sábado, 28 de abril de 2018



28 DE ABRIL DE 2018

LYA LUFT

A luz da vida


Impressionante como somos vulneráveis às más notícias, aos horrores do mundo, que se derramam em nossa casa, em nossa vida, em nossa alma, o tempo inteiro. Quase esquecemos as coisas boas, belas e felizes, que também existem.

No meu tempo de Escola Normal, as freirinhas do colégio diziam que "o bem murmura, o mal grita". Ou que "na outra vida veremos o verdadeiro risco do bordado, aqui só vemos o lado avesso, cheio de fios cruzados e nós e imperfeições".

Certamente, alguma coisa dessas cândidas lições ficou e floresceu em mim, pois, apesar de tudo, do mundo lá fora e das rasteiras da vida, da sorte, da morte, acho que sou uma otimista. Acredito que a vida vale a pena. Acredito que o amor ilumina. Acredito que boas amizades são ótimas porque amizade não conhece ciúme, competição, cobrança, nem precisa de assiduidade para durar.

Enfim, acredito no bom e no bem, mesmo que eu também saiba, veja, sinta, observe que somos animais. Animais não muito bons: não passarinhos, borboletas, golfinhos, cachorrinhos amorosos ou gatos indolentes, mas bichos predadores mesmo.

Assim nem preciso escrever, como comentei na coluna passada, sobre a animalização dos humanos. Está aí, exposta e escrachada, na violência, na maldade, na futilidade criminosa, na insanidade geral e na irresponsabilidade mortal. Também nas pequenas picuinhas e maldades cotidianas, com que às vezes, tantas vezes, tratamos os outros. Na irresponsabilidade com que muitos governantes manejam seu país e sua gente. Na indigência (Vicente gosta dessa palavra...) mental e moral de tantos líderes, até em setores antes sagrados. Tudo isso que nos deixa perplexos, embasbacados, impotentes, inseguros e desamparados.

De modo que, sim, nos falta encontrar, cultivar, manter e curtir aquelas coisas, às vezes simplíssimas, que são a luz da vida. Um olhar de afeto, um sorriso alegre, um gesto de entendimento, um WhatsApp dando coragem, ou uma visita que nos anime, seja o que for, nos ilumina se nos abrirmos para isso tudo, que parece pouco, mas é tudo. Borboletas azuis no jardim do bosque na Serra, o tucano pousado bem baixinho, os bugios com filhote nas costas saltando nas árvores, as paineiras diante da janela aqui em Porto Alegre e, nestes dias, a minúscula cachorrinha, nossa nova bebê, que ia se chamar Pandora, mas rebatizei de Penélope: melhor de pronunciar, e sou fã da Penelope Garcia do Criminal Minds. (Ou vocês achavam que só assisto a filme cult e só leio Goethe?) 

Ainda tem quem se espante de me encontrar em lugares normais como caixa de supermercado: "Nunca imaginei ver a senhora num supermercado!". "Ué", respondo pela centésima vez, "minha família também come...".

Fim para as ilusões, que venha a real luz da vida, rara e essencial.

LYA LUFT


28 DE ABRIL DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Que coisa é essa?


É a palavra mais poderosa da língua portuguesa: coisa. Cinco letras que, unidas, englobam significados variados e misteriosos. Dentro dela, a imensidão do intraduzível. Lembro a diretora Irene Brietzke, que dirigiu minha primeira peça, Trem-Bala, em Porto Alegre. É a elegância em pessoa, mas quem a conhecia há mais tempo me prevenia: alguns dias antes da estreia, ela terá a coisa, prepare-se. Minha imaginação orbitava. O que seria essa coisa que ela teria? Um ataque de estupidez, uma mudez insistente, um sumiço, uma alergia, um troço? Tudo isso. Eu é que quase tive uma coisa na véspera, mas no dia seguinte a peça estreou com sucesso.

Desde então, respeito a coisa que dá nos outros.

Quando alguém diz que não irá desistir de seu objetivo porque há muita coisa em jogo, meu suor escorre pela testa e faz um desvio até chegar atrás do pescoço e alcançar a lombar. Está na cara que esse alguém será capaz de roubar, matar, arrancar os dentes do inimigo que se interpuser entre ele e essa coisa desconhecida e tão valiosa. Imagino que a tal coisa seja sinônimo de reputação, dinheiro, poder, sexo, enfim, aquela coisa toda.

Quando eu ainda era bem pequena, caí na asneira de dar conversa para um vizinho mais velho que eu - ele devia ter uns nove anos. Pois fui proibida de falar com ele porque seu pai era Fulano, notório sujeito que não era grande coisa. Eu, com imenso esforço, raciocinei: se o pai do meu amiguinho, um Garibaldo com quase dois metros de altura e uma barriga gigantesca, não era grande coisa, a nossa família de gente magra e miúda seria o quê? Fui descobrindo que essa coisa de julgar os outros não era para principiantes.

Na minha santa ingenuidade, desejava que as relações fossem mais claras, objetivas, sem tantos pontos nebulosos, mas a coisa não era bem assim, diziam, e aí me sentia ainda mais perdida, porque às vezes achava que sabia das coisas e sabia era nada, como até hoje não sei. Se não é bem assim a coisa, posso imaginar que ela seja muito pior, mais aterrorizante - uma coisa de outro mundo. Que, aliás, é coisa que nunca entendi também - que outro mundo é este onde as coisas são tão diferentes?

Se alguém tivesse tido a paciência de me explicar o que eu não entendia naquela época, já seria alguma coisa, mas as pessoas estavam sempre muito ocupadas e achavam que certos assuntos não eram coisa pra criança, então cresci pensando por minha conta, e devo ter pensado coisas fabulosas, pois, quando me atrevia a revelar meus pensamentos, achavam que aquilo não podia ser coisa minha, e sim de alguém que estava colocando coisa na minha cabeça.

Que palavra teria potência semelhante e seria tão absoluta para definir o inqualificável? Não encontro outra. Fala-se por aí que a coisa está feia, mas eu a considero até bonitinha diante de tantas outras palavras que não servem pra nada. Ao menos a coisa funciona.

MARTHA MEDEIROS

28 DE ABRIL DE 2018

PIANGERS

Um texto irresponsável


Esta é uma história real. O telefone tocou no escritório. Um garoto quer falar com você, me disse um colega. Transfere. Alô. ? Alô. ?É o Marcos Piangers? Sim. Não acredito que estou falando com o Marcos Piangers. Está. Meu Deus, não acredito! Como é fácil falar com o Marcos Piangers. Ok, cara. Era isso? Não! ?Eu quero saber uma coisa: eu trabalho em algo que eu odeio. Eu odeio meu emprego. Meu sonho é trabalhar com produção de vídeos. Você acha que eu devo pedir demissão?

