverenciam, pois fogem do lugar-comum. É uma maneira suave de externar o que deveria se manter como um humilde segredo. É um patamar mais elevado da simplicidade. São expressões líricas que, mesmo lidas em silêncio, tornam-se sonoras.

Poesia obedece a um ritmo, portanto, não deixa de ser um gênero musical. Bob Dylan canta poemas muito bons, dizem. Não sei, meu inglês não é suficiente para essa avaliação, mas, se deslumbra a tantos, por algum motivo deve ser.

Quando soube da notícia, imaginei Philip Roth ganhando um Grammy, só para revidar. É piada, mas não seria impossível de acontecer. Se algum músico transformasse em canção um parágrafo desse estupendo escritor norte-americano e virasse um hit, Roth poderia repartir o prêmio máximo da música, sim. Kleiton e Kledir gravaram um disco inteiro (o álbum Todas as letras) com músicas compostas por escritores e o resultado foi um sucesso, até em Nova York o projeto foi reconhecido. Artistas migram, invadem a vizinhança, são experimentais por natureza. Poesia não rima com reduto. Rima com alforria.

Numa era em que se discute a identidade de gênero, quando pessoas lutam para libertar-se da obrigatoriedade de representar o sexo com que nasceram, querer limitar quem é músico e quem é escritor soa como uma discussão obsoleta. Hoje, todos podem ser tudo. Sem entrar no mérito se isso é um avanço ou uma esquizofrenia, assim é. Quem vai ousar restringir a área de atuação de um artista? A Academia Sueca resolveu seguir a tendência: abriu-se também.

Bob Dylan não seria Bob Dylan sem o uso preciso das palavras, e a palavra é a matéria-prima da literatura. Eu torcia por Philip Roth, mas resigno-me: vivemos num mundo sem fronteiras, onde restrição não rima com mais nada.

terça-feira, 18 de outubro de 2016



18 de outubro de 2016 | N° 18663 
CARPINEJAR

Da paixão ao desencanto

O Uber e Porto Alegre formam um típico caso de paixão que não vem vingando depois que a relação ficou séria no Facebook.

Sabe aquele namorado que faz tudo durante os três primeiros meses para conquistar e logo retira os agrados assim que passa a morar junto?

Quem não conhece esta história? No princípio é o homem dos sonhos, para casar e gerar filhos. Compra flores, puxa a cadeira, esbanja educação e paciência, presenteia a sogra, arruma jantar com vinho e luz de velas, prepara surpresas e espalha declarações pelos cantos secretos. É começar a namorar e sentir que conquistou definitivamente a pessoa, a performance some e surge o ogro monossilábico, egoísta, desprovido de comoção e gentileza.

O Uber foi assim na capital gaúcha: prometeu mundos e fundos no começo apaixonado e perdeu o interesse quando a convivência normalizou. A sensação é de que desejava sexo e fingiu que amava. Cometeu uma descarada propaganda enganosa.

No início, há três meses, era somente Uberblack, carros de quatro portas e bancos de couro. Não era um motorista, mas um chofer, tamanho o cuidado com a aparência. Cavalheiro, comedido, trabalhava de terno e saía do seu lugar para receber o cliente.

Só vinha carrão como Toyota Corolla, Honda Civic, Azera e Sonata. Apesar do luxo e do conforto, os preços acabavam sendo mais baratos do que o táxi. Não havia como não se maravilhar e não disseminar o serviço adiante.

Hoje o que aparece no Uber (conhecido como UberX) é Ford Ka, Fiat Palio, Renault Clio e Gol, carro apertado que você vacilaria em entrar até para tomar carona. Os motoristas estão vestidos de qualquer jeito, alguns vêm de bermuda. Pararam de oferecer balas e água. Já vi veículo chegar todo adesivado com Herbalife. Alguns surgem com cinto frouxo e ar-condicionado pifado. A rapidez de atendimento, de no máximo cinco minutos, decaiu, motorista aceita nova corrida quando nem finalizou a anterior. De semelhança com o período de estreia, apenas a voz feminina do Waze.

E, para piorar, inventou-se a tarifa dinâmica, na qual a corrida, dependendo da procura, pode custar três vezes mais do que o valor normal. É uma roleta-russa, não tem como prever quando vai pipocar em seu aplicativo. Desse jeito, uma viagem do bairro Petrópolis ao aeroporto, que custaria R$ 27 em um táxi, é de R$ 37 pelo Uber.

Acho que o Uber acredita que o porto-alegrense é um otário e que não notou o fim do romance. A tendência é voltar para o antigo relacionamento.

sábado, 15 de outubro de 2016



15 de outubro de 2016 | N° 18661 
LYA LUFT

A criança que nos habita

Muitos leitores dizem que, lendo meus romances, acham que eu devo ter sido uma criança infeliz: “Que tragédia de então alimentou sua fantasia atual?”.

Divertida ou um pouco irritada, mil vezes expliquei: nem sempre o escritor fala de si mesmo. Nada das famílias que inventei é a minha família, nem a da infância, muito menos a de agora. São invenção, são ficção: ficção vem do latim fictio, aliás ligado a fingere, fingir. Portanto, a maior parte das histórias de ficção é fingimento, tão bem fingido, que às vezes até na hora de escrever nos parece verdade. Por isso digo que minhas histórias são “a verdade da minha mentira”... Quando criei minha primeira personagem anã, Sibila, a Bila das Parceiras, por exemplo, houve quem se dispusesse a pesquisar minha família para descobrir o anão, ou os anões. Sinto muito, a minha gente sempre foi mais pra gigante. Mas que a pobre Bilinha me parecia real, parecia.

