quarta-feira, 14 de outubro de 2015



14 de outubro de 2015 | N° 18324 
MARTHA MEDEIROS

Menos governo


Só agora assisti ao documentário Pro Dia Nascer Feliz, de João Jardim, que foi premiado anos atrás em vários festivais de cinema. A câmera se infiltra em salas de aula da periferia e em escolas de elite também, enquanto o diretor extrai depoimentos de professores e, principalmente, de estudantes que têm entre 12 e 16 anos. Como é a relação deles com a escola? O que aprendem, o que pensam, o que sentem, o que sonham, como lidam com a autoridade e com os colegas, que futuro aguarda por eles?

Quando o filme acabou, juntei meus restos e saí da sala arrastando os pés. A esperança havia espocado em uma cena ou outra, mas, de modo geral, a sensação com que fiquei é de que o Brasil só tem uma saída: reunir todo o dinheiro que sobrou das maracutaias e investir tudo em educação. Tudo. Fazer uma revolução radical no país através da educação. Se o governo fizesse isso, não precisaria fazer mais nada, do resto cuidaríamos nós.

Sei que é uma utopia, mas qual a alternativa? Não existe futuro enquanto a garotada continuar desassistida, carente, cumprindo mecanicamente um currículo que não tem aplicação prática em seu desenvolvimento e se tornando vítima fácil da depressão. Se o governo não dá conta, então o que precisamos é de menos governo. Tchau, governo.

Para que precisamos dele? O alto escalão se ocupa apenas em negociar cargos entre si, em fazer conchavos, em acumular milhões em contas na Suíça. Esqueceram por completo que existe um país implorando por ajuda. O povo brasileiro deixou de existir para quem, a priori, deveria zelar por ele. Poderiam ser indiciados por mais esse crime: abandono de lar.

Bem feito pra nós, que nos acostumamos com a ideia paternalista de que o governo (qualquer governo) existe para solucionar nossos problemas, que é só dele a responsabilidade pelo nosso bem-estar. Deu nisso: um povo mimado. Impossível não perceber a infantilização que há na troca de farpas entre simpatizantes de partidos oponentes, agindo feito crianças: “Foi ele que começou!”.

O que importa isso agora? Estamos todos de castigo.

O jeito é tentar se emancipar. Tomar conta da nossa rua, do nosso bairro, da nossa vida. Ser solidário com os outros, fazer mais voluntariado. Formar grupos de interesse comum, se unir com quem possui os mesmos propósitos, inventar novas maneiras de prosperar. Ser mais independente. Trocar o ressentimento pela proatividade. Usar a internet não para brigar, mas para compartilhar palestras, vídeos criativos, discussões bem embasadas, lançar novos serviços. Aproximar-se da literatura, da música, da filosofia, do esporte, da natureza, da psicologia, da arte, a fim de pensar no país de forma mais positiva e educar-se a si mesmo.

Utopia, de novo? Desculpe, é que ser realista não está funcionando.

sábado, 10 de outubro de 2015



11 de outubro de 2015 | N° 18321 
CARPINEJAR

A solidariedade com a tristeza do outro


Ceder é transcender. Não tenho mais nenhum interesse na vida de mandar no relacionamento: eu me respeito e respeito o outro.

Não planejo nada além de dois dias. Trata-se de um prazo razoável. Porque nunca sei das inconstâncias de meu humor e o de minha mulher e de meus filhos. Não faço mais arrastão, aquilo de marcar uma saída e não aceitar qualquer mudança de plano.

A onipotência (a ânsia de controlar a tudo e a todos) é um risco altíssimo para o casal. Sou mais de acordar com calma e ver como estão as coisas.

Desagradável é a disputa de poder no final de semana. Agendar um passeio e descobrir na hora de se arrumar que a mulher não está mais a fim. Ou porque sofre de enxaqueca ou não dormiu bem ou resta trabalho inacabado, motivos que não existiam antes da promessa.

O que pode acontecer?

Primeira hipótese: você teimar em manter o compromisso e chantagear a esposa para acompanhá-lo pelo simples argumento de que já estava combinado há tempo. Ela poderá ir, absolutamente contrariada, e passará o passeio inteiro com a cara emburrada, desprovida de qualquer vontade de sorrir.

Assim como você comprou briga para sair, agora comprará nova refrega, já que ela não se encontra do modo como imaginou. Não parece nem um pouco disposta.

Ficará furioso que ela não colabora, não ajuda, não se esforça para tornar agradável. Mas ela já havia dito que não tinha nenhuma vontade, você que não foi compreensivo. Não há como funcionar. O que deseja é praticamente o impossível, que a felicidade seja um feitiço e acenda a luz dos olhos dela com uma salva de palmas. A alegria jamais será obrigação, e sim estado de espírito.

Não é que ela não quer ser feliz, não conta com inspiração para ser feliz. Felicidade é contexto, atmosfera, disposição. Não adiantou seguir com o roteiro. Discutirão sem parar, apesar do sol e da comida maravilhosa do restaurante.

Segunda hipótese: também pode colocar tudo a perder permanecendo em casa como provocação. Desmarca, finge que aceita o desânimo dela, porém emburrece e faz qualquer movimento de mau-humor. Não acolhe o impedimento como natural, seu interesse é boicotar as mínimas atitudes dali por diante e mostrar que ela estragou o seu final de semana.

Aponta o egoísmo da tristeza dela e não percebe que o seu contentamento ainda é mais egoísta.

Não custa mudar de opinião e oferecer um voto de confiança. Entender que a nossa companhia não vem partilhando da mesma frequência. Representa um momento, não é para sempre.

Forçar o entusiasmo provocará apenas culpa. Aproveite a folga para ler, ver filme, conversar com os amigos.

Milagrosamente é somente sair de perto, dar espaço para a solidão, não pressionar, que ela virá depois disposta a passear. Quem cede sempre é recompensado com amor. A desobrigação gera a escolha. A escolha é liberdade.



11 de outubro de 2015 | N° 18321 
MARTHA MEDEIROS

Nós, os primogênitos

Certamente há dúzias de estudos, ensaios e teses sobre as características do primeiro filho da família, porém nunca me aprofundei a respeito. Ainda assim, sempre estico os ouvidos quando o assunto surge, só pra ver se confirmo as conclusões que extraio da minha própria observação.
Nós, os filhos mais velhos, fomos a origem de uma emoção colossal, já que a experiência inédita de se tornar mãe e pai se deu através do nosso nascimento. Esse exagero de amor e de expectativa em relação a nós deve ter surtido algum efeito positivo em nossa formação, afinal, fomos os protagonistas do primeiro parto, do primeiro choro, do primeiro dentinho, das primeiras mil fotos clicadas. Não é possível que o primogênito não se sinta um astro de cinema. É muito fanatismo por uma criatura de cerca de 50 cm e pouco mais de 3 quilos.

Dizem que a saúde emocional de cada ser humano é proporcional aos cuidados que recebeu nos primeiros dois anos de vida. Sobre isso já li. Então, se nesse curto período tudo transcorreu como nos comerciais da Johnson & Johnson, o primogênito se tornará um cidadão seguro e confiante. Pois é.

