segunda-feira, 27 de agosto de 2018


J.J. CAMARGO

DE MÃOS ESTENDIDAS

Passada a perplexidade de descobrir-se doente, a reação diante da nova realidade, sempre angustiante, é completamente individual. Como cada paciente tem a sua maneira própria de sofrer, é natural que cada um, do seu jeito e com suas reservas emocionais, encontre uma fórmula que o mantenha apto à sobrevivência mais digna que consiga.

Alguns, tidos como rochedos de coragem e galhardia, desmoronam contra todos os prognósticos e, sem ter noção do dano que se impõem, liberam as pontes que introduzirão os fantasmas do medo, ao que devia ser o castelo inexpugnável da resistência imunológica. Aliás, quando se defende o valor da espiritualidade no enfrentamento da doença, cientificamente não se está falando do papel terapêutico da fé, mas do efeito dela na preservação da tal resistência imunológica. Não por acaso, na depressão de qualquer origem, é comum o surgimento de infecções virais que expressam debacle imunológica. A frequência com que viroses como herpes, por exemplo, acometem indivíduos em situação de luto, perda de emprego ou traição afetiva é uma prova inequívoca disso.

Outros, com uma força invejável, assumem o comando com disciplina de gestor e, habituados à administração de crises, tomam para si a responsabilidade de gerir a própria vida como a sua empresa mais valiosa, e em nenhum momento deixam transparecer ansiedade ou temor, ainda que, humanos que são, estejam morrendo disso. Conhecendo-os melhor, descobriremos que não importa o tamanho do medo, ele será reprimido simplesmente porque ninguém tem nada com isso.

Sempre gostei muito do Cezar Busatto, ele era especial, e que grande cara! Tempos atrás, o recebi no consultório e fiquei surpreso porque, ao lhe perguntar no que poderia ajudá-lo, ele anunciou: "Há uma semana, descobri que tenho um câncer de próstata." Antes que lhe dissesse da minha surpresa, ele completou: "Sei que esta não é a sua área oncológica e já consultei um urologista que me deixou muito tranquilo em relação ao tratamento. Marquei esta consulta porque gosto do seu jeito de ser médico e queria que me estendesse a mão, porque estou precisando muito de alguém com quem eu possa falar sobre estar doente!".

As perguntas que se seguiram eram o reflexo de muitas noites de vigília insone e silenciosa: "O quanto é justo compartilhar a angústia com a família? Guardar uma dor em segredo é desconsiderar os amigos? Do que as pessoas precisam como suporte para enfrentar uma doença que pode ser fatal? Quanto tempo um portador de câncer que foi operado precisa para saber que se curou ou não? É possível, um dia, parar de pensar nisso e tocar a vida como antes?".

Conversamos durante quase duas horas. De vez em quando, ele limpava e recolocava os óculos, como se precisasse ver melhor as respostas.

Na saída, ele parecia mais leve e anunciou que iria proximamente convidar a mim e ao Nélio Tombini, um querido de ambos, para um jantar que devia significar o desdobramento daquela conversa.

Não tenho certeza do quanto, de fato, o ajudei, mas reconheço que aprendi muito naquela interação com uma cabeça inteligente e extremamente sensível, capaz de se abrir ao debate das necessidades essenciais do ser humano no seu limite: a luta pela sobrevivência. E com que dignidade.

J.J. CAMARGO


INFORME ESPECIAL
TULIO MILMAN

O outro lado de tudo

Desde que me lembro, e lembro de coisas muito remotas, me despertava curiosidade e fascinação o outro lado das coisas. Por exemplo, o que havia atrás daquela porta sempre trancada, onde minha mãe guardava coisas tão triviais como vassouras, espanador, panos de limpeza e, eu acho, um aspirador de pó, só aberta na hora de arrumar a casa? Por que eu não podia abrir, me esconder naquele quase-quartinho minúsculo, onde aumentava minha curiosidade uma série de degraus de ferro presos na parede de fundo, por onde se subia sabe Deus para onde?

Subia-se para o sótão, diziam, que nós, crianças, chamávamos "sótio", e que para inveja minha só havia na casa das outras crianças. Lugar de tesouros, medos, encantamentos, como tudo o que "não era pra criança". Ali, na nossa, havia um vão assustador entre telhado e teto, me segredou alguém: lugar de morcegos e gambás, que eventualmente faziam barulho de noite, como de pessoas se arrastando. Eu, sempre medrosa, puxava os lençóis e cobertas sobre a cabeça - coisa que faço até hoje. Que espantalhos afugento inconscientemente, a esta altura de uma longa vida?

Outro lado de uma porta também me fascinava: portinha muito baixa, meu pai tinha de se curvar um pouco para passar. Levava ao porão e se abria com uma chave grande, velhíssima, de ferro preto, pendurada na cozinha, muito alto, para que pequenos não pudessem pegar.

Por quê? Isso sempre me atormentou: o proibido e inexplicado. No porão em si, havia velhas coisas com cheiro de velhas coisas, algumas ferramentas, cadeiras meio desconjuntadas, grandes tachos de cobre com que minha avó preparava geleias indizíveis no fundo do pátio.

E ali estava o mistério maior de todos: outra porta, menor ainda, portinha. Ali só consegui entrar poucas vezes, porque insisti demais e meu pai perdeu a paciência, ou porque me comportei tanto, que ele teve paciência. Era absolutamente apavorante: um porãozinho dentro do porão, muito pequeno, talvez adega, palavra que eu desconhecia. Prateleiras com muitas garrafas empoeiradas, vinhos que meu pai apreciava, me disse a mãe, e eu não podia nem tocar. Mas havia muito mais: um bercinho de madeira com ar de velhice irremediável, caixas de papelão contendo sabe-se lá que sustos. Restos de duas bonecas feito bebês decapitados, as cabecinhas ao lado. E num canto, meio escondido atrás de uns panos enormes e puídos, cortinas ou lençóis de um tempo perdido, a coisa mais preciosa: um cavalinho de madeira, cores empalidecidas, faltando uma orelha. Suas patas ficavam sobre apoios de cadeira de balanço. Que criança teria se embalado ali, aquela que ninguém queria mencionar se eu indagasse, mas viravam o rosto mudando de assunto?

Em todos os romances que escrevi depois de adulta, há sótãos e porões, guardando aquilo que o rio da vida esqueceu - ele que leva quase tudo, o ruim e o bom, os amores e as dores, nós, náufragos ou sobreviventes sem muita glória.

Tudo carregado de roldão para um outro lado que intuímos mal, tememos quase sempre, nutrimos como ilusão, ou com este ardente desejo de que seja eterno, que continue real, vivo, e presente, como foi em vida, do lado de cá.
TULIO MILMAN


27 DE AGOSTO DE 2018
DAVID COIMBRA

A nossa extinção

Tenho cá uma biografia de Beethoven escrita por Emil Ludwig em 1945, traduzida por Vinicius de Moraes. Devido a sua antiguidade, o livro está com as páginas coladas. Venho tentando abrir com uma régua e até com uma espátula, mas volta e meio mutilo uma página. O que é que faço? Ajude-me, sábio leitor.

A propósito, Beethoven. Talvez sua composição mais popular seja Sonata ao Luar, belíssima, tema de filmes, executada no mundo inteiro. Mas ele não lhe dava tanta importância. Não que a desdenhasse, apenas dizia que havia feito coisa melhor.

Suspeito que Beethoven menoscabasse sua sonata imortal exatamente por ela ser popular. Porque, de fato, o que é do gosto da massa em geral é de baixa qualidade. É muito difícil alguém produzir uma obra ao mesmo tempo simples e direta, como exige o homem do povo, e profunda e bela, como exige a posteridade.

