sábado, 23 de fevereiro de 2019


23 DE FEVEREIRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Apartheid

Na minha infância, não tive nenhum amigo negro. Estudei durante 11 anos no mesmo colégio e não tive uma única colega negra - e também nenhum professor. Nos prédios em que morei, zero. Na praia? Puxa, na praia haveria negros, óbvio. Mas na Guarita, em Torres, que era uma espécie de Califórnia da elite bronzeada do Sul, nos anos 1970, não tinha, não. Na faculdade e nas agências de propaganda em que trabalhei, era raridade. Se havia, não frequentei suas casas nem fiz festa junto. Para completar a vergonha, sou madrinha de uma garota negra que a última vez que vi foi em seu casamento, quase 20 anos atrás. Depois ela se mudou para o Paraná e perdemos o contato.

A poeta e atriz Elisa Lucinda é uma honrosa exceção. Outro dia, num vídeo que viralizou nas redes, minha amiga sentenciou: "Se tem territorialidade, tem apartheid". Não há como ficar em silêncio ao escutar esse balaço.

Por muito tempo, coloquei a questão racial sob o mesmo guarda-chuva da desigualdade social. Custei a entender que era um subterfúgio para não chamar o problema pelo nome que ele tem. O negro pobre sofre mais que o branco pobre. O negro pobre é mais perseguido, agredido, executado que o branco pobre. A absurda morte de um negro asfixiado por um segurança de supermercado confirma. Negro pobre tem menos chance de defesa do que o branco pobre. Então não é uma questão socioeconômica. É racial.

Eles não andaram de bicicleta comigo, não foram meus colegas de aula, não tomaram banho de mar ao meu lado e não me namoraram, e a razão disso não é apenas porque não tinham dinheiro, mas porque não tinham acesso ao mesmo mundo que eu - ainda que fosse o mesmo mundo em que vivessem.

Felizmente, hoje os negros não são vistos apenas em paradas de ônibus, cozinhas e bailes funk. Estão nos comerciais de tevê, nas novelas, nos telejornais, nos editoriais de moda, ocupando um espaço de visibilidade que lhes era vetado. E também nas redes sociais - e só por isso já compensa fazer parte deste universo esquizofrênico de fake news, julgamentos sumários e vaidade doentia. Há gente séria discutindo o preconceito. Há movimentos surgindo. Não dá mais para ficarmos alheios. É preciso colocar o dedo na nossa própria cara em frente ao espelho e se comprometer a ser um novo "eu", que é o único jeito de inaugurar também um novo país.

Demorei a entrar nas redes e hoje acredito que, em meio a tanta besteirada, elas nos ajudam a evoluir, desde que a gente não siga apenas os sócios do nosso clube e escute a voz da diversidade. É nossa responsabilidade criar uma nova cidadania, começando por interromper a propagação de ideias criminosas, incitações à violência ou qualquer situação que nos mantenha segregados. Hora de compreender que somos todos cúmplices do Brasil ser atrasado como é.

MARTHA MEDEIROS


23 DE FEVEREIRO DE 2019
CARPINEJAR

Humildade da doença

Já fiquei doente. Já tive que largar uma sessão de cinema pela metade. Já tive que abandonar uma refeição antes do fim. Já tive que suspender um passeio. Já fiquei doente, confinado a uma cama, soprando canja, controlando intervalos dos remédios, sem hipótese de circular. 

Quando melhorei, vibrei ao degustar um prato predileto, ao assistir a um filme, ao sair com os amigos. Recuperava a liberdade de ser inteiro - situação que eu sempre desfrutei, mas esnobava pela sua completa naturalidade.

Talvez tenhamos que ter a humildade da doença na mais completa saúde.

Mesmo com as condições físicas perfeitas, na hora de jantar, permitimos a comida e a conversa esfriarem para tratar de outras preocupações.

Em vez de aproveitar a família, nossa cabeça anda buscando resolver as contas, o trabalho do dia seguinte, as demandas absolutamente adiáveis da rotina. Abrimos várias janelas e links de interesses diversos e não nos concentramos na tela do rosto da esposa e dos filhos. Simplesmente não estamos presentes, estamos aflitos com o que devemos fazer.

Quem tem saúde acaba adiando o que é essencial, jurando que é invencível e que contará com todo o tempo do mundo para reparações. Não existe essa segunda chance. Ou caprichamos presencialmente ou desperdiçaremos os nossos grandes amores.

Assim como ninguém é imortal. Morreremos de repente. Não tem como planejar despedidas. O fato de antecipar tudo nos deixa tristes. A pressa vem nos desalojando por dentro. Não coincidimos o corpo com os pensamentos.

Querendo economizar meia hora, perdemos vidas inteiras ao nosso lado.

Podemos viajar de ônibus, mas cogitamos como seria mais fácil de carro. Usamos o carro, mas desejamos andar mais rápido de avião. Deslocamo-nos de avião e não basta, desejamos um voo particular, sem conexões e horários. Somos transportados em jatos particulares, mas daí sonhamos com um helicóptero, para não sacrificar alguns minutos.

Não há limites para as nossas falsas urgências, apesar dos trajetos curtos. A ambição nos leva para longe de nós mesmos e de quem gostamos. Os instantes que são economizados jamais retornam para o lar, são gastos em novas neuroses de sucesso.

Nossa alma nunca se sacia com o que alcançou e despreza a simplicidade anônima e deliciosa das pequenas tarefas. Até adoecermos de verdade e percebemos que ser feliz é somente se dedicar ao presente, nem ao passado, nem ao futuro.

CARPINEJAR

23 DE FEVEREIRO DE 2019
PIANGERS

Pais escavadeira

Faz algum tempo, alguém inventou o termo "pais helicópteros", para descrever a geração que fica o tempo todo espiando por cima do ombro dos filhos adolescentes para ver o que eles estão fazendo. Mais ou menos nesta época aumentava a violência urbana, as drogas eram uma preocupação e começavam a aparecer dezenas de novos livros sobre criação de filhos, botando ainda mais pressão para que os pais estivessem o tempo todo por perto. Essa foi a primeira geração que permitia aos filhos dormir na cama dos pais, a primeira geração que tinha participação obrigatória na escola dos filhos, a primeira geração que tinha poder de compra para substituir sua ausência com presentes.

Os pais helicóptero do passado deram espaço para uma geração ainda mais superprotetora. Os pais de hoje em dia são chamados pelos especialistas de "bulldozer parents", ou pais escavadeira. Vão tirando da frente dos filhos qualquer coisa que os possa incomodar. Outro apelido desta geração: "concierge parents", mais ou menos como "pais mordomos", sempre dispostos a fazer tudo pelos filhos o tempo todo.

O resultado são crianças com pouca autonomia e nenhuma capacidade de lidar com os problemas do dia a dia. Impacientes, impertinentes, autoritários. A criança nunca tem culpa por uma nota ruim, é o professor que o está perseguindo; a escola está sempre errada; os amiguinhos não estão à altura. Não é surpresa, os pequenos passam a não respeitar os pais. A superproteção vira direito adquirido, e os filhos passam a destratar, desrespeitar, exigir a realização de tarefas e, muitas vezes, xingar os pais na frente de outras pessoas.

Talvez nossa tendência a mimar seja fruto de nossas próprias carências. Aumentamos a dose de carinho, mas esquecemos de manter as doses de firmeza. Uma criança só cresce completa quando tem amor e limites. Dá trabalho explicar, contrariar, frustrar. Dói mais na gente do que neles. Mas é fundamental para que a criança desenvolva tolerância à frustração, paciência, respeito ao próximo. O conflito dentro de casa prepara para os conflitos mais sérios fora de casa. Amar é ensinar com dedicação e paciência, com didática e explicação. Obviamente, erraremos em alguma área, assim como nossos pais erraram também. E a próxima geração de pais, em alguns anos, terá algum outro apelido esquisito.

