sábado, 6 de julho de 2019


06 DE JULHO DE 2019

LEANDRO KARNAL

O NOME QUE EU DESEJO E O APELIDO QUE EU TENHO

Há povos que gostam de apelidos. Brasileiros, hispanos e norte-americanos estão entre os principais. Quase ninguém imagina que Bill Clinton seja, na verdade, William Jefferson Clinton. Difícil supor que um Pepe mexicano seja José e um Pancho tivesse chegado ao batistério como Francisco. Bem, qual estrangeiro suporá Chico como apelido de Francisco? Em eras pré-politicamente corretas, abundavam os japas, os chinas, os gordos e os carecas. Hoje, tudo implica risco.

Além do apelido, existem apostos que qualificam mais do que uma simples alcunha. Por vezes, são qualificativos positivos: Alexandre, o Grande; Luís XIV, o Rei-Sol; Luís XV, o Bem-Amado; e, no campo republicano, Simon Bolívar, o Libertador. Podem ser eufemismos para defeitos, como a indecisão crônica de Filipe II da Espanha. A história oficial o registra como Filipe, "o Prudente".

Há as diferenças nacionais. A única rainha do Antigo Regime português é conhecida na terrinha como D. Maria I, a Pia. No Brasil, por vários motivos, ela é "a Louca". Há qualificativos que implicam ida ao dicionário. José de Anchieta é "o Taumaturgo" (aquele que faz milagres) e São Leopoldo, imperador da Áustria, é conhecido como piedoso e margrave, um administrador de fronteiras. Há profissões que se tornam superiores ao portador: Joaquim José da Silva Xavier, o "Tiradentes".

Quem lembraria do genial artista Mestre Didi se soubesse que sua denominação de registro civil é Deoscóredes? É interessante chamar a última soberana Tudor, Elizabeth I, de intensa vida sexual, como "a Rainha Virgem". Em sua homenagem, surgiu a Virgínia, na costa atlântica dos EUA. Tenho de imaginar, se, a retórica de adulação da corte inglesa fosse mais crua qual teria sido o nome da terra nova da coroa? Deixo aos estimados leitores e às queridas leitoras o exercício de imaginação para rebatizar a Virgínia com maior realismo.

Por fim, os mais interessantes, claro, são os qualificativos pejorativos. Luís VI da França é "o Gordo" e Carlos II da Espanha é o "Enfeitiçado". Luís II da França passa à história como "o Gago" e um imponente Plantageneta é apenas um... "João Sem-Terra". O pai de Carlos Magno tem qualificativo ambíguo: "Pepino, o Breve". O mais venenoso parece ser reservado para o rei de Castela: Henrique IV, "o Impotente".

Os qualificativos para famosos são uma maneira de defesa dos fracos. Não posso derrubar presidente, não tenho a fama de um craque, não tenho o dinheiro de fulano: tasco-lhe um apelido como a vingança do bagre diante do hipopótamo. Rio um pouco, divulgo diante do meu limitado grupo igualmente ressentido e me sinto vingado. Apelidar de forma negativa é, quase sempre, reconhecer minha inferioridade. Fazer graça com a característica alheia pode revelar o mico interno de cada um de nós.

Nosso macaquinho é inferior aos grandes símios. Em choques, apenas temos a possibilidade de subir rapidamente em galhos mais finos do que os rivais poderosos poderiam. Escalar e gritar: orangotango bobo, gorila vacilão, chimpanzé flácido! Lá de cima, protegido pela nossa fraqueza-força, rimos do maior. Apelidar é defender-se e tentar, ao menos na fala, vencer quem parece superior a nossas forças. Classificar o outro de tonto traz alívio; por exclusão, eu não sou.

O apelido pode ser carinhoso, todavia, com frequência, é agressivo em tempos de redes sociais. Ocorre um fenômeno curioso. Os pais, orgulhosos dos seus rebentos, colocam nomes civis longos, abusam das consoantes dobradas, aspirações nobiliárquicas e multiplicação de termos. O nome contém um quase-título de barão, uma passagem que faz o portador sair da pasmaceira do comum e flutuar entre os escolhidos de estirpe inatacável.