A Sonata ao Luar se inscreve nessa categoria. Beatles também. Na música brasileira, Tom Jobim e Pixinguinha. Literatura? O Tempo e o Vento, de Erico. Grande parte de Jorge Amado. Machado de Assis. As crônicas de Rubem Braga.

Há um autor que me deixa em dúvida, quando faço essa reflexão: Paulo Coelho. Li dois livros dele, O Alquimista e Diário de um Mago. Um é ótimo, não lembro qual. Seria o suficiente para classificá-lo como Grande Arte. Só não classifico exatamente porque não recordo qual dos dois é o bom. Pois, afinal, um livro inesquecível não pode ser esquecido.

Aliás, acerca desse tema, vem-me agora à memória o caso de um amigo meu que ficou absoluta e fatalmente enfeitiçado pela beleza de uma morena clara que conheceu, certa feita. Eles haviam se encontrado casualmente um dia. Então, para sua sorte, reencontraram-se, também casualmente, uma semana depois. Aí, para seu azar, ele errou o nome dela. Ela fechou a cara, cortou a conversa e foi-se embora. Mais tarde, lamentando-se com uma amiga comum, meu amigo ouviu a corruptela da frase que escrevi acima:

- Você não pode esquecer uma mulher que se julga inesquecível.

Suprema verdade.

Feita essa digressão, voltemos ao assunto da crônica. A superficialidade da popularidade. Marx dizia que a quantidade gera qualidade. Foi outro dos erros do velho. A quantidade, quase sempre, abrutalha. Nós mesmos, eu e você, eu que escrevo, você que lê, nós mesmos estamos em processo de extinção. Nós somos tigres-de-dentes-de-sabre, valorosos, mas impotentes frente à mudança dos dias. Logo, a voracidade da internet acabará conosco. Sobrará tão somente o texto breve e raso sobre o jogo, sobre a atriz, sobre o político populista.

Eis o drama da democracia: você tem de se submeter às escolhas da maioria. Por isso, não espere muito desta eleição. Nem de outras, sejam quais forem. O futuro não é de Beethoven. O futuro é de Wesley Safadão.

DAVID COIMBRA



27 DE AGOSTO DE 2018
EDUCAÇÃO

Com criatividade e suspense, professora estimula a leitura

FINALISTA DO PRÊMIO RBS DE EDUCAÇÃO, educadora transmite aos alunos o amor pelos livros

Luzes apagadas, cortinas fechadas, turma reunida em um círculo em torno de um baú onde se lê o conto Histórias de Assombração. É assim que a professora Cíntia Nunes, 34 anos, titular do 4° ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor Anísio Teixeira, no bairro Hípica, na Capital, inicia a atividade de leitura com a sua turma. O clima combina com a história que será lida pela mestra: um dos nove contos do livro Contos de Morte Morrida, de Ernani Ssó.

Nos olhos dos alunos, que têm, em média, nove anos, nenhum sinal de medo diante da narrativa sobre um pescador que faz uma amizade um pouco suspeita com a morte. Todos prestam atenção e mostram interesse após a leitura, na hora do debate.

A atividade, que ainda inclui leitura individual e escrita de textos, é similar às do projeto Histórias de Arrepiar Para Criar, que foi um dos finalistas do Prêmio RBS de Educação em 2015, desenvolvido também em uma turma do 4° ano.

- Montei o projeto após fazer o curso de mediação de leitura do Prêmio. Os alunos já adoravam ir à biblioteca. Escolhi obras de suspense por ser um tema pelo qual eles se interessam - conta Cíntia.

Naquele ano, por sugestão dos alunos da turma, o projeto incluiu a produção de um telejornal. Por votação, Matheo Braga Menezes, hoje com 13 anos, foi o âncora.

- No vídeo, fui um jornalista. Antes, já gostava de ler. Agora, gosto ainda mais - conta o hoje aluno do 7° ano da mesma escola.

A atividade acabou por aumentar o interesse pela leitura, como destaca Lorenzzo Correa Alves, outro aluno da turma:

- Hoje, eu gosto mais de aventura. Venho bastante (na biblioteca).

TEXTOS PRODUZIDOS EM AULA VIRARAM LIVRO

Na fase seguinte, Cíntia propôs que os estudantes escrevessem seus próprios contos de suspense. O resultado foi tão bom que as obras viraram um livro, com direito a sessão de autógrafos.

- Eu criei uma história com bruxas. Foi legal fazer o livro. Adoro ler! Faço parte do Clube do Gibi da escola e até escrevo algumas coisas em casa - diz Samantha Bacelar Schawarts, 12 anos.

Para a professora, o reconhecimento é um incentivo a continuar:

- Para mim, como professora, é importante ver meus alunos se sentindo valorizados, ver que uma atividade faz sentido pra eles. E a indicação para o prêmio trouxe isso.

ELANA MAZON

27 DE AGOSTO DE 2018
INDICADORES - Daniel R. Randon

E aí, candidato?


Vice-presidente de Administração e Finanças da Randon S.A Implementos e Participações e Presidente do Conselho Diretor do PGQP

Considerando que a dívida total do Estado (incluindo os precatórios e depósitos judiciais) está na casa dos R$ 100 bilhões, o que o senhor pretende fazer no seu governo?

Esta é apenas uma das perguntas muito procedente, originada de um grupo de lideranças que querem, imediatamente, respostas pontuais para um problema grave. Trata-se de uma questão a ser respondida pelos candidatos ao governo do Rio Grande do Sul - e vale também para prefeituras e Presidência da República. De maneira séria e comprometida com os fatos, os candidatos precisam encontrar respaldo em ações efetivas para garantir uma real condição de implementação. Somente assim, o Rio Grande terá a chance de vislumbrar um futuro mais promissor para esta e as próximas gerações.

Sem ações de peso na ponta da redução de despesas, a dívida pública só tende a crescer, deixando ainda mais distante uma possível amortização do valor principal e dos juros. E com isso, o questionamento que nos assombra é: de que terá servido o acordo de recuperação fiscal com o governo federal, se o que se assiste é uma sucessão de déficits num Estado que sequer consegue manter em dia a folha de pagamento dos servidores?

Sem uma postura inovadora dos administradores públicos, não há luz no final deste túnel e tudo indica que é iminente a ingovernabilidade. O Estado há muito convive com o sistemático descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, que limita em 60% as despesas de pessoal e que já beira os 80%. Sem falar no déficit da previdência, que compromete em torno de 1/3 da Receita Corrente Líquida.

Enquanto as despesas continuarem crescendo mais do que as receitas, onde as atribuições dos governos são cada vez mais crescentes e tornam-se "direitos" garantidos por constituições, e como num repetido e desgastado filme, os cidadãos serão submetidos à saída paliativa e mais cômoda aos gestores: poucas mudanças no modelo atual do executivo, legislativo, judiciário e outras corporações e o habitual aumento de impostos. Reforço a frase célebre da Margaret Thatcher "o socialismo dura até acabar o dinheiro dos outros".

E aí, candidatos?

Daniel R. Randon escreve às segundas-feiras, mensalmente.

domingo, 26 de agosto de 2018



25 DE AGOSTO DE 2018
LEANDRO KARNAL

O rio da minha aldeia


Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

Fernando Pessoa expressou uma identidade local poética. O rio da sua aldeia não era o Tejo, porém era o anônimo e pequeno curso dágua que ele conhecia e amava. Como diz com a voz de Alberto Caeiro: O rio da minha aldeia não faz pensar em nada, quem está ao pé dele está só ao pé dele.

É quase um "cacoete" regional. Sim, o Estado mais rico é importante, sim, a metrópole tem mais luzes do que o centro urbano do meu vale, porém... não são minha aldeia ou meu local de identidade.