É verdade também que seguidamente o que escrevemos reflete coisas, fatos, pessoas, emoções – que foram reais mas ali aparecem transfigurados. Então a infância não é, afinal, o nascedouro dos nossos medos ou alegrias, como tanto falei e escrevi? Penso que sim, e não é simples explicar essa contradição, pois minha infância, numa cidade pequena, numa casa grande com belo jardim, pais cuidadosos, avós, tios, primas, primos e um irmãozinho menor, foi tudo menos trágica. 

Verdade que, tendo morrido antes de eu nascer um primeiro filhinho, acho que fui cercada de excessivos cuidados, do tipo “não anda na chuva, bota o casaco, não senta na pedra fria, olha o vento encanado”, mais algumas crenças de então, que hoje nos fazem rir, como “se comer fruta sem lavar, vai ter vermes na barriga, se engolir semente de laranja, vai nascer uma laranjeira na barriga, se sentar na areia sem a toalha, vão entrar bichinhos na sua... e se comer melancia e beber leite, cai morta”.

O que me afligia e ainda me acompanha não eram as circunstâncias nem as pessoas, mas a minha desvairada imaginação, que ainda me faz rir quando ninguém acha graça, me faz sofrer quando todos julgam alguma coisa muito banal. Eu detestava o Gordo e o Magro, chorava na matinê de pena deles: várias vezes minha mãe teve de me tirar do cinema, pois eu começava a perturbar as outras crianças.

Mas tenho certeza, sim, de que na infância a vida traça o perfil que procuraremos preencher pelo resto do tempo. Clima amoroso, alegre, seguro apesar das normais brigas ou discussões? Vamos tropeçar menos nesse caminho firme. Ambiente frio ou violento, desinteresse, rancor ou permissividade demais? Possivelmente vamos cair mais vezes, quebrar a cara e a alma. 

Há muitas maneiras de, simplificando os enigmas e labirintos da nossa psique, explicar por que na adultez somos de certo jeito. Mas, junto com a criança que fomos, temos sempre, como fiel e severa companhia, a contrapartida de tudo isso: a capacidade de escolha. Não somos totalmente determinados. O fantasminha infantil em nós pode chorar sozinho no escuro, rir sem motivo além de se sentir feliz – mas adolescentes, adultos, velhos, temos o ônus de optar nas encruzilhadas.

A criança que nos habita não desculpa tudo.



15 de outubro de 2016 | N° 18661 
MARTHA MEDEIROS

A mulher careca

Era uma mulher tranquila. Contou que estava tratando a reincidência do tumor, e falou isso com uma calma que fazia parecer que era apenas uma chatice. A vida a chamava

Estávamos as duas tomando um chá de cadeira porque o sistema havia caído (adoro a piada que diz que antigamente lutávamos para derrubar o sistema e agora, quando ele cai, é sempre um suplício). Eu estava renovando o meu passaporte, e ela, fazendo o seu primeiro. Já havíamos entregado os documentos e cada uma estava sendo atendida por um funcionário, uma mesa ao lado da outra. Faltava apenas tirar as fotos, mas precisávamos esperar. Puxamos conversa.

Ela estava preocupada justamente com a questão da foto. Perguntou para mim se precisaria tirar o gorro que usava. Respondi que sim, ninguém pode tirar fotos para passaporte usando chapéu ou algum outro adereço que dificulte a identificação. Nem sorrir podia. Foi então que ela me disse que estava em tratamento contra um câncer de mama. Não havia um fio sobre a cabeça.

Não sei se a preocupação dela era com a vaidade (o local estava apinhado) ou se tinha receio de que, quando fosse viajar, as fronteiras estrangeiras a barrassem por não ser reconhecida com um longo cabelo loiro, ou com um farto cabelo crespo, ou com uma penugem grisalha – não sei o que viria quando o tratamento acabasse, mas viria.

O sistema voltou e deram prosseguimento aos trâmites. O funcionário que a atendia avisou que, por fim, era hora de tirar o gorro. Ela me olhou, suspirou fundo e o tirou bem lentamente, como se evitasse chocar. Foi então que vi o quanto ela era bonita. Seus olhos eram claros, eu não havia reparado. De um segundo para outro, pareceu bem mais jovem. Metida que sou, disse a ela: tire a foto e não volte a colocar esse gorro (quase disse “esse gorro medonho”, mas me calei a tempo). Você é linda.

Ela era linda.

Esse pequeno recorte de uma tarde de terça-feira ficaria sem registro se, ao retornar para casa, não tivesse me dado conta de que estamos em pleno Outubro Rosa, o mês em que a sociedade se mobiliza para conscientizar as mulheres sobre a importância de se prevenir contra o câncer de mama. Eu já fiz minha mamografia anual mês passado e quem ainda não fez, estando acima dos 40 anos ou tendo casos de câncer de mama no histórico familiar, deve se mexer. 

Adiar pra quê? Não sei o nome da moça. Estava acompanhada do marido, mas não o vi. Era uma mulher tranquila. Contou que estava tratando a reincidência do tumor, e falou isso com uma calma que fazia parecer que era apenas uma chatice. A vida a chamava. Claro. Quem faz passaporte tem um plano. Seja qual for, envolve deslocamento, busca, avanço, movimento. Coisas boas.

No momento da foto ela não sorriu porque não podia, mas tinha um acessório secreto que ninguém a impediria de usar, a danada da confiança.