Só que logo depois vem outro filho. Os pais, já tarimbados, se permitem relaxar um pouco. Se antes a chupeta caía no chão e eles lavavam em água fervente, agora o bico cai, eles dão uma assoprada e recolocam na boca do segundinho, que sobrevive. Se eles foram quase xiitas com o primeiro filho, tal era o medo que ele quebrasse, com o tempo descobrem que existe algo chamado anticorpo, e, afinal, para que tanto stress? O filho mais velho, tão ajuizado, já está até ajudando a cuidar do maninho.

Pois é, pois é.

Os pais ofertam ao primogênito um amor absoluto, o tratam como rei e têm medo que ele quebre: nada mais justo que a criança retribua, não quebrando mesmo. Nem fisicamente, nem moralmente. E assim o filho mais velho cresce focado, maduro, responsável, bom exemplo, enquanto que o que veio depois não se obriga a ser exemplo de coisa nenhuma, faz o que bem entende e sente zero culpa – não raro dá problema de montão, mas acaba sempre perdoado. É o famoso “queridinho da mamãe”. Se não é sempre assim, é quase.

Muito já acusei minha mãe de proteger meu irmão caçula, e ela sempre gargalha diante dessa queixa clássica – simplesmente diz que sou louca. E como aqui se faz, aqui se paga, minha filha mais velha me acusa da mesma coisa, diz que protejo sua irmã mais moça, e claro que me defendo dizendo que ela está maluca, para manter o ciclo ativo. E assim a vida se repete através das gerações, restando apenas nossa torcida para que no final o amor justifique tudo, inclusive as consequências emocionais das responsabilidades e mimos que impomos diferentemente a cada filho.

Só lembrando que o primogênito, cedo ou tarde, se dará o direito de pirar. Não é uma ameaça, apenas uma questão de lógica.

RUTH DE AQUINO

Fidelidade se compra?

As manobras de Dilma para angariar apoio não estão dando certo. A reforma ministerial dá frutos podres

Não, presidente Dilma Rousseff. Talvez seja tarde para descobrir o óbvio. Fidelidade se constrói, respeito se conquista, amor se cultiva. Mesmo num país em que os partidos políticos se desmoralizam a tal ponto que tudo parece estar à venda no Congresso – do voto à consciência –, Dilma percebe que é hoje uma mulher traída e uma líder mal-amada.

Não importa quantos cargos ela tenha distribuído, quantas concessões tenha feito. Não importa quantos mimos tenha oferecido a seus concubinos. Eles traem. Conspiram. Querem mais. A insatisfação costuma conduzir à infidelidade. Se até os partidos comprados traem Dilma, a rebeldia não se explica apenas pelo vício da prostituição do poder. Nem os pares de Dilma se afeiçoaram a ela – muitos, se não falam mal pela frente, o fazem pelas costas.

Toma lá. E não dá cá. De todas as derrotas sofridas por Dilma nos últimos dias – e não foram poucas –, a falta de quórum na Câmara para votar seus vetos às pautas-bomba pode ter sido a que mais a magoou. Um sinal do que vem por aí. Sua maior luta, hoje, é travada nas duas Casas, e não com juízes, procuradores, jornalistas ou eleitores. “Juntos, somos imbatíveis”, disse Dilma em Barreiras, na Bahia. Juntos... com quem, exatamente? Com senadores e deputados.

As manobras de Dilma para angariar apoio não estão dando certo. A “reforma ministerial”, de custo moral e ético muito alto, dá frutos podres. Delcídio do Amaral (PT-MS), líder do governo no Senado, diz: “Acho que alguma coisa não está funcionando”. Acha mesmo ou tem certeza? O líder do PR na Câmara, Maurício Lessa, afirma: “O governo não pode achar que resolve a vida só com o PMDB”. Não mesmo. Há um novo bloco de partidos revoltados. O “baixo clero” pode ser muito baixo. O que é pior: os dois maridos oficiais – o PT e o PMDB – não estão unidos em torno da matriarca.

O elemento peemedebista Eduardo Cunha, presidente da Câmara, cada vez mais afundado em suas contas movediças, familiares e milionárias em dólares na Suíça, exerce poder avassalador contra Dilma – mas pode cair antes de qualquer um em Brasília. Comprovadas as contas secretas e a origem de corrupção, Cunha não poderá continuar a presidir a Câmara. Simples assim. Não tem moral para falar de moral. Dilma e Lula sonham em lavar Cunha a jato.

Não sinto pena de Dilma. Ela fez por merecer o pesadelo atual. Muito pior foi o pesadelo em que ela jogou o Brasil, ao usar no ano passado R$ 106 bilhões em barbeiragens fiscais para enganar o eleitor mais crédulo. Criou uma Ilha da Fantasia em que o estudante, a dona de casa, o trabalhador, o pequeno empresário, o jovem idealista, a classe média e os mais carentes se inspiraram para reelegê-la.

Dos R$ 106 bilhões, R$ 40 bilhões de bancos públicos foram usados nas pedaladas – o termo usado para adiar pagamentos e maquiar as contas públicas. Estamos, todos nós, pagando agora por isso. Nos primeiros oito meses de 2015, como foi publicado no jornal O Globo na sexta-feira, o Tesouro Nacional já repassou a BNDES, Banco do Brasil e FGTS R$ 14,4 bilhões. Objetivo? Cobrir os gastos com juros subsidiados de programas federais no ano passado. Esse é o preço, até agora, da operação-bomba para reeleger Dilma.

Nunca antes na história um presidente pedalou com um doping dessa magnitude. Nunca antes se usou tamanho artifício para mascarar uma gestão incompetente e temerária e alimentar o marketing piegas da mãe do PAC. É uma constatação financeira, técnica, nada ideológica ou política. Basta examinar os gráficos, ano a ano. São números, não palavras. Não há subjetividade nem torcida contra.

Quando Dilma vê “luz no fim do túnel”, é natural. Não tem saída a não ser parecer otimista. Jaques Wagner, o novo escudeiro imposto por Lula na Casa Civil, é só elogios: “A presidente é uma guerreira, ela opera muito bem diante da dificuldade... ela entende que (a reprovação das contas pelo Tribunal de Contas da União) é uma página virada e que a batalha definitiva será no Congresso”. Leia-se batalha para continuar a governar. Batalha para não sofrer impeachment. Para não desmilinguir.

A reprovação das contas de Dilma pelo TCU já era esperada. Mas não por essa goleada de 8 a zero. Unânime, inédita, histórica. Dilma se preocupa com o uso que o Congresso fará dessa derrota. O país tenta olhar o lado bom. O da prestação de contas. Contas fiscais e morais. Afinal, quem quer fidelidade precisa ser fiel, em primeiro lugar. Precisa ser responsável. A moeda que conta para nós é esta, a da responsabilidade com a nação e com os eleitores. Tanto a presidente quanto o Congresso deveriam saber que não é possível cobrar sacrifício ou fidelidade de quem se sente espoliado ou traído.


10 de outubro de 2015 | N° 18320
CAPA

Amar (em) Porto Alegre


RBS TV ESTREIA hoje Notas de Amor, minissérie com episódios inspirados em canções do Musical Saracura

 Muitos afetos se concentram em Notas de Amor, minissérie em quatro episódios que a RBS TV exibe a partir de hoje dentro do programa Mistura, às 14h. O projeto idealizado e dirigido pela cineasta Liliana Sulzbach presta tributo ao Musical Saracura, grupo que marcou época no Rio Grande do Sul na virada dos anos 1970 para os 80 com sua lírica fusão de rock e regionalismo. E é também uma homenagem a Porto Alegre. Maltratada e descuidada nos últimos anos, a cidade tem sua beleza realçada em cenários e ângulos que escapam do olhar apressado do dia a dia, em especial as regiões banhadas pelo Guaíba.

