sábado, 8 de outubro de 2016



08 de outubro de 2016 | N° 18655 
MARTHA MEDEIROS

Voo solo

Vivemos num mundo em que a independência, a liberdade e a autonomia são hiperconsideradas. No entanto, as pessoas ainda se sentem intimamente aterrorizadas com a perspectiva da solidão, mesmo que momentânea

Cheguei faz pouco de uma escapada: passei uma semana sozinha em Nova York. Cruzei por lá com outros viajantes desacompanhados, gente do mundo todo, dos 18 aos 80, mas parece que essa realidade ainda causa desconforto para aqueles que não se imaginam fazendo o mesmo. Na volta, ao entrar no táxi que me trouxe do aeroporto pra casa, o motorista puxou assunto e me questionou se eu gostava de viajar desse modo. Prefiro viajar com namorado, respondi, mas, se estou num período de entressafra, vou igual e gosto muito. Ele sentenciou: Você pensa que gosta.

Do alto de seu desconhecimento a meu respeito, ele decretou que eu mentia para mim mesma. Petulância facilmente explicável: é mais fácil duvidar do desprendimento dos outros do que assumir a própria incapacidade de se satisfazer consigo próprio.

Vivemos num mundo em que a independência, a liberdade e a autonomia são hiperconsideradas. É o que queremos para o país que a gente vive, é o que desejamos de uma profissão, é o que pretendemos para nossos filhos ao se tornarem adultos. Valores que dignificam o caráter e que tornam as relações mais íntegras e verdadeiras. No entanto, as pessoas ainda se sentem intimamente aterrorizadas com a perspectiva da solidão, mesmo que momentânea.

Em Nova York, conversando com uma jornalista inglesa, viajando sozinha também, falamos sobre a delícia de caminhar pelas ruas sem pressa, entrando e saindo de galerias de arte, de lojas, de parques, no total controle do nosso tempo e da nossa vontade. De se permitir, em um museu, ficar 10 minutos em frente a cada quadro, ou passar por todos dando uma rápida conferida e tchau. 

De ir a shows, de pegar o metrô e de alugar uma bicicleta sem precisar submeter-se às concessões habituais de quem viaja em dupla ou com um grupo. Discordamos apenas sobre as refeições: almoçar sozinha num bistrô, com mesa na calçada a fim de testemunhar o passeio dos outros, me diverte, mas troco o jantar por um piquenique no quarto do hotel, acompanhada de um bom livro. Já a inglesa disse que era a parte que mais gostava – à noite, escolhia um restaurante estrelado e proporcionava a si mesma um banquete de rainha sem o menor constrangimento.

Por que a maioria das pessoas não consegue nem cogitar uma jornada a sós? Os que se sentem atraídos pela ideia dizem que é por falta de coragem, mas o mais provável é que seja por vergonha. Nem pensar em dar a impressão de ser um abandonado por Deus, de não ter um mísero amigo com quem se aventurar pelo mundo, de ter que enfrentar o olhar piedoso dos casais. Ninguém acreditará que foi uma escolha, e sim a única alternativa de um rejeitado.

Enquanto se dá trela para a opinião dos outros, melhor seria aceitar que você, o tempo inteiro, está na melhor companhia que se pode desejar.



08 de outubro de 2016 | 
N° 18655 CARPINEJAR

Sindicalismo do amor

Quem cobra perde a razão, essa é a parte triste do amor. Aquele que não está recebendo atenção, deixado de lado, passa a reclamar incessantemente e começa a ser o chato da relação.

Encarna a obsessão do grevista, da passeata, do protesto. Interrompe o trânsito das palavras para defender o seu ponto de vista.

Sacrifica a espontaneidade para salvar a vida a dois. Não gostaria de estar resmungando, mas a passividade e a indiferença só vêm piorando as condições de convivência. Não tem o que fazer. Ou é gritar contra a rotina ou é se conformar com a infelicidade.

Tornou-se o sindicalista da emoção, a CUT da emoção. Acabou a paz da confiança, o que se escuta é buzinada e megafone na cama. Fala diante de qualquer gesto que frusta a sua expectativa. Pede reajuste sexual e de ânimo e não se envergonha de se expor ao risco da demissão.

Da mesma forma que é legítima a luta pela reforma agrária do coração, ela também inviabiliza o andamento natural da casa. As ladainhas provocam um mal-estar de permanente rivalidade. Tudo é motivo para DR. Ou é ausência de opinião ou é egoísmo. Ou é uma fala torta ou é falta de mensagens. As insatisfações não têm trégua. O lado ofendido só redunda o pessimismo e estabelece uma comparação injusta com a época de apaixonado.

É como um jogo de futebol que para a todo momento, cheio de faltas e cartões. Não há mais emoção da torcida e os gritos de apoio – mas somente vaias e ameaças. Fazer as malas vem à tona com o cansaço dos debates e tensiona o futuro.

Dificilmente o relacionamento amadurecerá e ganhará viço. É um caminho sem volta.

O sindicalismo sentimental não costuma vencer as suas batalhas. A outra parte fica desprovida de margem de manobra para errar e se isola, acuada e agressiva, no orgulho ferido. Não tem tempo de corrigir o comportamento, pois vai responder um problema e é lembrado de um novo.

Já não dá para discernir se quem protesta realmente espera dias melhores e uma conversão súbita ou deseja somente provar que a sua companhia não presta e que não vale a pena insistir.

O ideal é alternar momentos de reivindicação e de incentivo, revezar as críticas com as juras, e não banalizar as cobranças e profissionalizar a dissidência. Não é possível se recuperar sob pressão. A angústia mata a criatividade do amor.



08 de outubro de 2016 | N° 18655 
LYA LUFT

Ser quem somos

Acabo de ler um livro muito interessante, ainda não traduzido aqui, She’s not there (Ela não está lá), da Random House, da professora universitária, autora de várias obras, inclusive ficção, colaboradora de jornais importantes dos Estados Unidos Jennifer Finney Boylan. Ela também é transgênero: nasceu menino, sempre se sentindo menina. (Transgêneros nos Estados Unidos começam a se revelar mais, embora ainda com problemas – preconceito é o principal.)

Numa entrevista dela numa TV americana, anos atrás, eu soube que aquela Jennifer discreta e tranquila antes fora James – casado com uma mulher com quem teve dois filhos, numa parceria amorosa, até que James começou a lhe revelar seu tormento: tinha nascido no corpo errado. Agora queria levar isso adiante, mudando de gênero: médicos, hormônios, cirurgias, psiquiatras, terapia individual e de casal.

Graves crises, angústia das duas partes, mas não queriam se separar. Depois de dois anos, James já se chamava Jennifer, agora com documentação correta, até certidão de nascimento. A esposa lhe deu um incrível apoio apesar das incertezas, pois dizia: “Eu ainda amo a pessoa que agora é Jenny, pelas suas grandes qualidades humanas. Não saberia viver sem ela”. Os dois filhos pequenos não tiveram nenhuma crise séria e até inventaram um nome para Jenny: “maddie”, mistura de mamma e daddy. Bem orientados, amados, acompanhados, hoje são universitários bem-sucedidos.