Abre parênteses. Acho que naquele dia eu devia estar muito inconsequente. Fecha parênteses. Você odeia seu emprego? Sim. Você quer fazer outra coisa? Sim. Você é novo e tem família pra te ajudar? Sim, moro com meus pais. Então, acho que você deve pedir demissão hoje mesmo e ir atrás do seu sonho. Sério? Sério. Ok? Ok. Obrigado. De nada. Tchau. Tchau.

Oito meses depois. Recebo um e-mail do garoto que me ligou. Dizia, em outras palavras, o seguinte: "Piangers, depois daquela ligação cheguei no meu emprego e realmente pedi demissão. Fui o herói de mim mesmo. Saí de forma gloriosa por aquela porta, para qualquer coisa que a vida me reservaria. Durante meses, entreguei meu currículo em agências e produtoras de vídeo. 

Nenhuma me respondeu. Por um tempo, ia a entrevistas de emprego apenas para comer a bolacha e tomar o café que oferecem nesses lugares. Comecei a ficar meio desesperado. Até que um dia uma produtora me ligou. Comecei a trabalhar com o que eu amo, aprendi técnicas, com meu primeiro salário fiz um curso online. Em algum tempo, estava pegando trabalhos mais legais, ganhando mais dinheiro. Hoje, trabalho com o que eu amo. Estou muito feliz. Obrigado por ter atendido aquela ligação".

Quando li o e-mail, fiquei boquiaberto. Como eu tinha tido a irresponsabilidade de dizer pra um jovem ir atrás do seu sonho? Ele deveria ter batalhado por 65 anos em um trabalho que odeia, como todo mundo faz.

Lembrei dessa história quando perguntei pra um amigo como ele conseguiu o emprego dos sonhos: viajar o mundo fazendo imagens de surf. Ele disse que, anos atrás, estava trabalhando em um escritório, matando tempo, olhando vídeos no computador. Até que viu um vídeo de um surfista. Um vídeo de 45 segundos, mostrando as praias pelas quais aquele surfista tinha passado no último mês. Ele viu aquele vídeo de 45 segundos, se levantou, pediu demissão e foi embora. Não sei se pra cada vitorioso desses temos mil fracassados. Só sei que, sempre que um telefone tocar e alguém disser que odeia seu emprego, eu vou recomendar o enfrentamento deste medo. Esse frio na barriga. Você saindo pela porta da empresa. Vamos ver o que a vida lhe reserva.

PIANGERS

28 DE ABRIL DE 2018
DRAUZIO VARELLA

MAIS MÉDICOS


A saúde no Brasil padece de dois grandes males: falta de dinheiro e gerenciamento incompetente. Impossível levar a sério qualquer projeto que não enfrente, ao mesmo tempo, esses dois desafios. Investir apenas na organização é tão insuficiente quanto alocar mais recursos para um sistema perdulário, contaminado pela corrupção e por interesses políticos da pior espécie.

Há anos gravo programas de educação em saúde pelo interior do Brasil e na periferia das cidades maiores. Nessas andanças, aprendi que o Programa Saúde da Família (PSF) foi um grande avanço para o atendimento dos mais necessitados.

Por meio do PSF, iniciado em 1994, equipes formadas por médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários acompanham até 4 mil pessoas distribuídas em áreas geográficas delimitadas. Seus objetivos são a "promoção, prevenção, recuperação, reabilitação e manutenção da saúde da comunidade".

Mais de 30 mil equipes, que contam com pelo menos 250 mil agentes comunitários, estão espalhadas pelo país. Aos olhos do visitante, é notável a diferença das condições de saúde das populações que contam com elas. Estudo conjunto das Universidades de São Paulo e de Nova York mostrou que para cada 10% de aumento da população assistida, a mortalidade infantil cai 4,6%.

Pois bem, esse programa de sucesso precisa de médicos nem sempre fáceis de atrair, mesmo com salários mais altos. Precisa também de enfermeiras, dentistas e de técnicos qualificados, mas vamos nos deter na parte médica.

Médicos forçados a passar dois anos nessas equipes antes de receber a autorização definitiva para clinicar podem dar impulso considerável em busca da universalização do programa. Se a Constituição permitir que o Estado obrigue alguém a trabalhar em local que não deseja, acho que os recém-formados poderão se beneficiar da experiência: aprenderão a exercer uma medicina que não é ensinada nas faculdades, conhecerão melhor as grandezas do país e a realidade perversa que condena à miséria, que governantes ufanistas insistem em proclamar extinta.

Essa medicina de pés descalços, no entanto, é incapaz de resolver problemas mais complexos. Estes dependem de profissionais motivados, com carreiras no serviço público bem estruturadas, unidades de saúde aparelhadas, hospitais equipados e administrados sem corrupção ou ingerências políticas.

Na Constituição de 1988, declaramos que saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes teve a ousadia de fixar meta tão pretensiosa. Infelizmente, os constituintes levantaram da mesa sem indagar quem pagaria a conta.

Passados 30 anos, constatamos que 56% do investimento em saúde vem da iniciativa privada, para cobrir os gastos dos 48 milhões de brasileiros com mais recursos. Aos 150 milhões que dependem do governo, cabe menos da metade do bolo.

Como consequência, esses 48 milhões de usuários dos planos de saúde têm à disposição quatro vezes mais médicos do que os 150 milhões atendidos pelo SUS. Tal distorção acontece por uma razão óbvia: o médico procura estar no mercado que oferece salários mais altos e melhores condições de trabalho. Num sistema capitalista como o nosso, não são essas as expectativas de advogados, engenheiros, lixeiros, metalúrgicos e agricultores?

Apregoar como um grande salto na qualidade do atendimento à população a medida de obrigar recém-formados a prestar serviços em localidades desprovidas da infraestrutura mais elementar é simplificação demagógica. Sem equipes treinadas, laboratórios de análises, imagens, centros cirúrgicos, acesso a medicamentos e a hospitais de referência para encaminhar os casos mais graves, não se faz assistência médica digna desse nome.

Os especialistas calculam que no Brasil faltem 70 mil leitos hospitalares. Estamos vergonhosamente despreparados para atender à demanda das enfermidades responsáveis pela maioria dos óbitos: ataques cardíacos, câncer, diabetes, obesidade, derrames cerebrais, acidentes de trânsito, tabagismo, doenças pulmonares.