Em parceria com os escritores Carol Bensimon e Fabrício Carpinejar, Liliana desenvolveu argumentos em torno de quatro canções do único LP lançado pelo Saracura, em 1982: Nada Mais, Flor, Marcou Bobeira e Toda Moça. Integrantes remanescentes do grupo, Nico Nicolaiewsky, Silvio Marques e Fernando Pezão (Flávio Chaminé morreu em 2004) envolveram-se no projeto que teve início em 2013 e que, além da minissérie, previa um documentário sobre o Saracura e a volta da banda aos palcos. Sob o baque da morte de Nico, em 2014, Liliana, Silvio e Pezão levaram a minissérie adiante.

– Discutimos sobre o uso das canções originais na trilha, mas optamos por regravações com artistas influenciados pelo Saracura, como o Thedy Corrêa (em Nada Mais) e o Humberto Gessinger (em Marcou Bobeira) – diz a diretora.

Silvio faz a releitura de Flor, e Nina Nicolaiewsky, filha de Nico, interpreta Toda Moça. Com roteiros de Liliana e Carol, os episódios conectam-se um ao outro por meio de personagens às voltas com distintas manifestações do amor: reencontros, separações, afinidades e descobertas. Um fio de suspense amarra as quatro histórias – a investigação sobre o acidente com o avião que leva um fictício secretário de meio ambiente da Capital envolvido no debate sobre especulação imobiliária às margens do Guaíba. O modelo internacional Jorge Gelati faz participação especial como o político.

– É uma série em que nada é o que parece ser. O Guaíba não é rio, é lago. Aquele namoro terminou, mas não acabou – explica Liliana.

Diretora de documentários premiados, como o Cárcere e a Rua (2004) e A Cidade (2012), Liliana resume a experiência de realizar com sua produtora, a Tempo, um projeto de ficção com estrutura complexa:

– Você pode fazer um documentário com quatro pessoas. Notas de Amor foi uma experiência impressionante. Uma equipe numerosa, muitas locações externas, tudo precisava funcionar como um relógio. Apesar da pressão, eu me sinto leve. De um documentário, saio carregando o peso da questão social, do envolvimento com os personagens. E Notas de Amor também tem um grande tema, que é essa questão envolvendo o Guaíba.

marcelo.perrone@zerohora.com.br

quarta-feira, 7 de outubro de 2015



07 de outubro de 2015 | N° 18317 
MARTHA MEDEIROS

Nando


Com o celular na mão, percorro a timeline de pessoas que conheço e ali vejo de tudo, desde bailes de debutantes até manifestações políticas raivosas, desde homenagens aos animais de estimação até piadas cruéis. Pela maioria, passo batido, mas curto as indicações culturais, as viagens, o bom humor, as alegrias alheias. Ainda assim, me pergunto: onde me situo em meio a tantas ideias, tanta informação, tantos perfis?

Off-line é que me reencontrei. Celular mudo dentro da bolsa, dei atenção plena a ele no palco, seduzindo e capturando a todos, música após música. Cada pedacinho de letra cantado com a alma me fazia sentir privilegiada por assistir a ele ao vivo pela primeira vez, domingo passado. Estou falando do show de Nando Reis, ex-Titãs, ex-namorado de Marisa Monte, ex-melhor amigo de Cássia Eller e ex-feio – porque até bonitinho se tornou depois de tanto sucesso.

Nando Reis, que eu só conhecia desses estereótipos, desses resumos, recuperou minha inocência, me fez sorrir por dentro, acho que até meio ruborizada fiquei.

Quem tem projeção hoje em dia? Aquela criatura sinistra que preside a Câmara, os ladrões que se apoderam do dinheiro público, os protagonistas de conchavos e alianças vexatórias a fim de manterem o poder. Logo, é questão de sobrevivência fugir para um território neutro a fim de escutar um branquela ruivo, às vezes desafinado, que canta e celebra o amor. Soa como petulância invocar esse assunto em meio às turbulências políticas, mas é disso que se trata a coluna de hoje: o amor.

Nando Reis, acompanhado apenas de dois violões, fez um espetáculo doce. Roqueiro em seu DNA, mas doce, cálido, poético. Não só pela poesia de suas canções, mas também por ter lido, entre uma música e outra, poemas de Vinicius de Moraes, Fernando Pessoa, Paulo Mendes Campos. Naquele teatro escuro, eu pensava: o que vale na vida, afinal? O que acontece lá fora ou aqui? Como equalizar essas divergências?

A resposta estava dentro de mim. Sempre está dentro de nós. A realidade é a narrativa que contamos a nós mesmos. A minha poderia começar assim: “Estranho seria se eu não me apaixonasse por você...”, que é o primeiro verso da música All Star, composta por ele e eternizada por Cássia anos atrás.

Nando, estranho seria se eu não me apaixonasse por você, se eu não me comovesse, se eu não passasse aquelas duas horas do show recordando meus ex-amores e sonhando com os amores que virão, estranho seria se não me arrepiasse com a possibilidade de um novo encantamento, estranho seria se eu não me enternecesse ao ver alguém tão entregue à própria verdade e ao sentimento, estranho seria se todos nós, na plateia, não nos rendêssemos à raridade da emoção, essa que tanto apanha da razão, mas que ainda insiste, valentemente insiste em manter sua voz.

sábado, 3 de outubro de 2015



04 de outubro de 2015 | N° 18314 
ROBERTO ROMANO

Servidão voluntária



É fácil notar indivíduos inteligentes e cultos que apoiam governos tirânicos e religiões genocidas. Ao dobrar a cerviz eles se reduzem a instrumentos descartáveis. A solidariedade perversa em política gera o que Merleau-Ponty intitula “a comunhão negra dos santos” (Nota sobre Maquiavel). Os piores malefícios ocorrem se ordenados por hierarcas cuja ideologia a tudo e a todos justifica. Salvo os inimigos.

Mesmo quando vítimas da máquina partidária, militantes ideologizados guardam fidelidade canina. É o caso do Partido Comunista e dirigentes perseguidos por Stalin. A técnica predileta, nos tribunais farsantes de 1936, era colocar o réu em frágil situação psicológica. Sabedores da sua inocência, os promotores lhes perguntavam: “O Partido diz que você é culpado. 

Sua língua nega a verdade do seu partido?”. Ir contra o “seu” partido seria destruir a própria vida, os valores defendidos no pretérito. Mas aqueles princípios eram arruinados pela polícia, promotores e juízes a soldo do “paizinho dos povos”. Situação surreal: garantir a própria inocência seria provar que o governo dos antigos camaradas era escabrosa farsa. Eles aceitaram a culpa farsesca em nome de um passado abolido.

E falo de pessoas eruditas, como Bukharin, Kamenev, Zinoviev e outros.

Em tempos obscurantistas da Igreja Católica, a censura e o castigo tinham um nome: sacrificium intellectus. Segundo Inácio de Loyola tal seria “o terceiro e mais elevado grau de obediência”. Trata-se de ardil para tanger o ser livre ao rebanho. A desculpa da técnica encontra-se na suposta frase de Tertuliano, “credo quia absurdum”, creio porque é absurdo. Como numerosas falas inverídicas, tal enunciado só com muita ardilosidade pode ser lido em Tertuliano. 