Nasci e cresci no Rio Grande do Sul. A identidade gaúcha é forte e fornece amplo material de humor para muitos brasileiros mais ao norte. Eu diria até que meu Estado natal tem hipertrofia de identidade. Muitas unidades da Federação têm uma identidade em torno das suas virtudes reais ou imaginadas. Há orgulho imenso em ser mineiro, pernambucano, paulista, baiano ou paraense. As piadas criam tipos ideais a partir das idiossincrasias regionais: "Um gaúcho encontra um mineiro na estrada e...". Parece haver menos anedotas sobre o povo do Amapá ou de Rondônia

Na infância, eu pensava coisas como: "Nossa, como os cearenses têm sotaque", incapaz de perceber o meu. Há dados mais curiosos. O tomate é uma fruta domesticada no México. Desde criança, aprendi o que me parecia óbvio: o tomate grande (tipo caqui) é conhecido no Rio Grande do Sul como "tomate gaúcho". Surgiu no pampa? Foi criado no Rio Jacuí? Não, mas é gaúcho. O pequeno (tipo italiano) é comprado nos supermercados meridionais como "tomate paulista". Chamar o pão pequeno de "cacetinho", o doce pastoso para passar no pão de "schimmier", "pardal" para radares na estrada e identificar uma colisão de carros como "pechada" era, para mim, o mais normal e tradicional dado da natureza. Voltamos à hipertrofia da identidade. Funciona como o brasileiro que estranha que um português chame a fruta caqui de dióspiro e se pergunta o motivo de usarem palavra tão estranha. Aliás, como os gaúchos sabem e os paulistas não imaginam, no Rio Grande o caqui é comprado como cáqui e o kiwi (pronunciado em todo o país como "quiuí" oxítono) é, nos pagos do Sul, "quívi", paroxítono e com um V bem sonoro.

Veja, querida leitora e estimado leitor: não se trata de identificar apenas o regionalismo - come-se aipim em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, mandioca em grande parte do Sul e do Sudeste e macaxeira em quase todo o Nordeste. Não temos apenas a constatação de que a mandioquinha vire batata-baroa ou batata-salsa a depender da região. A hipertrofia da identidade ocorre quando você acha errado ou estranho que o outro tenha um nome "incorreto" para algo que você conheça de outra forma.

A identidade regional é, muitas vezes, positiva. Em um mundo cada vez mais globalizado e uniforme, é motivo de um lucrativo turismo a presença da diferença como fator atrativo. Ter orgulho da sua terra é importante para que não se vire um macaco de grandes centros ou imite modas externas apenas por conferir maior valor ao que é, simplesmente, de fora. As diferenças, dentro dos limites da lei e da ética, são saudáveis e estimulam o pensamento, impedindo que eu funda meu ser ao universal ou que, dizendo de forma mais técnica, combine o significado com o significante. Uma rosa continua sendo uma rosa, mesmo que tivesse outro nome, pondera a sábia Julieta na peça de Shakespeare. Um sinal, semáforo ou sinaleira continua sendo uma peça com eletricidade e três cores para fins de organização do fluxo no trânsito.

A riqueza da língua é parte da história e sua variedade local precisa ser mantida. Reconheço os regionalismos brasileiros por viajar muito, inclusive seus desvios da norma culta. Sei que cheguei a um lugar específico quando se usa o tu sem concordar com o verbo. O mesmo ocorre quando encontro expressões da laia de "com nós" ou "a janta está servida": são bússolas que indicam em qual local aterrissei. Apenas o "mim fazer" é fator de união nacional. O mim fulgura soberano, sem preferência específica por uma capital. Língua também é identidade.

A identidade regional é faca de dois gumes afiados. Positiva, como já identifiquei, atrai turistas e marca uma fronteira para que eu seja mais autêntico e não um papagaio do que imagino ser o correto dos grandes centros. Negativa, ela protege preconceitos graves, inventa glórias e importâncias inexistentes e pode até oprimir terceiros. Identidade une e pode conter ódios para serem projetados na diferença.

Curiosamente, foi um gaúcho de São Borja que proibiu o orgulho de identidades locais e eliminou bandeiras estaduais, hinos e até impostos regionais. Getúlio Vargas queria enfatizar o nacional e a unidade durante a ditadura do Estado Novo. Afastado o ditador, voltaram a florescer a celebração de datas locais, sendo todas derrotas diante do nacional. Assim, celebramos Guerra dos Farrapos no Sul, o Movimento Paulista de 1932, a Cabanagem no Pará ou a Balaiada no Maranhão. Todos eram separatismos que foram sufocados pelo poder central. A linda bandeira de Pernambuco remete a uma sedição esmagada e vencida pelo Império. Todos celebramos a independência da parte que não continuou.

O rio da minha aldeia é tributário do Tejo, dissolve-se nele e tem destino óbvio dos regatos: perder-se nos grandes caudais. O equilíbrio pode estar aí: perceber o caráter único do meu rio e não supor que ele mova o mundo todo ou seja o ponto mais importante da grande bacia hidrográfica universal. Tudo flui, como desejava o bom Heráclito. O que fica parado apodrece, seja o Guaíba, o Amazonas ou o Tietê. O rio da minha aldeia é sempre lindo, basta eu entender o possessivo "minha" sem confundir a parte e o todo. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL

25 DE AGOSTO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Amazônia parte 2: meu Deus do céu

Aconteceu no Rio de Janeiro. Meu namorado e eu chamamos um táxi na rua. A corrida deu R$ 36. Na hora de pagarmos, o motorista nos surpreendeu: ele disse que havia alcançado uma graça e, em retribuição, não estava cobrando de nenhum passageiro naquele dia.

Eis uma promessa razoável. Por que fazer sacrifícios, como subir uma escadaria de joelhos? Antes, prometer visitar internos em um hospital, fazer as pazes com um parente, trabalhar para os outros sem cobrar. Há muitas maneiras de ser grato, de devolver as gentilezas do destino, de "pagar" de forma positiva, e não dramática.

Tive formação católica, mas, ao entrar na adolescência, passei a questionar conceitos como pecado, culpa e vida eterna, essa subjugação que mais me afastava do que aproximava do sublime. Acredito que não precisamos de religião para sermos pessoas boas, justas, amorosas e solidárias - ateus podem ser tudo isso também. Religião atende, basicamente, a uma necessidade de conforto, de busca por um sentido diante da finitude da vida. Legítimo, mas há outras maneiras de preencher vazios existenciais: através do amor, através da arte, através de atitudes mundanas. Coisas que também despertam a fé e a humildade sem precisar recorrer ao sobrenatural.

No entanto, continuo em busca do sublime.

Estava com um pequeno grupo viajando de barco pelo Rio Negro, na Amazônia. Depois do jantar, saímos em dois barcos menores para fazer a focagem de jacarés acompanhados de um guia local, o brilhante Samuel, que deveria estar dando palestras na ONU sobre consciência ambiental, mas isso é outro assunto. 

Navegávamos pela noite escura, até que um dos barcos sofreu pane no motor. Ok, o outro barco poderia rebocá-lo, mas aquela súbita pausa de um motor inspirou o desligamento voluntário do outro. Por um tempo, mantivemos ambos os barcos à deriva. Não se enxergava nada, apenas a sombra distante da floresta. Um sapo coaxava ao longe. Ficamos todos quietos como quem reza. Então, olhamos para cima e lá estava ele: meu Deus do céu.