PIANGERS

23 DE FEVEREIRO DE 2019
ANA CARDOSO

O mundo de cada um


Ao casar com alguém - tcharam - casamos também com elementos até então ocultos. Ninguém conhece tão bem a família do outro. O irmão estelionatário que mora em Roraima, a tia viciada em sexo, o amigo de infância alcoólatra e por aí vai. De perto, nenhuma família é Doriana. Seis meses, ou menos, são suficientes para saber de tudo o que não se mostra no Instagram.

Não pense que isso é 100% ruim. Minha amiga Maitê me contou que teve que escrever uma carta de agradecimento em um curso que fez. Pensou, pensou e chegou a uma inusitada conclusão: sua sogra, uma senhora de origem simples, com pouco estudo e uma disposição ilimitada para ajudar as pessoas, deveria ser a destinatária de tal carta.

Sem a sogra ela jamais poderia trabalhar, saber que seu pequeno está sendo cuidado com todo o amor possível ou ficar tranquila em meio ao caos da chegada de um filho no casamento. Diferentemente de sua própria família, a sogra está sempre disponível, sem nunca exigir nada em troca, de ninguém. A própria Maitê, uma empreendedora, uma empresária de sucesso, diversas vezes, no passado, ria da sogra, de sua devoção cega.

Depois de escrever, teve que ler a carta. Impossível saber quem chorou mais. As duas saíram tocadas. Uma por ter seu trabalho e dedicação enfim visibilizados e reconhecidos. Não, não é obrigação de ninguém viver em função dos outros. A verdade é essa. Maitê percebeu algo ainda maior nesse momento: que o casamento é mais do que paixão, sexo, brigas, pazes, planos, frustrações e recomeços. O casamento é um mergulho profundo em outros contextos, é a oportunidade de conhecermos de verdade muitas outras pessoas e visões de mundo. Se soubermos aproveitar isso e respeitar os envolvidos, a experiência será muito mais completa que qualquer enxoval já visto em loja de presentes.

Reconheço que nem sempre é assim. Nem sempre a sogra ajuda. Nem sempre o casamento vale a pena. De qualquer forma, encarar a família de uma forma mais sistêmica, sem exigir nem esperar demais apenas do cônjuge, reduz - e muito - as cefaleias conjugais.

ANA CARDOSO


23 DE FEVEREIRO DE 2019
FOTOGRAFIA

O CAÇADOR DE TEMPESTADES E ESTRELAS

AOS 18 ANOS, Gabriel dos Santos Zaparolli é conhecido no Litoral Norte pelas imagens que faz de fenômenos naturais

São 2h30min de uma madrugada estrelada em Torres, no Litoral Norte. Depois de um café preto para espantar o sono, Gabriel dos Santos Zaparolli, 18 anos, reúne numa mochila o necessário: uma câmera fotográfica, duas lentes, um timer, mais de 10 baterias e cartões de memória, um disparador remoto e um tripé. Cena comum na vida do adolescente nos últimos cinco anos. Sem temer a solidão da noite, ele parte rumo aos pontos mais altos da cidade. Desses lugares, Zaparolli registra as imagens que o tornaram conhecido na região como o caçador de estrelas e tempestades.

A paixão começou ao acaso, depois de assistir na televisão a um programa sobre pesquisadores de fenômenos naturais. Aos 13 anos, buscou na internet as informações necessárias para começar a fotografar. Definido pela mãe, a comerciária Maria Rosane dos Santos, 56 anos, como guri inquieto e persistente, ele usou para os testes uma câmera da família. Autodidata, mexeu, desconfigurou o equipamento e borrou muitas imagens até fazer o primeiro registro que o emocionou. Depois de colocar a câmera semiprofissional num tripé, programá-la para cliques a cada 30 segundos e instalar os equipamentos no quintal de casa, Zaparolli conseguiu fotografar a Via Láctea.

- Fiquei maravilhado com aquela coisa! - resume, ao recordar da noite em que teve certeza de que continuaria fotografando.

Ele seguiu na função, mesmo com os pais apostando que se tratava de paixão passageira. Preocupado com a segurança do filho, o motorista Claudecir Zaparolli, 51 anos, começou a acompanhá-lo nas investidas noturnas por morros de Torres. O ritmo do pai, que trabalhava durante o dia, era muito distante da energia do adolescente, estudante no período da tarde. A tranquilidade só veio após o jovem fazer amizades com outros simpatizantes da fotografia na região - alguns o acompanham até hoje na caçada às estrelas. Mas a paixão por tempestades não foi abandonada. Pelo contrário, cada vez mais absorvido pelo trabalho, Zaparolli descobriu suas movimentações por meio de radares meteorológicos, detectores de raios e aplicativos. E foram as redes sociais que abriram as portas para ele. Hoje, graças à divulgação do trabalho, tem autorização para fotografar do alto dos maiores prédios da cidade.

- Se a tempestade está muito perto, fico em casa, no telhado ou na árvore do pátio. Mas, se ela estiver distante, vou para um prédio ou para um morro, para compor a imagem. Não costumo ficar totalmente exposto, só tenho medo se um raio cai muito próximo - diz.

Seja à noite ou durante um temporal, a mãe de Zaparolli confessa não sossegar até ver o filho retornar para casa.

- Fico com o coração na mão. Não é fácil. Rezo e peço a Deus que cuide dele. Nós trabalhamos e ajudamos no que podemos porque ele sempre chega eufórico, muito feliz com o trabalho. Nos conta tudo - diz a mãe.

Com a ajuda dos pais e do único irmão, o vendedor Rafael, 36 anos, Zaparolli trocou de câmera depois de dois anos de atividades e adquiriu novos equipamentos. Mais experiente, vendeu as primeiras fotografias, incluindo imagens de surfe - a praia é a outra paixão. A venda de fotografias tornou-se profissão. Nas ruas, é reconhecido. Basta uma volta para ser parado e receber apertos de mão de quem o acompanha pelas redes sociais.

Ao contrário da maioria dos garotos de mesma idade e dos amigos da escola, o jovem fotógrafo já lamentou estar numa balada e perder a chegada de um novo temporal. Se estiver namorando, deixa claro que a próxima tempestade ou chuva de meteoros terá prioridade. Diversão mesmo, confessa, é conseguir captar a grande e a pequena nuvem de Magalhães, os satélites cruzando o céu estrelado e os raios caindo sobre as praias de Torres.

TEM O SONHO DE DESENVOLVER SISTEMAS DE ALERTA PARA AJUDAR A POPULAÇÃO

De tanto dedicar-se ao aprendizado sobre meteorologia e fotografia, Zaparolli deu o primeiro escorregão na vida pessoal: repetiu o segundo ano do Ensino Médio, em 2018. A situação acendeu a luz vermelha entre os pais. Tudo foi contornado depois da promessa de dedicar-se à conclusão dos estudos e seguir à universidade. Ele deseja cursar astronomia ou meteorologia, para desenvolver sistemas de alertas que possam ajudar a população. E tem dois sonhos, ainda difíceis de serem realizados por questões financeiras: ir aos Estados Unidos, para caçar tempestades, e ao Chile, para fotografar a noite no Deserto do Atacama.

Acostumado a dormir em horários incomuns, como depois das aulas da tarde, Gabriel tem um ritmo diferenciado. Aos conhecidos, não se importa de enviar mensagens durante a madrugada. Foi assim ao longo do tempo entre o primeiro contato da equipe de reportagem e a publicação. Numa das conversas iniciadas com a repórter, por volta das 6h30min, via Whatsapp, ele confirma a animação pela noite de trabalho: "Se eu parar de responder, meu corpo misteriosamente parou na cama. Mas ainda estou na adrenalina da imagem! Foi meteoro para todos os lados!".

