sábado, 27 de maio de 2017



27 de maio de 2017 | N° 18856 
DAVID COIMBRA

Cem centímetros de glúteos

“Cem centímetros de glúteos!”, foi a manchete que dei no Timeline de sexta, antecipando o tema que abordaria no bloco seguinte do programa. Achei que largar assim aquela frase, “Cem centímetros de glúteos!”, seria impactante. Deixaria os ouvintes ansiosos para saber a respeito e meus colegas, o Potter e a Andressa Xavier, decerto não ficariam menos curiosos, sobretudo o Potter, que aprecia glúteos de bom tamanho.

Minha ideia era ler o release que havia recebido sobre uma modelo brasileira chamada Luana Caettano, eleita Musa do Barcelona. O texto informava: “A morena é dona do maior bumbum da Espanha, o que acabou lhe rendendo o apelido de ‘Bumbum Catalão’, o qual carrega com muito orgulho.”

Embora não tenha ficado claro, concluí que o que ela “carrega com muito orgulho” é o apelido. Ou seja, se você for a Barcelona e passar pela Luana Caettano, pode dizer “E aí, Bumbum Catalão!”, que ela vai gostar.

Pensei realmente que todos se entusiasmariam em saber que uma brasileira é dona dos maiores glúteos da Espanha, título que me parece bastante expressivo. Cem centímetros, afinal de contas, é um metro, a altura de uma criança de cinco anos de idade. Dispor de glúteos com essa dimensão me parecia algo digno de nota.

Mas, quando comecei a dar a informação, o Potter me cortou:

– Ah, mas eu tenho cem centímetros de glúteos!

Aquilo já arruinou-me o entusiasmo. O Potter não tinha de ter me dado aquela informação. Porque, no momento em que ele falou, os glúteos do Bumbum Catalão fugiram da minha mente e foram substituídos pelos do Potter. Não, não, vade retro, eu não queria pensar nos glúteos do Potter! Tentei me concentrar no Bumbum Catalão e seguir com o texto, mas a Andressa observou, até com certo enfaro:

– Ora... Qualquer uma tem cem centímetros de glúteos...

Qualquer uma... Senti certa admiração pela colega. Mas é claro que ela estava se referindo às brasileiras. Andressa poderia dizer: qualquer brasileira tem cem centímetros de glúteos e o Potter também. Eu acreditaria nela, devido ao nosso sabido apreço pelos glúteos.

Sempre pensei que isso tem algum significado. Não deve ser por acaso que a palavra “bunda”, tão redonda, tão globosa, tão perfeita para definir essa região do corpo humano, nasceu no Brasil. É uma história conhecida: muitas das escravas que foram trazidas da África vinham de Angola e Luanda, onde se falava o idioma mbundu. Eram mulheres belas, de longas pernas e nádegas generosas, porém sólidas. Os portugueses salivavam quando as viam e comentavam entre si:

– Que bunda!

Isto é: as bundas eram admiradas pelas bundas que tinham e, assim, as bundas das bundas, que antes não eram chamadas de bundas, mas de nádegas, tornaram-se bundas, conceito que passou a abranger não apenas as bundas das bundas, mas as bundas de todas as mulheres e também dos homens.

Esse cadinho de raças, que é o Brasil, aperfeiçoou a arte do drible, do passe de trivela, da lavagem de dinheiro e as bundas das mulheres. Hoje, encontramos loiras com bundas de negras, e quando isso acontece é a glória.

Agora, una a genética privilegiada pela miscigenação à tecnologia dos exercícios para os glúteos nas academias e o que resulta? Sucesso internacional, como a moça que ganhou o título de Bumbum Catalão, com seus cem centímetros desprezados pelo Potter e pela Andressa.

Continuo não desprezando aqueles cem centímetros, embora tenha sido desprezado no programa. Meus colegas fizeram pouco caso da minha informação. Descartaram-na em um minuto e já se puseram a falar de algum obscuro deputado. Tudo bem, seguirei em frente com minhas convicções. Continuo pensando que nosso amor pelos glúteos produziu algo na nossa psiquê. Continuo desconfiando de que somos um subproduto da bunda. Desenvolverei melhor essa tese. Mas não contarei minhas conclusões para o Potter e a Andressa. Fiquem eles com seus deputados.

terça-feira, 23 de maio de 2017



23 de maio de 2017 | N° 18852 
CARPINEJAR

Igualdade, liberdade e fraternidade

Meus padrinhos eram os meus avós paternos. Mas, como já eram avós, esqueceram de que eram os meus padrinhos.

Tinha inveja da madrinha do meu irmão Rodrigo: Nayr Tesser. Sempre atenta, sempre com visitas inesperadas, cantando Edith Piaf. Sempre alegre. Sempre com papagaios nos ombros, seus originais animais de estimação.

Eu recebia meias e chocolate Bis, Rodrigo ganhava Ferrorama e Autorama. A concorrência desleal não permitia dúvidas. A tristeza não decorria da comparação, mas da intensidade de seu amor. Tampouco me ressentia da diferença econômica dos mimos, e sim da algazarra das visitas.

Nayr representava uma mulher moderna já nos anos 70: independente, falando de sexualidade abertamente, não devendo a ninguém, carismática e fortalecendo a identidade a partir da generosidade, não do egoísmo e do alheamento. Dava até pena interrompê-la. Calava os mais céticos. Professora de linguística, politizada, comprava brigas pelas minorias e defendia a pureza firme da ética em contraste com a imperfeição das leis.

Ou eu babava, ou suspirava por ela.

Além de ser melhor amiga da mãe, cuidava da gente indiscriminadamente. Veraneávamos em seu chalé em Imbé. Ela nos salvou várias vezes do calorão sem trégua de Porto Alegre. Fornecia gibis que não havia como comprar. Ampliou o nosso repertório alimentar com iogurte caseiro e açúcar mascavo.

Figura avançada, libertária, libertadora, inquieta, que me enchia de orgulho por não compreender inteiramente. Despertava mistérios por qualquer lugar que passava. Enfrentava oposição e resistência porque nunca foi submissa neste mundinho machista.

Com lenço no pescoço e olhar claro de ametista, abria caminhos na fogueira das vaidades. Chamávamos de Joana D’Arc da família.

Não esqueço de um dos seus gestos mais emblemáticos. Quando defendeu a tese do doutorado na UFRGS, pediu licença para a banca e retirou de sua malinha um porta-retratos.

Ali, respeitosamente, como se fosse seu criado-mudo, colocou a foto de pé na mesa. Vinha a ser a imagem de seu marido falecido, Henry. Para que ele pudesse assistir a sua argumentação de onde estivesse.

– Quero prestar homenagem ao único homem que teve coragem de se casar comigo.

Que sirva de exemplo infinitamente. Depois de duas décadas daquela banca, os homens não aprenderam e ainda têm medo de mulheres bem resolvidas.



23 de maio de 2017 | N° 18852 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

EXTRATIVISMO


Já há algum tempo meu cérebro, à revelia da minha vontade, andava rondando um tema que agora se esclareceu, por obra de Reinaldo José Lopes, na Folha de S. Paulo de domingo passado. Mas antes de esclarecer, relato o desconforto obscuro.

Não se tratava da corrupção em si mesma – esse festival assustador e acachapante de denúncias e revelações (nem sempre são a mesma coisa), que nos deixam simplesmente sem ação, salvo o ir para a rua e reclamar, enquanto esperamos que nas altas esferas as coisas andem pelo melhor caminho, ai, a nossa ingenuidade.