Ele faz companhia ao “Paris vale uma missa” jamais dito por Henrique IV; “se eles não têm pão, comam brioches”, de Maria Antonieta; “que grande artista vai perder o mundo” atribuído a Nero. Max Weber generaliza o silêncio obsequioso para toda religião. A depender de suas circunstâncias, elas sempre exigem do fiel… a fidelidade contra o intelecto.

Sempre que num coletivo impera o credo quia absurdum, e as falas são administradas por líderes – não por acaso, Stalin se interessou por linguística – religiosos ou civis, grassa um ódio ao pensamento crítico que aterroriza quem ousa raciocinar, pedir provas factuais ou lógicas das autoridades. É a misologia, termo inventado por Platão.

Quais origens possui o manso, obediente silêncio obsequioso mantido pelos tesoureiros petistas condenados pela justiça? Nos casos Delúbio e Vaccari, a comunhão negra dos santos funciona a pleno vapor. E nela reside a ideologia segundo a qual, para usar a tese de Trotsky: “o partido sempre tem razão (…) só podemos estar certos com e pelo Partido (…) e se o Partido adota uma decisão que um ou outro julga injusta, ele deve dizer, justo ou injusto é o meu partido e eu apoio as consequências daquela decisão até o fim”(26/5/1924). Até o fim, as piores coisas resultaram e ainda virão de tamanho servilismo voluntário.



04 de outubro de 2015 | N° 18314 
CARPINEJAR

Banho sempre juntos


Um casal de amigos toma banho juntos todo dia. Não é exagero: todo santo ou maldito dia. Ambos não abdicam do hábito. Não se unem para sexo ou transas aquáticas, não se abraçam para sedução ou selvagerias líquidas.

Nenhuma pornografia como é possível imaginar. Pois casa não é motel, é refúgio do tumulto do mundo. Os espelhos não estão no teto, mas nos próprios olhos. É banho para a ternura, para a transparência.

É banho para conversar e se atualizar, lavar o silêncio, acalmar a ansiedade. É banho para chorar quando necessário, brincar de espuma, rir dos perigos e organizar os desmandos do trabalho.

É banho de amizade, de cumplicidade auditiva, de intimidade da pele, para saber como foram a manhã e a tarde de cada um e preparar a barca dos sonhos. É banho em que os joelhos e os cotovelos são lembrados, em que as axilas e as costas são esfregadas.

É banho de açúcar, melhor do que o sal grosso para espantar o mau olhado. Dividem o xampu e a esperança. Enquanto um se ensaboa, o outro se enxagua. O revezamento é perfeito como uma dança, como uma coreografia.

Estão nus, sem reservas, sem receios, sem caretas e poses, sem mentiras e distorções, com a humildade de se colocar à disposição. Como Adão e Eva antes da maçã. Antes da amargura.

Adultos que escolheram a água como o refúgio infantil, puro, um confessionário onde nenhum filho abrirá a porta com novas urgências. O box é uma piscina vertical, o box é uma hidromassagem de pé.

O box é uma varanda fechada, uma Veneza em miniatura. O box é uma chuva particular, em que vão chapinhando nas poças e as vozes buscam alguma música brega para distrair as dificuldades.

E se um já tomou banho antes repetirá a operação para não perder a parceria. Mesmo que isso signifique tirar o pijama e deixar o calor da cama. Não passam um dia sem tomar banho lado a lado. Descobriram que a lealdade é abrir um espaço fixo para a palavra.

Os casais devem tirar um momento de sua rotina para estarem absolutamente entregues. Um momento apenas de atenção integral, para renovar o ímã da felicidade.

Pode ser o café da manhã, o almoço, uma horinha de chimarrão no entardecer, uma caminhada pela praça, a leitura de jornais, o colo de uma novela. É dividindo a solidão que os dois serão um só pela vida inteira.



04 de outubro de 2015 | N° 18314 
MARTHA MEDEIROS

A cultura da humilhação

A insensibilidade geral tem produzido gargalhadas de um lado e tragédias de outro

Já nem lembrava de Monica Lewinsky, que foi estagiária da Casa Branca e teve um rápido affair com o ex-presidente americano Bill Clinton em 1996. O fato foi explorado à exaustão, na época.

Pois Monica hoje tem 41 anos e fez uma palestra TED recentemente, disponível pelo YouTube. São 20 minutos em que ela conta as consequências daquele episódio comentado no mundo inteiro e faz alertas importantes sobre cyberbullying. Se você nesse instante pensou "imagina se vou perder 20 minutos ouvindo aquela desqualificada", você é o público-alvo desse vídeo.

Você, eu e todos os que usam tecnologia precisamos refletir sobre o assunto. A internet possibilita inúmeros encontros, amplia ações sociais, estimula a criatividade, agiliza negócios e já não se pode viver sem ela, mas tem um lado obscuro, como todos sabem. Reclamamos dos agressivos da web, dos haters, mas até onde pode ir a crueldade alheia?

Em 2010, um estudante chamado Tyler Clementi foi flagrado por uma webcam tendo relações íntimas com outro rapaz em seu dormitório na universidade. As cenas foram parar na internet. Dias depois, Tyler se suicidou. Tinha 18 anos.

O serviço assistencial britânico Child Line, que atende crianças e adolescentes, revela um alarmante aumento no número de suicídios nos últimos anos, e as ridicularizações nas redes sociais têm a ver com esse incremento. O CVV (Centro de Valorização da Vida) também possui dados que apontam nessa direção. A insensibilidade geral tem produzido gargalhadas de um lado e tragédias de outro.

Humilhação pública virou produto de alto valor comercial. Basta que uma pessoa passe vergonha para que o flagrante mereça muitos cliques, e esses cliques valham muito dinheiro, sustentando sites de fofocas e transformando a nós todos em imbecis digitais. Não existe mais compaixão nem respeito pela intimidade alheia.

O que Monica Lewinsky tem a dizer sobre isso? Ouça-a. Estou aqui apenas resumindo a palestra dela a fim de atiçar você para assisti-la. Quando tinha 22 anos, ela se meteu numa encrenca federal (mesmo) e foi o que bastou para todos se sentirem no direito de acabar com sua reputação. Eu postei a palestra na minha fanpage (facebook.com/marthamattosmedeiros) e um dos comentários deixados foi: "Ah, é aquela, a sucker, tenho que ver isso, kkkk". É uma reação automática. Podendo avacalhar, não perdemos a chance. Porém, o que antes era uma pegação de pé em meio a um círculo restrito, ganhou abrangência universal e exposição vitalícia.

Se a gente não quer que essa cultura da humilhação prevaleça, melhor começar a agir com mais responsabilidade agora, já. Até porque ninguém está livre de amanhã ser o alvo.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015



30 de setembro de 2015 | N° 18310 
MARTHA MEDEIROS

PODER E STATUS


Três anos atrás, fui a Brasília receber a Ordem do Mérito Cultural. Eram entre 30 e 40 agraciados de diversas regiões do país. Chegando ao hotel, soube da programação: a entrega da comenda seria na manhã seguinte, no Palácio do Planalto, e à tardinha haveria um coquetel no Palácio da Alvorada. Fomos avisados de que cada um de nós teria um carro com motorista à disposição enquanto estivéssemos na cidade.