15 de outubro de 2016 | N° 18661 
CARPINEJAR

Deixar para depois


No casamento, você sempre deixa para depois. Acredita que a pessoa mais importante de sua vida pode esperar, já que dorme e acorda ao lado dela todo dia, já que ela vai entender os seus contratempos.

Atende primeiramente os estranhos do trabalho, agrada aos desconhecidos das redes sociais, está preocupado como os demais lhe enxergam mais do que como realmente é entre quatro paredes.

Casamento torna-se adiamento. Aquele bilhete não é tão urgente, aquela conversa de pacificação é empurrada para o futuro, aquele final de semana enamorado não é prioritário.

Só na separação é que agimos. Para resgatar uma paixão, somos capazes de aprender a cozinhar, aprender a dançar, aprender a faxinar.

Com o casamento, desaprendemos a cozinhar, a dançar, a faxinar. Guardamos o fôlego adormecendo cedo, poupamos as palavras não descrevendo os nossos dias, existimos menos dentro de casa, desistimos rapidamente da gentileza pela informalidade. Não podemos gastar com o supérfluo. Supérfluo é o que envolve o próximo. A avareza cresce disfarçada de economia.

Na reconquista, não dispensamos trabalho, madrugamos, viajamos continentes dentro do quarto, pedimos dinheiro emprestado para socorrer o tempo perdido com a distância.

A verdade é que fazemos tudo errado até perder aquilo que era certo.

Só amamos sofrendo. Só amamos quando o outro nos abandona, quando o outro se cansa, quando o outro se despede.

Só procuramos as janelas quando a porta fecha, só nos importamos com os detalhes quando o conjunto desaparece. Só amamos na contrariedade, para provar que ainda prestamos.

Só amamos com o orgulho ferido, quando somos testados. Só amamos com a desilusão, quando somos contestados.

Só amamos com a recusa, quando somos condicionados a nos esforçar para reaver a confiança.

Só amamos com o chicote da indiferença nas costas, apanhando das expectativas.

Infelizmente valorizamos mais a saudade do que a proximidade.

Banalizamos o corpo, apenas respeitamos a ausência, que é correr atrás para ter de volta a vida passada. Somos encarnações arrependidas de matar o amor de tédio.

Para ser feliz a dois, é necessário combater a facilidade e não se conformar nunca com a disponibilidade do beijo, do toque e do abraço.

Intimidade é jamais desistir de perguntar, não é pensar que já conheceu inteiramente alguém. As respostas mudam conforme a esperança.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016



12 de outubro de 2016 | N° 18658 
PEDRO GONZAGA

O PROGRAMA


Se eu pudesse escolher mais uma atividade inviável (além do latim, da poesia, do saxofone), gostaria de ter um programa de televisão que percorresse as livrarias do Brasil para apresentá-las, mas somente as de rua, aquelas que, como os antigos cinemas desaparecidos, guardam o charme de estarem em contato com as calçadas, de terem o próprio café, habitadas por livreiros dedicados, entregues a um metiê obsoleto: saber o livro que ainda não sabemos querer, cuidar dos volumes como se não fossem meras caixas de sapato.

Minhas ideias sempre esbarram no financiamento. Mas vejam, o custo de produção de uma temporada, com folga, não chegaria a 0,1% do que nos levantou um ex-ministro da economia (o espanto das grandes somas colocadas em unidades), valor que também daria, por exemplo, para comprar 10 shows de pequeno porte, 10 montagens de teatro, ou, pasmem, publicar 25 livros de autores independentes. 0,1%. Por vezes agradeço não ter o raciocínio matemático do meu tio Regis: há muita coisa no país que é melhor não calcular.

A primeira temporada seria no Rio Grande do Sul, interior e capital. Em Porto Alegre, há quatro lugares a visitar: no Bom Fim, Palavraria; na Cidade Baixa, Bamboletras e Sapere Aude; no centro, a clássica Palmarinca. Aos queridos amigos dos sebos, peço que aguardem a segunda temporada. No interior, há pelo menos seis livrarias que justificam um turismo de leitores às suas cidades. Em Canela, a charmosa Empório Canela, que, além de tudo, é um bistrô espetacular. Em Gramado, o requinte da Sucelus. 

Em Santa Cruz, o belíssimo prédio e as tortas inesquecíveis da Iluminura. Em Pelotas, no centro, o acervo da Livraria Mundial. Em Caxias, a elegância e a variedade da Arco da Velha, com seu café de qualidade superior. Por fim, o programa chegaria àquela que é uma das mais impressionantes livrarias que já conheci, incluindo aí as de outros países, uma joia localizada num casarão de esquina em São Francisco de Paula, a Miragem, com seu interior amadeirado e seus muitos pisos surpreendentes.

Senhor das coisas inviáveis, quem sabe um dia eu faça um programa-piloto. Por ora esta crônica é o que posso fazer.


12 de outubro de 2016 | N° 18658 
MARTHA MEDEIROS

A menina por trás da porta

Durante a maior parte da infância, dividi o quarto com meu irmão. Havia duas camas, uma cesta de vime onde guardávamos os brinquedos e um armário pequeno. Jamais brigamos por espaço, porém, mesmo havendo uma convivência amistosa, eu mal podia esperar para ter um quarto só meu. Nunca fui muito otimista quanto a ter meus sonhos realizados: fui daquelas meninas que se achavam meio esquecidas pelos deuses. Tinha uma vida boa, com o básico sendo plenamente atendido (amor familiar, escola, amigos), mas desconfiava que meus desejos secretos continuariam secretos por um tempo indefinido.