O que esperar deste Congresso? O que esperar do juiz Moro, que passou três anos investigando pedalinho e apartamento em praia de classe média, mas impediu que as embaraçosas (e certeiras) perguntas de Eduardo Cunha fossem levadas a Temer? O que esperar dos controles institucionais da República, que te pegam quando tu esqueces de declarar uma renda eventual que nem fez cócegas na economia da família, mas deixam passar bilhões à toa?

Só isso já é suficiente para a gente perder o sono e a ilusão, para nem falar da crença no futuro. Mas por baixo e por cima dessa mixórdia há outra camada, que eu não conseguia nomear. Mas agora sim, pelo texto do Lopes: no atual espetáculo exposto à nossa patetice, as empresas corruptoras são variações do velho extrativismo.

Carne de boi é praticamente isso: embora tenha mediações agrícolas e industriais, ela dependeu, no caso da JBS, da destruição da floresta e de outros ecossistemas para criar os animais. A Petrobras, nem se fala: é extrativismo de raiz, a girar a roda da destruição do planeta na queima de combustíveis fósseis. A terceira ponta está nas megaempreiteiras, com fraudes proporcionais ao faraonismo das obras, tantas vezes ecocidas.

A modernidade, em que o Brasil faz parte importante no jogo mundial, nos reservou esse medonho papel. Tem como sair dele?


23 de maio de 2017 | N° 18852 
DAVID COIMBRA

O que Temer, Lula e Zago têm em comum

Ainda neste ano, durante partida do Gauchão, jogadores do Inter e do Caxias disputavam ferozmente a bola ao lado da bandeirinha de escanteio, observados de perto pelo técnico colorado, Antônio Carlos Zago, que estava à margem do campo. No desfecho do lance, um jogador do Caxias atirou o braço para trás e sua mão roçou no ombro de Zago. 

Por um instante, o treinador ficou indeciso sobre o que fazer, mas, em seguida, emitiu um urro, levou as mãos ao rosto e jogou-se dramaticamente no chão, pretextando ter recebido um soco no olho. A câmera mostrou a cena: o técnico, homem já sem cabelos, de quase 50 anos de idade, com os joelhos e a testa fincados no solo e as nádegas voltadas para o firmamento, espero que não na direção de Meca, gemendo de dor presuntiva.

Foi ridículo.

Simulações desse tipo, mais bem encenadas, evidentemente, são useiras e vezeiras no mundo do futebol. Nós brasileiros estamos acostumados com jogadores que não são sequer tocados pelo adversário e voam pelo ar até aterrissar com estrondo na grama, onde ficam estrebuchando e se contorcendo como se estivessem às vascas da morte. Basta o juiz mostrar o cartão amarelo para o adversário e eles se levantam e voltam serelepes para o jogo.

Os torcedores brasileiros adoram trapaças desse gênero, se beneficiam seu time. “É malandragem”, elogiam. Mas, se prejudicam o time, vem a crítica: “Falta de ética!”

Todos os torcedores sabem que é assim e aceitam que seja assim. Não há escrúpulos no uso do cinismo para se alcançar a vitória.

Digo sempre que o futebol é tão popular porque, em um único jogo, consegue resumir a vida. Pois também esse cinismo de que falo não se restringe ao futebol.

É preciso ser muito cínico para aceitar como natural a conversa havida entre Temer e Joesley Batista, exposta na gravação entregue ao Ministério Público. A história toda é burlesca, do início ao fim.

O início: Joesley chegou pouco antes da meia-noite à residência do presidente da República e entrou sem nem se identificar. Como é que alguém entra na residência oficial do presidente da República sem se identificar? Diga: alguém chega ao seu edifício e entra sem se identificar? Estão cuidando mal do presidente da República... Ou será que encontros desse gênero são normais?

Depois vem a natureza da conversa propriamente dita. Dois juízes e um procurador subornados? Ajuda financeira de um empresário a um deputado preso? O que é isso?

Ainda no âmbito do Primeiro Homem da República, dias atrás Lula contou uma história ocorrida quando ele era presidente.

Lula estava preocupado: havia suspeitas de que um importante diretor da Petrobras, Renato Duque, depositava dinheiro de propina numa conta no Exterior. Muito cioso da lisura de seus colaboradores, o presidente decidiu tomar uma atitude. Chamou Duque para uma conversa no hangar do aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

O diretor chegou e o presidente da República perguntou: – É verdade que você está depositando dinheiro de propina numa conta no Exterior?

Duque respondeu: – Não.

E o presidente da República respirou aliviado:

– Ah... Então tá. E foi-se embora, tratar dos seus assuntos.

Estava encerrada a investigação. Durou tanto quanto o segundo de vacilação de Zago.

Agora, ciente de que o diretor mantinha, de fato, uma conta com dinheiro de propina no Exterior, Lula se consola:

– Ele não mentiu para mim; mentiu para ele mesmo.

Sério? Querem que acreditemos nisso? Chega a um ponto em que nem o brasileiro aguenta mais tanto cinismo.



22 de maio de 2017 | N° 18851 
DAVID COIMBRA

Cortei relações por causa do PT

Rompi relações com um amigo de infância por causa do PT. Quer dizer: não foi exatamente por causa do PT. Explico: esse meu amigo é petista daqueles fanáticos, compartilha matérias de sites financiados pelo partido e já escreveu que Dilma é heroína dos pobres (juro). Até aí, tudo bem, há muitos que são assim, é preciso ter tolerância, mas, dias atrás, numa conversa eletrônica, ele disse que critico os governos petistas para agradar à RBS. Ou seja: minha opinião é interesseira. Ou seja: sou desonesto.

Já ouvi e li essa bobagem antes, vinda de outras pessoas, e não me ofendi. Dias atrás, enviaram-me uma entrevista que o ex-senador Bisol deu para um site, e ele falou algo parecido. Não me importei, embora admire Bisol como homem de vasta cultura e bons sentimentos. Sei que o dogma torna obtusas as pessoas mais inteligentes. O sujeito é genial em quase todos os aspectos da vida, mas, quando o tema roça em sua crença ou em sua ideologia, ele cai de quatro e zurra.

O objeto específico da minha conversa com o ex-amigo era o caso da JBS. Vejamos: a JBS recebeu R$ 12 bilhões de empréstimos amigos do BNDES nos governos Lula e Dilma. O banco chegou a comprar parte da empresa para livrá-la da falência. Quando Lula assumiu, o grupo faturava R$ 4 bilhões e, 10 anos depois, faturava R$ 170 bilhões. 

O TCU já anunciou que as operações dos Batista com o BNDES trouxeram prejuízos enormes ao banco; num único ano, o de 2008, o prejuízo foi de R$ 614 milhões. Com recursos do contribuinte, a JBS comprou 65 frigoríficos nos Estados Unidos e seus proprietários se homiziaram em Nova York. Vão dar empregos e pagar impostos aos americanos graças ao dinheiro dos brasileiros. Ainda assim, meu ex-amigo acredita que só Temer, Aécio e outros políticos, que não do PT, se corromperam.

A lógica é: “Aécio é corrupto; logo, Lula é inocente”.

É o único caso da história da humanidade, em todos os tempos, em que um corruptor confesso obteve vantagens de um governo corrompendo a oposição.