James havia tirado um ano sabático na faculdade onde, professor prestigiado, lecionava há muitos anos; depois, já como Jenny, escreveu uma carta aos colegas e à direção, expondo sua realidade e dispondo-se a aceitar a demissão. Para surpresa sua, foi recebida com respeito: nessa mesma faculdade, havia três professoras transgêneras, fato de que nem ela sabia.

Eventualmente troco e-mails com a professora Boylan, pois quero traduzir o livro acima mencionado mas ainda não encontrei editora. Acompanho (no YouTube) algumas das suas palestras em universidades e me impressionam a seriedade, sabedoria e leveza com que fala e age. Alta e magra, cabelo claro comprido e liso, sem maquiagem, tranquila e bem-humorada, essa mulher, com sua bravura e o apoio de pessoas amadas, venceu a luta essencial: saber quem somos, quem queremos ser – e realizar isso, não necessariamente em questão de gênero, mas escolhas diversas, trabalho, parceria, vida.

Esta coluna nasce da tristeza que me causa qualquer preconceito, mistura de desinformação, arrogância e medo, com que tão prontamente rotulamos as coisas humanas: sexo, política, jeitos de ser. Somos pouco solidários com o outro, sobretudo se não combina com nossos conceitos. Quantas amizades se desfizeram nestes tempos por razões políticas? Quanto sofrimento, no mundo inteiro, de pessoas que não cabem em padrões (quem os inventou?): altos, baixos ou gordos, intelectualizados ou simples, extrovertidos, quietos, nervosos, masculinizados, efeminados, e sabe lá o que mais.

Um pouco de respeito ao diferente não nos faria mal. Todos temos a nossa dor. Todos queremos compreensão, oportunidade, esperança – e, com sorte, afeto. E em geral merecemos isso.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016


05 de outubro de 2016 | N° 18652 
MARTHA MEDEIROS

Tem alguém aí?

Eu achava que detinha algum conhecimento, ao menos o suficiente para conseguir atravessar os dias identificando o terreno onde pisava. Lembro inclusive de ter sido uma criança com ares de veterana, topetuda, mas o tempo passou, a roda girou, e hoje, à medida que os dias se sucedem, mais amadora me sinto. 

Em algum momento dei uma cochilada e esse breve instante de distração foi suficiente para o mundo fazer um looping e me desalojar. Acordei agorinha e estou me desconhecendo. Não me transformei numa barata, e sim numa moscona – cada um com sua metamorfose. O fato é que não sei de mais nada. Estou nauseada, boiando nesse mar de opiniões contundentes. Quero voltar a pisar em terra firme, mas para isso preciso que alguém me resgate.

Tem alguém aí? Tem alguém aí que ainda duvide de alguma coisa? Dúvida é a ausência de certeza. Não costumava ser pecado mortal ter dúvida, tínhamos várias e de certa forma era um estado de alerta positivo, nos conduzia à investigação, ao aprofundamento dos fatos e de nós mesmos. Só que para esclarecer as dúvidas era preciso paciência.

Tem alguém aí com paciência? Paciência é a virtude de saber esperar e de ser perseverante. Esperar. Lembra esperar? É, faz tempo. Coisa que não há mais. Não há mais tempo para pensar antes de responder, pensar antes de agir, pensar antes de acusar, pensar antes de ofender. Ninguém dedica nem dois minutos a fim de se portar com civilidade, nem meio minuto para escolher entre o sim e o não. Hesitou, perdeu. Azar o seu.

Tem alguém aí com compaixão? Compaixão é o sentimento de identificação com quem sofre ou passa por dificuldades. Muito nobre, mas para que serviria compaixão, alguém saberia dizer? Temperar saladas, evitar rugas, ganhar dinheiro? Antigamente servia para temperar amizades, evitar conflitos, ganhar paz de espírito. Pouco lucrativo, entendo.

Tem alguém aí não querendo ganhar nada com isso?

Agride-se. Persegue-se. Humilha-se. Debocha-se. Patrulha-se. Quanto mais se pega no pé, mais se ganha em estatura. Se eu flagro o outro no erro, ponto pra mim. Deixo claro que o bom sou eu. Que o certo sou eu. É a forma mais rápida de se autoelogiar sem dar muito na vista.

O que tenho visto? Muita gente eloquente, inteligente, posicionada, articulada, bem-resolvida, politizada e não aceitando vacilações: julgamento sumário para quem não estiver do meu lado. Em outra encarnação, devo ter tido carteirinha desse clube, mas como eu dizia no início do texto, dormi no ponto, não paguei todas as mensalidades, mosqueei.

Tem alguém aí que não é tão bom? Que não sabe tudo? Que está meio perdido? Então segura aí, me espera, vou com você. Também não estou me achando.

sábado, 1 de outubro de 2016



01 de outubro de 2016 | N° 18649 
LYA LUFT

Eterno tema


Sim, em algumas coisas sou repetitiva: quando me empolgam ou causam ansiedade. Educação é um desses meus temas. Sou de uma família de professores: meu pai, diretor de uma Faculdade de Direito, onde foi professor. O pai de meus filhos, grande mestre. Por breves anos, lecionei linguística num curso de Letras. Meu filho mais moço é professor de filosofia na PUC. E todos os meus sete netos estudam, nos mais variados níveis. Educação me interessa muito – e me assusta.

Será ela o primeiro assunto em qualquer governo, ou será segurança? – indagamos nessas conversas de temas hipotéticos. Quando não andamos seguros nem até a esquina, certamente segurança é primordial, para que pais, alunos e professores ao menos possam ir às escolas. Mas, fora dessa circunstância tão anormal em que vivemos, ponho acima de tudo a educação, que nos ajudará a termos saúde, segurança, trabalho e o resto. 

Educação: informação, para não sermos ignorantes, e valores para a nossa moralidade (não moralismo, cuidado!). Nossa educação anda pertinho do fundo do poço. Até na faculdade recebemos alunos que não conseguem escrever pois não sabem coordenar pensamentos, não aprenderam a observar, a argumentar, coisa que implicaria até filosofia na escola, sim: não é preciso ensinar Platão a meninos de 10 anos, mas fazê-los usarem sua inteligência.

Autoridade faz parte de educar, conceito que tem sido rejeitado, ridicularizado. Certa vez, numa conversa com jornalistas antes de iniciar uma palestra, perguntaram o título da minha fala, e respondi: “Educação e autoridade”. Um dos rapazes arregalou os olhos: “Autoridade?”. Pois é: aquilo que ensina que algumas coisas pode, outras não pode; que existem o sim e o não, e consequências dos nossos atos. 

Autoridade (começando em casa) não é chicote, puxão de orelhas, castigo no quarto escuro, mas orientação sem forçamento de barra ou de emoções, dando alguma forma ao mundo – que para crianças ainda é uma massa informe, confusa, às vezes bonita, outras assustadora. A vida com algum rumo não fica sem graça: é menos angustiante.

Rigor no ensino é outro fantasma detestado. “Rigor” não quer dizer campo de concentração, mas exigências segundo a possibilidade de cada um. Quando lecionava, e não fui boa nisso, muitas vezes disse sinceramente a meus alunos: “Vocês são muito melhores e mais inteligentes do que a universidade, a sociedade, a família e vocês mesmos pensam ser”. Isto é, mais capazes de esforço, aprendizado, crescimento pessoal. Podia soar estranho num ensino no qual é preciso caprichar para ser reprovado, e a mera ideia de reprovação causa horror.