Até que aos 11 anos trocamos de endereço e eu tive, afinal, um quarto só pra mim. Impossível descrever meu sentimento naquela primeira noite no apartamento novo, a sensação de poder ficar sozinha comigo mesma, de poder desligar o abajur na hora que quisesse, de colar nas paredes alguns pedaços de poemas e as fotos dos meus ídolos, de escutar meus discos sem que ninguém se sentisse perturbado. Foi o início da minha existência, valendo.

Não era apenas um local para dormir. Era uma sala de visitas. Muita gente entrou no meu quarto, alguns escondidos na mochila, sem que meus pais soubessem.

Os Beatles não só me visitaram: moraram no meu quarto durante anos. Nós cinco cantávamos juntos, enquanto eu me apaixonava por Londres sem ter noção de quão longe ficava.

Gostava também de ópera-rock, tanto que Jesus Cristo Superstar e Tommy não saíam do toca-discos. Eu trancava a porta do quarto para que ninguém me visse em cena com a trupe: o elenco inteiro dançava sobre meu tapete.

Ganhei uma máquina de escrever e através dela recebi outras centenas de convidados: todos os personagens e situações que inventei. Do lado de fora, a casa escutava apenas um tlec, tlec, tlec abafado e inofensivo, mas o barulho que minhas ideias faziam era de quem estava dando uma festa para 500 pessoas.

Não bastasse essa bagunça, o quarto ainda passou a ser compartilhado com Monteiro Lobato, no começo, e mais tarde com Anais Nin, Charles Bukowski, Fausto Wolff, Caio Fernando Abreu e demais visitantes vindos de universos distantes do meu, alguns até do além.

Nunca fui punida nas poucas vezes em que mereci. “Vá para seu quarto e só saia de lá quando eu mandar.” Sério, era pra ser um castigo?

Criança deve brincar na rua, praticar esportes, ter contato com a natureza, socializar com a turma. Fazia tudo isso e bastante. Mas ainda lembro da sensação de voltar à tardinha, tirar os tênis, tomar um banho, jantar e então entrar num mundo ao mesmo tempo íntimo e megapovoado. Não, não era um smartphone. Era um troço mais avançado. Imaginação.

sábado, 8 de outubro de 2016



08 de outubro de 2016 | N° 18655 
MARTHA MEDEIROS

Voo solo

Vivemos num mundo em que a independência, a liberdade e a autonomia são hiperconsideradas. No entanto, as pessoas ainda se sentem intimamente aterrorizadas com a perspectiva da solidão, mesmo que momentânea

Cheguei faz pouco de uma escapada: passei uma semana sozinha em Nova York. Cruzei por lá com outros viajantes desacompanhados, gente do mundo todo, dos 18 aos 80, mas parece que essa realidade ainda causa desconforto para aqueles que não se imaginam fazendo o mesmo. Na volta, ao entrar no táxi que me trouxe do aeroporto pra casa, o motorista puxou assunto e me questionou se eu gostava de viajar desse modo. Prefiro viajar com namorado, respondi, mas, se estou num período de entressafra, vou igual e gosto muito. Ele sentenciou: Você pensa que gosta.

Do alto de seu desconhecimento a meu respeito, ele decretou que eu mentia para mim mesma. Petulância facilmente explicável: é mais fácil duvidar do desprendimento dos outros do que assumir a própria incapacidade de se satisfazer consigo próprio.

Vivemos num mundo em que a independência, a liberdade e a autonomia são hiperconsideradas. É o que queremos para o país que a gente vive, é o que desejamos de uma profissão, é o que pretendemos para nossos filhos ao se tornarem adultos. Valores que dignificam o caráter e que tornam as relações mais íntegras e verdadeiras. No entanto, as pessoas ainda se sentem intimamente aterrorizadas com a perspectiva da solidão, mesmo que momentânea.

Em Nova York, conversando com uma jornalista inglesa, viajando sozinha também, falamos sobre a delícia de caminhar pelas ruas sem pressa, entrando e saindo de galerias de arte, de lojas, de parques, no total controle do nosso tempo e da nossa vontade. De se permitir, em um museu, ficar 10 minutos em frente a cada quadro, ou passar por todos dando uma rápida conferida e tchau. 

De ir a shows, de pegar o metrô e de alugar uma bicicleta sem precisar submeter-se às concessões habituais de quem viaja em dupla ou com um grupo. Discordamos apenas sobre as refeições: almoçar sozinha num bistrô, com mesa na calçada a fim de testemunhar o passeio dos outros, me diverte, mas troco o jantar por um piquenique no quarto do hotel, acompanhada de um bom livro. Já a inglesa disse que era a parte que mais gostava – à noite, escolhia um restaurante estrelado e proporcionava a si mesma um banquete de rainha sem o menor constrangimento.

Por que a maioria das pessoas não consegue nem cogitar uma jornada a sós? Os que se sentem atraídos pela ideia dizem que é por falta de coragem, mas o mais provável é que seja por vergonha. Nem pensar em dar a impressão de ser um abandonado por Deus, de não ter um mísero amigo com quem se aventurar pelo mundo, de ter que enfrentar o olhar piedoso dos casais. Ninguém acreditará que foi uma escolha, e sim a única alternativa de um rejeitado.

Enquanto se dá trela para a opinião dos outros, melhor seria aceitar que você, o tempo inteiro, está na melhor companhia que se pode desejar.