Fui menina de cidade, não tive o privilégio do céu do campo. Minha primeira experiência de encantamento sideral se deu no Planetário de Porto Alegre, aos 12 anos. Décadas depois, contemplei noites belas no deserto do Saara e no do Atacama, mas o que vimos no céu amazônico foi único. A incrível quantidade de estrelas cadentes, seu reflexo na imensidão da água escura, a profundidade do silêncio, o compartilhamento do indizível: a galáxia estampada por milhões de pontinhos luminosos em uma noite quente em que não se sabia se era terça, se era quinta, se era sábado e que hora marcavam os relógios que ninguém usava - o tempo não existe na floresta, só a eternidade.

Ali confirmei que a natureza é minha igreja e que Todo Poderoso, mesmo, é este universo deslumbrante que também preenche a vida de sentido.

MARTHA MEDEIROS


25 DE AGOSTO DE 2018
CARPINEJAR

Vodu dos documentos


Em todas as vezes em que eu fui tirar a foto para um documento, o mundo desabou, o carro estragou, passei a noite em claro.

É uma sina. No passaporte, a minha cara é de traficante. Na identidade, a minha lata é de terrorista. Nunca dou sorte. Ainda mais agora que não há mais como levar fotinho 3x4 e encomendar um layout mais simpático. As fotografias são feitas nas repartições na hora e baixadas imediatamente sem compaixão e repescagem.

Perdemos o romantismo do banquinho e do fundo branco dos estúdios. Minhas melhores fotinhos são da infância, quando os pais me levavam, todo arrumado, para os cliques do lambe-lambe da avenida Protásio Alves.

Mobilizei esforços para caprichar na carteira de motorista. Mas, para variar, a escrita torta do destino usou novamente o seu garrancho comigo. Não dormi preso no banheiro, com dores de barriga, depois de um churrasco exagerado de madrugada com amigos do futebol. Juro que a minha feição é de febre amarela, cadavérica, olhos sugados pelas olheiras, pele de iogurte vencido. É retrato adequado para aposentadoria por invalidez na Previdência, não para mostrar que sou capaz ao volante. Talvez, numa blitz, os guardas tenham pena de mim e chamem o Samu.

Serão cinco anos tendo que lidar com essa imagem fúnebre e hospitalar. O triste de renovar documentos é que eles duram muito tempo e não existe como intervir com filtros e Photoshop.

Pode reparar, na identidade, ninguém é bonito como no Instagram.

Acabei por produzir provas contra mim.

Quando estava cadastrando as minhas digitais e posto no paredão da câmera, na cabine ao meu lado uma mulher pediu para ver como ficou a sua foto. Nem esperou o atendente responder, virou o monitor do computador para si e gritou:

- Nunca será! Estou uma bruxa. Só ex vai gostar disso.

Pegou a sua bolsa e explicou para o funcionário:

- Vou para a casa me maquiar e já volto.

E saiu para colorir o livro dos seus traços. Pena que não partilhei da mesma coragem.

CARPINEJAR

25 DE AGOSTO DE 2018
PIANGERS

São todos nossos filhos


Não tenho problema algum com comentários maldosos, acho-os divertidos, consigo ver a graça na perversidade, desde que inofensiva. Imagino como é prazeroso, para uma pessoa sem filhos, comentar sobre o filho dos outros. "Aquele é uma pestinha!", dizem alguns. "Sabe uma creche boa para aquele ali? A prisão!", já ouvi de uma amiga. Acho graça, quero crer que é brincadeira. Malvadezas colocam pra fora esses nossos demônios. Todos os temos.

Me incomoda, apenas quando, de tanto nos permitirmos falar barbaridades, acabamos nos tornando bárbaros. Cuidado com o que finge ser, pois você é aquilo que finge ser, disse o escritor. Nossas brincadeiras a respeito das crianças, de vez em quando, escorregam pra realidade. Gritamos com crianças, arrancamos-lhes coisas das mãos, damos castigos, batemos nelas. Reclamamos de crianças em viagens de avião, odiamos pequenos nos restaurantes, criamos ambientes onde é proibida a presença de menores. Odiamos, assim, nós mesmos. Fomos todos crianças um dia, talvez piores do que estas.

Em primeiro lugar, crianças são o reflexo dos pais. Crianças mal-educadas são sempre uma derivação quase impecável do comportamento adulto. São muitos os lugares onde é proibido entrar crianças, cheios de adultos se comportando mal. Hotéis e restaurantes onde você vai pra se ver longe dos filhos, cheios de adultos inconvenientes, bebendo e falando alto.

Segundo, crianças mal-educadas são a minoria. A maioria das crianças é dócil, amável, está em processo de aprendizado. Choram quando estão desconfortáveis, derramam líquidos tentando equilibrá-los. São filhos de todos nós. Estamos juntos nessa: é responsabilidade de todos criá-los. "Problema é da mãe", já ouvi. Maldade. O problema é de todos nós. Crianças serão a sociedade que queremos no futuro. Cuidarão (ou não) de nós quando formos velhos. Formá-las educadas, amáveis e justas é cuidar de todos nós.

Ajudar uma mãe no aeroporto, ao invés de julgá-la. Respeitar um pai que precisa faltar ao trabalho pra ficar com o filho, ao invés de diminuí-lo. Conversar com crianças com gentileza quando não se comportam. Ajudar a cuidar de todas as crianças que aparecem na nossa frente, sem achar que é obrigação apenas da mãe ou da escola. É um exercício diário de ir contra nosso instinto malvado. De cuidar de todos como se fôssemos um. Somos todos pais da próxima geração.

PIANGERS

25 DE AGOSTO DE 2018
ANA CARDOSO

Tadinho do homem sem uma mulher

Ainda tem gente que tem pena de homem que se separa e não se casa de novo.

"Tadinho, tem que se virar", ouvi da avó de uma colega da Anita, se referindo ao seu nenê de 43 anos. Imaginei o pobre homem cozinhando feijão, estendendo as cuecas no varal, fazendo a lista de compras. Correu uma lágrima. Mentira.

Eu fiquei quieta. Estou assim agora, não quero problematizar e brigar com todo mundo.

As meninas estudam. Vão para a escola, se esforçam, engolem diversos sapos e muitas de nós conseguem empregos mesmo quando estamos em idade reprodutiva. Por motivo de: competência.

Mas grande parte dos homens e boa parte das mulheres ainda acha que nosso real valor está em cuidar de um homem, de uma casa, dos filhos. Como se nosso cérebro não compreendesse algoritmos ou raciocínios lógicos e só fôssemos boas em trabalhos braçais, servis e não remunerados.

É sério isso?

Então, para tudo. Tira a menina da escola e bota no curso de boas maneiras. Esquece a gramática e as regras de física e foca no abdominal e na hidratação capilar. Que se lixem as equações, o que importa é manjar das dietas.

Outro dia, minha mãe falou: "Vou ensinar tuas filhas a cuidarem da casa. Não te ensinei e olha só no que deu". Abracei-a e disse: "Mãe, você acertou tanto comigo que não vou nem discutir. Mas, por favor, deixe as meninas se ocuparem dos estudos e de suas brincadeiras".

Vão aprender a cuidar de suas casas quando saírem de casa. Se casarem, vão construir seu próprio método a quatro mãos. Como tem que ser. E, se casarem com algum homem que não divide os serviços não remunerados com elas, prometo não ter pena dos "coitadinhos" em caso de separação.

ANA CARDOSO

25 DE AGOSTO DE 2018
DAVID COIMBRA

O Melhor Bar da História de Porto Alegre

Qual o melhor bar da história de Porto Alegre?

Tenho discutido essa candente questão com os amigos. Estou pensando até em organizar uma eleição. Claro, muitos dos critérios de análise serão pessoais e de natureza afetiva. Mas as escolhas são sempre assim, não é mesmo? Porém, ah, porém, tento ser justo. Provarei o quanto, apresentando outros de meus campeões, em outros setores da vida. Por exemplo, na música:

Melhor intérprete do Brasil - Roberto Carlos.