Os afetos intensos de mães e de pais, somados a forte ressentimento social, são o solo fértil para registros que, olhados de forma distante, parecem indicar linhagens de duques sólidos desde a Primeira Cruzada. Ao afeto com nomes desmedidos, choca-se a realidade do uso cotidiano. Como pronunciar aquele exercício de imaginação pretensiosa? Como chamar brevemente a pessoa que ostenta um verdadeiro tratado no seu simples nome? Aí emerge o apelido para simplificar o mundo.

Qualquer exemplo que eu der será tomado como ofensa capital. Assim, querida leitora e estimado leitor, só resta pedir que você imagine seu colega de sala ou vizinho que ostenta aquele nome que parece um verso alexandrino e saber que, invariavelmente, a imponência será sintetizada em palavras de uma ou duas sílabas. Princípio impossível de ser ignorado: ao pensar o nome do seu filho ou filha, suponha as possibilidades de apelidos como parte da estratégia da escolha. Nem sempre os olhares sobre o ser que você gerou serão de total complacência e simpatia.

Pode ser que, diante de olhares públicos ou de dependentes financeiros, o nome seja enunciado com toda pompa. Assim foi com o rei James II, Stuart, na Inglaterra. Pelas costas e quando os anglo-saxões já tinham destronado o odioso monarca, ele passa para a história como "James, the Shit". O decoro de um texto em um jornal tão importante impede que eu faça a exata tradução do termo. Ao final, todos sabemos, o tempo revela e desgasta nossas pretensões e solenidades. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


06 DE JULHO DE 2019
COM A PALAVRA

"Muitas pessoas inteligentes não sabem como pensar"

ENTREVISTA | Leonard Mlodinow, FÍSICO, 64 ANOS Norte-americano que se dedica a divulgar a ciência com livros acessíveis sobre temas complexos e projetos pop que incluem roteiros para a TV, inclusive para ?Jornada nas Estrelas: a Nova Geração?.

Leonard Mlodinow é um divulgador da ciência. Seus livros explicam de forma acessível temas como a presença da aleatoriedade no dia a dia (O Andar do Bêbado, de 2008), o papel do inconsciente na tomada de decisão (Subliminar, de 2012) e a história da ciência (De Primatas a Astronautas, de 2005). Seu mais recente lançamento no Brasil, Elástico (Zahar), que chegou às livrarias em 2018, desvenda o mecanismo do cérebro responsável por pensar fora da caixa e se adaptar a um novo contexto. É o pensamento elástico, mais fundamental do que nunca para lidar com as revoluções cada vez mais rápidas da atualidade. 

Nascido em Chicago de pais que foram sobreviventes de campos de concentração nazistas e se encontraram em Nova York, o autor descobriu a física nos anos 1970 durante uma estadia em um kibutz em Israel, por meio dos livros do físico americano Richard Feynman. Seu campo de atuação é vasto e inclui incursões pela ficção, como os roteiros que escreveu na década de 1980 para a série Jornada nas Estrelas: a Nova Geração e um romance que planeja produzir. Mlodinow esteve na Capital em maio para participar do 10° Fórum Instituto Unimed, ocasião em que recebeu ZH.

EM UM MUNDO EM CONSTANTE TRANSFORMAÇÃO, NO QUAL AS REVOLUÇÕES OCORREM MAIS RÁPIDO DO QUE NUNCA, O PENSAMENTO ELÁSTICO É FUNDAMENTAL?

Sim, pelas razões que você falou. O pensamento lógico e analítico é bom para quando você tem o seu problema já definido, em uma situação na qual você sabe quais são os seus objetivos e que abordagens utilizar. Daí você apenas aplica o raciocínio lógico e analítico para ir de A para B e para C, em direção a seus objetivos. Mas, quando há um novo problema ou uma situação que mudou, aí é diferente. Antes de poder aplicar o pensamento lógico para resolver esse problema e chegar a seu objetivo, primeiro você tem de entender qual é o seu objetivo nessa nova situação. 