08 de outubro de 2016 | 
N° 18655 CARPINEJAR

Sindicalismo do amor

Quem cobra perde a razão, essa é a parte triste do amor. Aquele que não está recebendo atenção, deixado de lado, passa a reclamar incessantemente e começa a ser o chato da relação.

Encarna a obsessão do grevista, da passeata, do protesto. Interrompe o trânsito das palavras para defender o seu ponto de vista.

Sacrifica a espontaneidade para salvar a vida a dois. Não gostaria de estar resmungando, mas a passividade e a indiferença só vêm piorando as condições de convivência. Não tem o que fazer. Ou é gritar contra a rotina ou é se conformar com a infelicidade.

Tornou-se o sindicalista da emoção, a CUT da emoção. Acabou a paz da confiança, o que se escuta é buzinada e megafone na cama. Fala diante de qualquer gesto que frusta a sua expectativa. Pede reajuste sexual e de ânimo e não se envergonha de se expor ao risco da demissão.

Da mesma forma que é legítima a luta pela reforma agrária do coração, ela também inviabiliza o andamento natural da casa. As ladainhas provocam um mal-estar de permanente rivalidade. Tudo é motivo para DR. Ou é ausência de opinião ou é egoísmo. Ou é uma fala torta ou é falta de mensagens. As insatisfações não têm trégua. O lado ofendido só redunda o pessimismo e estabelece uma comparação injusta com a época de apaixonado.

É como um jogo de futebol que para a todo momento, cheio de faltas e cartões. Não há mais emoção da torcida e os gritos de apoio – mas somente vaias e ameaças. Fazer as malas vem à tona com o cansaço dos debates e tensiona o futuro.

Dificilmente o relacionamento amadurecerá e ganhará viço. É um caminho sem volta.

O sindicalismo sentimental não costuma vencer as suas batalhas. A outra parte fica desprovida de margem de manobra para errar e se isola, acuada e agressiva, no orgulho ferido. Não tem tempo de corrigir o comportamento, pois vai responder um problema e é lembrado de um novo.

Já não dá para discernir se quem protesta realmente espera dias melhores e uma conversão súbita ou deseja somente provar que a sua companhia não presta e que não vale a pena insistir.

O ideal é alternar momentos de reivindicação e de incentivo, revezar as críticas com as juras, e não banalizar as cobranças e profissionalizar a dissidência. Não é possível se recuperar sob pressão. A angústia mata a criatividade do amor.



08 de outubro de 2016 | N° 18655 
LYA LUFT

Ser quem somos

Acabo de ler um livro muito interessante, ainda não traduzido aqui, She’s not there (Ela não está lá), da Random House, da professora universitária, autora de várias obras, inclusive ficção, colaboradora de jornais importantes dos Estados Unidos Jennifer Finney Boylan. Ela também é transgênero: nasceu menino, sempre se sentindo menina. (Transgêneros nos Estados Unidos começam a se revelar mais, embora ainda com problemas – preconceito é o principal.)

Numa entrevista dela numa TV americana, anos atrás, eu soube que aquela Jennifer discreta e tranquila antes fora James – casado com uma mulher com quem teve dois filhos, numa parceria amorosa, até que James começou a lhe revelar seu tormento: tinha nascido no corpo errado. Agora queria levar isso adiante, mudando de gênero: médicos, hormônios, cirurgias, psiquiatras, terapia individual e de casal.

Graves crises, angústia das duas partes, mas não queriam se separar. Depois de dois anos, James já se chamava Jennifer, agora com documentação correta, até certidão de nascimento. A esposa lhe deu um incrível apoio apesar das incertezas, pois dizia: “Eu ainda amo a pessoa que agora é Jenny, pelas suas grandes qualidades humanas. Não saberia viver sem ela”. Os dois filhos pequenos não tiveram nenhuma crise séria e até inventaram um nome para Jenny: “maddie”, mistura de mamma e daddy. Bem orientados, amados, acompanhados, hoje são universitários bem-sucedidos.

James havia tirado um ano sabático na faculdade onde, professor prestigiado, lecionava há muitos anos; depois, já como Jenny, escreveu uma carta aos colegas e à direção, expondo sua realidade e dispondo-se a aceitar a demissão. Para surpresa sua, foi recebida com respeito: nessa mesma faculdade, havia três professoras transgêneras, fato de que nem ela sabia.

Eventualmente troco e-mails com a professora Boylan, pois quero traduzir o livro acima mencionado mas ainda não encontrei editora. Acompanho (no YouTube) algumas das suas palestras em universidades e me impressionam a seriedade, sabedoria e leveza com que fala e age. Alta e magra, cabelo claro comprido e liso, sem maquiagem, tranquila e bem-humorada, essa mulher, com sua bravura e o apoio de pessoas amadas, venceu a luta essencial: saber quem somos, quem queremos ser – e realizar isso, não necessariamente em questão de gênero, mas escolhas diversas, trabalho, parceria, vida.

Esta coluna nasce da tristeza que me causa qualquer preconceito, mistura de desinformação, arrogância e medo, com que tão prontamente rotulamos as coisas humanas: sexo, política, jeitos de ser. Somos pouco solidários com o outro, sobretudo se não combina com nossos conceitos. Quantas amizades se desfizeram nestes tempos por razões políticas? Quanto sofrimento, no mundo inteiro, de pessoas que não cabem em padrões (quem os inventou?): altos, baixos ou gordos, intelectualizados ou simples, extrovertidos, quietos, nervosos, masculinizados, efeminados, e sabe lá o que mais.