Em outra data, avisou a equipe sobre a formação de um novo temporal no local: "Aqui em Torres, tempestade de 360 graus. Tem atividade elétrica em direção à serra gaúcha e a Santa Catarina! Está uma loucura! Queria ter duas câmeras aqui!". A mãe, inclusive, confessa informar-se por meio do filho se poderá lavar e estender a roupa no varal no dia seguinte.

Na data marcada com Zero Hora, Zaparolli estava entusiasmado para apresentar o céu de Torres à reportagem. O grupo seguiu até o parque da Guarita. Em meio à escuridão, os olhos atentos do fotógrafo definiam com exatidão cada estrela e satélite. Somente com a ajuda de uma lanterna, ele desbravou a trilha que passa ao lado do penhasco e posicionou a câmera na direção do horizonte. Garantia de que em meia hora os olhos da equipe já estariam treinados para perceberem a Via Láctea sobre as cabeças. Foi o que ocorreu. Sem as luzes da cidade, somente as das estrelas, foi possível ver o alinhamento dos planetas Vênus, Saturno e Júpiter. A Via Láctea surgiu entre 3h30min e 5h da manhã.

No meio da sessão de fotos, o grupo ouviu ao longe alguém chamando pelo sobrenome do jovem. Como era impossível ver quem o havia identificado, ele seguiu fotografando. Depois de quase duas horas, foi surpreendido pela presença do fotógrafo Egon Filter, referência em astrofotografia na América do Sul, professor de fotografia e autor do projeto "Caminho das Estrelas", que tem o foco em paisagens únicas do Estado. Filter é um dos ídolos do adolescente e estava em Torres para registrar o alinhamento dos planetas.

- Que demais te encontrar aqui! Acompanho sempre as tuas postagens e admiro muito o teu trabalho, que é uma referência para mim - comentou o jovem fotógrafo, quase eufórico.

- Nos conhecemos nas redes sociais, e acompanho o seu trabalho. Você tem talento - respondeu Filter, que fotografa desde 1985.

Os dois tiraram fotos juntos, combinaram um possível reencontro e seguiram fotografando o amanhecer. À reportagem, Filter revelou acompanhar a distância, desde 2016, a evolução da qualidade do trabalho de Zaparolli.

- Ele é um jovem com talento. Mas isso só não basta. O que o diferencia, realmente, é a energia ilimitada e a sede em sempre aprender mais, perseguindo raios, sprites e a Via Láctea! Se eu pudesse dar alguma dica para ele, seria para não desanimar jamais porque a persistência vai render belas imagens - garantiu o professor de fotografia.

Perto das 8h, Zaparolli desceu as escadarias do parque da Guarita. Mesmo cansado, visitou rapidamente a Praia da Cal e ainda fotografou os primeiros surfistas daquela manhã. Era hora de voltar para casa, editar as imagens e colocá-las nos arquivos com outras milhares, dormir algumas horas e voltar na noite seguinte. Afinal, seguia de férias da escola, e os radares meteorológicos apontavam mais uma noite estrelada, antes de recomeçarem os temporais.

Fique sabendo quer ser um caçador de estrelas?

Atividade comum nos Estados Unidos, o caçador de tempestade é um especialista em registrar fenômenos naturais, como tornados e grandes tempestades, em fotos e vídeos.

Com cerca de 1,2 mil tornados por ano, os Estados Unidos são o país que mais sofre com a quantidade destes fenômenos no mundo. Eles são frequentes nos Estados das grandes planícies, chamados de "Corredor de Tornados", que se estendem da Dakota do Sul ao centro do Texas. Trata-se de um corredor no centro do país onde as massas de ar frio e quente se encontram.

-O fotógrafo Egon Filter, referência em astrofotografia, explica que quem deseja atuar nessa área precisa de disposição (para levantar da cama quente em noite fria), curiosidade (para buscar informações científicas), planejamento (quando fotografar o quê) e propósito (afinal, o que se pretende mostrar?).

-Entre os equipamentos necessários, estão câmera DSLR com lente grande-angular, tripé e lanterna de cabeça (além de boa capa de chuva). Além disso, um celular para acompanhar meteorologia online e computador para tratamento das imagens. O ideal é fazer um curso de princípios da fotografia do software Lightroom (tratamento de imagens) e de astrofotografia. Autodidatas como Gabriel, às vezes, pulam etapas.

ALINE CUSTÓDIO

23 DE FEVEREIRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

DELÍRIOS BOLIVARIANOS


Uma escalada de tensão no continente só serve aos interesses do ditador venezuelano, que precisa de fantasmas externos para se manter, ainda que cambaleante, no poder

É condenável sob todos os aspectos, mas principalmente os de caráter humanitário, o fechamento unilateral de uma fronteira agora convulsionada, mas que sempre foi símbolo de amizade e de cooperação: a da Venezuela com o Brasil. Ogoverno Jair Bolsonaro age certo ao não morder a isca envenenada pela moribunda administração de Nicolás Maduro, acusada de desrespeitar reiteradamente noções elementares de direitos humanos. É importante que a cautela brasileira diante do aumento das tensões, que já provocaram até mortes, se mantenha. A expectativa de encaminhamento de solução se transfere para a reunião do Grupo de Lima nesta segunda-feira, em Bogotá, na Colômbia, da qual participarão o vice-presidente, Hamilton Mourão, e o chanceler Ernesto Araújo.

O melhor que o governo venezuelano poderia fazer nesse momento é se convencer de que não tem condições de seguir adiante. O reconhecimento abriria caminho para a realização de eleições livres e para um plano de reconstrução do país, tanto sob o ponto de vista da economia quanto das estruturas institucionais. O fato de essa ser uma saída improvável, e de faltarem canais de diálogo, reforça a importância da reunião do Grupo de Lima. No encontro, representantes de países que reconheceram o líder opositor Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela buscarão saídas para restabelecer a normalidade institucional no país vizinho.

Impedir a entrada de ajuda humanitária é um ato grotesco, que mereceria a condenação de toda a sociedade brasileira. Diante do sofrimento da população venezuelana, causa estranheza o silêncio de segmentos que se autoproclamam defensores dos direitos humanos e da democracia. Os venezuelanos, como demonstra a cobertura da crise que vem sendo feita por Zero Hora, são os mais prejudicados. Milhões deles conseguiram passar pela fronteira há algum tempo, antes do fechamento. Os que continuam no país já vêm sendo privados de suas liberdades e de itens essenciais, como comida e medicamentos. Não podem ficar também sem ajuda humanitária.

O clima de beligerância na fronteira surge como um ingrediente preocupante. Até mesmo brasileiros são prejudicados diretamente pela intolerância do país vizinho, e não apenas nas relações comerciais. Roraima, que não está interligada ao sistema elétrico brasileiro, depende do fornecimento de energia por parte da Venezuela, onde muitos brasileiros também abastecem seus veículos. Uma escalada de tensão no continente só serve aos interesses do ditador venezuelano, que precisa de fantasmas externos para se manter, ainda que cambaleante, no poder.

OPINIÃO DA RBS


23 DE FEVEREIRO DE 2019

SEGURANÇA

Por que mataram Eduarda?

QUATRO MESES APÓS CRIME, polícia não tem pistas de homem que assassinou menina de nove anos

A pequena Eduarda Herrera de Mello dizia que seria médica. De sorriso largo, cumprimentava a todos na escola. Duda era aplicada e meiga. Em casa, dormia abraçada no irmão caçula e perguntava repetidas vezes quanto faltava para seu aniversário de 10 anos. Estava ansiosa para escolher a personagem tema do bolo. A comemoração nunca veio a acontecer. O destino não lhe permitiu crescer, tampouco alcançar sonhos. Aos nove anos, foi encontrada morta, em 22 de outubro, horas após ser raptada de casa, no bairro Rubem Berta, zona norte de Porto Alegre. Quatro meses depois, não há pistas do autor.