O dia amanheceu. Enquanto me arrumava para a cerimônia, fui até a sacada do quarto e vi uma fila de sedans pretos enfileirados na porta do hotel. Desci até o lobby para juntar-me ao grupo. Então, em fila, fomos conduzidos cada um para um carro, e saímos em comitiva, todos ao mesmo tempo, para o mesmo local. Patético, pra dizer o mínimo.

Não estou depreciando a honraria concedida, da qual me orgulho muito, mas óbvio que tinha algo errado ali, como sempre teve.

Na Suécia, deputados moram de segunda a sexta em apartamentos funcionais de 40m2 com lavanderia comunitária. Não têm empregados. Seus gabinetes de trabalho possuem 18m2, sem secretária, assessor ou carro com motorista. O dinheiro do contribuinte não é usado para privilégios de qualquer espécie. Além do bom uso do dinheiro público, essa postura é um seletor natural: quem quer mordomia, que bata em outra vizinhança. Entra para a política apenas aquele que deseja servir ao país, e não ser servido por ele.

O papa Francisco, dias atrás, circulou por Washington a bordo de um automóvel compacto e popular, um gesto simples que ajudou a redefinir o que é poder. Todos nós merecemos eficiência e conforto. Buscar mais que isso não é crime, mas é uma necessidade supérflua. Moramos em apartamentos mais espaçosos do que de fato precisamos, contratamos funcionários para fazer o que poderíamos fazer nós mesmos e dirigimos veículos cuja potência a lei nem permite testar (qual a vantagem de um carro ir de 0 a 100 km/h em cinco segundos, a não ser que estejamos fugindo da polícia?).

Em nossa sociedade, a aparência reina. O bairro em que você mora, a marca do seu jeans, o hotel em que você se hospeda: além do benefício real (a qualidade) há o benefício agregado – o status. Tudo bem. Só que status e poder não são a mesma coisa.

Status é ranking. Costuma ser valorizado por quem verticaliza as relações. Não vejo problema em se proporcionar coisas belas, saborosas, requintadas. Se são pagas com o próprio suor, é um direito adquirido, mas não confere poder algum, apenas bem-estar privado.

O poder é horizontal. Poderoso é aquele que distribui, compartilha, multiplica. Que produz ideias, arte, soluções, e as torna úteis e benéficas para os outros. Que não passa a vida tentando preencher o próprio vazio.

Não precisamos que nossas coisas falem por nós, a não ser que nossos atos já não digam nada.

sábado, 26 de setembro de 2015




27 de setembro de 2015 | N° 18307 
MARTHA MEDEIROS

A tarde é a nova noite

Qualquer local pode ser não apenas noturno, mas diurno também, sem perda de charme: todos brindam, dançam, se divertem e voltam cedo pra casa

Estava folheando uma revista quando vi uma pequena nota sobre a inauguração de um bar em São Paulo que tem seu ápice de frequência durante o almoço e nas horas seguintes. O título da nota era: A tarde é a nova noite. Juntei as palmas das mãos, fechei os olhos e agradeci as preces atendidas.

O proprietário do bar, instalado na cobertura de um prédio, alega que a noite de São Paulo ficou tão grande que começou a ocupar o dia também. Porto Alegre não tem uma noite assim tão grande e, na minha modesta opinião, não precisa esperar para ter, pode adotar essa moda agora mesmo e ser moderna hoje, já, imediatamente. A tarde é a nova noite. Meu mantra.

Nos últimos meses, fui a uma festa de casamento de dia, a um show de comemoração de um site de dia e a um lançamento de uma revista numa casa noturna – de dia. Chamei de casa noturna por hábito: qualquer local pode ser não apenas noturno, mas diurno também, sem perda de charme. Todos brindam, dançam, se divertem e voltam cedo pra casa. Chego a me emocionar com tamanha civilidade.

A tarde é a nova noite. E não precisa ser de tardezinha. Pode ser início da tarde, meio da tarde, pode ser tarde só no nome, pois que cedo.

A vida acontecendo à luz do dia. Consequência saudável de um mundo evoluído, em que as pessoas, por trabalharem online, podem ser produtivas a qualquer hora, em qualquer lugar, sem necessidade de cumprirem expediente rígido e formal, liberando-se, assim, das quatro paredes do ambiente corporativo. Sei que isso ainda é para poucos, que a maioria das pessoas possui empregos inflexíveis, mas não custa sonhar que o padrão de poucos se tornará em breve o padrão de todos, que as pessoas possam trabalhar em horários alternativos e ter disponibilidade para encontrar sua turma para celebrar, gargalhar e prestigiar os espaços de lazer da cidade ainda sob céu claro.

Se isso for utópico demais, que esses encontros com luz natural aconteçam então nos fins de semana apenas, aos sábados e domingos, mas sempre aproveitando o dia (carpe diem!) de dia mesmo.

Estou advogando em causa própria, claro. Assumidamente uma cinderela urbana, é com muito custo que atravesso os ponteiros da meia-noite sem virar abóbora. Logo, prezo tudo que é solar. Entendo que o dia se presta para os esportes, os parques, os sucos, mas acredito que também podemos ter festas e baladas à tarde, sem prejuízo àquelas que não resistem a um paetê – há muito tempo que o brilho virou item fashion ao ar livre também.

A tarde é a nova noite. Eis aí uma tendência original, descolada e livre de ressaca na manhã seguinte. Que a moda pegue – e não largue.



27 de setembro de 2015 | N° 18307 
CARPINEJAR

A alegria veste a tristeza


Tenho uma predileção por uma frase de Federico Fellini: para a sombra existir, o sol deve estar a pique na cabeça.

Sem a luz, o escuro não se forma. Sem o escuro, a luz não tem sentido.

O mesmo acontece com a alegria.

Dentro da alegria mais genuína, mais intensa, mora a sombra da tristeza. A tristeza só existe em função da alegria. É o medo de perder a felicidade que faz com que você se esforce para mantê-la.

Não há alegria inteira, nem tristeza pura, uma depende da outra. Podemos transpirar euforia, mas sobreviverá uma pontinha de melancolia lá no fundo de nosso riso. Porque mantemos a consciência de que a alegria, por mais duradoura que seja, vai passar. Que ela logo se transformará em nostalgia, e que não estaremos mais plenos como daquele jeito de novo – e isso não é ruim e nem é bom, é inevitável da experiência. A tristeza dentro da alegria nos permite pensar e entender o quanto aquele momento é importante e que precisamos aproveitá-lo enquanto dura.

A alegria é esta vontade de ser para sempre que termina. A tristeza vem nos consolar a aceitar que o fim de uma lembrança não significa o fim de nossa vida.

De igual forma, dentro da tristeza mais severa, da depressão mais aguda, é possível notar a presença de uma alegria discreta, retraída, tímida. Tudo pode soar péssimo, mas um abraço, um quindim, um filme, o telefonema insistente de um amigo é capaz de nos devolver a vontade de dar a volta por cima. A simplicidade é terapêutica, a banalidade nos cura dos grandes males da solidão. Haverá sempre o sol por detrás das nuvens escuras dos pensamentos suicidas. 

Na sombra mais espessa de nosso temperamento, coexistem os raios solares minúsculos do contentamento, das dádivas da rotina e dos pequenos prazeres. Estaremos desolados com o tempo fechado e chuvoso do rosto, não enxergando nenhuma saída, mas a alegria se conservará perto e nos mostrará que a tristeza também passará, que é uma fase e um ciclo para absorver separações, desentendimentos e traumas. A lágrima brilhará como uma vidraça limpa e iluminada.