Atribuir a responsabilidade pelo descaso com o SUS à simples falta de médicos é jogar areia nos olhos do povo descontente.

drauziovarella.com.br -- DRAUZIO VARELLA

28 DE ABRIL DE 2018
PAULO GLEICH

ADEUS A UMA MESTRA


Escrevo horas após ir ao velório de uma pessoa especial, daquelas que são difíceis de qualificar. Não era uma amiga, embora um laço de amizade também nos unisse. Não era uma professora, embora eu tenha aprendido muito sobre meu ofício no convívio com ela. Não era também apenas uma colega, embora compartilhássemos da mesma profissão. Merece um título que outorgamos a poucas pessoas: era uma mestra, certeza que tive no momento de dizer adeus.

Mestres são pessoas especiais em muitos sentidos. São figuras que carregam em si uma força singular, que têm a capacidade de despertar em nós mesmos uma força às vezes adormecida. São pessoas a cuja presença não somos indiferentes, mesmo que o afeto que nos despertam oscile, por vezes, entre a admiração e o rechaço. Isso talvez porque essa mesma força que ajuda a nos por em movimento às vezes também nos inibe e atropela.

O desenvolvimento humano é impossível sem mestres. Os primeiros são nossos pais, por quem desenvolvemos essa admiração temerosa, por mera necessidade de sobrevivência. Nos sentimos pequenos diante deles, lhes atribuímos capacidades sobre-humanas, mas é graças a eles que crescemos. Aos poucos, atribuímos a outros essa função: professores que marcam a trajetória escolar, uma tia com quem desenvolvemos uma relação especial, um amigo por quem nutrimos admiração.

Em algum momento, chega a inevitável decepção: os mestres, apesar das qualidades que carregam, revelam sua falibilidade. Seja um defeito, seja uma falha, subitamente algo rompe a imagem de onipotência que até então lhes outorgávamos. A adolescência é o momento paradigmático dessa queda: saltam aos olhos os defeitos (ou seja, a humanidade) dos pais, as falhas passam a ser tudo o que neles vemos - e fazemos questão de expor. Não à toa, é na adolescência que se buscam novos mestres, pois os antigos caíram desse lugar.

Tem quem jamais atravesse esse momento e siga cultuando para sempre a imagem forjada na infância, ao preço de jamais poder se confrontar com a dimensão humana dos pais - e, por tabela, com a sua própria. Vivem presos a exigências de perfeição, e tudo que fica aquém disso é fracasso. Ao não poder humanizar os mestres, sofrem com sua própria pequenez diante de ideais inalcançáveis. O mestre passa a ser um tirano, mesmo que seja um tirano interno.

Mas há também quem fique capturado no momento adolescente da queda do mestre, não superando sua imperfeição. Atentos às mínimas falhas, seguem gritando aos quatro ventos como são mestres fajutos, por não encarnarem todas as qualidades que lhes são atribuídas. Cria-se um ciclo permanente de busca de um novo mestre, que cedo ou tarde decepcionará, levando à procura de outro. O foco nas falhas acaba deixando cego às qualidades e potencialidades - as do mestre, mas também às próprias.

É somente num terceiro movimento, após a adoração e a decepção, que é possível estabelecer uma relação mais saudável - e proveitosa - com os mestres: é quando sua imperfeição não mais invalida as qualidades que têm a transmitir. Reconhece-se que sua força criativa também pode ser destrutiva, que seu destemor também oculta, como em todos nós, temores. Por isso, todo bom encontro com um mestre pressupõe um adeus: à idealização que, em um primeiro momento, fizemos dele.

À mestra Martha Brizio, gratidão por compartilhar com tantos de nós sua grande força - e sua humanidade.

PAULO GLEICH

sábado, 21 de abril de 2018


21 DE ABRIL DE 2018
LYA LUFT

Humanos e animais


Outro dia, falava com as netas sobre humanização de pets. O assunto me interessou, despertou minha curiosidade, pois sempre houve pets em minha casa (desde quando esse termo nem existia), embora, admito, ultimamente andem mais humanos.

Já tenho cachorrinhos (sou cachorreira) dentro de casa, coisa antigamente impensável. Meu marido, inclusive, na sua primeira casa, só tinha cachorro no pátio. Comigo, acostumou-se a esses pets meio humanos, e devo dizer que gosta deles, que, por sua vez, o veneram.

Por muitos anos, tive aqui na cobertura duas pets, uma delas a pug Meg, a Gorda sobre a qual escrevi recentemente e que, muito doentinha, aos nove anos morreu. A outra, a minha spitz míni, já dorme no nosso quarto e, confesso, às vezes sobre o nosso edredom. Perfumada e mimosa, não é mais bem um bicho, mas quase uma pessoazinha, embora eu não lhe ponha vestidinhos, porque me desagrada ver cachorros de roupa.

Só falta que, a qualquer hora, me encarando com esse seu focinhinho quando quer me dizer que falta água, falta comida, falta a Gorda, ou quer colo, comece realmente a falar. E tanto converso com ela, que às vezes receio que abra a boca e responda com sua voz de spitz algo como "Sim, mamãe", quando certamente cairei desmaiada, dando bastante trabalho a quem me socorrer.

Agora, para os próximos dias, espero um novo bebezinho, e disse isso a uma amiga ainda ontem, sob o espantado olhar do seu porteiro: "Semana que vem chega meu bebezinho". Já tem nome, Pandora, bem maior do que ela mesma, cuja foto não paro de olhar e me enternece de maneira patética. Alguém me disse que Pandora foi quem abriu a caixa soltando os males pelo mundo, de modo que seria um nome funesto. Mas respondi, com alegria, que na caixa de Pandora tinha sobrado um último elemento, o mais precioso de todos, que veio nos habitar: a esperança. E assim me sinto reconciliada com o nome, que aliás é personagem de meu livrinho mais recente, A Casa Inventada.

Pandora é uma spitz micro: será, quando adulta, quase metade da já pequena Melanie, e me divirto por antecipação com as diabruras, os mimos, os carinhos, a maternidade minha, o possível ciúme inicial da irmã.

Com minha amada amiga Nélida Pinõn, atualmente residindo por breve tempo em Lisboa, troco fotos e gracinhas das nossas filhas de quatro patas. A dela, registrada como Suzy Piñon, a minha, Pandora Luft. Rimos, as duas, no WhatsApp, com nossas inocentes maluquices ternas. Pena que não posso botar aqui uma foto da nova bebê, com seu rostinho de urso diminuto, sua graça sem nome, seus olhinhos de mil pedidos e sua quentura aninhada no meu colo... certamente junto com sua irmã Melanie.