“Respeito” começa por respeito a si mesmo: falta de educação não ajuda, bater grandes papos, usar celular para falar ou jogar em aula, ironizar ou insultar um professor (ou bater nele...) – são mau gosto e vulgaridade. Uma certa harmonia e respeito mútuo seriam grandes vantagens para os alunos, mas isso vem de casa.

Os currículos devem ser mudados? Sim!!!! Desde que não seja para tornar tudo ainda mais superficial ou fácil. Mas acabou o espaço desta coluna: que alívio. O assunto me dá calafrios.




01 de outubro de 2016 | N° 18649 
MARTHA MEDEIROS

FATOR UAU

O que impede o avanço de algumas iniciativas é a ausência do fator uau e está dito, nada a acrescentar. Estava assistindo pela tevê uma matéria sobre o legado que a Olimpíada de Londres deixou em 2012, quando me deparei com uma expressão que explica muita coisa que acontece na vida da gente. Eles citaram certos prédios ingleses que prometiam ter vida útil depois dos Jogos, mas que se transformaram em elefantes brancos porque careciam do que os britânicos chamam de Fator Uau.

Fator uau? Que poder de síntese. Duas palavrinhas, sendo que uma delas nem palavra é, e sim uma força de expressão, uma onomatopeia, sei lá: como se classifica “uau” dentro da gramática?

O que importa é que me valeu por inúmeras sessões de terapia, eu que já nem faço terapia. O que impede o avanço de algumas iniciativas é a ausência do fator uau e está dito, nada a acrescentar. Nem precisaria continuar com essa reflexão, mas como tenho uma coluna para preencher, continuarei, pegue uma carona comigo se interessar.

Você conhece uma pessoa simpática, inteligente, enfim, com os atributos básicos para motivar você a tomar ao menos um café com ela. E aí a relação de amor ou de amizade se inicia, corre tudo bem, mas você não consegue levar adiante por muito tempo e seus amigos não entendem a razão de você ter desistido tão cedo. O que aconteceu? 

Não aconteceu nada. Justamente isso. Nada. Faltou o fator uau, o encantamento diante do sorriso do outro, de suas histórias, de seu jeito. Faltou a palpitação diante da promessa de um novo encontro, faltou contar no relógio quantas horas faltavam para revê-la, faltou a sensação de ter em mãos um bilhete premiado, faltou o fascínio. O indispensável fascínio.

Você confere, gosta, mas não pretende repetir a experiência. Quantas vezes já passamos por isso, e não falo apenas sobre encontros pessoais, mas também de visitas a cidades, idas a restaurantes, leitura de livros.

Você lê um autor e pensa: ok, não foi um tempo perdido. Mas não correrá até a livraria para adquirir todos os títulos dele que encontrar.

Você conhece Berna e pensa: ok, bela cidade. Mas não volta à capital suíça como já voltou, ou pensa em voltar, a Paris, Istambul, Marrakesh.

Você jantou em diversos locais uma única vez e nunca mais. A comida estava ruim? Não exatamente. O ambiente era bonito? Bonitinho. Animado? Mais ou menos. O que aconteceu? Nada.

Ao contrário da garotada aventureira que se empolga com tudo e tem tempo de sobra para construir seu repertório, você não tem mais tanta vida pela frente para desperdiçar com o que não excita, não surpreende, não deixa você entusiasmado de verdade. Se é para ser meia-boca, mais vale deixar pra lá e dedicar-se a seus prazeres confirmados. Ok, bela cidade. Ok, jantar agradável. Ok, consegui me manter acordado durante a conversa. Mas ok é ok. Não é uau.



01 de outubro de 2016 | N° 18649 
CARPINEJAR

Luto televisivo

Hoje entendo perfeitamente a depressão materna com o fim da novela Roque Santeiro em minha adolescência. Ela se calou por semanas, ficava irritada por qualquer casualidade, não conseguia dormir. Perambulava pela casa durante a madrugada com um copo de água na mão.

Foi o nosso período de maiores castigos e xingamentos, ela que sempre foi doce e compreensiva. Mas tinha se viciado naquela história do casal estrambólico Sinhozinho Malta e viúva Porcina.

Experimentou um luto televisivo. Era a morte de seu lazer noturno. Seu programa predileto, após meses de exibição diária, deixava de existir. De repente, sumia. Como ocuparia o seu lugar? Assistir à novela seguinte seria o equivalente a uma traição. Entrava, então, no vazio existencial da abstinência.

Reproduzi a mesma amarga sensação quando terminei a quarta temporada de House of cards. Emendei noites para acompanhar a saga do casal político inescrupuloso Underwood. Em toda fresta do trabalho, pegava o meu computador e avançava na trama. Quantas vezes enganei a minha mulher e permaneci acordado madrugada adentro com fones de ouvido e uma barreira de travesseiros para disfarçar a luminosidade da tela?

Ao encerrar os 52 episódios até hoje filmados, mudei de personalidade. Cai em melancolia profunda. Abriu-se uma cratera entre o desejo e a realidade. Perdi o apetite, não tinha mais vontade de falar, arrastava os sapatos pelos corredores, não rendia no trabalho, desanimei com as crônicas. Foi como uma gripe emocional, uma virose na alma. Andava apático e de olhar paralisado, contínuo, sem comercial. A esposa já projetava consulta psiquiátrica. Os filhos já devolviam as mesadas. Os amigos começaram a se revezar no telefone.

Eu não estava preparado para esperar na fila das estações uma nova temporada. Não elaborei um plano B. Havia uma eternidade pela frente, um futuro árido longe dos meus personagens de estimação.

Não me curei ainda. Sofro uma fissura violenta, semelhante à recaída por cigarro. A minha panaceia é a promiscuidade no Netflix, assistir quatro séries simultaneamente para ocupar o tempo.

Sou orgulhoso como a minha mãe. Não aceito ajuda.

Talvez a minha mãe seja ainda pior, sequer admite que assiste novela. Quando vou visitá-la de noite alega que deixou a tevê ligada.



01 de outubro de 2016 | N° 18649 
PALAVRA DE MÉDICO

Ser feliz é previsível?

As boas relações sociais nos mantêm mais FELIZES E SAUDÁVEIS

Uma pesquisa americana, feita com jovens nascidos entre os anos 1980 e 1990, mostrou que quase 80% deles referiu que tornar-se rico era o principal objetivo da vida, e quase metade desses admitiu que ambicionava tornar-se uma pessoa famosa. E estavam determinados a trabalhar duro, tanto quanto fosse necessário, para alcançar estas metas. Mas, e se essas pessoas fossem seguidas durante anos e décadas, estes objetivos se manteriam?

Numa das mais interessantes conferências do TED, este site de tanto sucesso na internet, o professor Robert Waldinger, quarto diretor de um projeto de pesquisa da Harvard (Estudo sobre o Desenvolvimento Adulto), tratou de responder a essa pergunta, relatando os resultados do acompanhamento de 724 indivíduos de diferentes classes sociais durante, pasmem, 75 anos. A pesquisa envolveu duas populações socialmente diferentes: um grupo de ricos, egressos da Universidade de Harvard, e outro de trabalhadores humildes do porto de Boston.

Em consultas periódicas, registraram o que aconteceu ao longo da vida dessas pessoas e não precisaram confiar na memória que, como se sabe, frequentemente é falha ou criativa. As revelações mais significativas, referentes a felicidade, não diziam respeito a dinheiro, nem fama, nem a trabalhar mais e mais na busca de seus objetivos.