Se a tristeza é saudade dentro da alegria, a alegria é esperança dentro da tristeza. Nenhum sentimento é definitivo e completo.

A luz veste a sombra, a sombra veste a luz. A alegria costura a tristeza, a tristeza costura a alegria. Alfaiates que se revezam no longo pano dos dias.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015



23 de setembro de 2015 | N° 18303 
MARTHA MEDEIROS

Amor bandido

Não encontro vocabulário que alcance a dimensão do que sinto. Tenho lido os jornais e também comentários diversos no Face, de todas as correntes. Nunca soube de tanto e nunca tive tantas dúvidas, o que me conforta: dúvida é esperança. Mas esperança de quê?

O único talento dos nossos políticos é o de transferir o poder entre si e o de se lixar para o bem público, que deveria ser o objetivo único. Nossos representantes, eleitos por nós, são tão miseráveis, que preenchem o próprio vazio com cargos. Até uma manchete divulgando que o cara está preso pode satisfazê-lo – antes isso do que o anonimato. Prisão domiciliar está sendo comemorada como uma Mega Sena. Indecentes, quase todos. Dou desconto para um Pedro Simon e outro.

Penso muito na Dilma, no ser humano por trás da presidente, em como deve ser o momento em que ela vai pra cama à noite. Imagino que pense antes de dormir: maldita hora em que venci a eleição, poderia estar hoje em posição privilegiada, apontando o dedo em vez de tê-los apontados pra mim. E Aécio, da mesma forma, antes de dormir deve agradecer a sorte de ter perdido. Logo eles trocarão de lugar e assumirão o discurso um do outro, e a pantomima seguirá. Não foi sempre assim?

Depois de Dilma, virá outro inconsequente. Alternância de partido muda quase nada. O que mudaria alguma coisa seria uma mentalidade incorruptível, estímulo à criatividade e total desapego ao poder. Mujica ainda foi o que de mais novo surgiu por aí, ao mostrar que nem todo governante se envaidece com a própria influência. 

O Brasil bem que tentou, deu seu voto de confiança a Lula anos atrás, e algumas coisas foram melhoradas, mas ela estava no caminho, a casca de banana em que tantos derrapam: a ganância. E lá se foi a ética pro espaço, permitindo a continuidade da velha troca de favores que não se interessa por projetos que beneficiem o povo a médio e longo prazos. Mantêm-se os projetos de interesse imediato, sem visão de futuro, que só sustentam o ego de alguns. O ego, sempre ele.

Infelizmente, ame-o ou deixe-o continua sendo o slogan perfeito pra nós, ainda que representativo de uma época nefasta. Como escolher? Nasci neste país que nunca atendeu a meus ideais, e não consigo deixá-lo e também não consigo amá-lo. Amar o Brasil é amor bandido, é ficar ao lado de quem provoca muita dor e só satisfaz minimamente. Seu lado bom (arte, natureza e o que mais mesmo?) alimenta o comodismo.

Então fico, ainda que a sensação seja a de estar num bote inflável, à deriva, sem saber para onde estou indo: que brasileiro, a esta altura, não possui alma de refugiado? Na beira da praia, em vez do corpo imóvel de um menino, vemos meninos fazendo arrastões: é diferente? É, mas nem tanto. Não existe situação vantajosa em meio a desgovernos.

terça-feira, 22 de setembro de 2015




22 de setembro de 2015 | N° 18302 
CARPINEJAR

Como uma nota de três reais


Elogio, quando sempre, vira bajulação. Ternura, quando excedida, vira cinismo. Concordância, quando constante, vira sarcasmo. Aceitação, quando submissa, é indiferença.

Amizade é medida (já o amor é perder a medida). Percebo quem é falso pela ânsia de agradar a qualquer custo. É um torturador pelo afago. Alegria se transforma em histeria; a espontaneidade, em afetação.

Não é um contato natural, mas uma negociação: a impressão é de que o outro, que não para de me reverenciar, está vendendo algo que não sei, algo que não estou vendo. É muita simpatia para nada. É muita camaradagem gratuita. É esnobar com uma nota de R$ 3.

Mantenho um pé atrás com quem é abusivamente açucarado. Evito quem é dado ao léu, antes mesmo de estabelecer intimidade. Gritinhos no “oi” apressam o meu adeus. Diminutivos esgotam a minha paciência. Quem se aproxima querido demais falará mal de mim pelas costas. A traição está insinuada na atração artificial.

Não tenho dúvida. Acúmulo de gentileza é véspera de maldade, de oportunismo, próprio daquele que pretende enganar. Desconfio de quem chega com mimimi, só exaltando as minhas virtudes, concordando com os meus comentários. É característica de personalidade maquiavélica, porque me faz relaxar, confessar as dificuldades e abrir a guarda para tirar vantagem.

Não levo a sério quem carrega nos adjetivos, superfatura nas exclamações, endeusa nos cumprimentos. Amigo que se gosta vive se provocando. O que adula é um inimigo disfarçado.

Hipocrisia vem do exagero do perfume. O tipo busca dissimular a carência de banho com borrifadas, procura abafar a maldade e a inveja com o comportamento contrário. Temo mais a chuva de confetes do que os relâmpagos e dilúvios.

A afetação me põe ressabiado. Não aturo a fala dublada – a impressão é de que falta a opção do áudio original. Parece que a voz vem de um ventríloquo. Parece uma tia chata interpretando as vontades de um bebê.

A pessoa se comunica miando, ganindo, arrastando as vogais. Força empatia, ri sem nenhuma piada, é solene sem necessidade. Gente falsa é o mesmo que conversar com alguém fingindo o orgasmo em todo momento. Não tem como acreditar que algum dia será para valer.

Autenticidade implica alternância e até um certo mau-humor. Prefiro o ferrão ao mel.

sábado, 19 de setembro de 2015



20 de setembro de 2015 | N° 18300 
CARPINEJAR

Perdi 1 milhão de reais

Não festejei o meu primeiro milhão porque fumei o meu primeiro milhão.


Eu me dei conta de que se juntasse as minhas baforadas com as tragadas do cantor Renato Godá, amigo de vício e de faixa etária, já teríamos posto fora R$ 1 milhão. Nesta brincadeira existencialista e maldita, torramos um patrimônio difícil de obter. Participamos de um Big Brother às avessas: em vez de ganhar, gastamos a recompensa máxima do reality show.

Cada um fumou duas carteiras por dia durante 26 anos, o que resultaria em R$ 284.700. Se esse valor tivesse sido investido há três décadas em uma aplicação que rendesse 1% ao mês, sem considerar inflação e troca de moeda, o montante atualizado com juros seria de R$ 1.170.117.

Foram quarenta cigarros do amanhecer até o anoitecer desde os 17 anos. Apaguei no cinzeiro mais de 380 mil filtros. Encheria uma piscina olímpica com as minhas bitucas.

O resultado é assustador. Nenhuma morte seria tão cara. Fui um perdulário invisível. Não percebi o investimento porque identificava como um mero troco. Quem adquire cigarro não anota sua compra, e tampouco registra como gasto. Só que empenhei uma parcela fixa diária e interminável de quinze reais. Somadas ao longo de minha história, formam uma bagatela que paralisa os mais incrédulos, digna de prêmio dividido da Mega Sena.