Foi o que disse para meu ex-amigo, e ele, sem argumentos para rebater, veio com essa de que minha opinião é movida por interesse.

Cortei relações.

Se não posso ter lealdade de um amigo, não tenho amigo.

Não faço o mesmo. Nunca pessoalizo debates, sempre terço argumentos. Não acho que meu ex-amigo e Bisol sejam desonestos por pensarem o que pensam. Acho que são equivocados. No caso, devido à paixão. A paixão nos torna cegos e tolos.

Eu também muitas vezes erro, mas posso errar honestamente. Sei por que algumas pessoas acreditam que quem discorda delas é sempre mal-intencionado. Jesus já ensinou, 2 mil anos atrás: cada um julga os outros com sua própria medida.

Esse foi o pior legado deixado pelo finado PT. Não foi a corrupção. As relações entre o poder e o capital, no Brasil, sempre foram espúrias. O PT pode ter sido mais sistemático, mais orgânico, mas esse é um pormenor. O problema é que, nesse tempo todo de governos petistas, o Estado foi usado como agente fomentador de instituições que lutavam contra o próprio Estado. 

É algo sofisticado, merece mais reflexão, mas, por ora, lembro que o mesmo ocorreu com o peronismo na Argentina e o bolivarianismo na Venezuela. Para se perpetuar no poder, um governo usa os recursos do Estado distribuindo esmolas embaixo e fortunas em cima. A ideia é cooptar apoiadores, nunca a formação de uma nação independente.

Assim, a noção distorcida que o brasileiro historicamente tem do Estado ficou ainda mais distorcida. A cidadania transformou-se em birra. Exige-se muito, faz-se pouco. O Brasil virou o país do não. Tudo o que se tenta enfrenta oposição e desconfiança. O outro sempre tem segundas intenções, o outro sempre é suspeito.

Tristes trópicos. Voltando a citar Jesus: não é o que entra na boca do homem que faz o mal. O mal é o que sai da boca do homem.


22 de maio de 2017 | N° 18851
ARTIGOS

CONDIÇÕES PARA UM RECOMEÇO


Os dias que se sucedem seriam outrora inimagináveis. É quase uma redundância falar que se vivem tempos de crise, nos quais parece que o amanhã não surge e, tal qual o personagem central do filme Feitiço do Tempo, vive-se o eterno hoje, em que, todos os dias, novos escândalos repetem-se indefinidamente; acordamos a cada manhã despertados pela fúria que consome a racionalidade e faz do nosso cotidiano um interminável “dia da marmota” (igual ao sensacional filme).

Nestes tempos tão angustiantes, parece ser uma tarefa quase ingênua o debate de ideias e a reflexão sobre os rumos que pretendemos perseguir nos dias que irão compor o que se denomina futuro. Se não conseguimos suplantar as amarras que nos impedem de romper com o presente, como é possível falar da construção de novos tempos?

Isso se torna especialmente dramático diante do caos que ora se instala. Por decorrência, precisamos recuperar a racionalidade coletiva. Com todos os riscos que significa, vale propor o seguinte: 

a) não esquecer nosso compromisso democrático- civilizatório, e isso significa manter respeito por aquilo que nos torna uma nação: Constituição; 

b) suspensão das reformas, pois agora, mais do que nunca, não há legitimidade para prosseguir com elas, mesmo que se entendam necessárias, até porque, diante do escancarado quadro de compra de votos no Congresso, elas poderão resultar justamente o contrário do que se diz pretender: déficit público; 

c) renúncia ou impeachment impõem-se inexoravelmente; 

d) cumpra-se a Constituição, com eleições indiretas no Congresso nos termos e prazos previstos, pois descumpri-la implicará consequências tão indesejáveis quanto aquelas que resultaram neste momento; 

e) aprovação de emenda para convocar eleições de membros de uma constituinte exclusiva (cerca de 200 cidadãos) com vistas a aprovar ampla reforma política, sendo que os candidatos não poderão estar ocupando cargo público eletivo e tornam-se inelegíveis, por um prazo de oito anos; 

f) deixar de lado o “ânimo de torcida” de futebol que tem nos conduzido até aqui.

Enfim, vivem-se graves momentos, os quais determinarão os dias que estão por vir e, não obstante essa transição seja mais lenta do que desejaríamos neste momento, haveremos de criar condições para um recomeço, a partir de 2018. Caso contrário, corremos o risco de um retrocesso autoritário, como se embarcássemos em uma máquina do tempo e viajássemos para 50 anos no passado.

*Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos

22 de maio de 2017 | N° 18851 
L.F. VERISSIMO

O ponto


Um dia, o Internacional anunciou a contratação de um grande goleiro. Um goleiro tão bom, que muita gente estranhou. Como um jogador extraordinário assim acabara no Inter e – pelo que se soube – por muito pouco dinheiro? Mais estranho ainda: o grande goleiro não pedira um grande salário. 

Aí alguém se lembrou de boatos que corriam sobre o jogador, que ele era um entregador de partidas, um incorrigível subornável. E concluíram que ele não se interessava pelo que ganharia no Inter, se interessava pelo que ganharia de adversários no gol do Inter, deixando passar bolas defensáveis. Se interessava pelo ponto.

São tantos os escândalos envolvendo políticos no Brasil, tanto dinheiro rolando e tantos favores sendo vendidos, que se pode pensar em mandatos e cargos públicos não como oportunidades de servir à população, mas como pontos. Quanto mais influente e destacado na hierarquia do poder, melhor localizado e lucrativo o ponto do político. E corretores de jogo do bicho, vendedores de drogas, mendigos e prostitutas sabem como é importante um bom ponto.

Pode-se até fantasiar que, um dia, deputados, senadores e governantes dispensarão seus salários e viverão exclusivamente de propinas, ou do que ganham nos seus pontos. O que, além de acabar com toda a retórica vazia sobre razões nobres para se eleger e servir à nação, trará um grande alívio para os cofres públicos. A Odebrecht e as outra grandes empresas corruptoras se encarregariam de pagar os políticos, para cada um de acordo com a localização do seu ponto.

Quanto ao tal goleiro do Inter – só para não deixar a história pela metade –, o clube chegou a montar um esquema para vigiá-lo dia e noite. Mas as suspeitas a seu respeito não se confirmaram. Pelo contrário, o Inter deve boa parte do seu sucesso na época às suas defesas. Ele era inocente. O que se pode dizer de cada vez menos políticos brasileiros.


20 de maio de 2017 | N° 18850 LYA LUFT
Lya Luft - lya.luft@zerohora.com.br

As coisas humanas

Quando me chamaram para voltar à ZH e pertencer de novo à família RBS, em começos de 2016, fiquei feliz, era um momento de certa orfandade, e me reintegrar aqui foi uma alegria. É uma alegria. Fui recebida feito filha da casa, meu ego desinflado melhorou e, mesmo que eu não vá à Redação habitualmente, de coração estou entre colegas, funcionários e amigos queridos. 

Um dos pedidos ao fazermos os acertos foi antes uma sugestão: não escrever sobre política como vinha fazendo nos últimos anos em uma revista. Na verdade, nunca fui uma entendida ou comentarista política. Aliás, o tema me assusta. Sempre afirmei, e escrevi, apenas como uma brasileira comum moradora deste planeta complicado que se chama Brasil. Agora a Zero Hora afirmava que escrever o que acho de “coisas humanas” era o que o leitor mais queria de mim.