Melhor voz masculina - Tim Maia.

Melhor voz feminina - Elis Regina.

Melhor letrista - Chico Buarque, empatado com Noel Rosa.

Melhor poeta - Belchior empatado com Caetano Veloso.

Melhor sambista - Paulinho da Viola.

Melhor músico, o melhor de todos, o campeão dos campeões - Tom Jobim.

Você pode não ter concordado comigo em alguns pontos, mas repare que houve reflexão na minha eleição. Coerência, entendeu? E assim procederei para escolher O Melhor Bar da História de Porto Alegre.

Um dos critérios pessoais que pesam na avaliação é: bares em que você se deu bem, emocionalmente falando. No meu caso, destacaria o velho Doctor Jekyll, que ficava ali no Largo da Epatur. A música era ótima, só clássicos do rock?n?roll, e lá eu demonstrava por que era chamado de "O John Travolta do IAPI".

Havia uma cabeça de onça empalhada pendurada numa das paredes. O Professor Juninho se posicionava bem debaixo daquela onça, sempre com uma garrafinha de cerveja na mão. Por algum motivo, as mulheres olhavam para a onça, depois olhavam para o Juninho, de novo para a onça e mais uma vez para o Juninho. Neste instante, ele investia. Rosnava, um onço:

- Grrrau!

Elas estremeciam.

Uma noite, eu mesmo estava parado debaixo da onça e chegou uma morena e me disse, sem nem se apresentar:

- Vamos sair daqui agora!

Saí.

Ah, o velho Doctor Jekyll está na minha lista.

Outro que já fechou, e por enquanto falarei só nos que já fecharam, outro era o Espaço IAB. Nós íamos lá todas as quintas-feiras, eu, meu irmão Régis, o Zini, o Ricardo Carle, o Cyro Martins, o Sérgio Lüdtke.

O Zini havia voltado recentemente de Londres, onde vivera por três anos. Naquela época, as pessoas não viajavam tanto como agora. Então, quando o Zini começava a conversar com alguma moça interessante, era sempre esse o engate do assunto. Ele comentava casualmente:

- No tempo em que vivi em Londres, não era assim?

Ela se admirava:

- Tu viveu em Londres???

Ele, modesto:

- Pois é?

Houve também a Calçada da Fama, que não era um bar, era um complexo de bares. No princípio, nada existia naquele lugar. Tudo era ermo e sombrio, quando não turvo. A Fernando Gomes não passava de uma rua pacata e arborizada, com algumas poucas casas do lado direito e as costas do Dmae do lado esquerdo. Então, o Dirceu Russi abriu o Jazz Café e o Ricardo Carle nos convocou:

- Vamos lá prestigiar o Dirceu e sorver alguns drinques?

Foi o que fizemos. E o Jazz começou a fazer bom sucesso e logo um novo bar, o Lilliput, resolveu abrir uma filial bem ao lado. O Dirceu se inquietou, pensou que teria de dividir seus clientes, mas foi o contrário: a saudável concorrência os multiplicou e, assim, outros bares vieram e outros e mais outros, até que, num 8 de janeiro de 1997, aniversário do Professor Juninho, protagonizamos a célebre Noite dos 600 Chopes.

Ainda estou estudando os bares que incluirei na minha lista. Aguardo contribuições. Por ora, citarei mais um, o desconhecido Bar do Chico, que ficava debaixo do Viaduto Obirici, ao lado da Barbearia Gre-Nal, onde cortávamos cabelo lendo antigas edições da revista Placar. Não havia nada de especial naquele bar, a não ser o mais importante: tratava-se da cerveja mais gelada da cidade. Vinha para a mesa branquinha de neve por fora, no ponto exato antes do congelamento.

Uma noite, estávamos no Bar do Chico e, numa mesa mais afastada, acomodou-se o Ronaldo, nosso amigo do IAPI. O Ronaldo sabia brigar. Ele era frio. Ele jamais se enervava. Apenas olhava para a cara do adversário, enquanto usava os punhos para transformá-la em um xis-bacon com ovo. Nessa noite, quatro sujeitos de uma mesa próxima começaram a discutir com ele.

- Nós somos da polícia! - avisou um.

A resposta do Ronaldo:

- Bem feito. Se tivessem estudado, seriam arquitetos.

Eles se levantaram para brigar. O Ronaldo se levantou. Eu e os outros nos levantamos e nos homiziamos atrás do balcão. Sabíamos o que aconteceria. Aconteceu: o Ronaldo transformou as caras deles em xis-bacon com ovo. E quebrou o bar todinho.

Quanta história nos grandes bares de Porto Alegre!
DAVID COIMBRA

25 DE AGOSTO DE 2018
MÁRIO CORSO

Um zoológico de amores

Tentando consolar a filha por uma perda, o pai sai com a frase: "Todo mundo morre, minha filha, homem, bicho, cavalo...".

Nem é preciso dizer que o autor da frase é um gaúcho, desses que levam o pampa gravado na alma. Dá para imaginá-lo mateando e bombeando o horizonte, enquanto filosofa sobre o inevitável.

A dica está na sua peculiar classificação: cavalo não entraria na categoria animal. Seria algo à parte, a terceira possibilidade da existência. Desvelando algo que não é só dele, mas de todo homem do campo. Afinal, o cavalo é a obra-prima da domesticação. Alia beleza à utilidade e força à fidelidade.

Das coisas que não vivi, me ressinto da falta de intimidade com cavalos. Andar ocasionalmente a cavalo não é o mesmo que ter um cavalo, ter feito uma jornada juntos; curtir o cansaço de horas de marcha, tendo apenas um ao outro por companhia.

Ao menos tive muitos e excelentes cães. Cada um com sua personalidade ímpar. Eram companheiros de aventuras, amigos para qualquer hora. Com sua energia impetuosa, o cachorro dá uma alma extra a qualquer casa.

Ter ou adotar não é um verbo correto para felinos. Convivi com inúmeros gatos de mentes esquivas e labirínticas. Eles são um exercício mental, nunca se deixam decifrar por completo. Passeiam pela casa como fantasmas benignos, arrastando uma elegância esculpida em pelos. São companheiros do sono, do silêncio, da mansidão, da preguiça ao sol.

Acho a maior tristeza uma infância sem animais. Mais do que o apelo lúdico, valem como experiência de alteridade. Descentram as crianças do eixo do humano, treinam sua empatia com outra espécie, as fazem decodificar uma mente estrangeira em todos os sentidos. São uma porta para entender a natureza e a nossa própria natureza, que vivemos a negar.

Mas tanta conversa só para dizer que não entendo o exclusivismo na paixão por animais: quem gosta apenas de uma espécie. Ou então, quem faz aquelas classificações tolas: gostar de cães versus gostar de gatos. Como se isso dissesse algo de alguém. A convivência com um animal é abertura para a diversidade, por que restringir-se a um tipo?

Nos afastamos da natureza no espírito e na prática. A magia do mistério da vida - e sua extraordinária pluralidade - já não faz parte do cotidiano. Estamos imersos no asfalto, vemos mais postes do que árvores. Os pets são a familiaridade possível com a vida animal, o que sobrou para alguém engaiolado no 10º andar.

Os pets são uma paixão controlada, uma natureza bonsai, mera amostra de um mundo abandonado. Mas é o que temos. Perdemos a floresta e criamos uma samambaia; longe da imensa fauna, nos contentamos com um poodle. Fazemos como as crianças, brincamos com mundos em miniatura. Elas, para treinarem para o futuro. Nós, para nos conectarmos com o passado.