Um dia vou pensar e escrever sobre a animalização dos humanos. Não será preciso refletir muito... Por hoje, só carinho e expectativa de um novo bebê.

LYA LUFT

21 DE ABRIL DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Washington


Sou viciada em viajar, mas Washington não faz parte da minha wish list - implico com a capital norte-americana mesmo sem conhecê-la, ainda que saiba dos museus incríveis que há por lá. O Washington que dá título a esta crônica é o Olivetto. Fui redatora publicitária por 13 anos (inclusive fiz uma passagem supersônica pela DPZ), mas cruzei com o Washington pouquíssimas vezes, em esbarrões sem consequências. Na noite anterior à que ele foi sequestrado, conversamos por breves minutos num restaurante em Porto Alegre, sem imaginar que dali a 24 horas ele sairia de cena, a contragosto, por 53 longos dias.

Foi um período difícil para seus funcionários, que tiveram que se acostumar "com a falta de euforia, com a falta de genialidade, com a falta de um jeito de andar, de falar com as mãos, de levar a vida", segundo palavras de Tati Bernardi, que trabalhava na W/Brasil na época (2001). Agora, tantos anos depois, ele lança sua autobiografia, e o sequestro não ganhou nem mesmo um parágrafo decente, foi um "ops" em meio a uma trajetória muito maior e mais interessante.

Direto de Washington é o nome do livro que recomendo para quem tem curiosidade sobre os bastidores das agências e sobre como surgiram ideias que faziam a gente pensar "isso até eu faria", como a do garoto Bombril e a do primeiro sutiã da Valisére, sem falar naquele slogan surpreendentemente direto: "Compre Batom!". Parecia brincadeira, de tão fácil.

Estar de brincadeira foi a tarefa mais séria à que Washington Olivetto se dedicou. E aqui paro de falar de propaganda para falar de algo bem mais abrangente e que envolve não só publicitários, mas engenheiros, balconistas, vendedores de cachorro-quente, costureiras, frentistas de postos de gasolina, colunistas de jornais.

No final das contas, somos todos consumidores. Não apenas de aspiradores de pó, biscoitos e esponjas de aço, mas consumidores de fantasias, gargalhadas e declarações de amor. Somos consumidores de conversas de bar tanto quanto de cerveja, consumidores de vaidade tanto quanto de perfume, consumidores de prazer tanto quanto de vinho. Consumimos vida, não só produtos e serviços. Vida é o tal valor agregado de qualquer coisa que a gente compre.

Washington sintetizou isso com propaganda comunicativa, afetiva, divertida, musical. Fez a gente ver que, mesmo com pouca grana, o que vale é ser criativo e encontrar saídas para ser feliz. Washington é a síntese, não a complicação. É o charme, não a peruíce. É a irreverência, não a arrogância. O livro é uma egotrip, ele se vende pra burro, mas não é o que passou décadas fazendo pelos outros? Então, que o deixem livre, leve e solto para nos dar este toque: só se escabela para parecer profundo quem não tem talento para ser simples. A simplicidade continua sendo a melhor técnica de sedução.

MARTHA MEDEIROS


21 DE ABRIL DE 2018
PIANGERS

Falta referência

Notei minha idade um dia desses quando citei a Marília Gabriela, e todo mundo me olhou como se citasse uma pessoa desconhecida. Era uma daquelas entrevistas em que falam uma frase curta e querem que você responda com uma frase curta também, o tipo de entrevista que me deixa profundamente desconfortável porque tenho sempre que pensar em algo muito inteligente e curto e, como todos sabemos, prolixidade é o refúgio do medíocre. 

Alguém já disse: Se eu tivesse mais tempo poderia escrever uma carta mais curta. Leva tempo ser sucinto. Pois, na minha época, essas entrevistas eram chamadas de pingue-pongue. Os mais velhos, como eu, lembrarão da Marília Gabriela fazendo este tipo de coisa, os de meia-idade terão na Xuxa sua referência de entrevista pingue-pongue. Os realmente novos não terão referência alguma, como é típico.

Esses dias, em uma conferência pra gente mais nova, utilizei o termo "microfone da Madonna" para me referir àqueles que encaixam na orelha e vem até a boca com uma haste fina. Usar o termo "microfone da Madonna" denuncia muito sua idade. A plateia me olhou sem entender, muitos deles não conheciam nem a Madonna. Agora, como podem não conhecer a Madonna? Este é o problema com os muito jovens: sua ignorância evidencia nossa velhice.

Mostrei esses dias um telefone fixo de disco para minhas filhas. "Onde estão os botões?", perguntaram. Não tinha botão. Tinha disco. Daí vem o termo "discar o telefone". Odiávamos quem tinha 9 ou 0 no número de telefone, pois tínhamos que esperar todo o disco voltar para o lugar original, para poder discar outro número. Se tinha um 9 ou um 0 a gente levava horas pra ligar pra alguém. Quando a mãe via que estávamos usando muito telefone e a conta estava vindo cara demais, ela colocava um cadeado no disco, impedindo-o de girar. Era o que se tinha de mais sofisticado em termos de segurança de sistema.

Quando fazemos o sinal da conta, no restaurante, simulando um lápis que faz um cálculo no ar, também estamos denunciando nossa idade. Hoje em dia a conta vem pronta, impressa por um computador, e a gente paga com cartão, não preenchendo um cheque. Rabiscar o ar perdeu a lógica. O mundo como conhecíamos vai pouco a pouco desaparecendo, dando espaço para novas pessoas com novas referências. Experimentarão um pouco do que sentimos quando, em alguns anos, ninguém souber o que era um smartphone.

PIANGERS

sábado, 14 de abril de 2018


14 DE ABRIL DE 2018
PAULO GERMANO

A ARTE SEGUNDO LASIER



O senador Lasier Martins (PSD) apresentou um projeto de lei que, se for aprovado, proibirá obras "que incitem a prática de crimes ou atentem contra a moral" de ter acesso aos benefícios da Lei Rouanet.

- A verba deve se destinar a projetos que não despertem polêmicas (?), que tenham um sentido humanitário (??) e edificante (???). A lei deve ser canalizada para projetos positivos (?????) e indiscutíveis (?????????) - foi o que disse Lasier à Rádio Senado (as interrogações são minhas).