Achei meio engraçado, meio comovente, me surpreendi um pouco – porque, afinal, política é coisa muito humana e muito nos atinge, aflige ou anima –, mas compreendi que se tratava dessas coisas humanas essenciais: afetos, amizades, colegas, família, otimismo, sofrimento, esperança, decepção, educação, convívio, segurança, moralidade, enfim. Tenho feito isso, e isso tem me feito muito bem. Não posso deixar (ou: posso, mas não quero) de comentar aqui brevemente que a nossa realidade política, que tanto corrói a economia e tanto nos afeta em nossa lida cotidiana, roubando esperanças e jogando aflição sobre todos, mexe extraordinariamente com cada pessoa.

Porém, é preciso reconhecer que, mais do que nunca – como eu disse outro dia a um grupo de funcionários aqui da casa, que me receberam com tanto afeto que me emocionei –, ao fim e ao cabo, no meio das maiores loucuras, confusões e medo, cada vez mais importam as pessoas: clientes, amigos, patrões, funcionários, família, colegas, até meros conhecidos. Se cada um tentar, com simplicidade, o seu melhor nesses lugares e ocasiões, se cada um fizer na vida e no trabalho o melhor que puder, é possível que este mundo, este Brasil, esta cidade melhorem um pouco. Que a gente se sinta mais confortável, mais amparado, mais otimista, mais importante.

Alguém certa vez me fez entender que todo mundo precisa saber-se importante: não em cargos, dinheiro, grandes façanhas, mas pelo menos no seu grupo, seja ele qual for. Eu sei, não é fácil conviver bem. Há pessoas naturalmente irritantes e desagradáveis. Traições acontecem. Afastamentos incompreensíveis também. Mas ser importante para uma pessoa que seja já vale muito. Ser benquisto entre seus colegas é muito. Ser bem-visto e respeitado por clientes, patrões, empregados, ser considerado uma pessoa confiável, um ser humano decente, é muitíssimo. E nos faz bem. E nos estimula.

Ninguém é inteiramente amado, totalmente compreendido, absolutamente respeitado: faz parte do aprendizado da vida. Mas ser uma pessoa decente é o essencial, porque, neste momento caótico e preocupante, muitas vezes desanimador, saber que existe alguém bom, honrado, atento, digno, é uma dádiva.

Apesar de todas as nossas dificuldades e imperfeições, as coisas humanas são o melhor de tudo – e isso nem um Everest de dinheiro, de grandeza, de importância ou de poder poderá substituir.


20 de maio de 2017 | N° 18850 
MARTHA MEDEIROS

A mesa das crianças

Nunca escondi que meu maior desejo de criança era me tornar adulta. Desde pequena, intuía que seria a parte mais divertida da minha história

Outro dia li um artigo que denunciava como alienante uma prática familiar: a de excluir as crianças da mesa dos adultos na hora das refeições, preparando uma separada para elas.

Quando eu era criança, isso acontecia apenas em dia de festa, quando havia muitos convidados. Nos almoços e jantares diários, em casa, comíamos todos juntos, lógico. Porém, o artigo condenava até mesmo que se fizesse essa separação em ocasiões especiais. Segundo o autor, a prática é traumática e impede a criança de estreitar o vínculo com o pai e a mãe.

Eu devo estar virando matusalém antes do tempo, pois já entrei na fase de achar que tudo isso é mimimi, que estão promovendo besteiras como se assunto sério fosse.

Nunca escondi que meu maior desejo de criança era me tornar adulta. Desde pequena, intuía que seria a parte mais divertida da minha história (uma amiga, outro dia, escutou eu dizer isso e me olhou com uma candura que até me comoveu, ela chegou a murmurar um “coitada” entre os lábios, mas cada qual com seu defeito de origem, esse é um dos meus e nem é dos mais graves). 

Brincar de boneca, andar de balanço, pedalar, subir em árvore: tudo muito emocionante, eu adorava. Mas o que dizer sobre viajar para Londres, namorar, pegar uma estrada, ver filmes até tarde, beber vinho, ler livros sem figuras – tem comparação? A mim sempre pareceu um confronto desleal. Se alguém aí levantar a questão da inocência perdida, a boa notícia é que a minha segue firme e forte. Somos todos crianças grandes, só as brincadeiras é que mudaram.

Pensando assim, seria de se esperar que eu não aprovasse a ideia de sentar numa mesa só para crianças, sendo excluída do mundo adulto, mas eu sentia justamente o contrário: estando em meio aos adultos, eu teria alguém para servir meu prato, para me mandar repetir a lasanha, para vigiar meus modos, e eles conversariam entre si em voz baixa ou através de metáforas sobre algo que considerassem impróprio aos meus ouvidos, o que era humilhante.

Numa mesa sem a presença deles, eu poderia brincar de ser gente grande, enfim.

A mesa era menor, improvisada, exclusiva para meus primos e eu, todos mais ou menos com a mesma idade – pouca. Eu me sentia num restaurante entre amigos, sem nenhuma vigilância, exercendo um papel que eu não via a hora de estrear pra valer: o de estar sob minha própria responsabilidade. E conversando sobre assuntos que os adultos não poderiam escutar, claro. Direitos iguais.

Pelo visto, ainda sou bem infantil, pois quase tudo que a pedagogia considera um trauma, eu encaro como aventura.


20 de maio de 2017 | N° 18850 
PIANGERS

Estudando junto

Eu entendo pais que não gostam de estudar com os filhos. Eu entendo. Eu estudo com a minha filha, sei como é chato estudar com os filhos. A minha filha está estudando os níveis hierárquicos dos seres vivos. Você lembra, reino filo classe ordem família gênero espécie. O Reino Monera e os seres sem organização nuclear. Se já é complicado estudar isso sozinho, imagine estudar isso ao lado de uma criança que queria estar andando de patins.

Eu sei como é chato. Em alguns momentos, minha filha me pergunta: “Pai, por que que eu tenho que saber isso?” e eu digo “Eu também não sei!”. Mas a gente continua estudando junto, e aquele não é só um momento pra gente conhecer a matéria. É um momento pra gente se conhecer entre a gente. É o momento em que eu posso ouvir como está a escola. É o momento que posso dizer pra não colocar a culpa nos outros se foi ela que não estudou. É o momento em que eu posso relembrar algumas coisas interessantes de história e biologia.

Quando eu estudo com a minha filha, estou aprendendo a ser paciente. Estou aprendendo que o meu trabalho não é tão importante, que tenho que ter tempo pra tirar dúvidas, pra ler junto. Quando estudo com a minha filha, passo a respeitar mais sua professora, que não tem só a minha filha pra ensinar, mas outras 30 crianças com as mesmas dificuldades. E cada pai de cada uma das 30 crianças achando que a professora tem a obrigação de ensinar seu filho. Pais com apenas uma criança pra cuidar, que não conseguem parar um pouco pra estudar com seu filho.

E quantos filhos indo mal na escola de forma inconscientemente proposital, apenas pra chamar atenção desses pais. Apenas pra dizer que gostaria que o pai estudasse junto, que o pai gastasse um pouquinho do seu tempo precioso com o filho. Entendendo a matéria, conversando sobre a escola, decorando as classificações dos seres vivos. Quando você estuda com seu filho você não está apenas estudando a matéria. Você está estudando o seu filho.