A lição mais importante: as boas relações sociais nos mantêm mais felizes e saudáveis, enquanto que a solidão é mortal. Quando foram revisados os prontuários desses indivíduos, verificou-se que não foi o nível do colesterol medido aos 50 anos que determinou como eles estariam aos 80 anos – foi o grau de satisfação com suas relações pessoais. Entre os felizes aos 50 anos estava o maior número de octogenários saudáveis e contentes. Algumas conclusões interessantes:

-As relações sociais nos fazem bem, enquanto a solidão nos flagela. As pessoas que têm mais relações sociais com a família, com os amigos ou com a comunidade são mais felizes, têm uma vida mais saudável e vivem mais tempo, enquanto solitários são mais tristes, a saúde declina mais rapidamente na meia idade, a atividade cerebral definha mais cedo, e eles vivem menos.

-É importante a qualidade das relações. É possível sentir-se só no meio de uma multidão ou no casamento. Relações sociais conflituosas são péssimas para a saúde, e um divórcio é certamente menos danoso do que um matrimônio sem afeto.

-Entre os pesquisados, ficou claro: aqueles que mantiveram interações amistosas e afetivas conseguiram chegar aos 80 anos mais felizes e mais saudáveis, apesar do consenso de que as relações pessoais, muitas vezes, são complicadas e nem sempre conseguimos manter um diálogo generoso, porque, afinal, somos humanos, com todas as nossas idiossincrasias.

-Durante as consultas anuais por telefone, com o objetivo de saber como estavam, várias vezes os entrevistados disseram: “Estou bem, na minha vida não acontece nada importante para vocês seguirem preocupados comigo!”. Curiosamente, nunca se ouviu este comentário quando o entrevistado era ex-aluno da Harvard, mostrando que a autoestima dos dois grupos era muito diferente.

-Na investigação da qualidade de vida x doença, uma revelação interessante: as pessoas que tinham relações pessoais múltiplas e carinhosas referiram que, quando adoeciam, as dores físicas eram minimizadas pela proximidade dos amigos afetuosos, enquanto nos solitários eram potencializadas pela sensação de abandono.

Em resumo, confirma-se a reciprocidade do afeto energizada pelo querer bem como o melhor tônico para se viver mais e melhor. Como somos seres originalmente gregários, não nos bastamos. E deixados sós, definhamos.


Lançamento do livro O que cabe em um abraço, de J.J. Camargo
Exclusivo para membros do Clube do Assinante.

Em 7 de outubro, das 16h30min às 18h30min, na Casa Destemperados (Rua Marquês do Herval, 82, Porto Alegre). Os primeiros 50 sócios que enviarem um e-mail para clubedoassinantezh@zerohora.com.br informando nome e CPF receberão a confirmação para participar. Informações pelo WhatsApp do Clube do Assinante (51) 9701-0917 ou pelo telefone (51) 3218-4276.

sábado, 24 de setembro de 2016



24 de setembro de 2016 | N° 18643 
LYA LUFT

Belos, cálidos dias


A gente nasce sem querer, numa família não escolhida (ou cada alma escolhe a sua?), com uma bagagem de genes que nem Deus sabe direito no que vão dar – lançados no grande mundo, ainda por cima tendo de desempenhar direito nosso papel.

Que papel? O que a família exige? O que a sociedade espera? O papel que cobramos de nós mesmos enquanto corremos entre acertos e trapalhadas, dor e graça, tateando num nevoeiro de confusões, emoções, razões e desesperos – ou contentamento? Atores sem preparo, sem roteiro, sem papel e sem alguém que nos sopre nossas falas, nesse palco desmesurado e instável. Se for difícil demais, nos matamos de tristeza, de tédio, de medo, de solidão e vazio, ou por vingança por algo demais cruel. É quando não conseguimos desempenhar papel nenhum: escolheremos então o nada, se é que a morte é nada.

Mas em geral gostamos da vida, não nos matamos, até nos sentimos bem. Não que eu ache que somos farsantes ou falsos. Apenas fomos aqui plantados, em geral desejados, quase sempre amados, algumas vezes desamados, mal criados e erradamente educados. A gente comparece do jeito que dá, desde quando começa a ter consciência – acho que isso também ninguém ainda determinou (o Google não me deu muita certeza): quando começa a consciência de existir, e das coisas ao redor?

Minhas memórias se iniciam aos dois anos e pouco, deitada no assoalho claro da casa, espiando embaixo de um móvel grande e escuro, admirando bolinhas de poeira que dançavam segundo minha respiração: para mim, eram seres vivos. Ou sentada no assoalho da casa da avó que costurava, eu espiando alfinetes cintilantes entre as frestas das tábuas. Tudo era mágico naquele tempo, e eu não precisava ser nenhum personagem.

Mas a vida se impõe, com chamados, deveres, conselhos, promessas, agrados, punições, por mais brandas que fossem: havia uma ordem em tudo. E a gente tinha de se adaptar, para que os castigos (não ganhar sorvete, não poder brincar com as amigas) não fossem mais numerosos do que as alegrias. Na verdade, os castigos eram poucos, quase bobos, mas eu me assustava: alguma coisa chamada “des-ordem” existia, eu me enredava com ela. Todo mundo devia ser calmo, acomodado, pressuroso, obediente, não lembro mais todas as qualidades que nos faziam boas meninas e bons meninos naquele tempo quase remoto.

E as perdas: amados e amigos se vão, jovens ou já velhos, a gente soltando pedaços. Ou os afetos simplesmente empalideceram. Mas há os que chegam: maravilhosamente chegam filhos, netos, novos amigos, velhos amigos permanecem, os livros, os filmes, os quadros, as músicas, a montanha, o mar, as horas de encantamento, as viagens – e voltar para casa, doce “zona de conforto”. Acolhimento, segurança dentro do possível neste mundo em que o crime compensa, o cinismo floresce, a autoridade fracassa, a confusão impera, a mediocridade se impõe. Seja como for, vamos desempenhando ou reinventando nossos papéis, ou não os cumprindo e levando rasteira. Não é ruim, não é bom: é a vida.

Belos, cálidos dias de primavera. O país, quem sabe, começando a se mover para se recompor. Aquela criaturinha chamada esperança canta no peitoril da minha janela. Quem sabe, quem sabe?



24 de setembro de 2016 | N° 18643 
MARTHA MEDEIROS

A colunista está em férias. Esta coluna foi originalmente publicada em 15 de junho de 2003

Ilustríssimos


Por que cargas d’água somos tratados tão respeitosamente quando alguém está com vontade de nos enforcar?

Sua família sempre lhe chamou de Guto, tanto que você já nem lembra que nome realmente tem. É Guto pra lá e pra cá. Guto no jardim de infância, Guto no colégio, Guto no clube. Você tem todos os motivos, portanto, para ficar lívido e com as pernas bambas quando sua mãe grita lá da sala: Ricardo Augusto, venha já aqui. Ricardo Augusto??? Alguma você aprontou.