Um pouco de respeito ao diferente não nos faria mal. Todos temos a nossa dor. Todos queremos compreensão, oportunidade, esperança – e, com sorte, afeto. E em geral merecemos isso.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016


05 de outubro de 2016 | N° 18652 
MARTHA MEDEIROS

Tem alguém aí?

Eu achava que detinha algum conhecimento, ao menos o suficiente para conseguir atravessar os dias identificando o terreno onde pisava. Lembro inclusive de ter sido uma criança com ares de veterana, topetuda, mas o tempo passou, a roda girou, e hoje, à medida que os dias se sucedem, mais amadora me sinto. 

Em algum momento dei uma cochilada e esse breve instante de distração foi suficiente para o mundo fazer um looping e me desalojar. Acordei agorinha e estou me desconhecendo. Não me transformei numa barata, e sim numa moscona – cada um com sua metamorfose. O fato é que não sei de mais nada. Estou nauseada, boiando nesse mar de opiniões contundentes. Quero voltar a pisar em terra firme, mas para isso preciso que alguém me resgate.

Tem alguém aí? Tem alguém aí que ainda duvide de alguma coisa? Dúvida é a ausência de certeza. Não costumava ser pecado mortal ter dúvida, tínhamos várias e de certa forma era um estado de alerta positivo, nos conduzia à investigação, ao aprofundamento dos fatos e de nós mesmos. Só que para esclarecer as dúvidas era preciso paciência.

Tem alguém aí com paciência? Paciência é a virtude de saber esperar e de ser perseverante. Esperar. Lembra esperar? É, faz tempo. Coisa que não há mais. Não há mais tempo para pensar antes de responder, pensar antes de agir, pensar antes de acusar, pensar antes de ofender. Ninguém dedica nem dois minutos a fim de se portar com civilidade, nem meio minuto para escolher entre o sim e o não. Hesitou, perdeu. Azar o seu.

Tem alguém aí com compaixão? Compaixão é o sentimento de identificação com quem sofre ou passa por dificuldades. Muito nobre, mas para que serviria compaixão, alguém saberia dizer? Temperar saladas, evitar rugas, ganhar dinheiro? Antigamente servia para temperar amizades, evitar conflitos, ganhar paz de espírito. Pouco lucrativo, entendo.

Tem alguém aí não querendo ganhar nada com isso?

Agride-se. Persegue-se. Humilha-se. Debocha-se. Patrulha-se. Quanto mais se pega no pé, mais se ganha em estatura. Se eu flagro o outro no erro, ponto pra mim. Deixo claro que o bom sou eu. Que o certo sou eu. É a forma mais rápida de se autoelogiar sem dar muito na vista.

O que tenho visto? Muita gente eloquente, inteligente, posicionada, articulada, bem-resolvida, politizada e não aceitando vacilações: julgamento sumário para quem não estiver do meu lado. Em outra encarnação, devo ter tido carteirinha desse clube, mas como eu dizia no início do texto, dormi no ponto, não paguei todas as mensalidades, mosqueei.

Tem alguém aí que não é tão bom? Que não sabe tudo? Que está meio perdido? Então segura aí, me espera, vou com você. Também não estou me achando.

sábado, 1 de outubro de 2016



01 de outubro de 2016 | N° 18649 
LYA LUFT

Eterno tema


Sim, em algumas coisas sou repetitiva: quando me empolgam ou causam ansiedade. Educação é um desses meus temas. Sou de uma família de professores: meu pai, diretor de uma Faculdade de Direito, onde foi professor. O pai de meus filhos, grande mestre. Por breves anos, lecionei linguística num curso de Letras. Meu filho mais moço é professor de filosofia na PUC. E todos os meus sete netos estudam, nos mais variados níveis. Educação me interessa muito – e me assusta.

Será ela o primeiro assunto em qualquer governo, ou será segurança? – indagamos nessas conversas de temas hipotéticos. Quando não andamos seguros nem até a esquina, certamente segurança é primordial, para que pais, alunos e professores ao menos possam ir às escolas. Mas, fora dessa circunstância tão anormal em que vivemos, ponho acima de tudo a educação, que nos ajudará a termos saúde, segurança, trabalho e o resto. 

Educação: informação, para não sermos ignorantes, e valores para a nossa moralidade (não moralismo, cuidado!). Nossa educação anda pertinho do fundo do poço. Até na faculdade recebemos alunos que não conseguem escrever pois não sabem coordenar pensamentos, não aprenderam a observar, a argumentar, coisa que implicaria até filosofia na escola, sim: não é preciso ensinar Platão a meninos de 10 anos, mas fazê-los usarem sua inteligência.

Autoridade faz parte de educar, conceito que tem sido rejeitado, ridicularizado. Certa vez, numa conversa com jornalistas antes de iniciar uma palestra, perguntaram o título da minha fala, e respondi: “Educação e autoridade”. Um dos rapazes arregalou os olhos: “Autoridade?”. Pois é: aquilo que ensina que algumas coisas pode, outras não pode; que existem o sim e o não, e consequências dos nossos atos. 

Autoridade (começando em casa) não é chicote, puxão de orelhas, castigo no quarto escuro, mas orientação sem forçamento de barra ou de emoções, dando alguma forma ao mundo – que para crianças ainda é uma massa informe, confusa, às vezes bonita, outras assustadora. A vida com algum rumo não fica sem graça: é menos angustiante.