A falta de respostas para a perda da filha, que lhe faz chorar sempre, corrói os pensamentos de Kendra Camboim Herrera, 32 anos. A revolta, o vazio e a culpa se misturam à descrença. Já não acredita que descobrirá quem tirou Duda da frente da casa onde vivia com a família para levá-la até o Rio Gravataí e afogá-la.

- Não consigo entender. Quem faz uma coisa dessas? Não tenho mais esperanças de que a polícia descubra quem fez isso. Antes eu tinha. Hoje, não mais. Não é possível que quatro meses depois não tenham uma imagem de câmera, um DNA, nada. Eles dizem que é prioridade, mas não têm resposta para me dar. Que prioridade é essa? - indaga, entre lágrimas.

A família deixou a moradia onde vivia, a mãe abandonou o emprego em um posto de combustíveis, e o irmão de sete anos não conseguiu mais ir à escola. Por vezes, Kendra evita sair de casa. A compaixão também faz sofrer. Onde passa, perguntam pela menina. Na rua, recebe abraços de desconhecidos, olhares e comentários.

- Não tem um dia em que a gente não lembre dela. Mas não é sempre que tu quer falar disso, às vezes não consegue. Onde eu parar e olhar para o nada, é o rosto dela que vejo. É muito difícil.

DESDE QUE PERDEU A FILHA, DIFICULDADE PARA DORMIR

Por vezes, a mãe esquece que Duda se foi. Quando vê as roupas da filha com as primas, quase chama por ela. O mesmo ocorre quando avisa que o almoço está pronto. Desde que perdeu a filha, tem dificuldade para dormir à noite. Sentada numa praça, apega-se a lembranças como os joguinhos que fazia para ensinar a filha a ler ou o gosto por saladas que a pequena herdou da avó. Ansiosa, Duda perguntava pelas férias, pela praia, pelas viagens em família. Planos que não conseguiu concluir. Vaidosa, adorava passar batom e posar para fotos. Segundo a mãe, era muito alegre. Duda chegava à escola, a 15 minutos de casa, cumprimentava a porteira, a moça do lanche ou quem passasse por ela.

- Todo mundo era muito apaixonado pela Eduarda. Era muito amada. O centro das atenções. Muito carinhosa. Ela é, era, uma criança muito querida - conta a mãe.

Kendra veste camiseta branca com a foto de Duda. No braço esquerdo está gravada na pele a imagem da filha. Fez a tatuagem duas semanas após a morte da criança. A arte reproduz imagem feita por ela. A garota estava deitada sobre a cama, com a mão no queixo. Duas semanas antes do dia trágico, Kendra pediu à filha para deitar com ela. A mãe sentia aperto no peito:

- Era uma sensação de que não ia ficar com ela para sempre, e me doeu. Só eu sei o que senti.

Kendra abraçou Duda forte e chorou, sem explicação. A menina logo se desvencilhou, levantou e foi brincar. Quando a filha sumiu, temeu o pressentimento. Horas depois, o corpo foi encontrado às margens da RS-118, em Alvorada. O atestado de óbito aponta morte por afogamento. O crime teria sido cometido por volta de 0h30min. Hoje, a mãe pensa que aqueles minutos abraçadas foram a despedida antecipada.

"O caso é o mais grave da DP", afirma delegada

Mais de cem dias se passaram, e a polícia ainda não conseguiu descobrir quem era o homem no veículo que abordou Eduarda. O relato de uma testemunha permitiu que a investigação divulgasse retrato falado do suspeito de ter raptado a menina. A imagem gerou uma série de denúncias. Mas acabou resultando também na divulgação de informações falsas sobre possíveis suspeitos. Depois disso, a polícia colocou a investigação sob sigilo.

Responsável pela apuração desde janeiro, a delegada Sabrina Dóris Teixeira diz que a equipe trata o caso como prioridade, mas não há desfecho previsto.

- Infelizmente, não temos nada de novo a acrescentar no momento. É bem complicado esse caso. Muitas pessoas foram ouvidas, diligências feitas. Segue sendo divulgado o retrato falado. Todas as informações que chegam estão sendo apuradas. É um trabalho árduo, mas ainda não conseguimos o desfecho - afirma.

NEM SEQUER MODELO DE CARRO FOI IDENTIFICADO

A investigação, cujo inquérito tem 700 páginas, encontra dificuldade pelo fato de o crime ter sido cometido à noite. Agentes refizeram o possível trajeto do veículo desde a casa da família até onde a menina foi encontrada para localizar câmeras. A delegada reconhece que nenhuma imagem foi significativa.

- De fato, as câmeras não colaboraram. Foram analisadas horas de imagens. Nem sequer foi confirmado um modelo de veículo. O retrato falado foi feito com base numa testemunha, que viu uma pessoa no início da noite, sentado de lado, dentro de um carro. É tudo complexo - afirma.

Antes de ser decretado sigilo da investigação, a polícia confirmou que averiguava possível abuso sexual, vingança contra familiares da menina ou mesmo a morte em algum ritual. A delegada diz que nenhuma das hipóteses foi descartada, mas prefere não detalhar as possibilidades.

- Nem tudo que consta nesse inquérito pode ser repassado. Sei que apenas dizer que é prioridade não convence. Mas é prioridade da delegacia e da Polícia Civil. Estamos numa busca desenfreada. A gente entende a angústia da mãe, e isso também me angustia. O crime não está esquecido e não será. Pelo contrário, é o caso mais grave que a gente tem na delegacia no momento - afirma.

LETICIA MENDES

23 DE FEVEREIRO DE 2019
+ ECONOMIA

IDENTIFICAR BODES AJUDA NA REFORMA

Especialistas envolvidos há anos com tentativas de reforma da Previdência, não evitam apontar os chamados bodes na proposta levada quarta-feira à Câmara dos Deputados. Alguns desses itens foram incluídos já com a possibilidade calculada de serem derrubados. A identificação de pontos polêmicos e não essenciais pode ser uma aliada na votação dos pontos do projeto.

Além de proteções legítimas, interesses contrariados e até pressões de grupos atingidos, o debate parlamentar fatalmente incluirá tentativas da manipulação. Por isso, se os bodes verdadeiros estiverem identificados, diminui o poder de quem quiser fazer apenas barganha política.

Também há risco de inclusão de bodes tão evidentes quanto a mudança no Benefício de Prestação Continuada (BPC), que hoje garante um salário mínimo para pessoas sem outra renda a partir de 65 anos. Ao incluir a faixa etária a partir de 60 anos e limitar o pagamento a R$ 400 mensais até 70 anos, o governo dá discurso para quem acusa a medida de perversa.

Associações de servidores públicos já se organizam para contestar na Justiça as alíquotas crescentes de contribuição à Previdência, descontadas dos salários, pelo fato de a máxima alcançar 22% em um caso muito excepcional, de salários acima de R$ 39 mil mensais, no limiar do teto do setor público. Técnicos que escrutinam o déficit da Previdência consideram o sistema escalonado, que eleva a contribuição percentual conforme o tamanho do salário uma medida justa. O motivo é que, quanto maiores os vencimentos do servidor, mais contribui para aprofundar o desequilíbrio.

No caso dos trabalhadores privados, a avaliação é diferente. A contribuição escalonada serve mais à sustentação do discurso "quem ganha menos, paga menos, quem ganha mais, paga mais" que inspira o mote de corte de privilégios que o governo quis dar à proposta de reforma, do que a algum efetivo ganho de receita ou redução de despesa. Conhecer os detalhes da proposta, identificar o que é bode e o que é essência, é fundamental para avançar com uma reforma crucial para a estabilidade das contas públicas.