Por que cargas d’água somos tratados tão respeitosamente quando alguém está com vontade de nos enforcar? Sua mulher sempre lhe chamou de Beto: só lhe chama de Valter Alberto quando está a ponto de pedir o divórcio. E seu pai só lhe chama de Ana Beatriz quando avisa que a mesada será cortada. Por que cortar a mesada da sua Aninha, papai? A senhora sabe muito bem por quê. Você acaba de virar senhora com 14 anos.

Recebo um monte de e-mails carinhosos que começam com um simples Martha, ou Cara Martha, ou Prezada Martha, uma intimidade natural, já que de certo modo participo da vida das pessoas através do jornal. Mas, quando entra um e-mail intitulado Dona Martha, valha-me Deus. Respiro fundo porque já sei que vão me detonar de cima a baixo, vão me chamar das coisas mais horrendas, vão me humilhar até me reduzirem a pó. Mas leio tudo, pois lá no finalzinho encontrarei o infalível “Cordialmente, fulano.” Cordialmente é ótimo. Cordialmente, fui esculhambada.

E quando chega uma correspondência pra você em que no envelope está escrito “Ilustríssima”? Penso três mil vezes antes de abrir. Mas abro, mesmo sabendo que não é convite pra festa, pré-estreia de filme, desfile de moda, sessão de autógrafos ou inauguração de restaurante. Ilustríssima? Só pode ser convite para a palestra de algum PhD em física quântica, para comemoração do bicentenário de uma loja de molduras ou convocação para reunião de condomínio. Os ilustríssimos não merecem se divertir.

Agora, pânico mesmo, só quando me chamam de Vossa Excelência. Como não sou o Presidente da República, volto a pensar 3 mil vezes antes de abrir a correspondência, mas resolvo não abrir coisa nenhuma. Só pode ser do Judiciário. Intimação pra depor.


24 de setembro de 2016 | N° 18643 
CARPINEJAR

Chorar sobre o xampu derramado

A grande prova do amor feminino é dividir o xampu.

É um dos produtos que ela mais briga para conservar e menos se dispõe a partilhar. A cada banho, verifica o decréscimo dos mililitros. Aliás, xampu merecia vir com régua de mamadeira do lado de fora, tamanho o controle do néctar.

A guerra das mulheres contra bárbaros e invasores advém de longa data. Na infância, eram obrigadas a se precaverem da curiosidade dos irmãos e do pai e fiscalizarem o desperdício com rigor e olhar clínico. Para não correrem riscos desnecessários, algumas meninas não deixavam o pote à mostra na bandejinha aérea.

Vale a pena experimentar os limites da paixão da sua namorada por você. Não se furte do embate. Escolha o menor frasco (sempre o mais caro), encha a mão e espalhe com vontade pelo seu couro cabeludo. Gaste generosas quantidades durante uma semana sem parar, para consolidar a baixa no volume. Se ela não vier perguntar se anda usando o xampu dela e fingir que nada aconteceu, você conquistou definitivamente o coração de sua musa. Está acima do bem e do mal, dos cuidados com as mechas e madeixas, da neurose consumista.

Já aconteceu de namorada parar de falar comigo dois dias inteiros porque notou, quando foi me beijar, que colocava o seu xampu mais caro na barba:

– Não duvido que não tenha usado no sovaco e nos pentelhos.

Eu tinha, mas não confessei.

Passei por outra que terminou o relacionamento pois derrubei um pote de seu xampu Joico de R$ 200. Considerou o gesto da envergadura de uma infidelidade. E não qualquer infidelidade. Parecia que eu havia comido a sua melhor amiga. Gritava diante da cornitude da espuma.

Lembro o epitáfio verbal de nosso amor:

– Eu economizando e você joga tudo no chão. Não cuida de minhas coisas, nem vai cuidar de mim.

Liberdade mesmo encontrei com a minha esposa, Beatriz. Inventei de pôr uma máscara de caviar da Kérastase que achei em seu banheiro. Deve ser um salário mínimo em forma de condicionador. Faz um tempão que venho aproveitando o seu poder restaurador, com o claro objetivo de lustrar e perfumar a minha careca. Ela não reclamou até agora. Se bem que o grande teste virá quando ler o meu texto.

sábado, 17 de setembro de 2016


17 de setembro de 2016 | N° 18637 
CARPINEJAR

Terrorismo amoroso

Todo casado que trai e esconde esta informação merece ser torturado. Todo casado que põe a aliança no bolso para fazer maldades merece um castigo. Nem é para aprender a não trair, mas para aprender a não mentir.

Não custa nada dizer a verdade e admitir que está comprometido desde o primeiro encontro. Para os amantes que experimentam a desconfortável omissão, proponho que se divirtam criando o medo, já que dificilmente o outro lado desistirá do casamento. O medo é uma espécie estranha de respeito.

Veja como desmascarar a silenciosa pilantragem amorosa:

• Mande mensagem às 20h de sábado. Se ele somente responder no dia seguinte é casado.

• A pessoa não entra no seu mundo (porque é casada) nem lhe convida para o dela (porque é casada). Encontros sempre são genéricos em lugares neutros. Peça o seu endereço para enviar surpresas.

• Deixe chupão no pescoço ou marca nos braços. Só o casado terá vergonha.

• Telefone na frente dele para ver como ele lhe nomeou no celular, de repente você descobre que é uma pizzaria.

• O casado é preciso como um relógio suíço. Agenda hora para telefonar de volta: “Te ligo daqui a 20 minutos”. Não atenda e retorne em seguida. Certamente o cara estará ocupado com a sua esposa.

• Enfie, sorrateiramente, uma calcinha no bolso do casaco e avise que ele tem um presentinho pela noite passada. Se ele não devolver a calcinha, é porque jogou no lixo para eliminar provas.

• Se ele consulta o celular logo depois de transar, é casado. Se ele toma banho logo depois de transar, é casado.

• Todo telefonema do casado tem eco. Ele liga do carro ou do banheiro.

• O casado infiel não especifica relacionamento no Facebook. Poste uma mensagem marcando o sujeito. Caso não aceite, é casado.

• Convide para passear no shopping e tente abraçá-lo ou segurar a sua mão. Demonstrando pânico e suando frio, ele é casado.

• Pergunte onde ele trabalha e prometa aparecer uma hora dessas para um café. Na hipótese de ele desaparecer, é casado.

• Conte que você descobriu que tem vários amigos em comum, mas não revele nomes. Se ele não parar de questionar a identidade dos conhecidos, é casado.

• Mencione que vem saindo com outros homens. Na hipótese de ele não se opor ao flerte, é casado.

Esta é a grande diferença entre o homem e a mulher quando traem. A mulher não mente, jamais diz que não tem um relacionamento. Enfrenta a infidelidade com toda a honestidade.


17 de setembro de 2016 | N° 18637 
LYA LUFT

O rio do tempo e nós

Neste mês de setembro, ocorre a maioria dos aniversários de minha família: eu mesma, netas, filho, irmão, além dos que já se foram, como mãe e avó materna, sem contar os amigos. Suponho que tenhamos sido inventados nos cálidos meses de verão. Tenho, em relação ao correr do tempo, não amargura ou medo real, mas curiosidade – desde quando, menina mimada, bati o pé porque queria alguma coisa “agora”. Algum adulto presente achou graça e resolveu liquidar a minha manha: “Deixa de ser boba, o agora nem existe”.