Poucas vezes na vida uma declaração me soou tão horrenda. Primeiro, porque não consigo pensar em nada mais fundamental na arte do que "despertar polêmicas". Já o "sentido humanitário", embora seja muito "edificante", é algo que espero da Casa do Menino Jesus de Praga. E os tais "projetos positivos", bem, são o que eu gostaria de ver Lasier propondo. Por fim, "indiscutíveis" são a única coisa que obras de arte não podem ser.

Tudo isso eu já disse no ano passado, é verdade, quando o Santander Cultural cancelou a mostra Queermuseu com uma justificativa que o senador deve ter adorado: "Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana". Credo, por favor.

A arte não tem que "elevar a condição humana", nem "gerar reflexão positiva", nem ter "sentido humanitário", nem exaltar o belo, nem acompanhar seu tempo, nem dizer o que os outros querem que ela diga. A arte é o que artista quiser que ela seja, e acabou.

Pode-se criticar, detestar, falar mal, questionar, mas vetar o exercício da arte é só e somente só censura. Em entrevista a Zero Hora, após dizer que a Queermuseu "incentivava a prática da pedofilia e da zoofilia" - o que é uma aberração interpretativa, visto que retratar um crime é diferente de incentivar um crime -, Lasier garantiu que sua intenção não é censurar nada:

- Não estamos proibindo essas exibições de acontecerem. O que se está proibindo, vedando, é que o dinheiro público seja usado para isso.

Ora, dá no mesmo, senador. Todas as democracias do planeta têm políticas de incentivo fiscal para financiar produções artísticas - porque as produções artísticas menos populares, menos comerciais, jamais aconteceriam sem patrocínio, e sabe-se que as empresas preferem patrocinar justamente quem é mais popular e não precisa de patrocínio.

No Brasil, em 2017, segundo o economista Leandro Valiati, a cultura representou 0,62% de todos os subsídios fiscais concedidos pelo governo federal, um percentual ridículo. Imagine, agora, se qualquer produção artística passasse pelo crivo de Lasier Martins, da Igreja Católica, do MBL ou de quem quer que fosse.

Saturno Devorando um Filho (1819), de Francisco de Goya, uma das pinturas mais célebres da história da arte - aquela em que o horripilante deus Saturno devora o corpo ensanguentado do próprio bebê recém-nascido - certamente seria vetado. Porque os censores seriam incapazes de compreender a fantástica alegoria de um pai que mata seu filho por medo de acabar destronado por ele.

- É um incentivo ao canibalismo! - gritariam, escandalizados.

E O Sonho da Mulher do Pescador (1814)? A influente gravura do japonês Katsushika Hokusai - que mostra dois polvos estimulando uma mulher na vagina, nos mamilos e na boca - faria Lasier Martins arrancar os cabelos que lhe restam, tamanha a pouca-vergonha daquela incitação à zoofilia. Poderia citar dezenas de outras obras, mas a questão nem é esta.

Ainda que uma criação artística seja de péssimo gosto - como de fato eram algumas da Queermuseu, concordo -, qualquer liberdade só é testada quando quem eu detesto pode se expressar. Deixar se expressar apenas quem "gera reflexão positiva" ou valoriza "o sentido humanitário", ora, isso qualquer ditador consegue.

PAULO GERMANO

14 DE ABRIL DE 2018
PIANGERS

Agora é com você

Gosto desta história e a repito tanto que não sei se já contei aqui. Quando eu e a Ana estávamos no hospital, após a nossa primeira filha nascer, ela com dores da cesariana e com dificuldade para amamentar, a noite chegou e, com ela, um cansaço gigantesco. A Ana me pediu: Cuida do bebê que eu preciso dormir, e eu respondi: Relaxa!, porque, obviamente, eu não sabia como era difícil cuidar de uma criança. Quando me atrapalhei com as fraldas e o choro, fui até o corredor do hospital com o bebê no colo e pedi para que a enfermeira me ajudasse. Ela disse que o trabalho dela era ajudar em caso de problema de saúde, apenas. Agora é com você, ela disse, percebendo minha cara assustada.

Essa frase virou uma espécie de mantra. "Agora é com você". É uma lembrança constante de que não posso delegar a responsabilidade da criação de um filho pra outra pessoa. Agora é comigo. Não é com os avós nem com babá, nem com a Galinha Pintadinha. Não é com sua esposa, com a professora ou com a escola. Agora é com você.

O trabalho pode ser em equipe, mas a contribuição do resto do time não pode ser motivo pra fazer corpo mole. Agora é com você. Se o avô mora perto, ótimo. Se a escola é perfeita, maravilhoso. Mas é com você. É com a gente.

Se nossos filhos vão ou não estar preparados para se comportar civilizadamente em sociedade, será nosso exemplo que dirá. São nossas conversas sobre os assuntos mais complicados que irão esclarecê-los. Será nossa participação efetiva que garantirá boas notas. Será nossa atenção em todos os sinais que eles nos passam que os protegerão dos perigos do mundo. Que são muitos.

Percebo tantos pais reclamando da escola, sem perceber que aquilo que acontece em casa tem um impacto maior no comportamento e no bem-estar da criança. Percebo tanta gente indignada com o que aparece na televisão, sem entender que ninguém é obrigado a ligar o aparelho. Percebo pais sem tempo nem paciência, querendo delegar responsabilidades que são suas. Quanto mais tempo você perde se abstendo, maior trabalho terá no futuro. Respire fundo, segure o bebê e reconheça: agora é com você.

PIANGERS

14 DE ABRIL DE 2018
CLARA AVERBUCK

Meu primeiro BLOQUEIO


Quando eu era jovem, bem jovem, escrevia em qualquer lugar. Era uma chama constante, uma urgência, quase que um chamado; toda vez que vinha uma ideia eu não hesitava em sentar onde quer que estivesse e sacar um dos meus caderninhos, sempre comigo, os meus caderninhos que hoje vivem guardados nas gavetas da sala. Escrevia sentada no meio fio, nos bares (muito nos bares), nas festas, na chuva, onde quer que fosse. Escrevia horrores e depois passava a limpo no meu computador velho. Assim escrevi meus primeiros livros. Era a única coisa que importava.

Corta pra hoje, 15, 20 anos depois. Escritora, sete livros, dois no forno, antes dos 40 direi: "Já tenho mais de 10 livros publicados" e suspirarei (já suspiro) sentindo saudades de quando era jovem e cheia de gana, pois hoje o barulho da rua me incomoda, pessoas falando tiram meu foco, música me atrapalha, qualquer coisa é distração. O telefone, o gato, o cachorro, o Facebook, eu mesma, a louça, as contas, o buço, as unhas, aquele livro, a vida.