Os papéis da Kraft Heinz, que removeu US$ 15 bilhões de seu balanço, levando a prejuízo de US$ 12,6 bilhões no quarto trimestre de 2018, despencou quase 30% na sexta na bolsa de Nova York. Arrastou a fama de dois "midas" dos negócios, Jorge Paulo Lemann e Warren Buffett, que haviam se unido na formação da gigante mundial de alimentos. E virou alvo da SEC, a xerife do mercado acionário nos EUA.

MARTA SFREDO

23 DE FEVEREIRO DE 2019
RBS BRASÍLIA

SUPERMINISTROS E GENERAIS SALVAM COMEÇO DO GOVERNO


Escolhidos pelo presidente Bolsonaro para serem as estrelas da Esplanada, os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sergio Moro, salvaram esses primeiros 60 dias de governo. Pela complexidade e rapidez do trabalho, Guedes foi o mais eficiente, ao mandar para o Congresso ainda antes do Carnaval uma reforma da Previdência completa e bem formulada. Como havia prometido, Moro também encaminhou o pacote anticrime, mas perdeu um pouco do brilho ao sucumbir à pressão de parlamentares e esfriar a criminalização do caixa 2.

O presidente começa o ano pautando o Congresso e honrando bandeiras de campanha, o que é importante. Corporações de servidores públicos descontentes com as mudanças na aposentadoria podem reclamar de tudo, menos de terem sido enganados por Bolsonaro durante o período eleitoral. Guedes avisou que faria a reforma e que seria radical. Com isso, o governo ganha credibilidade junto aos mercados.

São ações práticas, que de alguma forma compensam as trapalhadas na área política e a saia-justa provocada pelos filhos do presidente. As movimentações financeiras atípicas do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), os laranjais do PSL, a fritura pública do ex-ministro Gustavo Bebianno e o vazamento de conversas entre o então ministro e Bolsonaro formam um caldeirão com potencial explosivo.

Até aliados do presidente - aqueles livres da paixão cega - acompanham o bate-cabeça com perplexidade. O mais recente constrangimento foi a crítica do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) a uma orientação do Exército sobre uso de armas. Nos ofícios, o Ministério da Defesa apenas reforça o que já é lei.

É como se houvesse dois ou mais governos: um ainda agarrado às questões ideológicas próprias de palanques, embalado por teorias da conspiração, e outro que funciona.

Com pouco dinheiro e com a missão de tocar obras, o Ministério da Infraestrutura também pode ser enquadrado no saldo positivo, assim como o time dos militares.

Graças ao conhecimento e bom senso dos generais, o governo agiu com estratégia no caso da ajuda humanitária à Venezuela. O presidente formou um comitê de crise e divulgou informações objetivas, sem pirotecnia nas redes sociais ou declarações desencontradas. Bem como um governo deve ser.

CAROLINA BAHIA









23 DE FEVEREIRO DE 2019
INFORME ESPECIAL

O SEGREDO DO DAVID COIMBRA

Homens são vítimas de muitos preconceitos. A pressão social ainda não nos liberou totalmente para chorar, mostrar fraqueza e, até bem pouco, para um procedimento absolutamente banal: amenizar as rugas do rosto, o que muitas mulheres já fazem há bastante tempo.

Encontrei o David Coimbra durante a semana. Descobri que ele estaria em um bar de Porto Alegre. O David não convida os amigos para ir ao bar, ele deixa vazar a informação de que talvez esteja em determinado boteco. Quem descobre, vai até lá. Há também pistas falsas, para confundir incautos. Sei de um infeliz que, dia desses, foi parar no Raupp´s, em Capão da Canoa, enquanto o David se refestelava no Tartere, na Mariland, em Porto Alegre.

Depois de consultar minhas fontes, fui até o endereço certo. Lá estava o David, tal qual um abelho rainho, cercado por copos de chope e amigos de infância. Ver o David bem me deixa muito, muito feliz. Já faz tempo que o David está bem, mas dessa vez notei algo diferente. A pele de pêssego fazia-o aparentar uns 10 anos menos. Não era o bronzeado, porque em Brookline, nessa época do ano, a neve alcança alturas que nem o Jardel ou o Dadá Maravilha, nos áureos tempos, alcançariam.

"Cara, como tu tá bem", eu disse. O David me ollhou com aquela cara de "sim, eu sei", mas mudou de assunto. Foi quando eu perguntei, brincando: "Tu botou botox?". O David não me respondeu. Olhou para mim como se eu fosse uma parede, virou para o lado e engatilhou uma conversa com o Potter e o Ivan Pinheiro Machado.

TRIBUNA

Aqui, o leitor tem a palavra final

Sobre se a troca de mensagens entre Jair Bolsonaro e Gustavo Bebianno é uma conversa ou não:

A imprensa continuar discutindo a etimologia da palavra conversa é tentar fazer os ouvintes e leitores de ignorantes. Na era da comunicação em que vivemos, até crianças pequenas sabem muito bem o significado.

Celso Fernando Spadoni

WhatsApp não é mais do que uma espécie de MSN de smartphone, com seus recursos obviamente adaptados ao uso desse dispositivo. Mas é quase a mesma coisa, mensagens de texto, envio de imagens e de voz e vídeo de forma imediata. E, sendo a troca de mensagens por MSN considerada conversa há vários anos, não teria por que o WhatsApp ser diferente.

Engraçado como um tipo de ferramenta há anos e anos em uso ainda seja considerado algo tão anormal.

Diego Figueiró Dias

Tudo o que eu escrever aqui, se ninguém ler, será imediatamente ou automaticamente um monólogo.

Tudo o que eu escrever aqui e você ler, mas não responder, também será um monólogo.

Tudo o que eu escrever aqui e, posteriormente, na minha ausência for respondido, ou argumentado, não será uma conversa, mas sim uma reflexão sua, detalhada ou resumida sobre meus argumentos. Então, não foi uma conversa nossa, mas sim um discurso ou declaração minha.

Penso que a palavra "conversar" deveria se referir a comunicação interpessoal, física, no mesmo local.

César Borba

Sobre o número de militares no primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro:

Quando dos 16 anos de roubos e corrupções do PT, nunca li na tua coluna alguma citação de que o governo Lula/Dilma tinha levado o oitavo guerrilheiro para o ministério, ou o décimo terrorista para o governo, ou o vigésimo incompetente para um cargo no Planalto.

Flavio da Rosa

Sobre a criação de associação de pais no RS que promete lutar contra o projeto Escola sem Partido:

Dê os parabéns para a nova Associação de Mães e Pais pela Democracia. Como é bom termos pessoas engajadas pela democracia. É mais uma entidade a lutar pela democracia em Cuba, Venezuela, Suriname, Nicarágua, China, entre outros. Agora acho que vai.

Valter Vieira

Sobre o modelo fracassado de financiamento de campanha no Brasil:

O nosso sistema de eleições proporcionais, na verdade, é um sistema de candidaturas avulsas (os partidos são meros cartórios de registro) que não existe em lugar algum do mundo. Ele é a excrescência!

Antonio A. d´Avila

TULIO MILMAN

sábado, 16 de fevereiro de 2019



16 DE FEVEREIRO DE 2019
LYA LUFT

Sempre a velhíssima senhora

Em uma de minhas primeiras colunas de jornal, na década de 1960, escrevi sobre "aonde vão ao partir os nossos mortos". Eu era jovenzinha, numa fase luminosa da vida. Pouca perda grave. Nesta altura agora, muitos, demasiados amigos, conhecidos e amados meus se recolheram (ou se libertaram, se expandiram?) nesse "outro lado", seja o que for que ele é. Depende da crença, da filosofia de vida, depende do desejo e do sonho de cada um.