Iniciou-se um diálogo surreal: a menina curiosa e teimosa insistia em saber que história era aquela.Explicaram que o tempo passa constantemente, de modo que, quando pronunciamos a última letra da palavra “agora”, esse agora já é passado. Obstinada, várias vezes tentei pensar a palavra “agora” empilhando as letras numa coisa só – mas desisti.

Então, a cada momento, tudo passava, mudava e já era outro? Eu já era outra? Comecei a me angustiar, eu me angustiava com coisas que pouco tinham a ver com crianças, que, segundo adultos de então, deviam brincar, comer, dormir e se portar bem. Ainda por cima, alguém com humor macabro me alertou: “O tempo só para de passar quando a gente morre”. (Assunto para outra crônica.)

Sempre tive vontade de ser adulta: achava a vida e os assuntos dos “grandes” muito mais interessantes do que os infantis. Detestava ser comandada, numa época de educação bastante severa: por que ir para a cama às sete e meia? Por que só comer comidinha inocente, como purê de batata e carne de frango? Por que não falar muito à mesa? Por que ter de aprender prendas domésticas como toda boa menina? Eu não queria ser uma boa menina: queria ser a Emília do Monteiro Lobato.

Aí fui vendo que a passagem do tempo não apenas significava transformação e novidades (parte boa para quem facilmente se entediava), mas também perdas, e para muitos o terror da perda da juventude.Tornou-se uma epidemia a busca desesperada por deter a qualquer custo os sinais do tempo: parecer trinta aos sessenta, ter lábios sensuais aos setenta – vale a pena?

A velhice (desde que não com o detestável nome de melhor idade) é uma fase natural da vida – um dom a ser curtido. Dor e doença não escolhem idade. Nem sempre a juventude é linda. No avançar do tempo, importa preservar certa elegância (quando dá...) e cultivar o bom humor (quando possível...). Tônia Carrero, ao fazer oitenta, respondeu a uma jovem jornalista que lhe perguntava como encarava a velhice: “Velhice? Eu acho ótimo! Porque a alternativa é morrer jovem”. E minha amada comadre Mafalda Verissimo, que sempre me faz falta, contou, fingindo-se indignada, que alguém ao telefone, sabendo que era ela, exclamou: “Dona Mafalda! A senhora, ainda tão lúcida!”.

Que se arrume o que nos incomoda, mas dentro de alguma normalidade. Deixem a gente ter o privilégio de envelhecer em paz, que a gente vai tentar não ficar ainda por cima rabugenta. E quem sabe o rio do tempo desemboca em algum mistério mais interessante do que nossas trapalhadas de agora?


17 de setembro de 2016 | N° 18637 
MARTHA MEDEIROS

Do mês que vem não passa

O casamento seguia um tédio, mas o clima estava mais ameno. Olhando de longe, qualquer um diria que aqueles dois se entendiam bem

Juntos chegaram à conclusão de que o casamento estava um tédio, que o amor havia sumido e que a presença um do outro incomodava mais do que estimulava: nem mesmo a amizade e a ternura haviam sobrevivido. Depois de algumas cobranças inevitáveis, muita DR e lágrimas à beça, optaram por seguir cada um para seu lado. Quando? Logo depois das férias de julho: a gente viaja com as crianças e depois você sai de casa. Perfeito.

Voltaram de viagem mais duros do que nunca foram, o saldo completamente no vermelho. Não era uma boa hora para comprometer o orçamento com um novo aluguel. Ela compreendeu e disse para ele ficar em casa até as finanças se estabilizarem de novo, quando ele então poderia procurar um apartamentozinho.

O casamento seguia um tédio, mas o clima estava mais ameno, sabiam que dali a pouco estariam separados para sempre, então calhava uma harmonização, eles até passaram a sorrir com mais frequência e, olhando assim, de longe, qualquer um diria que aqueles dois se entendiam bem.

As dívidas da viagem foram pagas e, depois de mais uma entre tantas discussões bestas, resolveram agendar de vez a separação: logo depois do aniversário do pequeno Bruninho, que dali a um mês faria 19 anos e media 1m87cm.

Bruninho não quis festa, e o saldo do casal voltou a ficar positivo, mas não por muito tempo: a tevê já veiculava comerciais com a presença do Papai Noel. Natal era sempre uma despesa, e os sogros viriam do interior pra comemorar com a família reunida, melhor deixar passar o Natal e o Ano-Novo. É melhor, também acho.

Em fevereiro a Bia, filha mais velha, inventou de ir para a praia do Rosa com as amigas e ficou o mês inteiro lá, assim que ela voltasse os dois dariam o xeque-mate na relação. Bia voltou e já era quase Páscoa, e Páscoa sem ir pra fazenda da tia Sonia não era Páscoa. Depois da Páscoa, receberam o convite para serem padrinhos de casamento de um afilhado, melhor não criar constrangimento na igreja. Em seguida, foi o aniversário dele, que sempre fica meio caído nessa data, melhor deixar passar o inferno astral. E quando passou, aí foi ela que aniversariou.

Estão casados até hoje. Mas do mês que vem não passa.

A colunista está em férias. Este texto foi originalmente publicado em 16 de junho de 2002.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016



10 de setembro de 2016 | N° 18631 
LYA LUFT

A filha pródiga

Em maio de 2004, mais de um ano depois de começar a coluna que mantive aqui na Zero Hora – acho que na mesma página 3 –, escrevi uma despedida. Ia sair para o grande mundo, coração pesado porque queria ir mas queria ficar, ou levar comigo tudo: o jornal, os colegas, os leitores. Porém, a vida nem sempre nos permite essas escolhas totais, e o convite era, como disse com muita elegância Jayme Sirotsky, irrecusável. Ele aliás acrescentou, com aquele humor de quem fala de um amigo, “eu sabia que o Civita ia te roubar da gente”.

Por 12 anos, escrevi na Veja. Porém, toda relação acaba, pela morte ou pela separação. Foi um divórcio amigável. Mas sempre é ruim. Entre outras coisas, senti falta disso que fiz desde muito jovem, com idas e vindas: escrever uma coluna em revista ou jornal. Foi então que chegou um e-mail da Cláudia Laitano, com recados de Marta Gleich. No começo, como em geral faço, não acreditei muito. Mas, sim, reafirmou a Cláudia, me queriam, me convocavam, coluna semanal na Zero. Só acreditei mesmo quando, uma semana depois, a própria Marta me ligou, “vamos combinar tua vinda para acertar pessoalmente”.

Até ali, só o marido sabia, esse que sempre me estimula. Então, comuniquei à família. Filhos aplaudiram: “Nota 10, mãe”, “Que legal, mãe, eu sabia” e “Mãe, estás voltando para casa”. A turma adolescente se animou, o rapaz me abraçou, e as meninas me olharam como se vissem a Beyoncé: “Que irado, vó!! Como tu conseguiste isso?”. Baixei uns olhos modestos: “Quando a gente envelhece, vai conseguindo umas coisas...”.

De modo que voltei para esta casa, onde estou em grandes companhias, como o querido Verissimo, Martha, Cláudia, David, Rosane e outros, e ao lado do Tulio Milman – que já me chama de “vizinha”. Sentir que se pertence a um grupo onde reinam respeito e amizade é ótimo, sobretudo para um bicho da sua toca, como esta que aqui escreve. Ah, e não vou ter de escrever sobre política!!!!!! Maravilha, pois, do jeito que as coisas estão, até eu ando sem palavras – o que é raro. Vamos falar desta complicada e fascinante criatura a que chamamos “gente”. Compromisso mesmo é não decepcionar.