Qual é a melhor forma de abordá-la, de pensar sobre ela? Que conceitos deve usar para enquadrar a situação? É onde entra o pensamento elástico, que requer que você integre ideias de diferentes áreas, além de imaginação e criatividade. Requer um novo tipo de pensamento, capaz de abandonar velhas pressuposições e questioná-las para entender o que realmente está por trás de suas ideias e levá-lo ao que você não pensaria normalmente. Em uma nova situação, você tem de se questionar.

QUE MUDANÇAS SINALIZAM A IMPORTÂNCIA DO PENSAMENTO ELÁSTICO HOJE?

O pensamento elástico é mais útil quando os tempos estão mudando. No passado, todos tínhamos o mesmo trabalho por toda a vida ou pelo menos por uma década. Agora, parece que trocamos de trabalho de poucos em poucos anos, até mesmo mudamos de área. Eu mesmo já trabalhei com física, já fiz roteiro para TV, escrevi livros. Cada atividade dessas requer diferentes abordagens e habilidades. Você pode trabalhar em marketing em um dia e ser consultor de negócios logo depois. Nos anos 1950, o tempo de vida média de um negócio era de 50 a 60 anos. 

Agora, é de cerca de 20 anos. Os negócios precisam se adaptar, e as pessoas também. Se não, você termina como as antigas companhias de táxi, que foram substituídas pelo Uber, ou as empresas de enciclopédia, substituídas pela Wikipedia. Companhias como a Kodak também foram abatidas porque não se atualizaram. As pessoas não percebem que há pouco mais de 10 anos não havia smartphones. Uma grande revolução na forma como vivemos aconteceu há uma década, embora pareça um século. Quando eu estava crescendo, uma revolução dessas levava décadas. Só o telefone de botões, que substituiu o de discar, levou 30 anos para se popularizar.

HÁ UMA PERCEPÇÃO DE QUE ESSAS MUDANÇAS RÁPIDAS E CONSTANTES PROVOCAM MEDO NAS PESSOAS. O SENHOR CONCORDA?

Diz-se que as pessoas têm medo de mudança, mas não é verdade. As pessoas têm certa atração pela mudança. Você não quer que o seu trabalho seja o mesmo todos os dias. Ficará entediado se fizer a mesma coisa sempre, não tiver desafios. Outros animais não se importam em fazer coisas repetitivas, mas os humanos estão sempre procurando novos desafios e variedade na vida. Isso vem da nossa herança genética. Sobrevivemos na selva porque temos essa habilidade, tendência ou afinidade de procurar coisas novas. Estávamos sempre explorando. 

Quando o tempo e as condições mudavam, explorávamos onde havia outros poços de água, comida ou abrigo e pudemos nos adaptar. Essa ideia de que há medo da mudança vem dos negócios, onde normalmente os trabalhadores, quando são forçados a mudar, é para pior. Então, não é a mudança que as pessoas temem, mas a mudança negativa. Ela gera insegurança. Não é verdade que as pessoas têm medo de se adaptar. Elas têm medo de que algo possa terminar mal.

MUITA GENTE GOSTA DE NOVAS TECNOLOGIAS QUE FACILITAM A VIDA, POR EXEMPLO.

Algumas pessoas não gostam de aprender uma nova tecnologia porque não querem dedicar tempo a isso. Mas se vem uma nova tecnologia que é fácil de usar, não é cara e facilita a vida, as pessoas não serão contra.

O PENSAMENTO ELÁSTICO TEM A VER COM CRIATIVIDADE, UMA IDEIA BASTANTE DEBATIDA HOJE, INCLUSIVE NO MUNDO DOS NEGÓCIOS, COM MUITOS LIVROS SOBRE O ASSUNTO. SER CRIATIVO É UMA MANEIRA DE NOS DIFERENCIARMOS?