"Os mortos pedem licença/ para morrer mais", escrevi num poema há bem pouco tempo, quando os meus já eram um grupo respeitável. Que não os oneremos demais com nossas angústias e inconformidade. Fácil escrever, difícil fazer, mas a gente consegue, se tiver amores bons que aqui ainda nos apoiam, convocam, nos fazem sentir que somos queridos e úteis e que tudo faz algum sentido. O horizonte clareia, o coração mesmo enlutado se acalma e - se amamos a vida - vivemos. De preferência, apesar da tristeza sem eternas queixas, que ninguém precisa aguentar.

Voltei ao assunto pelo impressionante número de mortes que nos impressionaram só nestes últimos dias: Brumadinho, enchente no Rio, meninos no clube de futebol, e o amado de todos, ainda que às vezes temido, Boechat, num acidente de helicóptero. Ele, que revolucionou para sempre o jornalismo brasileiro, e acabou amigo de todos, ao menos de muitos, ao menos meu - que não o conheci pessoalmente. 

Mas era como se conhecesse. Seu tom de voz, sua risada, suas brincadeiras e suas indignações - comovente sua mãe, Mercedes, aos 87 anos, revelando ao falar dele essas mesmas inclinações, esses valores que Boechat deve ter recebido dela. Seu humor e seu rigor. Ele faz falta a cada um de seus ouvintes ou espectadores: era uma boa coisa, positiva, confiável, neste Brasil que mal começa a dar novos passos em direção à esperança.

Seja como for, a velhíssima Senhora Morte nos espera no fim do trajeto, cedo ou tarde, cedíssimo às vezes, ou tardíssimo quando temos idade avançada e já nada vemos, nem sabemos, mal sabemos que estamos vivos. Porém o escândalo nestes dias não foi a morte individual, no momento destinado a cada um: o horror são mortes coletivas, evitáveis, como disse Raquel Dodge, como diz a maioria dos brasileiros. Mortes - não porque os responsáveis não soubessem do perigo, porque sabiam e fingiram ignorar, arriscando - e destruindo - a vida de centenas e centenas como em Brumadinho, ou mais de uma dezena no time de futebol no Rio, ou mesmo uma vida só que fosse, por descuido ou por futilidade.

Pensamos, avaliamos rapidamente que é muito chato, muito caro, muito menor do que nos afirmam os técnicos; que amanhã a gente dá um jeito. Ou andamos meio anestesiados quanto a esse valor supremo, inegável, às vezes difícil e pesado: A VIDA HUMANA?

Vai então, que a Velhíssima Senhora faz aquela visita a outra velha dama, em seu apartamento no Rio. Bibi Ferreira, encantadora na vida mas rigorosa no trabalho, reclama do atraso. Finalmente as duas saem de braços dados pelo céu sobre os mares, conversando como boas amigas. Bibi pergunta: "E aquele menino, o Boechat?". "Esperando por você pra trocarem ideias e risadas, um pouco condoídos das humanas trapalhadas aí embaixo..."

LYA LUFT


16 DE FEVEREIRO DE 2019
CLAUDIA TAJES

Deputada Paulinha

Confesso. Quando vi o decotão dela em meio a uma coleção de fotos bizarras dos novos deputados e senadores tomando posse, achei que fosse, sei lá, uma ex-BBB ou outra subcelebridade dessas que sempre se elegem por causa de um decotão. Ah, essa mania de julgar os outros. Bonitona, maquiada, de vermelho, toda justinha e com aquele decote, hum. O que essa dona quer na Assembleia de Santa Catarina?

Só que, antes de chegar à Assembleia de Santa Catarina, a dona do decote, Ana Paula da Silva, do PDT, já tinha uma carreira política bem mais consistente do que a da grande maioria dos seus colegas engravatados - gravatas horrendas, no mais das vezes. A Paulinha, como é conhecida, foi por dois mandatos consecutivos prefeita de uma das cidades-praia preferidas dos gaúchos, Bombinhas. E deixou a prefeitura com a aprovação lá em cima para ser a quinta deputada estadual mais votada pelos catarinenses, com mais de 51 mil votos. Só aí a gente já vê que a mulher merece respeito.

Mas não é o que vem acontecendo. Quando chegou em casa depois da posse e abriu seu Twitter, a Paulinha viu que tinha virado alvo por causa do decote. E quase não acreditou na violência das mensagens que leu, grande parte vinda de mulheres. "Não se trata de esquerda e direita, mas de um conservadorismo desnecessário que está chegando por intermédio das redes sociais a uma parcela da população (...). Estimula a violência contra os diferentes. 

E não é só contra a mulher, vai contra a pessoa que tem uma orientação sexual diferente, por exemplo. A violência está vindo em uma escala muito generosa. O poder judiciário brasileiro precisa endurecer nas punições. Eu tenho duas filhas, eu tenho uma mãe de 79 anos. Ninguém gosta de ver quem ama ofendido e xingado desse jeito. Estou sendo xingada apenas porque eu usei uma roupa que as pessoas não acharam apropriada", disse ela ao Terra. O assustador é que muitos desses impropérios trazem junto alguma menção religiosa. Como se religião, qualquer que seja, combine com se querer o pior para uma mulher por causa de um macacão decotado.

Os dois mandatos da Paulinha, de 2012 até o ano passado, focaram principalmente na saúde e na educação - áreas em que também pretende atuar na Assembleia. A gestão dela construiu a maior escola de educação integral do Brasil financiada com recursos públicos. Trilíngue, será inaugurada no início do ano letivo catarinense, agora em março. Também o atendimento da saúde pública de Bombinhas melhorou comprovadamente, com a diminuição das filas nas especialidades médicas. Quantos dos nobres colegas da deputada têm um currículo assim para mostrar?

Às perguntas sobre se não teria quebrado o decoro com seu figurino, Paulinha disse saber de cor o regulamento da Casa - que, em nenhuma linha, faz qualquer menção a decotes. O traje exigido, passeio completo, era o que ela usava - com as todas as interpretações possíveis. Os colegas de camisa apertada, um botão aberto na barriga, o umbigo e os pelos saindo para fora, também estavam de passeio completo. Ao mau gosto deles, nenhuma crítica.

Para Paulinha, a reação das pessoas faz todo sentido dentro da nossa visão (desculpas a quem acha isso mimimi) machista. "A mulher precisa provar todos os dias que é competente. Sempre que uma deputada tem uma pauta e fala um pouco mais é porque é chata, é prolixa ou louca. A gente sempre tem um adjetivo para as mulheres políticas. Um senão para pontuar a sua conduta quando ela é guerreira. No meu caso, nesse momento, foi a roupa." E você vai mudar o estilo para não se incomodar de agora em diante, Paulinha? "Com certeza não. Agora que eu não posso mesmo arredar o pé. Como vou ser uma representante digna das mulheres se agora, depois de tudo isso, de tanto apanhar, eu voltar atrás?" Dá-lhe, deputada.

Decote não tem nada a ver com caráter e competência. Que o digam muitos dos nossos políticos abotoados até o pescoço.

CLAUDIA TAJES

16 DE FEVEREIRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Morrer de causa natural

Diálogo entre duas mulheres, entreouvido numa sala de espera: "De que ela morreu?" Respondeu a outra: "De causa natural". Fiquei pensando: então a coitada deve ter morrido de latrocínio.

Hoje em dia, morrer de causa natural é morrer por ter cruzado com um garoto viciado ou um brutamontes colérico que não controla seus atos e atira. É morrer da facilidade com que delinquentes portam armas. É morrer de bala perdida. Uma morte natural, naturalíssima, está todos os dias nos jornais.

Dão entrada em hospitais centenas de pessoas com infecções, tumores, edemas, intoxicações, mas elas não morrem dessas doenças. Antes, morrem de falta de leito. De falta de médico. O natural é que morram de falta de atendimento.

Há quem esteja morrendo de lipoaspiração: a paciente escolhe uma clínica clandestina, que não possui o equipamento cirúrgico necessário, e morre se for alérgica a algum medicamento ou se tiver uma parada cardíaca durante a anestesia. Morre de falta de socorro adequado.