Rigor no ensino é outro fantasma detestado. “Rigor” não quer dizer campo de concentração, mas exigências segundo a possibilidade de cada um. Quando lecionava, e não fui boa nisso, muitas vezes disse sinceramente a meus alunos: “Vocês são muito melhores e mais inteligentes do que a universidade, a sociedade, a família e vocês mesmos pensam ser”. Isto é, mais capazes de esforço, aprendizado, crescimento pessoal. Podia soar estranho num ensino no qual é preciso caprichar para ser reprovado, e a mera ideia de reprovação causa horror.

“Respeito” começa por respeito a si mesmo: falta de educação não ajuda, bater grandes papos, usar celular para falar ou jogar em aula, ironizar ou insultar um professor (ou bater nele...) – são mau gosto e vulgaridade. Uma certa harmonia e respeito mútuo seriam grandes vantagens para os alunos, mas isso vem de casa.

Os currículos devem ser mudados? Sim!!!! Desde que não seja para tornar tudo ainda mais superficial ou fácil. Mas acabou o espaço desta coluna: que alívio. O assunto me dá calafrios.




01 de outubro de 2016 | N° 18649 
MARTHA MEDEIROS

FATOR UAU

O que impede o avanço de algumas iniciativas é a ausência do fator uau e está dito, nada a acrescentar. Estava assistindo pela tevê uma matéria sobre o legado que a Olimpíada de Londres deixou em 2012, quando me deparei com uma expressão que explica muita coisa que acontece na vida da gente. Eles citaram certos prédios ingleses que prometiam ter vida útil depois dos Jogos, mas que se transformaram em elefantes brancos porque careciam do que os britânicos chamam de Fator Uau.

Fator uau? Que poder de síntese. Duas palavrinhas, sendo que uma delas nem palavra é, e sim uma força de expressão, uma onomatopeia, sei lá: como se classifica “uau” dentro da gramática?

O que importa é que me valeu por inúmeras sessões de terapia, eu que já nem faço terapia. O que impede o avanço de algumas iniciativas é a ausência do fator uau e está dito, nada a acrescentar. Nem precisaria continuar com essa reflexão, mas como tenho uma coluna para preencher, continuarei, pegue uma carona comigo se interessar.

Você conhece uma pessoa simpática, inteligente, enfim, com os atributos básicos para motivar você a tomar ao menos um café com ela. E aí a relação de amor ou de amizade se inicia, corre tudo bem, mas você não consegue levar adiante por muito tempo e seus amigos não entendem a razão de você ter desistido tão cedo. O que aconteceu? 

Não aconteceu nada. Justamente isso. Nada. Faltou o fator uau, o encantamento diante do sorriso do outro, de suas histórias, de seu jeito. Faltou a palpitação diante da promessa de um novo encontro, faltou contar no relógio quantas horas faltavam para revê-la, faltou a sensação de ter em mãos um bilhete premiado, faltou o fascínio. O indispensável fascínio.

Você confere, gosta, mas não pretende repetir a experiência. Quantas vezes já passamos por isso, e não falo apenas sobre encontros pessoais, mas também de visitas a cidades, idas a restaurantes, leitura de livros.

Você lê um autor e pensa: ok, não foi um tempo perdido. Mas não correrá até a livraria para adquirir todos os títulos dele que encontrar.

Você conhece Berna e pensa: ok, bela cidade. Mas não volta à capital suíça como já voltou, ou pensa em voltar, a Paris, Istambul, Marrakesh.

Você jantou em diversos locais uma única vez e nunca mais. A comida estava ruim? Não exatamente. O ambiente era bonito? Bonitinho. Animado? Mais ou menos. O que aconteceu? Nada.

Ao contrário da garotada aventureira que se empolga com tudo e tem tempo de sobra para construir seu repertório, você não tem mais tanta vida pela frente para desperdiçar com o que não excita, não surpreende, não deixa você entusiasmado de verdade. Se é para ser meia-boca, mais vale deixar pra lá e dedicar-se a seus prazeres confirmados. Ok, bela cidade. Ok, jantar agradável. Ok, consegui me manter acordado durante a conversa. Mas ok é ok. Não é uau.



01 de outubro de 2016 | N° 18649 
CARPINEJAR

Luto televisivo

Hoje entendo perfeitamente a depressão materna com o fim da novela Roque Santeiro em minha adolescência. Ela se calou por semanas, ficava irritada por qualquer casualidade, não conseguia dormir. Perambulava pela casa durante a madrugada com um copo de água na mão.

Foi o nosso período de maiores castigos e xingamentos, ela que sempre foi doce e compreensiva. Mas tinha se viciado naquela história do casal estrambólico Sinhozinho Malta e viúva Porcina.

Experimentou um luto televisivo. Era a morte de seu lazer noturno. Seu programa predileto, após meses de exibição diária, deixava de existir. De repente, sumia. Como ocuparia o seu lugar? Assistir à novela seguinte seria o equivalente a uma traição. Entrava, então, no vazio existencial da abstinência.

Reproduzi a mesma amarga sensação quando terminei a quarta temporada de House of cards. Emendei noites para acompanhar a saga do casal político inescrupuloso Underwood. Em toda fresta do trabalho, pegava o meu computador e avançava na trama. Quantas vezes enganei a minha mulher e permaneci acordado madrugada adentro com fones de ouvido e uma barreira de travesseiros para disfarçar a luminosidade da tela?