Com tudo o que fumamos, poderíamos abrir uma grande empresa com forte capital de giro. Ou comprar à vista uma cobertura de 300 m2 no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre. Ou levar cinco carros Santa Fé zero quilômetro para as nossas garagens. Acabaríamos ricos, com uma poupança redentora, não precisaríamos nos preocupar com a crise e muito menos em trabalhar duro todo o mês. Mas cedemos a nossa fortuna imaginária e os nossos pulmões reais para a indústria tabagista.

Não transformamos o nosso suor em sorte, em previdência, em títulos de capitalização, em economias para a universidade dos filhos, ele simplesmente virou fumaça.

Qualquer um é considerado maluco ao queimar dinheiro. Eu e o meu comparsa músico queimamos 1 milhão de reais com a boca.



20 de setembro de 2015 | N° 18300
MARTHA MEDEIROS

Escuta

Amar nada mais é do que ouvir com prazer histórias que não nos interessam

Eu estava diante de um cenário deslumbrante que poucas vezes vi igual. O lugar chama-se Tonnara di Scopello, uma baía minúscula no norte da Sicília, na Itália. A beleza era de deixar qualquer um sem palavras, mas ao meu lado estava uma mulher que tinha palavras de sobra e provavelmente já estivera naquele recanto uma centena de vezes a ponto de não se deixar embasbacar pela vista. A única coisa que ela queria precisava! era falar. Quando cheguei, ela já estava ao telefone. Quando fui embora, ela ainda não havia desligado. Parecia longe de ter esgotado o assunto.

Italianos falam muito, reza a lenda. Mas ela abusava do estereótipo. Não parou de falar nem quando uma menininha de uns quatro anos, que imaginei ser sua filha, veio solicitar sua atenção. Ela passou a mão na cabecinha da criança, enxotando-a com suavidade, e com a outra continuava segurando o celular junto ao ouvido. 

Em pé, de biquíni, caminhava dois passos para frente e voltava os mesmos dois passos, ininterruptamente. E falava. E falava. Meu conhecimento do idioma é limitado, mas suficiente para perceber que ela não estava ditando um discurso e tampouco estava apresentando a defesa da sua tese de mestrado. Ela estava simplesmente conversando sobre a vida, contando casos, isso que a gente faz em mesa de bar.

Por um instante, supus que no outro lado da linha haveria um excelente ouvinte. Mas não me surpreenderia se fosse outra pessoa que também não parasse de falar. Porque nesse ponto chegamos: escutar, hoje em dia, é o de menos. A parte desimportante da convivência.

Aprecio a concisão, logo, fico meio impressionada com quem dá voltas sobre o mesmo tema, com quem reproduz diálogos inteiros (“Então ela disse isso, e ele respondeu aquilo, e ela retrucou assim, e ele então falou que...”), com quem entra em detalhes desnecessários a fim de espichar a conversa, com quem não finaliza o pensamento, e sim emenda um no outro até que se perde: “Onde é que eu estava mesmo?”.

Estava encantado com o som da própria voz. Encantado por ainda existir comunicação verbal nesse mundo de tantas abreviações digitais. Encantado por ser o narrador, o protagonista da cena. Quem não? Somos todos meio italianos, principalmente em mesas de bar, onde todos falam, ninguém escuta ninguém e voltam todos para casa embriagados de afeto e amizade.

Mas escute: se alguém ainda silencia e presta atenção no que você diz (não vale o analista), leve em conta o romantismo dessa atitude, a declaração muda que está sendo oferecida carinhosamente a você. Como diz um amigo meu, amar nada mais é do que ouvir com prazer histórias que não nos interessam.

Do outro lado da linha daquela mulher siciliana talvez houvesse um homem apaixonado. Prefiro essa ilusão do que imaginar que era outra matraca que também não escutava nada.

mar­thamedeiros@terra.com.br

quarta-feira, 16 de setembro de 2015


16 de setembro de 2015 | N° 18296 
MARTHA MEDEIROS

Rock at home


Onde você está agora? No quarto, no escritório, no ônibus? Aliás, que horas são agora? É de manhã, é de tarde, você está entediado, aborrecido, feliz da vida?

Difícil estar feliz da vida diante da situação desalentadora do país e do nosso Estado, mas há que se buscar pequenos prazeres para seguir adiante, e é o que estou fazendo. Neste exato instante (você já pensou sobre a distância que separa o momento em que escrevo e o momento em que você me lê?) estou tomando um cálice de vinho (é noite!) e escuto o novo CD de uma banda que me reconecta com o espírito que eu tinha aos 16 anos e que permanecerá comigo pra lá dos 90 – velhinhas também escutam rock.

O disco: 1 Hopeful Rd, da banda californiana Vintage Trouble, que surgiu em 2010 resgatando um rhythm’n’blues que anda meio esquecido nesta era de música eletrônica, bate-estaca, tum-tum-tum. Já falei dessa banda em sites, blogs, postagens no Face, agora falo no jornal porque sei que roqueiros clássicos sobrevivem por aí, feito dinossauros que se negam a entrar em extinção.

A primeira faixa do disco é vigorosa demais pro meu gosto, mas da segunda faixa em diante é um passeio na estrada. Não sou colunista de música, especialista em nada, então escute por sua conta e risco, mas algo me diz que você irá gostar de pegar essa carona comigo.

Por enquanto, a banda ainda toca em bares mundo afora, em pubs, espaços pequenos (eu assisti ao Barão Vermelho pela primeira vez numa boate que me permitia estar a cinco metros de Cazuza, no mesmo plano, sem distância entre palco e plateia), mas Vintage Trouble já está abrindo shows para o The Who e o AC/DC. Não tenho dúvida de que em breve brilhará sozinha em grandes palcos. Se ela estivesse no Rock in Rio, que começa na próxima sexta-feira, eu marcaria presença na fila do gargarejo, extasiada.

Ao mesmo tempo que divulgo e enalteço a banda, sei que posso estar dando um tiro no pé e eles nunca passarem de azarões, virarem aqueles que quase chegaram lá, quase estouraram, quase lançaram hits. Mas precisamos mesmo de ídolos que chegaram lá? Não basta chegarem a nós?

Ainda estou aqui. Ainda tomando um vinho. Se você está trabalhando e é de dia, me compreenda e relativize, a noite logo chegará pra você, eu ainda estou no ontem – e o rock, neste minuto, toma conta do recinto.

Às vésperas de mais uma edição do maior festival do gênero, me rendo à nostalgia. Estive no primeiro Rock in Rio, em 1985, e continuo até hoje fiel a esse som que perdeu o seu caráter transgressor, mas que ainda exerce sobre mim um efeito que o jazz, a bossa e o samba, por mais sensacionais que sejam, não atingem. O efeito de me fazer sentir viva, a despeito das notícias da primeira página. Tim-tim.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015



09 de setembro de 2015 | N° 18289 
MARTHA MEDEIROS


Que horas ela volta? 

Em junho passado, o ator e colunista da Folha de S. Paulo Gregório Duvivier publicou um texto chamado “Nos países em que você lava a própria privada, ninguém mata por uma bicicleta”. 
Muitos elogiaram, compartilharam, mas uma coluna de jornal não é suficiente para mudar a cabeça de um país. Se o texto dele foi um importante tijolinho, no cinema temos um tijolaço que também pode ajudar a construir uma nova mentalidade nacional. Trata-se do excelente Que Horas ela Volta?, da diretora Ana Muylaert, com a extraordinária Regina Casé.