Espero que gostem de mim, que me elogiem, me critiquem, me xinguem, façam sugestões – como se faz nas boas famílias. Para mim, escrever é falar ao pé do ouvido do leitor, amigo imaginário da minha vida adulta. Em criança, tive uma família inteira deles, diminutos, sentados no peitoril da janela do meu quarto, onde tínhamos grandes e animadas conversas. Talvez fossem duendes, sempre de roupa e gorrinho verde pontudo. Não lembro do que falávamos, mas eram ótimos, aqueles meus amigos inventados.

Termino esta primeira coluna citando mais ou menos o que escrevi naquela despedida 12 anos atrás, que a Marta Gleich (a quem agora chamo “the boss”) já em parte revelou: o “nunca diga nunca” é muito real. Talvez eu volte. Nunca se sabe o que pode acontecer. Pois aconteceu. Um novo ciclo se inicia, como tantas vezes em tantas coisas da vida. E tranquilizem-se, meus novos amigos, imaginários ou não: vocês não vão precisar usar gorrinho verde.



10 de setembro de 2016 | N° 18631 
CARPINEJAR

Gafes familiares

Amizade é selada na gafe. Amor cresce no constrangimento. É quando a vida dá errado e descobrimos que não somos sozinhos. Eu e a minha mãe temos rounds de comédia ao longo da relação. Episódios engraçados de desentendimentos. E só são memoráveis porque nos perdoamos com o riso depois.

Ela sofreu muito quando eu era pequeno. Eu vivia caindo, costurando a cabeça no pronto-socorro, quebrando vidraças dos vizinhos, roubando frutas, recebendo notificações da direção da escola. Não foi um tempo de calmaria, realmente abusei. E ela esquecia das minhas travessuras com a mesma rapidez que criava outras.

Lembro quando insisti para participar do coral da igreja. Tinha nove anos e voz de taquara rachada. Ela não quis me ofender e me levou a uma audição. Cada um dos candidatos mostrava a potência da voz individualmente. Um passo à frente no altar e os meninos reproduziam um trecho da Aquarela do Brasil. Quando chegou a minha vez, eu perguntei ao regente se a mãe não podia cantar em meu lugar.

Agora a minha mãe devolve na terceira idade tudo o que aprontei na infância. Decidiu ser engraçadinha. Não recebe crítica de ninguém porque é engraçadinha. Ganhou a onipotência de criança, não é responsabilizada por nada já que é fofinha e não fez por mal.

Nestes dias, estávamos em restaurante chique, aquele em que os talheres brilham tanto quanto o espelho e o guardanapo é longo e branco como uma toalha de Ano-Novo. A mãe ficou indecisa com o cardápio e assumiu atitude de aeroporto. 

Ou seja, reparar o que os garçons carregavam nas bandejas para qualificar o seu poder de decisão. Respirei fundo e prometi não brigar. Precisava melhorar a minha paciência e não censurá-la como sempre faço. Até que ela se levantou, dirigiu-se à mesa ao lado e indagou a um homem almoçando se poderia provar a sua comida. Foi tão rápido que não consegui me esconder debaixo da mesa.

Sair com a minha mãe hoje é aguentar não ser mais o personagem principal. Restrinjo-me a um eterno e útil coadjuvante. Nunca terei razão, mesmo quando demonstro equilíbrio e sensatez. Ela é que chama atenção, arranca gargalhadas e rouba a cena.



10 de setembro de 2016 | N° 18631
MARTHA MEDEIROS

O caso Multipalco

As grandes empresas e o governo é que podem fazer a diferença para a conclusão de uma instituição que irá potencializar a vida cultural do Brasil. Todo gaúcho sabe que a admirável dona Eva Sopher, 93 anos, dedica sua vida ao Theatro São Pedro e ao Multipalco, esta obra que parece tão inacabada quanto a Sagrada Família de Gaudí, em Barcelona. O Multipalco está demorando tanto para ser concluído que virou saga, mito, causo.

Porém, o que começou em 2003 com cinco anos de prazo para ser concluído já se estendeu por 13 anos e está mais do que na hora de ter um desfecho decente. Você sabe o que é, de verdade, o Multipalco?

Não é apenas aquela bela concha acústica ao ar livre. Não é apenas o ótimo restaurante Du Atos. O Multipalco é um complexo cultural inédito na nossa cidade e no nosso país. É um local que ministra aulas de música para jovens instrumentistas, é um espaço para teatro infantil, para corpo de baile, para ensaios de orquestras, para seminários. O esqueleto do prédio está pronto e funciona. Acabamento de primeira qualidade, salas amplas, competência na gestão. Falta pouco para se tornar o orgulho máximo dos gaúchos.

Recentemente uma coluna de Alfredo Fedrizzi repercutiu por tratar dos motivos pelos quais tantos desejam sair de Porto Alegre. Óbvio que há lugares mais atraentes para se viver, mas qual é a nossa contribuição para valorizar os projetos que, como o Multipalco, seriam aclamados em qualquer lugar do mundo?

As maiores construtoras nacionais estão envolvidas até o pescoço em escândalos. Gastaram os tubos com políticos a fim de se beneficiarem com contratos vantajosos. O que conseguiram com isso? Frequentar as páginas policiais. Tivessem direcionado uma fração desses milhões para obras de incremento à cultura, teriam feito diferença no futuro do país, seriam sócios de um progresso efetivo. Mas não.

A população contribui a seu jeito. O máximo que pode fazer é comprar ingressos, prestigiar espetáculos de qualidade, mas não é suficiente. As grandes empresas e o governo é que podem fazer a diferença, que podem doar o montante necessário para a conclusão de uma instituição que irá potencializar a vida cultural do Brasil. Não é supérfluo: se queremos um novo país, fatalmente a mudança passará pela cultura.

Se você conhece quem pode dar um arremate feliz para essa longa história, divulgue o e-mail: presidencia@ teatrosaopedro.com.br. Colabore compartilhando essa coluna e essa preocupação. Dona Eva, repito, tem 93 anos. Não merece ser privada de ver concluído um projeto que não é para ela, mas para nós, para as próximas gerações, para a realização de uma evolução que precisa deixar de ser utópica.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016


07 de setembro de 2016 | N° 18628 
MARTHA MEDEIROS
Aquarius


Ando desconfiada da minha capacidade de avaliar obras cinematográficas, pois a mais recente estreia do único ídolo que tenho na vida, Woody Allen, não me arrebatou como eu esperava. Fui preparada para gostar, mas devo ser uma das raras pessoas a ter achado Café Society razoável, nada além disso. Diante da minha inesperada decepção, considerei que o problema era eu e insisti: entrei numa sala de cinema para assistir a Aquarius preparada de novo para gostar. Mas o inesperado aconteceu novamente: gostar foi pouco. Saí completamente arrebatada e comovida.

Por onde começar? Talvez enaltecendo a interpretação incrível de Sonia Braga. Ela está perfeita no hiper-realismo que o diretor Kleber Mendonça Filho impõe como meio de contar sua história: somos voyeurs de cenas que não parecem ter sido escritas e ensaiadas, elas simplesmente existem como existe a nossa vida, exatamente igual.