A vida que eu sempre quis é a que eu tenho. Em casa há um escritório, na estante tenho os livros, no quarto tenho uma cama confortável e no meu peito carrego uma crise. Era isso que eu queria, agora já não sei mais. Era isso que eu queria? A vida está confortável, e a inquietação dança no meu peito. Eu também quero dançar, penso enquanto lembro da minha barra de pole dance na sala. Minha paixão virou trabalho e deixou de ser paixão por hora. Encontrei outra paixão. 

Não que escrever tenha perdido o sentido, mas os prazos fazem com que a gana fique um tanto carcomida. Ora, me estapeio, sou uma privilegiada, vivo do que gosto, do que sempre quis, enquanto minha cabeça dói e me sinto capinando num campo árido tentando encontrar um broto de vontade de seguir como está, como estou, como estamos. Comento com amigos, comento com família, todos já passaram por isso. Sinto alívio momentâneo. 

O aperto volta, a mudez diante das páginas em branco segue. Meus primeiros bloqueios criativos chegaram e trouxeram reforços. Não sai. Minhas ideias estão enfezadas. Queria férias. Não tenho férias. Nunca tive férias, minha cabeça sempre esteve no modo registrar. Queria férias. Queria sumir. Não quero mais repetir as coisas que eu já disse, as coisas que precisam ser ditas, mas precisam ser ditas. Repito. Reviro os olhos. A alma revira junto.

Olho minha conta bancária. Vale a pena isso tudo?

"É TPM", tento me convencer.

Pode ser. É a crise dos 40, pode ser. Tomara que seja os dois e que ambos passem logo.

CLARA AVERBUCK


14 DE ABRIL DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Um leitor sem endereço

Sessão de autógrafos é um evento democrático. Anuncia-se a presença do escritor na livraria e pronto. Não tem que se inscrever, pagar ingresso, pegar senha. É só chegar e entrar na fila com o livro na mão, esperando a vez de ganhar sua dedicatória. Nem precisa comprar nada, há quem traga um exemplar que já tenha em casa. Há quem leve apenas um pedaço de papel para receber o autógrafo. Há quem entre na fila só para fazer uma selfie. Há quem aproveite a muvuca para roubar o escritor sério, já levaram uma bolsa minha durante uma sessão de autógrafos. Há o maluco de estimação, que escritor não tem o seu?

O doido tem certeza de que você é apaixonada por ele e que tudo o que escreve é uma mensagem cifrada (por via das dúvidas, mantenha o segurança alertado). Há os fiéis que nunca te abandonam (amamos vocês). Há os que, em vez de dizerem o nome, perguntam lembra de mim? (odiamos vocês). Vai o ex-namorado com a namorada nova, os primos em quarto grau que a gente não reconhece, um ou outro VIP pra alegria do fotógrafo, pessoas que saíram tarde do trabalho e ainda assim passaram lá só pra nos ver. É um troço que emociona.

Já fiz sessões de autógrafo por todo o país, vi de tudo, mas, na mais recente, surpresa: havia um morador de rua na fila. Destoava, claro. Barba até o umbigo, meio sujo, aquele rosto de quem não leva vida fácil e nada tem a ver com o ambiente - mas tinha. Quando ele se aproximou, apertou minha mão e se apresentou. Tinha sobrenome de família quatrocentona, uma elegância que até humilhava. Não vou identificá-lo, pois não sei qual é a história de vida dele e se lhe interessa esta exposição. Foi discreto, educado, um lorde. Quem esperava um delinquente apostou errado.

Ao término da sessão, corri atrás de informações com o pessoal da livraria. Soube que ele está próximo dos 80 anos. Escuta no rádio as entrevistas de seus autores preferidos e memoriza o dia, a hora e o local do lançamento - se tiver bate-papo antes, ele prefere. Se for livro sobre esporte, gosta mais ainda. Paga pelos livros, o que demonstra que esmolas estão valendo mais do que os salários parcelados do funcionalismo.

Não tem endereço nem profissão, vive por aí. Não se sabe onde guarda os livros que compra. Já tentaram barrá-lo na entrada de shoppings pelo seu aspecto "ameaçador" (como se bandido obedecesse a um dress code), mas, serenamente, ele argumenta que irá apenas buscar um autógrafo, qual o crime? Estar sem o banho em dia? Com a mesma roupa há seis meses? Em Porto Alegre, virou figura folclórica, ninguém o incomoda mais. E tê-lo na fila, vai dizer, é um privilégio. Um morador de rua que lê mais do que moradores de cobertura. Me dê outra definição de esperança.

MARTHA MEDEIROS

sábado, 7 de abril de 2018



07 DE ABRIL DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Me deixa quietinho aqui

É uma carta antiga, assinada não sei por quem (nem Shakespeare, nem Leandro Karnal, nenhum sábio notório). Encontrei nos meus arquivos durante uma pesquisa arqueológica. Uma amiga me enviou numa época em que não dei muita atenção, mas, hoje, reli com mais prazer.

É a carta de um homem que faz um elogio à solidão e à vida de solteiro, denunciando o absurdo que é uma pessoa manter uma relação só para dizer ao mundo que tem alguém, quando este alguém talvez não colabore em nada para seu bem estar. Para a maioria das pessoas, entre a solidão e Satanás, bora convidar Satanás para um vinho, mas, para o sujeito que redigiu a carta, a solidão é companhia suficiente. Até porque ele a compartilha com livros, com música, com um esporte, com viagens, com amigos e com ele próprio, com quem mantém uma relação quase perfeita.

O que eu mais curti na carta, que é longa, foi uma frase espirituosa: "Me deixa quietinho aqui com minha vida espetacular".

Reconheça: quem gosta de ficar consigo mesmo tem uma vida espetacular, a despeito de todos os seus problemas. A pessoa não está angustiada em ocupar, a qualquer custo, o espaço vago ao lado da cama. Não está se sentindo abandonada pela sorte, não está avaliando perfis e currículos, não está pensando nisso 24 horas por dia. Simplesmente está tocando sua vida sem estresse, pois sabe que só vale a pena investir em relações que sejam melhores do que a sua solidão.

Não parece sensato?

O medo da solidão é o catalisador das pequenas besteiras que fazemos diariamente e de algumas enormes que reincidimos sem nem perceber. A solidão é vista como uma tragédia - é considerada pior do que estar com alguém que nos chateia e de quem não nos orgulhamos. Aturar passou a ser um verbo romântico.