MÁRIO CORSO

25 DE AGOSTO DE 2018
ARTIGO

A ADVERTÊNCIA

O ideal seria escrever apenas sobre o amor, a bondade e a solidariedade. Ou sobre alegres coisas profundas e, com elas, povoar a vida. Limitar-se a isto, porém, seria não ver o que está à frente.

A pouco mais de um mês das eleições para presidente, governador e parlamentares, aí está o fétido lodaçal com que a politicalha enxovalhou a disputa política sã. Votar não é apertar botões, como diz a propaganda eleitoral oficial, nem optar pelo "nulo" ou pelo "em branco", como protesto e desencanto. Votar é ato exponencial que incide sobre nossos passos e atos futuros.

Votar é saber discernir. Somos mais importantes do que o candidato, pois lhe damos o mandato. A politiquice, porém, fez da eleição uma feira de promessas ou bravatas ocas de supermachos e a desilusão nos deixa inertes. Em vez de exigir mudanças, nos conformamos com o choque das "pesquisas", em que (junto aos "nulos e brancos") aparecem à frente os dois candidatos presidenciais envolvidos com a Justiça.

Mais do que "pesquisa", porém, foi uma advertência. O dólar disparou e a bolsa baixou, antevendo o desastre futuro se Lula da Silva e Jair Bolsonaro continuarem na ponta. O horror leva a perguntar: Lula, já condenado, e Bolsonaro, réu em dois processos no Supremo Tribunal, podem pretender nos governar?

O ministro Marco Aurélio Mello, relator dos processos, já indagou: "Quem é réu pode ser candidato? E, se eleito, pode tomar posse? Ou estaríamos em total insegurança jurídica?".

Dias atrás, lembrei aqui que Lula e Bolsonaro são iguais no tom místico e autoritário, na habilidade de nunca revelar o que são ao se esconder mais ou ocultar-se menos. Preso, um está calado. Mas o outro, nos gestos e no que diz, não estará se mostrando um pequeno Hitler, fanatizado por rancor e ódio?

A advertência está no ar. Só falta ouvi-la.

Semanas atrás, ouvi advertências de outro tipo, duras mas generosas: "Não se constrói em cima de alicerces falsos", alertou o industrial Paulo Vellinho na homenagem que lhe prestou a Associação Comercial de Porto Alegre pelo pioneirismo no ramo da refrigeração e televisores nos anos 1950 no Brasil.

"Devemos acreditar nas pessoas e na solidariedade", acentuou do alto de seus quase 91 anos. Criticou o corporativismo e o "maldito direito adquirido" e indagou:

- Onde estás, Rio Grande? Para onde vais? Destruíram a educação, o Ensino Fundamental acabou-se. Fomos exemplos de cidadãos e, hoje, onde estamos? Acabaram com o Brasil e nada se faz!

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

Cafés em Porto Alegre 

A querida e competente Laura Glüer, jornalista, professora universitária, palestrante, pós-doutora informal em cafelogia e criadora do site Café Combustível, me convidou para uma tarde agradável sobre cafés, música, Porto Alegre e outros milhares de temas simpáticos que pousaram na mesa do Café Correto, um dos mais antigos da cidade, criado em 1992 e pilotado por Waldyr Beuren. No Centro Histórico está o café e confeitaria Matheus, de 1947, provavelmente o vovô dos cafés da cidade. 

Porto Alegre não tem cafés multicentenários como os lendários Zur Letzten Instanz de Berlim (1621); El Florian de Veneza (1720); Tortoni de Buenos Aires (1858); Café de Flore de Paris (década de 1880) e o Café Nicola de Lisboa (1929), com sua esplanada voltada para o Rossio. Chegaremos lá. O Correto tem 26 anos, o Café do Porto, da Cacaia Bestetti, tem 23 anos e, junto com o Jazz Café, do Dirceu Russi, e do Bar Azteca, do Ricardo Koeche, deu um upgrade para o Moinhos. Café é milenar. 

Dizem que os antigos africanos faziam uma pasta com ele, alimentavam animais e também utilizavam para fortalecer guerreiros. Depois vieram a Arábia, a primeira loja de café em Constantinopla, em 1475; Veneza, em 1570; e Inglaterra, em 1652 - aí para o resto do planeta. Em Porto Alegre, na Rua da Praia, 1.234, de 1964 a 1976, o Rian foi nosso café preferido, tipo a sala de nosso lar. Servia milhares de cafezinhos por dia e um chocolatinho servido numa xicrinha de cafezinho. 

Na saudosa Confeitaria Rocco, na Riachuelo com Dr. Flores, nossa memória proustiana degusta biscoitinhos, chás, torradas, cafés e Toddy. Não só nas lembranças que o Centro Histórico sobrevive e precisa do nosso carinho. Da passagem do Rian até meados dos anos 1980, quando surgiram os grandes shoppings, ficamos lamentando pelos cantos a ausência de cafés. Hoje, os cafés se espraiaram pela cidade, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. 

Os porto-alegrenses, que antes tomavam café de pé no Centro, passaram a sentar, conversar, conviver e a pedir café da forma como devem ser as pessoas: quente, doce e forte. Nada contra café sem açúcar ou chafé americano, mas é que eu tinha que usar a comparação ensinada por minha nonna italiana, que gostava de um café do tipo correto: uma dose de espresso mais um pouco de grappa, Sambuca ou brandy. 

Os aposentados, apesar das várias maldades que fazem com eles, estão vivendo mais tempo e ainda têm uns pilas para o café. Podem curtir os amigos sorvendo lentamente cafezinhos, apreciando o desfile das pessoas e da vida, levando a sério a brincadeira ou brincando de ser sério. Observam a pátina do tempo caindo lenta ou rápida e jogam fora ou armazenam conversas. 

A turma do Cacu, um dos melhores exemplos de confraria, há décadas, nas manhãs de sábado e domingo, no Shopping Moinhos, toma café e fala de economia, política, futebol, mulheres, homens etc. - especialmente etc. Os rapazes são bons cronistas, especialistas em generalidades, têm boa memória e quase sempre dispensam o auxílio do dr. Google.   

a propósito...

Até pouco tempo, no Brasil, não consumíamos o melhor café. Os melhores grãos iam para o exterior. Precisávamos das divisas. Não havia muitos tipos de café à disposição. Cafezinho era gentileza para as antigas visitas de vizinhos, parentes e amigos, que apareciam até sem avisar. A etiqueta era bater na porta antes de entrar. Nos ambientes de trabalho, segue a tradição da rubiácea, agora em muitos casos paga pelos consumidores.

Verbas e cortesias andam escassas. É a crise: tem igreja evangélica devendo aluguel, escola privada fechando e mendigo aceitando esmola à prestação. O cafezinho segue preferência nacional, democrático, republicano e ótimo pretexto para conversas e silêncios confortáveis.
Jaime Cimenti 

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2018/08/644877-paulo-vellinho-sonhos-e-conquistas.html)


Paulo Vellinho, 

Sonhos e conquistas Paulo Vellinho - O realizador de um sonho chamado Springer (Fronteira, 370 páginas), do experiente e consagrado jornalista Mario de Santi, traz as memórias de um dos maiores empreendedores brasileiros, o empresário caxiense Paulo D'Arrigo Vellinho, hoje com 91 anos. 

Durante 61 anos, trabalhou afanosamente em busca de sonhos e realizações. Mario de Santi iniciou como jornalista na Veja e na Abril-Tec. Depois foi repórter, chefe de redação e diretor regional da Gazeta Mercantil, num total de 15 anos. Durante oito anos, foi gerente regional de O Estado de S. Paulo, Agência Estado e Broadcast em Porto Alegre. Paulo Vellinho começou a trabalhar aos 18 anos, como vendedor autônomo em um pequeno negócio que mesclava comércio e indústria artesanal, depois foi executivo de um minúsculo fabricante de refrigeradores domésticos. 