20 de maio de 2017 | N° 18850 
L.F. VERISSIMO

A volta

Um dia, a mãe anunciou: “O pai de vocês está voltando”. Os filhos estranharam. O pai saíra de casa 25 anos antes e nunca mais voltara. Quando perguntavam para a mãe sobre o pai, ela respondia “está viajando” e mudava de assunto. E agora chegara uma carta dele dizendo que estava voltando. Não sabia exatamente quando, mas mandaria algumas coisas na frente.

Depois de uma semana, chegou o primeiro pacote. Tiveram que buscar no correio, o pacote era grande. Continha, principalmente, meias. Meias de cano longo e de cano curto, meias para inverno e verão, algumas mais velhas, algumas mais novas. Um cantil. Um guia do Himalaia, com mapas e trilhas marcadas no mapa, e anotações nas margens numa língua indecifrável. Mas principalmente meias. Meias de todos os tipos. Meias de várias cores. Vinte anos de meias.

O segundo pacote, mais pesado, chegou poucos dias depois. Sapatos e chapéus, incluindo botas com cadarço até em cima e duas cartolas, sendo uma com um coldre vazio na parte de dentro. Alguns troféus: uma coruja de bronze espetada num pedestal com dizeres em alfabeto cirílico; uma taça de prata com o nome, na base, da vencedora de uma corrida de planadores em Tessalônica, outro troféu pelo segundo lugar num concurso de salsa em Riga. Fotos emolduradas. 

A de uma mulher oriental sentada na asa de um planador, sorrindo. A de uma loira séria com a palavra “Chien!” e uma assinatura, “Marie Ange”. A de uma morena com um tapa-olho, com as palavras “Te quiero, Chuco”, assinado “Concepción”. Uma foto do Henry Kissinger, com as palavras “Best wishes” e sua assinatura. Dois suéteres de lã.

Sem saber o que viria nos pacotes seguintes, a mãe tratou de arranjar lugar para as coisas do marido. Mandou esvaziar um armário. Se faltasse lugar, usariam parte da garagem. Passaram-se semanas sem que chegasse outro pacote. Finalmente chegou um, menor do que os outros. Da mesma procedência: Nova Délhi. Este era de livros e cuecas. Os livros, quase todos, sobre ocultismo. E, no meio daquela semana, um telefonema surpreendente. 

Uma voz feminina, falando inglês com sotaque hindu, identificando-se como Iridia, querendo saber se já tinha chegado “the cage”. O quê? “The cage, the cage.” A mãe custou, mas entendeu. A gaiola! Não, ainda não chegara a gaiola. “The cage, not!”, disse a mãe, e a ligação caiu antes que ela pudesse perguntar quem era, como estava o seu marido e que gaiola era aquela.

Quase um mês depois chegou a gaiola, junto com casacos, calças, um nebulizador, um aparelho para tirar a pressão e um bilhete, em inglês, com a descrição detalhada do tratamento que ele estava fazendo e que não poderia ser interrompido, e uma lista de remédios. Assinado “Iridia”. E com um P.S.: “Ele está levando o pássaro com ele”.

Passou um mês. Dois. Nada de novo pacote. E nada do viajante. Um dia, tocou o telefone e era a Iridia, querendo saber se ele tinha chegado bem e se podia falar com ele. Foi difícil fazê-la entender que ele não estava lá, que não voltara para casa. Então a Iridia disse: “Eu deveria ter adivinhado...”. Ele jurara que estava voltando para casa, que faria a conexão em Londres e estaria no Brasil em dois dias. Na certa, conhecera uma mulher no caminho. 

No avião ou no aeroporto em Londres. O pássaro teria atraído a atenção dela, eles já estariam morando juntos. Ela devia estar, naquele momento, ajudando-o a escolher meias novas. A mãe anunciou aos filhos que o pai ainda demoraria a chegar.

20 de maio de 2017 | N° 18850 
DAVID COIMBRA

Como educar meninos de nove anos

Outro dia, briguei com meu filho. Ele fez algo errado e eu o censurei com certo rigor. A Marcinha acha que fui duro demais.

– Ele vai ficar traumatizado – avisou.

Na hora, reagi: – Que traumatizado o quê! Quanta frescura! Fosse a minha mãe, já me puxava pela orelha!

Depois fiquei pensando: e se o guri ficar mesmo traumatizado? Se o pai é duro, o menino pode se tornar um adulto com medo de autoridades, pode se transformar em um dissimulado, um covarde, um homem que não consegue enfrentar as vicissitudes da vida.

Meu Deus! O que estou fazendo com meu próprio filho? Um profundo e corrosivo remorso tomou conta de minh’alma. Continuei cismando. Deveria ser mais brando, talvez. Mais suave... Ou...

Será?

É que, se você for frouxo demais, a criança inevitavelmente virará uma mimada, uma reclamona, uma birrenta, uma pessoa que exige tudo e nunca fica satisfeita com nada. Por fim, uma infeliz crônica. Conheço gente assim, sobretudo na política.

Aí não dá, por favor.

O ideal é o meio-termo. O caminho do meio, como diria Buda. Você tem de ser firme, quando o momento exige firmeza; dócil, quando o momento exige doçura. Você tem que saber dosar, entende? Aquela história do Che Guevara, que conseguia endurecer-se sem perder a ternura.

Mas como atingir esse ponto de equilíbrio?

Perceba o meu drama, solidário leitor: não tenho dúvida de que já vivi mais do que me resta viver. Quer dizer: devia estar colhendo os frutos da experiência. Cometi erros, passei por contingências, sofri e fiz sofrer, mas agora sei o que fazer. Atingi o ponto em que reconheço os limites e, sobretudo, me conheço muito bem.

É como deveria ser.

Mas não é como é.

O fato é que não conheço completamente nem a mim mesmo. Você entendeu como é trágico isso? A pessoa com quem mais tenho intimidade sou eu, e eu mesmo me surpreendo comigo, em alguns momentos. Como, então, poderei saber o que fazer em relação aos outros, ainda que o outro seja alguém que conheço desde o nascimento, como o meu filho?

Cristo!

Mas não vá me entender mal, também: sei que sou um bom pai e, mesmo que vez em quando seja mais firme, nunca bati no meu filho ou coisa que o valha. Faz mais de ano que não o coloco de castigo, inclusive. E ele é um bom guri, certamente que é. Só que, como todo menino de nove anos de idade, às vezes tem comportamentos irritantes e aí é claro que deve ser reprimido. A punição educa, digo sempre. A questão é a dose. Qual é a dose perfeita?

Você se preocupa demais? Ou se preocupa de menos? Tem que prestar mais atenção naquilo? Ou não deve dar bola? Vai passar com o tempo? Ou é preciso intervenção? Ele come muito ou pouco? Está muito magrinho? O rendimento na escola é o adequado? Fica tempo demais ao computador? Lê menos do que deveria? Será que é normal gostar de bichinho de pelúcia nessa idade?

CRISTO!

Só tenho perguntas. Não tenho respostas. Não pergunte nada, quem somos, para onde vamos, de onde viemos, não pergunte nem onde fica o Alegrete, que, aliás, era a terra do meu pai. Meu pai... Será culpa dele? Será culpa da minha mãe? Os pais sempre têm culpa, não é?

Sempre.