Precisa tanto drama? Certamente há outras vidas espetaculares por aí, com quem vale a pena interagir e somar nossas solidões, sem eliminá-las. Sou partidária do 1 + 1, duas solidões se divertindo juntas. Pena que poucos avalizem essa matemática. A fórmula do sucesso ainda é o 2 em 1, uma solidão tentando destruir a outra, e ai de quem pedir 10 minutos para si mesmo. Nada de ficar quietinho ali.

"Muita vida te aguarda/muita vida te procura." Versos do português Joaquim Pessoa, descoberta literária recente e bem-vinda. É isso. Acredito que a vida pode ser ainda mais espetacular caso haja o encontro verdadeiro de duas almas com afinidades suficientes, sem produzirem dependência e sem almejarem um êxtase de contos de fada. 

Acredito em se deixar encantar por alguém que não tenha a pretensão de substituir a boa companhia que sempre fizemos para nós mesmos. Pés contra pés embaixo das cobertas, mãos dadas no cinema, olho no olho. Lindamente, um amor que não rouba tua alma, não impede tua quietude, não embaça tua verdade, apenas torna tudo melhor do que já é.

MARTHA MEDEIROS



07 DE ABRIL DE 2018
PIANGERS

Trabalho inglório


Que trabalho inglório ser pai. Tenho certeza de que, todos os pais que leem isso, concordam que foi a melhor coisa que nos aconteceu. Nos deu significado, alegrias, memórias maravilhosas. Mas que trabalho inglório! Vocês hão de concordar!

A começar com o bebê. Apenas chora e suga e produz xixi e cocô. Apenas devolve todo o leite mamado na sua roupa. Você vira noites, troca fraldas, atende a todos os gritos, corre para dar conta de tudo, e o bebê nem pra aprender a falar "obrigado". Uma amiga, depois de dar de mamar por dias sem nenhuma recompensa, percebeu que o neném ensaiava um sorrisinho. "O primeiro sorriso dele!", pensou. Para descobrir, segundos depois, que era apenas mais um cocozão saindo na fralda.

Depois vem a infância. Você vai a restaurantes apenas para ver sua comida esfriando enquanto a criança corre pelo ambiente aterrorizando garçons. Passam os dias e nada parece estar bom. O infante não valoriza nada: sua comida está ruim, sua roupa pinica, o local está chato, papai e mamãe só querem dormir! Acordem! Já é seis da manhã!

Mas, calma, que piora. Virá a adolescência e o desprezo completo. A falta de mão dada, o nojo de abraço, o desdenhar dos carinhos. O constrangimento em ser visto ao lado dos pais em público, a vergonha de todo e qualquer comentário dos pais, que, de um dia pro outro, viraram antigos e patéticos. E nem um obrigado recebemos por tudo o que fizemos.

E tudo é estudo e amigos e namoradas, e, quando você vê, o bebê vai morar sozinho ou fazer intercâmbio, ou casar. "Mas você é muito novo!", diremos para nossos filhos de 40 anos. Eles não telefonarão nem aos domingos, estarão na Europa durante as datas comemorativas, receberemos vídeos mal filmados no WhatsApp.

E, então, vêm os netos. E os filhos voltam a aparecer. E querem que a gente cuide dos pequenos para que possam resolver coisas do trabalho ou ir ao cinema. E cuidaremos felizes daquelas crianças ingratas, mas fantasticamente fofas. E nossos filhos virão pegar seus próprios filhos com pressa, as crianças gritando, aquela confusão que preencherá a vida. E, já indo embora e acenando, sem nem olhar pra gente direito, nossos filhos gritarão de longe: "Obrigado pela força!".

E pensaremos: "Não foi nada".

PIANGERS


07 DE ABRIL DE 2018
CLÁUDIA LAITANO

porto alegre dá as horas


T odos os dias, a caminho do trabalho, cruzo por um dos muitos relógios parados de Porto Alegre. Todos os dias, diante dos escombros melancólicos de um ginásio semidestruído, volto o olhar para o esqueleto desse relógio na expectativa de um milagre: que uma entidade mágica (ou burocrática, ambas igualmente invisíveis e de humores imponderáveis) tenha ordenado durante a madrugada que todos os relógios de Porto Alegre deveriam voltar a marchar, lenta e diligentemente, rumo aos minutos seguintes agora e para sempre.

Todos os dias, na Silva Só com a Ipiranga, olhando aquela sucata de utilidade pública fincada em seu canteirinho tristonho, lembro de uma das muitas superstições da minha mãe, uma mulher que não largaria a bolsa no chão nem em caso de assalto: espelho quebrado e relógio parado, azar dobrado. Não acredito em milagres, superstição em mim não cola, mas a inútil paisagem desses relógios parados é uma porteira aberta, se não para o azar, para o abatimento.

Vizinhos de rua, o ginásio-zumbi e o relógio-esqueleto formam uma espécie de cartão-postal do colapso estético - uma esquina fantasma assombrando o olhar de quem não consegue se acostumar com a aridez do cenário de todos os dias. Espalhados por toda a cidade, esses relógios sem beleza nem função marcam uma única hora: a do espanto. No que diz respeito à política oficial, essa que se arrasta por corredores pouco iluminados e cheios de obstáculos, são uma confissão em néon de fracasso - não o mais grave, mas o mais apropriado para efeitos de metáfora autoexplicativa de atraso e imobilidade.

Para nossa sorte, para cada máquina parada há milhares de humanos que nunca param. O pulso da cidade ainda pulsa, e isso graças à iniciativa de quem não fica esperando que alguém dê corda nas engrenagens que não funcionam. Coletivos de artistas, pequenas livrarias e editoras arriscando novos empreendimentos, festas de rua revitalizando locais públicos, músicos jovens e veteranos inventando novos projetos, grupos de teatro e dança criando sem parar, mesmo na precariedade, eventos e espaços culturais se reinventando.

Dois exemplos da Porto Alegre que não dorme no ponto: 1) Neste final de semana, a Virada Sustentável realiza mais de 200 atividades para debater o presente e o futuro das cidades. A programação inclui mais de 40 atrações de música, cinema, artes visuais, literatura, circo, teatro e dança. 2) Este é também o primeiro fim de semana de visitação da Bienal do Mercosul, que se estende até 3 de junho, com obras de cerca de 70 artistas em exibição no entorno da Praça da Alfândega.