A partir daí, durante décadas, foi presidente ou vice de empresas como Springer, Coemsa, Avipal e atuou em entidades como Fiergs, Abinee, Confederação Nacional da Indústria e Associação Gaúcha de Avicultura. Vellinho transformou a pequena oficina de refrigeração em uma grande empresa, associada à Admiral e a nomes do tamanho da Carrier e da Midea; e viveu intensamente os precários anos 1950, a tumultuada década de 1960, com suas crises e transformações, os anos 1970, do milagre econômico e das crises do petróleo, a perdida década de 1980, a virada nos anos 1990 e os primeiros anos do século XXI, com as polêmicas experiências político-econômicas. 

O texto, competente e ágil, mostra como Paulo Vellinho, com muito trabalho, determinação, disciplina e habilidade no trato com todos, construiu, com Dona Ruth, uma bela família de quatro filhos, netos e bisnetos, a trajetória profissional impressionante e como, depois de viúvo, redescobriu o amor com a empresária Lourdes Fellini, guerreira como ele. 

A obra tem apresentações de Humberto Barbato, presidente da Abinee, e do ex-ministro Delfim Netto, que diz: "A minha admiração por sua personalidade íntegra, corajosa, sempre pronta a engajar-se no bom combate, firmou em mim a certeza de que nosso Paulinho é, mesmo, um raro exemplar que demonstra quanta qualidade e grandeza pode ter um ser humano". Nesses tempos pós-modernos de raras referências e lideranças boas, a vida e obra de Paulo Vellinho, que acreditou em si e no Brasil, inspiram e dão esperança. 

Lançamentos 

A maldição de Eros & outras histórias (Farol 360 páginas), quarto livro do brilhante jornalista Flávio Dutra, traz minicontos, contos e crônicas bem escritos, plenos de finos humor e ironia, retratando as aventuras eróticas, cômicas e por vezes tristes, que vivem as pessoas nesses dias rápidos e surpreendentes. "Permite um assédio? Politicamente correto, era a forma como abordava o sexo oposto na mesa ao Aldo" é um dos minicontos. 

O amuleto de Leila - Um caso árabe-gauchesco (Chiado, 320 páginas) é o quarto romance do escritor paranaense Gilberto Abrão, filho de imigrantes sírios. A narrativa traz Otto, filho de pastor evangélico, nascido num vilarejo do interior gaúcho, que vai se envolver com sua exuberante professora de português e de artes sexuais. Em paralelo, um palestino muçulmano casa-se com a filha de um palestino. 

Conflitos vão surgir. Nada será como antes - 2013 (Libretos, 216 páginas), do jornalista e mestre em Comunicação Alexandre Haubrich, traça um panorama crítico dos dias de protesto de 2013, o ano que não acabou, na cidade onde tudo começou. Reportagem minuciosa e pulsante, traz, entre outros textos, as reflexões das principais lideranças do movimento, na tentativa de entender o significado dos acontecimentos. - Jornal do Comércio 

https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2018/08/644877-paulo-vellinho-sonhos-e-conquistas.html


24 DE AGOSTO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

CRISE NA APRENDIZAGEM

Determinado a convocar líderes da sociedade civil para uma mudança no patamar de ensino, o movimento Todos pela Educação tem uma contribuição indispensável para políticos em campanha ao governo gaúcho e à Presidência da República. No caso do Rio Grande do Sul, a presidente-executiva da organização, Priscila Cruz, ratificou as dificuldades registradas nessa área, em entrevista ao Gaúcha Atualidade e a Zero Hora, atribuindo-as basicamente a uma descontinuidade absurda das políticas educacionais. Daí a importância conferida, por parte da instituição, ao papel de líderes da sociedade civil em pressionar governantes e candidatos para a necessidade de políticas continuadas nessa área.

É significativo também o alerta da responsável pela entidade de que o país enfrenta uma crise não na educação, mas de aprendizagem. Uma situação dessas dificilmente pode ser corrigida apenas com promessa de mais investimentos por parte de candidatos - a começar pelo fato de que as dotações orçamentárias específicas estão asseguradas por lei. Nos últimos anos, por exemplo, o país triplicou o investimento por aluno no Ensino Médio, mas o resultado caiu. A saída para garantir avanços continuados, na visão da instituição, inclui mudanças na formação docente e investimentos na primeira infância, que são pressupostos para o país e o Estado reduzirem as deficiências de aprendizagem.

No Rio Grande do Sul, o mau desempenho na área educacional foi preponderante na queda de qualidade de vida dos gaúchos e se reflete na perda de posição no ranking geral do Índice de Desenvolvimento Estadual-RS (iRS). O aspecto mais preocupante, no caso, é o fato de mais de 30% dos alunos do Ensino Médio se encontrarem acima da idade considerada adequada para a série cursada em 2016, ano tomado como base para o levantamento. A deformação tem origens que remontam à falta de oportunidades adequadas de formação educacional desde a primeira infância. Ao mesmo tempo, ajuda a explicar por que tantos jovens, mesmo quando conseguem concluir o Ensino Básico, não têm o domínio esperado em português e em matemática.

O Estado e o país só conseguirão enfrentar mazelas como economia fraca e violência extremada quando colocarem em prática políticas eficazes e continuadas na área educacional. Os candidatos a governador, especificamente, precisam deixar claro como pretendem reduzir o elevado número de analfabetos funcionais que, no Rio Grande do Sul, deixam a escola todos os anos para disputar o mercado de trabalho.

OPINIÃO DA RBS

24 DE AGOSTO DE 2018
EDUARDO BUENO


Incompatibilidade de gênios

Já fui filiado ao PT. A forma como tudo se deu foi um tanto tortuosa - mas também foi engraçada. Além de elucidativa, é claro.

Em fins da década de 1970, fui contratado pela TV Globo a peso de ouro (no caso, o peso do meu irmão, mais fornido). Pode ter sido erro de casting: buscavam um garoto-prodígio, mas, ao invés de Robin, levaram Peninha. A questão é que, embora eu tenha sido mui bem tratado e jamais voltasse a perceber salário tão alto, estávamos em pleno regime militar. E, como todos sabiam, a Globo apoiara o golpe - e ainda faltavam 25 anos para que ela pedisse desculpas. Por isso, julguei que lá não era o lugar adequado para um velho rebelde de 20 anos como eu exercer seu ofício. Nove meses depois, pedi demissão. Abandonei o salário de 65 mil cruzeiros e vim ganhar 16 mil no Coojornal, em Porto Alegre.

De início, me senti Maiakovski em 1917: trabalhava numa cooperativa, em nome da revolução. Então, no verão de 1980, um colega se aproximou e, em tom sedicioso e camuflado - simultaneamente melífluo e autoritário, como era o tom da época -, disse-me ao pé do ouvido: "Vamos formar um novo partido. O Partido dos Trabalhadores". Gostei da ideia. Eu trabalhava desde os 18 anos: era um trabalhador! O caso é que eu havia lido A Desobediência Civil, de Thoreau, venerava Bob Dylan e considerava Jack Kerouac um deus. Julgava, por isso, já ter meu próprio partido. Apoiaria aquele que surgia, mas filiar-me a ele não estava nos planos.

Só que o ponto era justamente este: "Já temos gente em todos os bairros...". Seguiu-se uma pausa dramática e veio o touché: "Menos no Moinhos de Vento...". Talvez o agente recrutador estivesse se referindo a seções eleitorais, ou mentindo, mas o fato é que, com o olhar a lançar chamas e a voz férrea, ele mencionou, quase soletrando, o nome do lugar onde eu havia nascido, crescido e morava. E estendeu a ficha. E eu a assinei.