Arrastarei minha culpa pelo tempo que me cabe debaixo do sol, uma culpa pesada como se fosse uma bola de aço presa a uma corrente. Mas seguirei em frente e, quem sabe, mais tarde, direi ao meu filho:

– Sim. A culpa é minha. Mas tentei fazer o melhor.

sábado, 13 de maio de 2017



13 de maio de 2017 | N° 18844
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A FADIGA DA INDIGNAÇÃO

O cumprimento rigoroso do rito processual é o que define o estado de direito, pelo qual todas as nações, em algum momento de sua história, lutaram com o denodo de quem percebeu que essa é a divisória entre a liberdade e a servidão.

Viver em estado de direito é o sonho do homem comum que precisa sentir-se protegido por um sistema que lhe permita fazer suas escolhas em liberdade, tendo como único limitante o igual direito de seu vizinho, que terá certamente a mesma ambição.

Conta-se que um dos últimos monarcas da Alemanha, contemplando o enorme gramado dos fundos do palácio de verão em Potsdam, percebeu que, se fosse removida aquela construção ao fundo, haveria espaço para uma cancha de polo, sua paixão. Atravessou o terreno e deparou com o dono de uma velha olaria. Quando comentou da sua intenção de comprar-lhe a propriedade, foi interrompido com a informação de que ela não estava à venda. Perturbado porque o homem nem quis saber quanto lhe pretendia pagar, o rei, perdendo a compostura, disse: “E o senhor sabe quem eu sou? O senhor tem noção de que eu posso tomar-lhe o terreno?”. O velho teria sorrido e retrucado: “Como se não houvesse juízes em Berlim!”.

Essa certeza de que não há ninguém acima da lei, não importando quem seja ou represente, é o alicerce que deve sustentar uma nação que pretenda ser de verdade, ou nunca será. Quando as leis são burladas, as sentenças são adaptadas a interesses menores e o exercício da justiça tem aquela morosidade de quem não acredita, começa a construção da impunidade, esta marca peçonhenta dos países subdesenvolvidos.

Claro que não precisávamos chegar ao requinte de ter réus assumidos, em exercício legislativo, na busca obstinada de brechas legais que lhes preserve ao menos a cara, porque a honra até eles concordam que seria um exagero.

Sempre que ocorrem estes atropelos éticos, a sociedade consciente se articula de alguma maneira para protestar porque se sente ultrajada nos seus direitos elementares, e cada cidadão sente-se ameaçado pela possibilidade real de que venha a ser a próxima vítima. Desde 2013, as ruas do país foram várias vezes ocupadas por brasileiros que, excluídos os baderneiros, representam a média da população honesta, trabalhadora e, em algum momento, esperançosa.

Quando, no entanto, a repetição do protesto resulta em nada, os escândalos se multiplicam e não impressionam mais, as famílias decentes só pensam em mandar seus filhos para o Exterior, e a mídia atarantada noticia com requintes de helicóptero a libertação de um megamarginal, as paredes do poço parecem tão altas, que se tem a impressão de que chegamos ao fundo.

Todos os que viveram mais de 50 anos devem lembrar que este estado de espírito de constrangedora letargia sempre antecedeu os radicalismos. Não se deve subestimar uma nação cambaleante que chegou à fadiga da indignação, mas ainda assim demora para dormir com a desagradável sensação de que há alguma coisa muito errada com os juízes de Berlim.



13 de maio de 2017 | N° 18844 
CARPINEJAR

O presente proibido

Só há um único presente que o homem não tem como dar a uma mulher: o sutiã.

Pode até comprar calcinha, já num ato de extrema ousadia. Mas o sutiã é impossível. Não confunda teimosia com coragem e insistência com burrice.

O sutiã é feminino até na compra. Não arrisque que se dará mal.

Pense que o sutiã não é uma peça qualquer, desde sempre é a bandeira do feminismo. O estandarte da diferença.

Nem é o problema de acertar o tamanho, e sim definir o conforto e a peculiaridade para cada peito. O sutiã é o mais pessoal dos acessórios. Não pode apertar, não pode tampouco folgar, não pode aparecer, não pode desaparecer por completo. É um sem fim de variáveis.

Olha como é complicado: a alça do sutiã deve ser centralizada nos ombros; quem possui seios menores, enchimento e push-up são uma ótima alternativa; quem detém seios maiores, o correto é optar por laterais e costas reforçadas; não convém expor alça de silicone; cuidado para a cor da pele não destoar demais do conjunto.

Acostumado a uma lista de mercado, nenhum homem chegaria a tal grau de sofisticação. Como tentar passar em Cálculo na Engenharia com a matemática do Ensino Fundamental. Sutiã é conversar de repente, de igual para igual, com Einstein. São fórmulas e fórmulas desenvolvidas para um resultado único e improvável.

Sua esposa ou sua namorada ficará ofendida com o mimo. Acreditará que invadiu a intimidade, que desrespeitou os limites, que não obedeceu aos mistérios da humanidade. Mesmo que use o pretexto de apimentar a relação com produto de uma sex shop, mesmo que venha com rendas pretas e texturas vermelhas diferenciadas, mesmo que apresente sabor de morango e champanhe brut. A sofisticação não é um atenuante, muito menos o valor exorbitante de uma marca. Gastar muito não significa garantia de reconhecimento.

Com o sutiã, errar não é humano. Nenhum clichê salva. Nenhuma nudez será perdoada.

13 de maio de 2017 | N° 18844 
MARTHA MEDEIROS

Mães postiças


A atual mulher do pai chega sempre como uma intrusa, mas havendo bom senso na distribuição dos papéis, logo ninguém se sentirá ameaçado e o novo núcleo se forma

Estereótipos precisam ser revisados de tempos em tempos. O da madrasta má felizmente está com o prazo de validade vencido, mas ainda assim pouco se fala no modelo que a substituiu: o da madrasta boa gente, aquela mulher madura que não tenta substituir a mãe de seus enteados, e sim contribuir para que eles se sintam emocionalmente amparados.

Muitas madrastas são mães: tiveram seus próprios filhos no primeiro casamento e, entrando numa segunda relação, depararam com a experiência de conviver com os filhos de seu novo marido. Não é uma tarefa mole, pois são crianças ou adolescentes que passaram pelo trauma da separação dos pais e não estavam exatamente ansiosos para ver uma nova pessoa entrar para a família. A atual mulher do pai chega sempre como uma intrusa, mas havendo bom senso na distribuição dos papéis, logo ninguém se sentirá ameaçado, e o novo núcleo se forma: os meus, os teus e, quem sabe, os nossos – no caso do novo casal querer ter um filho em comum.

Até aí, tudo certo, é um arranjo equilibrado. Mas tenho pensado naquela mulher que sempre sonhou em engravidar e ser mãe, que alimentou esse desejo desde garota, e que um dia conhece o homem da sua vida: um cara que já teve os filhos que gostaria durante o primeiro casamento e que não cogita ter mais um. “Como não cogita? Que egoísta!” podem bradar algumas colegas de auditório, mas, convenhamos, um homem de meia-idade talvez não deseje um novo bebê. Algum direito esses pobres portadores de cromossomos XY ainda têm.

A mulher talvez pegue sua bolsa e vá bater em outra freguesia para realizar o sonho de ser mãe biológica – e deve fazer isso mesmo, caso não tenha a menor vontade de se adaptar às circunstâncias. Mas, se ela resolver ficar com este homem, poderá transferir todo seu potencial de afeto para os filhos do seu grande amor, não a fim de ocupar o espaço da mãe deles, mas a fim de inaugurar um novo espaço para si mesma – um espaço que exigirá cuidado, paciência e muita dedicação. Não é uma maternidade legítima, mas é uma experiência familiar e sentimental que também costuma impactar a vida de todos os envolvidos.