Ao encerrar os 52 episódios até hoje filmados, mudei de personalidade. Cai em melancolia profunda. Abriu-se uma cratera entre o desejo e a realidade. Perdi o apetite, não tinha mais vontade de falar, arrastava os sapatos pelos corredores, não rendia no trabalho, desanimei com as crônicas. Foi como uma gripe emocional, uma virose na alma. Andava apático e de olhar paralisado, contínuo, sem comercial. A esposa já projetava consulta psiquiátrica. Os filhos já devolviam as mesadas. Os amigos começaram a se revezar no telefone.

Eu não estava preparado para esperar na fila das estações uma nova temporada. Não elaborei um plano B. Havia uma eternidade pela frente, um futuro árido longe dos meus personagens de estimação.

Não me curei ainda. Sofro uma fissura violenta, semelhante à recaída por cigarro. A minha panaceia é a promiscuidade no Netflix, assistir quatro séries simultaneamente para ocupar o tempo.

Sou orgulhoso como a minha mãe. Não aceito ajuda.

Talvez a minha mãe seja ainda pior, sequer admite que assiste novela. Quando vou visitá-la de noite alega que deixou a tevê ligada.



01 de outubro de 2016 | N° 18649 
PALAVRA DE MÉDICO

Ser feliz é previsível?

As boas relações sociais nos mantêm mais FELIZES E SAUDÁVEIS

Uma pesquisa americana, feita com jovens nascidos entre os anos 1980 e 1990, mostrou que quase 80% deles referiu que tornar-se rico era o principal objetivo da vida, e quase metade desses admitiu que ambicionava tornar-se uma pessoa famosa. E estavam determinados a trabalhar duro, tanto quanto fosse necessário, para alcançar estas metas. Mas, e se essas pessoas fossem seguidas durante anos e décadas, estes objetivos se manteriam?

Numa das mais interessantes conferências do TED, este site de tanto sucesso na internet, o professor Robert Waldinger, quarto diretor de um projeto de pesquisa da Harvard (Estudo sobre o Desenvolvimento Adulto), tratou de responder a essa pergunta, relatando os resultados do acompanhamento de 724 indivíduos de diferentes classes sociais durante, pasmem, 75 anos. A pesquisa envolveu duas populações socialmente diferentes: um grupo de ricos, egressos da Universidade de Harvard, e outro de trabalhadores humildes do porto de Boston.

Em consultas periódicas, registraram o que aconteceu ao longo da vida dessas pessoas e não precisaram confiar na memória que, como se sabe, frequentemente é falha ou criativa. As revelações mais significativas, referentes a felicidade, não diziam respeito a dinheiro, nem fama, nem a trabalhar mais e mais na busca de seus objetivos.

A lição mais importante: as boas relações sociais nos mantêm mais felizes e saudáveis, enquanto que a solidão é mortal. Quando foram revisados os prontuários desses indivíduos, verificou-se que não foi o nível do colesterol medido aos 50 anos que determinou como eles estariam aos 80 anos – foi o grau de satisfação com suas relações pessoais. Entre os felizes aos 50 anos estava o maior número de octogenários saudáveis e contentes. Algumas conclusões interessantes:

-As relações sociais nos fazem bem, enquanto a solidão nos flagela. As pessoas que têm mais relações sociais com a família, com os amigos ou com a comunidade são mais felizes, têm uma vida mais saudável e vivem mais tempo, enquanto solitários são mais tristes, a saúde declina mais rapidamente na meia idade, a atividade cerebral definha mais cedo, e eles vivem menos.

-É importante a qualidade das relações. É possível sentir-se só no meio de uma multidão ou no casamento. Relações sociais conflituosas são péssimas para a saúde, e um divórcio é certamente menos danoso do que um matrimônio sem afeto.

-Entre os pesquisados, ficou claro: aqueles que mantiveram interações amistosas e afetivas conseguiram chegar aos 80 anos mais felizes e mais saudáveis, apesar do consenso de que as relações pessoais, muitas vezes, são complicadas e nem sempre conseguimos manter um diálogo generoso, porque, afinal, somos humanos, com todas as nossas idiossincrasias.

-Durante as consultas anuais por telefone, com o objetivo de saber como estavam, várias vezes os entrevistados disseram: “Estou bem, na minha vida não acontece nada importante para vocês seguirem preocupados comigo!”. Curiosamente, nunca se ouviu este comentário quando o entrevistado era ex-aluno da Harvard, mostrando que a autoestima dos dois grupos era muito diferente.

-Na investigação da qualidade de vida x doença, uma revelação interessante: as pessoas que tinham relações pessoais múltiplas e carinhosas referiram que, quando adoeciam, as dores físicas eram minimizadas pela proximidade dos amigos afetuosos, enquanto nos solitários eram potencializadas pela sensação de abandono.

Em resumo, confirma-se a reciprocidade do afeto energizada pelo querer bem como o melhor tônico para se viver mais e melhor. Como somos seres originalmente gregários, não nos bastamos. E deixados sós, definhamos.


Lançamento do livro O que cabe em um abraço, de J.J. Camargo
Exclusivo para membros do Clube do Assinante.

Em 7 de outubro, das 16h30min às 18h30min, na Casa Destemperados (Rua Marquês do Herval, 82, Porto Alegre). Os primeiros 50 sócios que enviarem um e-mail para clubedoassinantezh@zerohora.com.br informando nome e CPF receberão a confirmação para participar. Informações pelo WhatsApp do Clube do Assinante (51) 9701-0917 ou pelo telefone (51) 3218-4276.