A criatividade é uma combinação do pensamento elástico, que é de onde vem as novas ideias e a imaginação, com o pensamento lógico e analítico, porque você tem de guiar suas ideias, se não criará algo diferente, porém, sem significado ou utilidade. Se você é criativo com pintura e apenas espalha diferentes coisas na tela sem um foco ou direção, você provavelmente não terá nada. Se você é um inventor, terá dispositivos ou aplicativos inúteis. 

Você tem de guiar a sua imaginação e seu pensamento elástico para ser criativo. Precisamos da criatividade para sobreviver hoje. Pense na área dos negócios, em que tudo está sendo desafiado. Há capitalistas de risco em todos os lugares procurando empresas disruptivas. Eles querem fazer dinheiro financiando a inovação. Antes, era diferente. Se você tivesse uma empresa de enciclopédias, as pessoas diriam: "Não comece a fabricar cadeiras. Concentre-se em seu negócio principal, use seu pensamento lógico e analítico para otimizar o negócio para ser o melhor que puder". Essa é uma maneira ultrapassada de pensar, porque, se você mantiver as mesmas presunções sobre o seu negócio, mesmo percebendo que o mundo está mudando, há muita chance de você ser ultrapassado.

PODERIA COMENTAR ALGUNS EXEMPLOS?

Quando a Wikipedia veio e disse "vamos colocar tudo online, não será um livro e não pagaremos as pessoas para escrever, e sim deixaremos todo mundo escrever os verbetes", a Enciclopédia Britannica não aceitava. Dizia: "Um especialista tem que escrever. Se não, é insignificante", queria vender o conhecimento e não percebeu que havia possibilidade de as coisas mudarem, não teve criatividade para reagir. Outra diferença é que o mundo todo está conectado. Antes, se sua companhia era nos EUA ou no Brasil, seus desafios vinham de outras empresas nos EUA ou no Brasil. Agora, pode vir da Tailândia ou de algum lugar da África. Para reagir, você precisa do pensamento elástico. Precisa questionar suas presunções.

AS LOCADORAS DE VÍDEO QUE PERDERAM MERCADO PARA A AMERICANA NETFLIX, POR EXEMPLO.

Antes, tínhamos a (rede de locadores de vídeo) Blockbuster. Quando a tecnologia melhorou, a Blockbuster chegou atrasada nos DVDs. Eles tinham as fitas VHS e achavam que estavam bem. A Netflix cresceu alugando DVDs. As fitas eram pesadas e frágeis, e você não podia enviá-las pelos correios. Então, a Netflix teve a ideia de enviar DVDs pelos correios. Parecia estranho, mas eles fizeram isso, e a Blockbuster não esperava por essa. 

A Netflix empurrou a Blockbuster. Agora, se a Netflix tivesse apenas ficado com esse plano, também estaria fora hoje, pois quem ainda trabalha com DVDs? Percebeu cedo que o streaming estava chegando, inclusive foi criticada por isso. Dizia-se que o streaming era um mercado pequeno. Por que a Netflix estava trabalhando com isso em vez dos DVDs? A resposta é que ela queria estar preparada para quando o streaming se difundisse. Se você se adaptar, pode sobreviver. Se não, você perde.

COMO O SENHOR AVALIA OS PONTOS NEGATIVOS DAS TRANSFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS?

Não penso muito sobre isso porque você não pode pará-las. Certamente poderia citar como exemplos positivos todo tipo de nova tecnologia médica, sistemas de imagem para ver dentro do cérebro se você está doente. Outro exemplo é o Uber. Também gosto do aplicativo de previsão do tempo, pois viajo muito. Já não levo mais as roupas erradas. Adoro trocar mensagens com meus filhos (Alexei, 28 anos; Nicolai, 23; e Olivia, 18). Pais e filhos não podiam estar conectados assim antes. Por outro lado, quando estou com meus filhos no jantar, tenho de dizer: "Ei, foquem em mim, não fiquem mandando mensagem o tempo todo" (risos). Há prós e contras, mas não importa quais sejam: você precisa aprender a viver com isso, pois isso não vai mudar.