Uma das obras que poderão ser visitadas na Bienal, aliás, é a instalação Standard Time, criada pelo artista alemão Mark Formanek. Para fazer esse "relógio humano" funcionar, uma equipe troca dígitos de quatro metros de altura a cada minuto, marcando a passagem do tempo com visível esforço físico. Ou seja: de quinta a domingo, até o final da Bienal do Mercosul, pelo menos um relógio público da cidade estará operando como deveria. Sirvam as façanhas da arte de modelo a nossa terra.

CLÁUDIA LAITANO

07 DE ABRIL DE 2018
CAPA

O CÂNCER DE DAVID

u Para tumores renais, que não figuram entre os mais comuns na população, as condutas possíveis dependem da extensão da doença. Se a lesão for isolada, comprometendo só o rim, a retirada parcial ou total do órgão pode bastar, ainda que exista o risco de a doença voltar no futuro. Na maior parte das vezes, o tumor renal é identificado quando ainda está restrito ao órgão. 

O caso de David, que teve o diagnóstico de um tumor no rim esquerdo, em estágio avançado, em 2013, é mais incomum - o jornalista já apresentava metástases ósseas em outras três partes do corpo (foi uma dor no peito que o levou a fazer exames), e o rim foi totalmente extirpado. Seu prognóstico, inicialmente, não era favorável. Em situações assim, mais graves, os médicos escolhem uma estratégia de tratamento para controlar a doença após a cirurgia.

Descobriu-se que David tinha um carcinoma renal de células claras, subtipo mais comum da doença, caracterizado por uma mutação no gene VHL, que seria um dos responsáveis pelo surgimento e pela evolução da enfermidade. Terapias para tentar bloquear a ação desse gene foram tentadas, mas não foram efetivas no caso do jornalista.

David passou por diversos tratamentos no Brasil, sem sucesso. As drogas faziam efeito por um determinado período, e depois a doença continuava a avançar.

Nos Estados Unidos, David conseguiu vaga em um estudo clínico inovador e promissor, que testava a aplicação de imunoterapia. O paciente que passa por um tratamento imunoterápico recebe uma droga que ativa o sistema imunológico para combater o câncer. Primeiro, ele recebeu a combinação de duas imunoterapias. Depois, uma só, como manutenção. A resposta de seu organismo foi excelente.

No momento, a doença de David é considerada sob controle. O caso é encarado como o de uma enfermidade crônica, que de tempos em tempos requer novas intervenções. Ele continua em acompanhamento médico e tomando medicação.


07 DE ABRIL DE 2018
J.J. CAMARGO

O CARÁTER E A REJEIÇÃO

Os leigos tendem a escolher hospitais pela publicidade que, para ser eficiente, tem de alcançar o sonho da imortalidade popular mais fantasioso. Lembro de uma senhora cujo pai, um grande empresário, descobriu-se com câncer, e as notícias médicas não eram nada animadoras. O apelo telefônico, e havia desespero na voz, era para saber se eu tinha algum médico conhecido no Hospital Sírio- Libanês porque, depois de uma reunião da família, os filhos haviam decidido que, sendo rico como era, o patriarca merecia um tratamento que alongasse ao máximo a sua vida gloriosa, uma coisa assim do tipo "José Alencar, para o papai!".

A história do bonachão, então vice-presidente da República, com inúmeras cirurgias e rápido retorno à vida normal, animara o imaginário daquela família de filhos amorosos e ingênuos. Abstraídos os casos de delírio infantil, pode-se dizer que existem, sim, parâmetros muito mais objetivos para selecionar instituições pela qualidade técnica do seu atendimento. 

Num cenário bem realista, provavelmente nada credencia mais um hospital do que a disponibilidade de múltiplos transplantes. E por uma razão muito simples: a qualificação técnica indispensável para se implantar um programa de transplante, além de extraordinariamente exigente, ainda tem a característica ímpar de não ser exclusiva. Ou seja, os avanços tecnológicos estarão disponíveis para todos os pacientes atuais e futuros daquele serviço, não apenas para a população transplantada.

Dirigindo o Centro de Transplantes da Santa Casa, erigido pelo esforço generoso de um grupo de empresários diferenciados pela insuperável noção de responsabilidade social, tenho acompanhado o imenso esforço administrativo para mantê-lo atuando em alto nível, preservando a dimensão dos sonhos embalados durante a sua concepção. E, então, algumas aberrações se tornaram aparentes: mais de 40% dos brasileiros têm plano de saúde privada e 95% de todos os transplantes são bancados pelo SUS.

E por que esse absurdo? Porque a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANSS), sabe-se lá por quais critérios, considera obrigatório que os planos de saúde paguem apenas os transplantes de rim, córnea e medula. Ou seja, se você pagou o seu plano de saúde durante a vida toda e não teve chance de escolher qual órgão pifaria lá pelas tantas, reze para que a necessidade não inclua transplante de coração, fígado, pâncreas ou pulmão. Porque, nesses casos, o seu transplante onerará o já combalido sistema público de saúde. 

Curiosamente, os gestores da saúde enchem a boca para falar do maior programa de transplante em saúde pública do mundo, ignorando que, em nenhum lugar do planeta, o Estado assume responsabilidades contratadas pela iniciativa privada. O modelo vigente aqui, além de restringir o número de centros interessados, é uma enorme injustiça com o paciente que pagou o seu plano com regularidade, com os raros hospitais que ainda investem em alta complexidade e são sacrificados pela remuneração insuficiente do SUS, e com o próprio SUS que, se não fosse essa insanidade da ANSS, teria mais recursos para tratar dos pacientes que dependem exclusivamente dele.

Agredidos pelo absurdo, alguns doentes pressionam judicialmente seus convênios a assumir o custeio do transplante, mas para isso tem que haver a iniciativa do paciente, o que é sempre desgastante. Aliás, nessa circunstância, há uma impressionante diversidade de atitudes. Dois exemplos opostos: um homem que batalhou no limite das suas forças para ser atendido e, arfante de enfisema e orgulho, trouxe a liminar definitiva. 

E uma profissional liberal que, enquanto com falta de ar, prometeu que, bem relacionada como era, certamente conseguiria que o plano assumisse o encargo e que, quando chamada para o transplante, anunciou que desistira do preito porque se dera conta de que "ela era uma brasileira". Ninguém questionou o que isso significava, mas não pareceu uma coisa boa. Sorte dela que caráter não interfere no índice de rejeição do órgão.

jjcamargo.vida@gmail.com - J.J. CAMARGO