Aquarius mostra a maneira como Clara, uma mulher viúva, com três filhos adultos e que passou por um câncer de mama, reage à insistência de uma construtora para que ela venda o apartamento onde viveu quando jovem, depois com o marido e as crianças, até a solidão madura e bem resolvida de hoje. Ela é a única moradora de um velho prédio em frente ao mar, e não vê motivo para sair dali, mesmo que todos os seus vizinhos já tenham cedido e se mudado.

Aquarius fala sobre integridade. Sobre a dificuldade de abrir mão daquilo que nos constitui, do nosso edifício interno, onde abrigamos nossos valores, mesmo que eles pareçam desatualizados. Clara nos encanta, mas sua teimosia nos confunde: por que ela não vende logo o apê e se livra das incomodações? Porque, mais do que um apartamento, ele é a fortaleza que resguarda o caráter de sua dona. Mais do que um imóvel, é a extensão de seu corpo. A resistência dela não é teimosia. É dignidade concreta.

Hoje em dia, quase ninguém mais percebe nossos alicerces, aquilo que nos sustenta emocionalmente. No início do filme, uma jovem vai entrevistar Clara, que é expert em música, colecionadora de vinis, mulher de sensibilidade apurada. Dias depois, quando Clara lê no jornal o título que escolheram para a matéria, desilude-se um pouco mais: as pessoas nem ao menos nos escutam. Não quando nossa verdade não dá audiência, não gera lucro.

Somos os últimos sobreviventes de uma era em estado terminal. O analógico e o digital quase não dialogam mais, e a emoção tenta prevalecer sobre a razão, mas até quando? Clara sabe que há outros cânceres que nos corroem e que também deixam cicatrizes – a ganância, entre eles. Mas se ela venceu um, vai tentar vencer todos

sábado, 3 de setembro de 2016



03 de setembro de 2016 | N° 18625 
MARTHA MEDEIROS

Dublê


Ele quer transar às 3h30min da manhã. Dublê, assuma e não se queixe. Poderia ser pior: ele querer discutir a relação. Dublês, enviem seus currículos. Estou contratando.

Cena 1. Era para eu estar concentrada em frente ao computador escrevendo uma coluna para a próxima semana, mas a inspiração é zero e nem posso alegar que nada está acontecendo ao meu redor. Como não? Só que travei. Cansei. Um dublê de colunista, por favor. Eu vou até ali na cozinha tomar um copo d´água e volto em um ano.

Cena 2. Estou paralisada diante das vertiginosas demandas digitais. Inúmeros e-mails sem resposta, milhares de curtidas que não dei nas postagens dos amigos, o site do banco está fora do ar, esqueci a senha da conta jurídica, entrou um vírus, a navegação está lenta, mandei um WhatsApp comprometedor para a pessoa errada. Preciso de um dublê educado, zen e especialista em TI. Enquanto isso, vou até ao banheiro escovar os dentes e retorno em dois anos.

Cena 3. Ele quer transar às 3h30min da manhã. Dublê, assuma e não se queixe. Poderia ser pior: ele querer discutir a relação.

Cena 4. Minha mãe reclama que estamos nos vendo pouco. Falamos todos os dias pelo telefone, mas isto não conta. Dublê, visite-a, leve revistas, chocolates e não se esqueça de tirar duas ou três selfies para eu postar no Face, caso ela invente de entrar com uma ação contra mim.

Cena 5. Blitz. Eu bebi meio cálice de vinho, mas isto já é suficiente para prisão perpétua e apreensão do veículo. Dublê, dirija meu carro e esteja sóbrio. Eu vou até ali no bistrô beber o resto da garrafa com minhas amigas e volto direto pra casa, a pé.

Cena 6. A expressão “um aperto no peito” deixou de ser figurativa para ser real. O nome disso, se não for princípio de infarto, é angústia. Dublê, são tempos difíceis. Se alguém quiser bater boca, me represente enquanto medito até o próximo sábado.

Cena 7. Uma filha está usando um alargador na orelha. A outra abandonou a casa e o emprego para se aventurar pelo mundo. Minha funcionária pediu adiantamento, o segundo neste mês. Estou precisando tonalizar o cabelo de novo. Minhas unhas estão um lixo. Engordei três quilos e justo agora minha instrutora de pilates saiu de férias, e a terapeuta também. Você não é multitarefas? Dublê de mulher tem que ser.

Cena 8. Ao acertar minha participação num evento literário, sou avisada de que preciso imprimir três vias do contrato e reconhecer firma em cartório. Pelo visto, há muitos escritores falsificando suas assinaturas por aí. Preciso de um dublê despachante pra ontem.

Cena 9. Tratamento de canal. Ressonância magnética. Ecografia. Por favor, marque as consultas e vá no meu lugar, pode usar meu plano de saúde.

Cena 10. Não acredito. Ele quer discutir a relação. Dublê!!

03 de setembro de 2016 | N° 18625 
CARPINEJAR

Táticas para ser visto pelo garçom


Garçom no Rio de Janeiro é como sogro: a princípio não gosta de você. Diferentemente de outras cidades onde você senta e é logo visto, lá você senta e desaparece. Precisa fazer coreografias desesperadas para ser atendido. Receber o cardápio pode significar a sua morte.

O abandono na mesa trará letal desprestígio. Costuma significar o fim precoce de um namoro, de um negócio em potencial, de uma amizade no nascedouro. É uma humilhação levantar a mão inúmeras vezes e jamais ganhar atenção.

Demorei a compreender a aristocracia do garçom carioca. Ele não é garçom, nasce maitre.

Em todas as minhas experiências botequeiras, apelava para querido ou amigo, e nada. Não vinha em minha direção. Ele me ignorava. Não havia como pedir um prato ou uma bebida. Ou seja, não tinha como existir, pois comer e beber são os gatilhos de qualquer papo.

Até que descobri a santa estratégia: garçom apenas atende bem quando chamado pelo nome. Perda de tempo assoviar e gritar ei, oi, ui – ele lhe tratará com capricho ao ser identificado. Descobrir o nome do garçom é o kit de sobrevivência na noite.

Foi o que fiz na semana passada quando levei Beatriz a um bar no Leblon. Logo no início, quando ele me alcançou o menu, perguntei quem era e esbanjei o poder de persuasão.

Devo ter chamado o Alberto mais vezes do que pronunciei o nome de minha mulher naquela noite. Estava ficando chato, porém a receita vingou perfeitamente. A cada nova necessidade, assumia uma postura redentora, de São João Batista a sempre batizar o sujeito no Rio Jordão do meu chope:

– Por favor, Alberto! – Alberto? – Gentileza, Alberto?

Ele tornou-se o meu Messias dos bolinhos de bacalhau e da porção de fritas. Entre falar o seu nome e fazer o pedido, não demorava nem 10 segundos. Ele corria entre as mesas com larga vantagem entre os seus colegas, um verdadeiro Usain Bolt das bandejas.

Já comemorava o êxito da fórmula, já imaginava escrevendo um livro de autoajuda revelando a chave do sucesso da boemia, já me via na lista dos mais vendidos da revista Veja, mas chegou a conta e tratei de bancar o canastrão diante do 10% opcional:

– É obrigatório, Alberto, pelo seu excelente atendimento.

– Obrigado, senhor, só que meu nome é Roberto.