Não precisei de mais de um mês para descobrir que a rebeldia de Thoreau era tida como "infantil" e que, por serem norte-americanos, Dylan e Kerouac não eram bem-vistos nem bem-vindos. Fui instruído a substituí-los por Eduardo Galeano, Chico Buarque e Darcy Ribeiro. Ok, eu gostava desses também - e até do Gonzaguinha. Mas então, certo dia, ao lusco-fusco, caí no erro de aparecer com Gilberto Freyre sob o braço. Nem lembrava que, como a Globo, ele também apoiara "os milicos". Precipitou-se ali a crise definitiva, que redundou em divórcio litigioso, com ambas as partes alegando "incompatibilidade de gênios".

Sigo achando que meus gênios eram melhores do que os deles.

De todo modo, sou grato ao PT: dois anos depois, fui sorteado para ser mesário, mas, como fora filiado, dispensaram-me. Mas tem mais: naquela época, os militantes do PT pelo menos sabiam quem Thoreau, Dylan, Kerouac eram. Os integrantes dos outros partidos, não. E esses, ao contrário da Globo, ainda não pediram desculpas por terem apoiado tanta coisa ruim.
EDUARDO BUENO

sábado, 18 de agosto de 2018


18 DE AGOSTO DE 2018
LYA LUFT

As pequenas coisas


Dizem alguns que Deus está nos detalhes. Outros, que é o Capeta que está lá metido. Há quem afirme que o Diabo não existe, outros ainda que quem não existe é Deus, ou que, se um não existe, o outro também não haveria, pois só temos o Bem pelo Mal em contraposição.

Simplifiquei as coisas hoje aqui: a vida está nos detalhes, nas coisas pequenas, miúdas, que muitas vezes esquecemos porque nos impingem (ou nos impingimos) o grandioso. O máximo. O super, o tri, a suprema utopia. Um amor como nenhum outro, prazeres indescritíveis e obrigatórios, sucessos inevitáveis e objetivos maravilhosos alcançados, alcançáveis - a não ser que sejamos muito incompetentes.

A esta altura da vida, talvez eu tenha aprendido, depois de muita rasteira e engano, que na verdade, para mim ao menos, graças a Deus o importante quase sempre está no pequeno, no detalhe.

A vida está no simples.

Um jornalista me enviou um poema meu que encontrou num recorte de jornal de 1968. Não me lembrava dele, sou meio negligente com minhas coisas, mas quando li e reli fui recordando. Devia ter me acontecido, em 1968, algo bem doloroso, porque eu falava numa enorme pedra que tinha caído sobre mim. E terminei dizendo que peguei um cinzel e esculpi num fino traço na dura superfície um rosto de anjo, e, por fim, acrescentei uma lágrima. Essa ideia da lágrima devia ter me consolado, porque a botei ali. Não foi uma tragédia, ou eu não a teria esquecido. E foi num tempo de muitas alegrias, sem maiores perdas: elas me estavam reservadas, como a todos nós, um pouco mais adiante.

O detalhe da carinha de anjo, e da lágrima final, deve ter me concedido uma sensação de alívio, transformando a chateação ou dor em um pequeno elegante desenho. E com uma lágrima simbolizando as minhas - que, repito, esqueci.

Fui entendendo, com o passar dos muitos anos, ou aprendendo com dificuldade, o valor do pequeno, do simples, do mínimo. Não é ganhando a loteria, fazendo uma viagem sensacional, arranjando um namorado, perdendo 20 quilos, fazendo a mais fabulosa plástica ou comprando um carrão mais sensacional que a gente se recupera - até onde dá - de um grande sofrimento. É nesse dia a dia: a janela se abrindo sobre uma paisagem tranquila; o amigo telefonando com afeto e interesse; família vindo almoçar, ou nos chamando, netos, netas, com alguma carinhosa brincadeira. Marido chegando em casa com uma boa notícia do seu trabalho ou com um ar de especial cuidado porque hoje não estamos de cara muito boa.

Alguém mandando um vaso de lindas flores, que boto na minha frente, na mesa de centro da sala, e toda a casa fica iluminada: pela cor, pela beleza, pelo gesto. Nos detalhes está o amor. Nos detalhes estão os afetos, a paz, a harmonia - isto é, na simplicidade. Mas é preciso acalmar-se o suficiente para poder enxergar. O que nestes tempos, em que fora de nós nos atropelam empobrecimento e preocupações, é dura labuta.

LYA LUFT

18 DE AGOSTO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Amazônia parte 1: distância

Quase todos sabem a diferença: Amazonas é um Estado brasileiro, enquanto que Amazônia denomina toda a floresta, cuja maior parte fica no Brasil, mas se estende por outros países também. É desta Amazônia que falo hoje e talvez continue em outras edições, pois tudo é tão imenso por lá que não há como resumir num único texto.

Passei três dias navegando pelo Rio Negro, conhecendo comunidades indígenas e ribeirinhas. Em um pequeno barco, me embrenhei entre os igarapés como se tivesse licença para entrar num sonho que não era meu. Tocava as árvores com os dedos, desviava dos cipós, sentia o perfume das flores exóticas. Nadei ao lado de botos cor-de-rosa. Fui ao encontro do Negro com o Solimões, que não se misturam, mantendo cada rio a sua cor, a sua temperatura, a sua densidade. 

Comi peixes e frutas que inauguraram em mim um novo paladar. Escutei histórias reais e também as lendas que a floresta inspira. Percebi na mata gradações de verde que as cartelas de tintas desconhecem. No escuro da noite, no meio do rio, observei uma sequência de estrelas cadentes num céu pontilhado de luzes - o motor do barco foi desligado, nos calamos e o silêncio absoluto se encarregou do êxtase. Achei que tinha viajado para os confins do meu país, mas não. Minha noção de distância se alterou. Nós, do Sul e Sudeste, é que estamos muito longe.

A Amazônia é um santuário, onde a natureza é fonte de tudo que importa: ar puro, alimento saudável, sobrevivência. Índios e caboclos dedicam-se a preservar seus valores e costumes, e extraem da água e do mato tudo o que necessitam para comer, se proteger e se divertir. Como nada é perfeito, muitos se sentem atraídos por esses aparelhinhos eletrônicos que levamos em mãos e que são considerados símbolos de modernidade, a ponto de alguns comprarem smartphones mesmo não havendo sinal onde vivem - usam para o básico. Menos mal. O básico basta.

Simplicidade e sofisticação. Emoções genuínas, beleza sem artifícios, poder sem empáfia. A Amazônia, com toda sua grandiosidade, é discreta. Não se impõe, existe. Ajuda o planeta a respirar. É mãe, acolhe. Terra de gente risonha, que reparte o que sabe e tem apego pelo que é natural. O sol cai, alaranjado. As águas caudalosas espelham a vegetação das margens. A samaúma, árvore colossal que atinge até 50 metros, está ali há 500, 600 anos, e resistirá outras tantas centenas, alertando para o nosso tamanho: somos pequenos e passamos ligeiro pela vida. Deveríamos ser mais humildes e menos espalhafatosos. A Amazônia nos redimensiona, e faz isso com surpreendente afeto. É jungle para exploradores, não para os íntimos. Para quem ali vive, é uma casa, um lar estendido ao infinito, onde o céu e a terra se encontram.

Deslocados estamos nós, os ansiosos, os aflitos das selvas urbanas. Sem desmerecer as cidades que nos fazem felizes a seu modo, passei a entender que somos uma maioria de estrangeiros dentro do próprio país, vivendo longe da essência primária. Os confins são aqui.

MARTHA MEDEIROS