O filme conta a história de uma empregada nordestina que trabalha e mora na casa de uma família do Morumbi, bairro nobre de São Paulo. Ela praticamente criou o filho dos patrões, enquanto que não vê a própria filha há anos, desde que a deixou em sua terra para tentar a vida no Sudeste. Até que um dia a jovem chega a São Paulo para prestar vestibular e viver com a mãe.


Nem um pouco submissa, ciente de seus direitos de cidadã, a garota revoluciona o cotidiano familiar regido pelo tradicional “cada um que conheça o seu lugar”. Ela realmente conhece o dela, só que não é o mesmo de sua mãe, que está habituada a diminuir-se e resignar-se, e que se horroriza com a “insolência” da filha. 

 Em duas horas de projeção, está tudo ali: a invisibilidade do proletariado (a empregada serve os canapés numa festa em que nenhum convidado olha para seu rosto), a gentileza que procura atenuar a culpa pela diferença de classes (a patroa compra um colchão melhorzinho para a garota que dormirá no quarto da mãe, assegurando assim que ela não ultrapassará as fronteiras da ala íntima da casa), tudo embalado na boa intenção que mascara a perversidade da desigualdade. Segundo a própria diretora, o filme trata sobre “as regras sociais invisíveis que nos regem, muitas vezes, sem nossa própria consciência”.

Essas regras invisíveis são desvendadas no filme com tanta veracidade, tanta familiaridade, que se tornam perturbadoras. A certa altura, a personagem de Regina Casé tenta explicar para a filha que ela não pode aceitar os agrados dos patrões, pois eles oferecem sorvete e convidam para sentar na sala apenas por educação. “Eles têm certeza de que diremos não”. Até que a classe emergente começa a dizer sim, a reconhecer o verdadeiro lugar a que pertence, e a pirâmide desestrutura-se.

A que Horas ela Volta? sintetiza o momento atual do Brasil, evidencia as razões dessa guerra de nervos partidária, expõe o estresse gerado quando uma teoria demagógica se aproxima da prática, revela o indisfarçado incômodo de assistir à ascensão intelectual e econômica de quem, até então, existia apenas para nos servir. Enfim, escancara o susto gerado pela perspectiva de que todos terão que lavar sua própria privada um dia.

sábado, 5 de setembro de 2015




06 de setembro de 2015 | N° 18286 
MARTHA MEDEIROS

Homens e mulheres: por que isso nunca vai dar certo


Amada, não se apavore com esta mensagem, apenas preste atenção. Sofri um acidente. Silvia me trouxe para o hospital. Vou entrar em cirurgia daqui a pouco, os médicos estão apenas esperando o resultado de alguns exames. Fui atropelado por uma moto. Sofri alguns cortes profundos nas costas e meu joelho está destroçado. Dói muito, mas estou tentando ser forte. O sangramento já foi contido. Por favor, venha assim que puder, estou no setor de emergência do Hospital Nossa Senhora da Purificação, entrada pelos fundos. 


O atropelador fugiu, mas duas testemunhas se apresentaram para prestar depoimento. Há uma capela aqui, reze pelo seu marido. Traga a carteirinha do convênio. O celular está comigo, como você pode perceber. Avise o pessoal do escritório. Não demore. Amo você.”

“Quem é Silvia?”

Querido Ricardo, não adianta falar pessoalmente porque você não me escuta, então resolvi mandar essa mensagem pelo Face, onde fico mais à vontade para me abrir. Depois do que aconteceu na terça-feira, eu refleti muito e concluí que você não está levando em consideração tudo o que faço para salvar nosso namoro: me dedico à sua família, à sua casa, aos seus amigos, isso sem me descuidar um minuto da nossa relação. 

Sempre fui solícita aos problemas de todos, enquanto que você não presta atenção em nada relacionado a mim, sempre focado na sua cerveja, no seu time e nas necessidades imediatas do seu dia a dia, nunca atento ao que realmente interessa e sem perceber como me deixa sobrecarregada. Custa você ser mais participativo? 

Claro que custa, você só tem olhos para o próprio umbigo. Provavelmente se considera um eleito que nada precisa fazer a não ser existir, e os outros que se encarreguem dos problemas. Cansei, Ricardo. Essa mensagem é para dizer que estou indo embora. Terminamos aqui. Vou em busca de alguém que divida comigo as preocupações e os prazeres, que queira investir em mim, em um futuro partilhado, que deseje filhos e um teto em comum. Você só me enrola e já percebi que jamais irá dizer o que desejo escutar. Estou destruída, mas vou me reerguer. Nem perca seu tempo me procurando, não mudarei de ideia, não importa o que você diga.”

“O que aconteceu na terça-feira?”


06 de setembro de 2015 | N° 18286 
CARPINEJAR

Ele morreu me dando a mão


Sou um mensageiro, um carteiro à paisana. Desde pequeno, sinto que psicografo os vivos para os vivos. Mas não imaginava que pudesse estar envolvido seriamente num outro casamento.

Descobri que o aposentado Luiz Fernando, 60 anos, conhecido como Beliche pela família, morreu segurando o recorte de minha crônica “O amor depois do divórcio”.

Ele dormiu numa quinta-feira, em 4 de abril de 2013, e não acordou mais, devido a uma parada cardíaca.

Durante um mês, não tirou o texto publicado em Zero Hora (17/3/2013) dos seus bolsos. Transportava da calça ao casaco. Virou sua segunda identidade: amassada, dobrada, com a tinta curtida do braile da releitura.

Não largava a proximidade com aquelas palavras, que se transformaram em seu pingente de São Jorge, seu escapulário de papel, cortado bruscamente com as próprias mãos da revista Donna.

Entregaria a crônica para sua ex-mulher Ana Maria. Estavam separados havia cinco meses, depois de 15 anos dividindo a mesma casa.

Angustiado com o fim da relação, porém esperançoso de que isso não significava o fim do amor, naquela confusão de não prever o que virá e buscando corrigir os seus erros.

Ele decidira não continuar distante da paixão de sua vida, apesar das brigas e dos desentendimentos, só que faleceu a uma semana da audiência de divórcio.

Luiz Fernando acalentava o sonho de ler a crônica em voz alta na sessão do Juizado. Planejara uma reaproximação maiúscula, contundente, definitiva. Seria sua forma de pedir desculpas e assinalar o quanto aprendera com a distância e o sofrimento.

Vinha decorando o meu texto, memorizando letra por letra, vírgula por vírgula, sendo dono da reflexão mais do que eu já fora um dia:

“Viram que o príncipe se vestia mal, e o sapo coaxava bonito. Viram que não existe demônio ou santo no amor. Não existe certo ou errado, existe o amor e ponto. Este amor provisório, inconstante, inacabado e vivo.

Este amor pano de prato, não toalha de mesa, mas que serve para secar a louça e as lágrimas. Quem era ciumento retorna equilibrado, quem era indiferente regressa atento”.

Fui sua última carta, fui sua confissão, fui seu testamento, fui sua boca murmurando beijos, fui seu braço formigando abraços, fui o seu derradeiro aceno.

Ele nunca declamou a crônica para sua ex-esposa, nunca expressou o quanto amargava a ausência de sua companheira, nunca admitiu a saudade feroz e inimiga que consumia a sua paciência.

O que ele não desconfiava é que Ana Maria também queria se reconciliar.