A elas, essas mulheres que abriram mão do seu desejo ancestral de ser mãe a fim de preservar o seu ideal romântico (o de não procurar um reprodutor, e sim manter uma relação amorosa com o homem pelo qual se apaixonaram e com os filhos dele), o meu mais profundo respeito. Feliz dia das mães que, do jeito possível, vocês também se tornaram.


13 de maio de 2017 | N° 18844 
LYA LUFT

Maternidades

Talvez o assunto esteja esgotado em termos literários. Ainda haverá o que escrever em poemas, crônicas, romances e contos sobre essa experiência transformadora e inigualável, para algumas deslumbrante, para outras apenas inconveniente, assustadora ou trágica? Haverá ainda algo que não se conseguiu descrever em todos os livros do mundo? Por outro lado, essa experiência tão diferente para cada uma, que pode ir de êxtase e euforia a amargura, tem sido objeto de milhares e milhares de esforços para reproduzi-la em frases faladas, escritas, cantadas, por toda parte – talvez desde sempre.

Acho que não há muito mais a dizer, e raramente escrevo sobre datas. Mas esta me agrada, e, sim, gosto do Dia das Mães. Gosto de qualquer celebração que renove nossos pensamentos e emoções. Comercialização de sentimentos? Só pra quem leva a vida como consumo, mede amor pelo gasto e precisa, quem sabe, encobrir suas culpas com visita, telefonema ou presente.

Na vida dita normal (sem discutir o que é isso) nas relações amorosas, entre as quais a de mãe e filhos se inclui, claro, nem tudo é dramático e transcendental. Quase sempre fica entre aquele curativo e beijo na hora do joelho esfolado, noites sem dormir junto da criança doente, colo na hora do coração partido, risadas juntas nas aventuras cotidianas, segredinhos bem guardados, olhar vigilante procurando não intervir nem aborrecer, amor desmedido querendo não oprimir. Mais a chatice inevitável “bote o casaquinho, não fale de boca cheia, não bata no seu irmão, respeite os outros, volte cedo, olhe com quem anda saindo, se cuideeee!!!”. O mais difícil: corrigir sem humilhar, proteger sem enfraquecer, estimular sem iludir. (E ainda tem aquela culpa obtusa que nos assalta mesmo se o filho quebra o pé escalando o Everest: por que não cuidei dele?)

Assistir (discretamente) aos voos que se pode divisar, no resto rezando e torcendo, e sendo otimista: a cria vai dar certo, seja lá o que isso signifique. Não vai quebrar demais as asas e a cara, não vai sofrer demais, vai ser um ser humano decente e bom, e bem-sucedido nas suas escolhas, sejam de profissão, de parceiro, de modo de vida. A gente recebendo um telefonema, um whats, uma visitinha, pra se certificar de que afinal está tudo bem – e ficar feliz da vida.

Mas há as maternidades atormentadas: filho doente, filho viciado, filho perseguido, filho acidentado, assassinado, filho fazendo escolhas negativas, filho precisando de coisas que não se pode dar porque o dinheiro não chega, enfim, filho sumido no mundo ou na morte. Isso, não há palavras que expliquem, então sobre isso me calo, por profundo respeito.

Termino com minha tripla experiência de maternidade: euforia e assombro, cada vez que de mim saiu um ser humano, uma pessoazinha – e a cada vez pensei e disse em voz alta, sem querer: “Mais uma pessoa no mundo”.

Isso me impressiona e comove até hoje: cada um é uma pessoa, com sua personalidade, suas decisões, sua vida, sua morte. Pouco vou poder interferir. Procurar não estorvar já é difícil. Mas posso fazer com que saibam que, seja como for, onde, quando, a mãe vai estar sempre do seu lado, muitas vezes sem entender direito, muitas vezes desajeitada, muitas vezes impotente, mas, inteiramente, um colo, um abraço, e um amor que nenhuma palavra de nenhum idioma poderia definir.

domingo, 7 de maio de 2017



06 de maio de 2017 | N° 18838 
LYA LUFT

Inspiração

O que é inspiração, como lhe vem a inspiração...? – pergunta que persegue artistas criadores a vida inteira. Que músicas escuta para se inspirar? Que pessoas o inspiram? Cada escritor (falo do meu território) dará uma resposta diferente. Alguns precisam de silêncio, outros, de música, outros escrevem em qualquer parte, alguns ainda só na sua toca, seu escritório: mil maneiras de trabalhar.

Há quem diga que inspiração é bobagem, o que importa é a transpiração. Não é bem assim. Importa uma harmonia entre as duas coisas, pois, sem esse chafariz de ideias e emoções que se organiza quando escrevemos e acaba num romance, um conto, um poema, dificilmente se faz um bom trabalho.

Qualquer pessoa com alguma fantasia e bom conhecimento do seu português consegue fabricar um texto, até um livro. Mas arte não é assim, e possivelmente vai faltar a centelha que diferencia uma obra fabricada conforme os esquemas vigentes de uma obra de arte, por mais fraquinha que seja. Sim, obras de arte podem ter gradações de “bom, médio, ótimo, incrível”...

Não acredito também que artista tenha de sofrer para produzir. Em tempos muito difíceis de minha vida (sim, também os tive), passei seis anos sem escrever, só traduzindo. Pensei ter ficado afásica para sempre, e, como já tinha escrito vários livros, deduzi que a fonte tinha secado. E de repente, caminhando na beira da praia sem pensar em nada importante, voltou a história que eu tinha começado a fantasiar seis anos antes. Sem computador, sem máquina de escrever ali, corri para a papelaria, comprei canetas e papel em profusão e comecei a escrever feito desvairada. Voltando para casa, botei tudo no computador ou na máquina de escrever, não lembro, e publiquei A Sentinela, em 1994.

De onde vem, enfim, a tal inspiração? Cada caso é um caso, cada autor é um autor. Comigo, é como se tudo o que vivo, olho, sonho dormindo, sonho acordada, me contam, assisto, se depositasse em mim através dos anos, como aquela lamazinha no fundo de um aquário. Quando alguma coisa me toca especialmente (ou não), é como se mexessem com um lápis nessas águas tranquilas, e todo o depósito do fundo sobe à superfície: feita a inspiração, a história que estava meio pronta nas neblinas do inconsciente começa a emergir. Eu lhe dou nomes e formas, trabalho, escrevo e reescrevo, e com sorte tenho um texto.

Também quero dizer que, para ser escritor, coisa que me perguntam incessantemente, é preciso, primeiro, ler muito. Ler sempre. Segundo, dominar o mais possível o idioma, pois o bom escritor é como o cirurgião que sabe manejar o bisturi, conhece anatomia, a doença, e o resto. Ninguém escreve “de ouvido”. E atenção: português ou qualquer língua não se aprende decorando regras, mas lendo. Além disso, é bom abusar de simplicidade, paciência, humildade, autocrítica sem neurose, e usar dessa maravilhosa liberdade que o texto nos dá.

É difícil? É difícil. Porque, além disso, precisa de sorte, persistência, nada de ressentimento do tipo “ninguém se interessa por meu livro, ninguém quer me publicar”, pois quase todos nós levamos várias recusas, esperamos algum ou muito tempo para finalmente iniciar (iniciar...) o caminho dessa arte e dessa profissão que serão o chão por onde caminharemos, amados, criticados, abominados ou estimulados, pelo resto da nossa vida.