Tanto quanto de raios, morre-se também de sequestro-relâmpago. Dependendo do humor dos sequestradores, você volta para casa ou não.

Morre-se de ganância, de falta de alvarás, de desprezo pelas regras de segurança, de material de quinta categoria, de prazos de validade vencidos.

Morre-se de falta de policiamento nas ruas, morre-se de invisibilidade: não vemos ninguém quando precisamos e ninguém nos vê também.

Morre-se de calçada irregular, de estrada esburacada, de rodovia mal sinalizada, de obra sucateada. A gente se mata para pagar os impostos e eles continuam não sendo reaplicados em nós, e, sim, no sustento de mordomias parlamentares.

Morre-se de político corrupto, que desvia verbas públicas em prol de interesses particulares, e também de político covarde, que não enfrenta o esquemão contaminado de seus pares, que se candidatou apenas por vaidade e pelo poder, que não se compromete com a população e que jamais será respeitado enquanto não se dedicar ao bem das pessoas que representa.

Morre-se de trote. Escolha a modalidade mais natural: o trote na universidade, praticado por estudantes bestiais, ou o trote telefônico, aquele que mata do coração os que não detectam o fajuto golpe do sequestro.

E como o próprio nome diz (morte natural), a natureza tem feito sua parte, provocando óbitos por deslizamentos, queimadas, tsunamis, que nada mais são do que revide às agressões que temos cometido contra o meio ambiente. Fazer esse mea culpa causa depressão, que, ironicamente, pode matar também. Liquidamos com o planeta e conosco mesmo.

Morrer de velhice e de falência múltipla dos órgãos é que não é natural - passou a ser um luxo para poucos.

MARTHA MEDEIROS


16 DE FEVEREIRO DE 2019
PIANGERS

Palavrão

De maluco eu só tenho a cara, e minha esposa, nem isso. Portanto, há dias em que nos considero o casal mais desinteressante do mundo, realizando o mesmo trajeto de segunda a sexta, de casa para a escola, no máximo passando no supermercado para comprar pão. (Abre parênteses, emoção grande mesmo foi a promoção que dava facas do Jamie Oliver para cada R$ 200 gastos.) Somos caretas. Não usamos drogas, não temos perversões sexuais (que eu saiba) e, finalmente, chegamos ao objetivo deste texto, não falamos palavrão.

Não foi sempre assim, obviamente. No começo do nosso relacionamento, falávamos o tempo todo. Os mais triviais eram "merda" e "porra". A Ana por vezes juntava os dois: "Porra, Marcos! Que merda!", quando a louça estava suja há dias ou as roupas brancas e coloridas eram acidentalmente colocadas juntas na máquina de lavar. Quando algo muito desagradável nos acontecia, "Puta que pariu". Mas o meu favorito sempre foi "caralho". É uma expressão bastante abrangente. Se eu batia o dedo mindinho na cadeira: "Caralho!". Se avistava um acidente de trânsito: "Caralho!". Se meu time fazia um golaço: "Caralhooooo!". Gosto da versatilidade.

Contudo, as meninas foram crescendo e começamos a evitar. Precisamos dar o exemplo. Não é bonito uma criança falando palavrão, portanto passamos a usar substitutos tolos. Algo muito desagradável acontece, e soltamos um : "Pu..tz grila". Vemos um acidente de carro e gritamos "Cara... coles". E, se coloco as roupas coloridas junto com as roupas brancas na máquina de lavar, minha esposa agora grita: "Po... xa vida, Marcos!". Me sinto bem menos agredido, quase autorizado a repetir os mesmo erros.

Por vezes, sinto falta de algo mais contundente. Estávamos provando um delicioso sorvete esses dias, um sorvete realmente delicioso, e a minha vontade era dizer: "Puta que o pariu!", mas disse apenas "Huuummm", segurando tudo o que eu queria realmente dizer com uma careta que contraía todos os músculos do meu rosto. 

Noite dessas, bati o jogo com uma canastra real limpa e desejava gritar: "Eu sou foda pra caralho!", mas disse apenas "Yes!", como um patético chefe de família americano. E esses dias, quando um vendedor de carros ofereceu pagar pelo meu carro R$ 10 mil a menos do que a tabela Fipe, gritei: "Meu cu!". E, olhando ao redor minha família horrorizada, completei: "Meu cu...nhado disse que consigo um preço melhor. Vou continuar procurando. Muito obrigado".

PIANGERS


16 DE FEVEREIRO DE 2019
CARPINEJAR

O mundo inteiro está fitness?

Claro que não. Se está com cabelo escovado, maquiada, impecável e com roupas fitness, não vem sofrendo na academia.

Academia é uma guerra antes e depois.

Antes: pela postura espartana de achar uma brecha de horário na correria, levantar-se muito cedo, quase enfartar para tomar café e partir para o desconhecido da rua somente ajeitando a bagunça mínima em si. Na hipótese do treino de noite, terá que atravessar a lavagem em seco de um dia no verão (convenhamos, ninguém é flor que se cheire terminando o expediente no trabalho).

Depois é o óbvio conhecido do suor e do desmonte: já terá enfartado nos aparelhos. Caso sobrar um sopro de vida, será para lembrar do seu endereço.

Apesar da inverossimilhança, há um manancial de imagens nas redes sociais de mulheres arrumadíssimas com legging, top, t-shirt e tênis.

O que me permite concluir que o look fitness virou um figurino caseiro, de pessoas que não estão frequentando as esteiras e os halteres.

Não há tanta gente sarada como se imagina. Não há tanta gente malhando como se anuncia no Instagram. Não precisa entrar em pânico com a sua procrastinação, alimentação falhada, descaso no fim de semana e reparar no gramado corporal do vizinho com inveja e ciúme.

É uma propaganda enganosa. As pessoas estão se vestindo para academia, não saindo para a academia.

Talvez seja um revolucionário modelo de autoajuda posto em prática. Como não existe tempo hábil na rotina para grandes exercícios, coloca-se o avatar esportivo para melhorar o astral e forçar um emagrecimento psicológico.

Assim cozinha-se com a roupagem fitness, frequenta-se supermercado e lojas com a roupagem fitness, passeia-se com os cachorros com a roupagem fitness, arruma-se o lar com a roupagem fitness, faz as unhas com a roupagem fitness, entra-se na padaria com a roupagem fitness, atende os mais conhecidos com a roupagem fitness. Tudo de banho tomado e visual caprichado, sem os efeitos colaterais do sobrepeso nos glúteos, abdominal e panturrilhas.

O hábito é despertar e logo trocar o pijama noturno pelo novo pijama diurno. É uma rede virtual de sonâmbulos do esforço físico.

CARPINEJAR


16 DE FEVEREIRO DE 2019
JJ CAMARGO

A BANALIZAÇÃO DO SAGRADO

O sofrimento humano não é, nem nunca será, robotizável

Se alguém planeja organizar a lista das profissões que serão desempenhadas por robôs no futuro, tenha certeza de que a medicina estará depois do fim desta lista. E isso, sem nenhum viés corporativista, por uma razão elementar: o sofrimento humano não é, nem nunca será, robotizável.

A experiência de décadas revela que a diversidade de reações diante de situações idênticas é uma característica imutável do ser humano, imprevisível, imponderável e único no seu jeito de reagir diante de um sofrimento que lhe parecerá sempre injusto, incompreensível e assustador. Pois é exatamente essa gama infinita de atitudes, previsíveis algumas, surpreendentes outras, que oferecem ao médico a chance ímpar de se tornar um ouvinte qualificado e um conselheiro confiável. Eram assim os médicos do passado, estão deixando de ser assim os médicos do presente, e deverão resgatar esta relação afetiva, se quiserem descobrir o fascínio desta profissão, os médicos do futuro.