UMA QUESTÃO DISCUTIDA EM MEIO A TANTOS ESTÍMULOS QUE TEMOS HOJE É COMO RECUPERAR NOSSO FOCO, QUE PARECE CADA VEZ MAIS DRENADO PELAS POSSIBILIDADES DE ENTRETENIMENTO, COMO AS REDES SOCIAIS.

Mindfulness ("atenção plena") é uma coisa boa de praticar para estar atento ao que você está fazendo e por que está fazendo. As mídias sociais podem ser viciantes. Você precisa tentar controlar a sua vida e tomar decisões conscientes. Mas não acho que haja uma cura milagrosa para isso. Às vezes, as pessoas passam muito tempo lá porque estão solitárias, entediadas ou não têm nada para fazer. Nas nossas vidas, temos nossos problemas e nossos pontos fortes, e com a tecnologia é a mesma coisa. Os mesmos problemas estão lá.

COMO O SENHOR COMEÇOU A PRATICAR MINDFULNESS?

Há sete ou oito anos, conheci Deepak Chopra (guru sobre transformação pessoal). Escrevemos um livro juntos (Ciência x Espiritualidade) e ficamos amigos. Ele me ensinou meditação e mindfulness. Você pode entender o que está acontecendo com você e assumir melhor o controle se fizer mindfulness. Você quer dirigir o carro, e não deixar que seja dirigido por alguém que você não conhece (risos).

HOJE VEMOS MUITA DESINFORMAÇÃO QUE CONTRARIA O CONHECIMENTO CIENTÍFICO, COMO O MOVIMENTO DAS PESSOAS QUE NEGAM A MUDANÇA CLIMÁTICA E O MOVIMENTO ANTIVACINAS. COMO ENFRENTAR ESSE PROBLEMA?

A ignorância é um grande problema em todo o mundo. Não tenho uma resposta, mas defendo a educação. As crianças precisam ser ensinadas sobre como o mundo funciona, ensinadas a ser céticas e a questionar as coisas, em vez de simplesmente aceitar as coisas. Essa é a chave. Quanto mais isso ocorrer, teremos menos idiotices como essas. Para mim, as pessoas que negam a mudança climática ou dizem que as vacinas são ruins não sabem como pensar. Muitas vezes, são motivadas por interesse próprio. Uma pessoa que trabalha em uma empresa de petróleo pode negar a mudança climática porque sabe que isso (o petróleo) dá dinheiro. Esse pensamento também pode ser não intencional. Em um nível inconsciente, você pode não pensar pelos fatos, mas pelo interesse próprio. A única solução que vejo é as pessoas aprenderem a ser céticas, racionais e lógicas.

NEM SEMPRE CONSEGUIMOS SER ASSIM.

É louco. Certa vez, uma pessoa me ofereceu investimentos em máquinas de autoatendimento. Comecei a pensar sobre isso e contei à minha contadora, que ficou louca. Ela disse que conhecia um cara que investiu em máquinas de autoatendimento e que era um golpe, que eles pegavam o seu dinheiro, meu Deus, não faça isso. Ok, ela é uma pessoa inteligente, é contadora, sabe lidar com números. Mas esse pensamento é louco. Só porque alguém foi enganado em algum lugar não significa que toda a área é ruim. 

Temos que pensar: "É um golpe típico? Todo mundo faz isso ou é apenas um cara?". Bernie Madoff enganou pessoas no mercado de ações. Significa que ninguém deveria comprar ações? É loucura. Um dos motivos pelos quais escrevi Elástico é que as pessoas têm de estudar e aprender como pensar. Muitas pessoas inteligentes não sabem como pensar. Como um cientista, você procura evidência, uma teoria, estatísticas. Mas, mesmo que você identifique um padrão, você não deve apenas aceitá-lo. Deve tentar entender por que o padrão está lá. Se conseguir, você tem um bom motivo para acreditar em algo.