06 de maio de 2017 | N° 18838 
CARPINEJAR

Meu amigo de sunga


É um choque testemunhar o seu grande amigo na praia.

Agora posso dizer que ele é um grande amigo porque eu o vi de sunga.

Dividimos o vexame do despojamento do litoral.

Antes da praia, a amizade estava vestida para a missa. Depois da praia, duvido que existam maiores constrangimentos. É partilhar o confessionário honesto da idade e da condição física. Os pecados se despedem da carne.

Eu mal me concentrava na conversa. Só o olhava de cima a baixo, da barba ruiva aos chinelos havaianas:

– Será ele mesmo?

Eu o conhecia de óculos, jeans e camisa social, com a vestimenta sóbria de terapeuta. Sempre comedido, sempre respeitoso. Já gargalhamos em bares e restaurantes, na casa de um e de outro, só que nunca assim, com os cotovelos próximos no Juízo Final.

De repente, lá estava Mário Corso rindo e dividindo uma caipirinha com pedaço de pano nas partes íntimas, esgueirado numa cadeira no sol. Se ele estivesse fantasiado não seria igualmente extravagante. Nenhuma festa causaria tamanho transtorno. Nem se surgisse de Thor com um martelo de borracha.

Analisava a sua barriguinha tímida, a sua brancura, a sua mirada infinita ao oceano, as suas pausas de espuma, a forma pastosa em que se colocou protetor solar.

– Será ele mesmo?

Respondia apenas “aham” para me manter vivo nas palavras e distrair o foco de minha distração.

Nenhuma mulher de biquíni chamaria mais atenção do que o meu grande amigo de sunga. Tinha que adaptar a minha admiração. Alojar aquela imagem no álbum de família. Suportar a verdade exclusiva de um banho de mar.

Mas podia ser pior. A gente ainda não se encontrou de pijama.




06 de maio de 2017 | N° 18838 
MARTHA MEDEIROS
O novo tarado

Ele tinha o costume de escutá-la. Interessava-se pelo que ela dizia, sem interrompê-la. Pegava a mão dela enquanto caminhavam

As amigas alertaram: você não acha perigoso começar um relacionamento com um cara que surgiu do nada pelo Facebook? Ela ficou comovida com a preocupação e considerou: de onde surgem as pessoas que conhecemos num balcão de bar, numa parada de ônibus, na beira da praia? Do nada. É deste lugar incrível o nada que desembarcam em nossas vidas os colegas de trabalho, os parceiros de academia, os vizinhos e todas as pessoas que nos circundam há anos. Logo, é um lugar confiável, o nada. Da família, sim, é que podem surgir umas criaturas estranhas.

Marcou um café com ele, disposta a dar uma chance ao sujeito que não havia sido apresentado por nenhum amigo em comum, que não deu referência, carta de apresentação ou atestado de idoneidade. Crianças, não façam o que ela fez.

Porque já no primeiro encontro ele apareceu com uma flor na mão. Uma flor só, pequena, que deve ter catado no trajeto até o café, em algum jardim de edifício. Ela achou meigo, mas ficou ligada.

Começaram a namorar já na noite seguinte, depois do primeiro beijo que veio na sequência do primeiro jantar, se é que se pode chamar de jantar uma pizza marguerita pra dividir – mas que ele fez questão de pagar inteira.

Poucos dias depois, cama. Sem entrar em maiores detalhes: ela nunca se sentiu tão bem-tratada e tão maltratada, ambos no melhor dos sentidos – o que a confundiu.

Com a intimidade, vieram mais surpresas: um dia, ela estava deitada, sozinha em casa, lendo um livro antes de dormir, quando ele entrou no WhatsApp para dar boa noite e enviou um link de uma música do Joshua Redman, My One and Only Love. Sugeriu que ela escutasse enquanto aguardava o sono.

Ela não pregou o olho, assustada com tanta elegância. E, pra completar, de manhã ela foi acordada por um poema espetacular da Cecília Meirelles, um dos preferidos dele.

Ligou para as amigas e contou tudo. Elas responderam: “Nós avisamos”.

Foi quando ela começou a prestar mais atenção nos modos do namorado. Ele tinha o costume de escutá-la. Interessava-se pelo que ela dizia, sem interrompê-la. Pegava a mão dela enquanto caminhavam. Abria a porta traseira do Uber pra ela entrar, dava a volta no carro e entrava pelo outro lado (ela morria de medo que o motorista arrancasse sem esperá-lo). Ele fazia elogios frequentes. E declarações de amor. Não havia mais dúvida.

De tão empoderada, ela havia se emancipado até do seu romantismo e, ao deparar com aquele anormal vindo do nada, ela ficou certa de que estava lidando com uma nova espécie de tarado.

Dispensou-o rapidinho e foi atrás de algum homem que a tratasse de igual pra igual.

sábado, 29 de abril de 2017



29 de abril de 2017 | N° 18832 
CARPINEJAR

Vi e Mari

Sempre eu me espantava o tanto que os meus filhos cresceram. Nas roupas, nos gestos, nas tiradas, na defesa dos argumentos. Pasmo que o tempo vai nos empurrando para a frente e não traz nenhuma pausa para repetir as cócegas na barriga deles ou carregá-los na garupa durante os shows de música.

Vicente, 15 anos, ultrapassou a minha altura até então imponente na casa. Mariana, 22, decidiu corrigir meu português até então indefectível na casa. O pai idealizado vai sendo substituído pelo amigo humano, imperfeito e feito de falhas perdoáveis e cômicas.

Logo mais cederei o meu lugar na cabeceira da mesa. Naturais o crescimento e a crítica cada vez mais exigentes.

Como não existe como segurar a idade, o que noto em mim é uma metamorfose do olhar. Há uma inversão de minha mirada diante dos filhos. Como eles amadureceram rapidamente, deixo de procurar em suas feições os adultos que se tornaram para reaver as crianças que um dia foram. Cato e recolho agora resquícios da infância em suas atitudes.

Mudei minha expedição: não perseguir mais o futuro, e sim a pureza e a magia da criancice intactas em alguma de suas frases e expressões. Folheio em seus rostos o nosso velho álbum de fotografias. Não me interessa mais saber se são parecidos com o pai ou com a mãe, com o avô ou avó, o que importa é encontrar semelhança com eles mesmos de antigamente.

Minha luta é identificar o que mantém de quando eram crianças: talvez a curiosidade, ou a risada desbragada, ou a teimosia de dormir tarde ou a pressa de comer quando amam uma refeição.

Minhas pupilas têm pinças e espátulas para não estragar as asas das borboletas do jardim do Éden.

Todo pai, depois de ser um profeta, converte-se num arqueólogo. Não está centrado em adivinhar quem serão os seus filhos, dispõe a proteger a ternura dos laços primevos.

Eu me esforço em não esquecer o começo. Serei a retaguarda deles por toda a vida. Irei guardá-los quando precisarem recuperar as suas identidades.

Enquanto avançam, recuo nostalgicamente. Não estranho que voltei a adotar os apelidos que usava quando ainda trocavam as fraldas: Vi e Mari. Recorro à diminuição proposital de seus nomes para preservar o amor da filiação.

Assim como meus pais nunca mais me chamaram de Fabrício, porém de Bito. Para não esquecer que serei eternamente uma criança para quem me criou e educou. Maturidade é jamais negar a nossa origem.