Se isso for impedido por circunstâncias operacionais, ou negligenciado por falta de empatia, perdemos todos, médicos e pacientes, para o desencanto de uns e a frustração de outros.

A julgar pelo mau humor dos médicos que só tratam doenças e ignoram os portadores, a medicina como ciência isolada é de uma chatice exemplar. E por uma razão compreensível: as doenças são repetitivas e monótonas, e se não for a descoberta de que cada indivíduo se revela exclusivo no enfrentamento delas, seria absolutamente insuportável.

A telemedicina que se mostrou eficiente, por exemplo, no emprego da radiologia a distância, não serve de parâmetro para recomendar que todas as especialidades passem a utilizá-la, porque esta é uma área de restrito contato com o paciente, que sempre terá o médico solicitante como intermediário, para dar um destino às informações emanadas da imagem, responder as perguntas e reduzir ansiedade e fantasia. Enfim, ser o médico real.

Para fugirmos da radicalização que tem contaminado a maioria das ideias novas, é fundamental que se preserve a noção de que nem tudo que é possível fazer é razoável que se faça. As consultas que os médicos de áreas remotas possam fazer em busca da ajuda de colegas em centros diferenciados, devem ser estimuladas. A troca de informações de pacientes com seus médicos de referência, através de aplicativos, tornou-se uma rotina, pela praticidade e segurança, e certamente vão continuar. Mas imaginar que a mais densa relação que se pode estabelecer entre duas pessoas, que eram completamente desconhecidas até que uma delas adoeceu, possa ser desenvolvida integralmente através de um computador, mais do que insensibilidade, revela o total desconhecimento do que é uma relação médico/paciente na sua plenitude.

A generalização desta prática, liberada pelo Conselho Federal de Medicina, sem nenhuma discussão com médicos de verdade e as entidades que os representa, foi um gesto de tirania inaceitável.

Quem passou a vida atendendo pacientes em consultório e, por despertar a confiança deles, se tornou um fiel depositário do mais variado rol de sentimentos humanos recebeu esta resolução com pasmo e incredulidade. Só comparável, talvez, a uma hipotética normativa da Igreja Católica, que em nome da modernidade, anunciasse que a partir de agora, a confissão e a penitência, estariam disponíveis online, no site feadomicilio.com.

JJ CAMARGO


16 DE FEVEREIRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Chama um homem

A geladeira estava fazendo um barulho estranho. Não sabia disso, até a Marcinha gritar, a urgência explodindo nas sílabas:

- Corre aqui! Corre aqui! Larguei o livro que lia, sobre Fredegunda - um dia conto sobre Fredegunda -, e fui acudir. Podia ser algo grave.

- O que foi? - perguntei, ao chegar à cozinha. - A geladeira está fazendo um barulho estranho.

Minha primeira reação foi ficar levemente agastado. Precisava tanto alarme? Precisava me apartar da leitura sobre Fredegunda? Mas me contive. Não protestei. Você há de ter paciência, se quiser levar uma vida conjugal pacífica. As pessoas têm necessidades, vontades e hábitos diferentes, mesmo estando juntas.

- Está ouvindo? - insistiu a Marcinha, apontando o queixo para a geladeira.

Realmente, a coisa rosnava como o leão da Metro. - Vamos chamar um homem - propôs a Marcinha.

Isso me deixou ainda mais irritado. Como assim, "um homem"? E eu, o que era? Está bem, concordo que não sou exatamente um sucesso em trabalhos manuais. O laço do sapato, inclusive, nunca aprendi a amarrar pelo método ortodoxo. Tive de criar minha própria fórmula. Que, por sinal, funciona muito bem. Tenho amarrado sapatos toda a vida e caminhado impávido por aí.

Chamar um homem. Francamente. - Não precisa - desdenhei, usando uma voz de especialista que tenho. - Daqui a pouco ela para de fazer esse barulho estranho.

A Marcinha me lançou um olhar desconfiado, mas, na verdade, minha observação era baseada em alguma experiência. Já tive geladeiras. A primeira, inclusive, compramos usada, eu, a Nádia Couto e o Sidnei Cruz, colegas de Diário Catarinense com quem dividia o apartamento em Criciúma, nos anos 80. Era uma geladeira amarela, mas, como a nossa cozinha era toda azul, a Nádia teimou em pintá-la. Eu não queria. O que é que tem uma geladeira amarela em uma cozinha azul? Só que a Nádia insistiu, para ela era importante a harmonia cromática. Tudo bem, a geladeira foi pintada.

Continuei com aquela geladeira azul por bastante tempo. Levei-a comigo, ao voltar para Porto Alegre, e ela me serviu fielmente em um JK no qual morava, no Passo d?Areia. Ela fazia barulho, minha repintada geladeira, e às vezes tremia, chegando a mover-se de forma ameaçadora pela minúscula cozinha. Acho que foi por isso que a minha madrinha Sônia me deu uma nova quando me mudei para um apartamento melhor, de um quarto, na Rua Portugal.

Essa segunda geladeira era moderníssima, possante, cheia de compartimentos e botões misteriosos. Certa feita, uma moça pela qual estava interessado amorosamente, tendo ingressado no meu apartamento pela primeira vez, levou a mãozinha à porta da geladeira, alisou-a como se fosse um gato e comentou:

- Boa geladeira.

Corei de orgulho. E pensei: vou me dar bem.

Pois essa geladeira também roncava, ainda que mais baixinho, feito arrulho de pombo. Um dia, porém, ela simplesmente deixou de funcionar. Faleceu. Comprei outra, ainda mais moderna, um verdadeiro foguete. Que, adivinhe, roncava.

- Acho melhor chamar um homem - voltou a Marcinha. Ela realmente não confia em minhas habilidades domésticas.

Mas, neste exato momento, a geladeira emudeceu. - Olha? - admirou-se a Marcinha. Inflei o peito e sorri, vitorioso.

Você pode perceber o deslumbramento reluzir no rosto de uma mulher quando ela vê um homem desembaraçar-se bem de uma tarefa braçal. Nos meus tempos de solteirice, a morena do sétimo andar bateu à porta do meu apartamento numa noite de chuva. Ela tinha olhos da cor do mar da Praia Brava e usava shortinhos minúsculos, de onde saíam duas pernas que pareciam ter sido besuntadas com mel e creme de avelã. As mãos pequenas seguravam um vidro de pepinos em conserva.

- Oi, vizinho - miou, me apresentando o pote. - Pode me ajudar a abrir isso? - Ela encompridou significativamente aquele isso. Assim: "Iiiiiisso".

Ergui uma sobrancelha. Há coisas que só um homem pode resolver para uma mulher. - Claro, beibe. Dê cá.

Tomei o vidro com a mão esquerda. Levei a direita à tampa de metal. E forcejei. Gnmmmmm. Forcejei. MAGMTZMMMMMMM!!! Pressenti que a maldita tampa não ia abrir, por mais força que fizesse. Levantei a cabeça. Olhei para a morena. E vi. Lá estava, desenhada em seu rosto, uma expressão mezzo decepção, mezzo desprezo. Talvez mais desprezo. Depois de mais algumas tentativas, disse que ia dilatar a tampa com fogo, mas ela puxou o vidro de minhas mãos e informou, com o menoscabo escorrendo das vogais:

- Não precisa. Vou pedir pro cara do terceiro andar.

Foi um fracasso. Mais um. E agora, sabe o que aconteceu? A desgraçada da geladeira voltou a fazer um barulho estranho. Só que ainda mais estranho, ela resfolgava e gania, era um bicho nos estertores da morte, pedindo socorro. Assustei-me. A Marcinha se assustou. Ela olhou para mim. Pôs as mãos na cintura. Abriu a boca. Antes que falasse, levantei os braços, interrompendo, e decidi: 

- Vamos chamar um homem.

DAVID COIMBRA