UMA MÁ INTERPRETAÇÃO DA ESTATÍSTICA PODE LEVAR AS PESSOAS A VEREM UM PADRÃO ONDE NÃO HÁ?

Se eu pegar um mapa do Brasil e colocar um alfinete onde alguém tem câncer, esses alfinetes seriam distribuídos de forma aleatória, pois algumas pessoas têm câncer e outras não. Mesmo sendo aleatória, se eu colocar um alfinete onde isso acontece, não vai parecer aleatória. Haverá lugares com muitos alfinetes e outros com poucos, pois é assim que funciona a aleatoriedade. Mas alguém poderá observar muitas pessoas com câncer em uma área e automaticamente presumir equivocadamente que haja algo na água, na terra ou no ar que esteja causando câncer. Se alguém acreditar nisso, pode querer se mudar dessa área sem motivo. 

É como esse movimento antivacina, por exemplo: há algum boato, e as pessoas o aceitam, mas não verificam e não pensam sobre isso. Então, você tem de aprender como pensar e compreender como as coisas funcionam para tomar uma decisão. A questão das vacinas é louca porque um cara escreveu um artigo idiota, sem evidência, dizendo que isso é ruim. Depois, ele retirou o que escreveu e admitiu que estava tudo errado, mas pessoas que procuram teorias da conspiração pegaram esse negócio e isso está causando problemas agora. Isso mostra que essas pessoas não sabem como pensar, não são educadas, e isso é prejudicial. O trabalho do governo é garantir que as pessoas sejam educadas. Ouvi dizer que vocês estão cortando dinheiro da educação no Brasil. É o oposto do que deveriam fazer. Vai haver mais pessoas ignorantes, mais estupidez, mais decisões ruins, crimes e tudo o mais.

O QUE TORNA OS SERES HUMANOS SUSCETÍVEIS A TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO?

As pessoas tendem a acreditar. Os humanos, quando ouvem algo, têm como padrão uma preferência por acreditar. Houve estudos sobre isso. Você tende a acreditar mais do que desacreditar quando ouve algo novo. Então, temos de mudar isso, aprendendo a ser céticos.

UM DE SEUS LIVROS MAIS BEM-SUCEDIDOS É O ANDAR DO BÊBADO, SOBRE COMO A ALEATORIEDADE E A PROBABILIDADE ESTÃO PRESENTES EM NOSSAS VIDAS. DEVEMOS TODOS CONHECER OS PRINCÍPIOS DA ESTATÍSTICA PARA TOMAR DECISÕES MELHORES?

Sim. Ouvi alguém dizer: "Meu amigo tomou vacina e duas semanas depois teve diagnóstico de autismo". Automaticamente, presumiu que a vacina causou o autismo. Outro exemplo: pense em alguém que já morreu. E se eu disser que essa pessoa tomou um copo d?água uma semana antes de morrer? Alguém pode dizer: "Acho que a água matou essa pessoa". Esse pensamento é recorrente, as pessoas não percebem a bobagem. O Andar do Bêbado é todo sobre isso: sobre como você pode diferenciar o acaso, a aleatoriedade, quando há uma causa ou não há.

RECENTEMENTE, A MEGA-SENA ACUMULOU E OFERECEU UM PRÊMIO RECORDE. MAS A CHANCE DE GANHAR O PRÊMIO MÁXIMO É DE UMA EM 50 MILHÕES. QUAL A SUA OPINIÃO SOBRE AS LOTERIAS?

Não há nada de errado com a loteria se as pessoas não gastarem o dinheiro de sua comida. O problema é quando elas estão tão desesperadas e viciadas que não conseguem dar conta, como os viciados em jogos. Em O Andar do Bêbado, fiz uma pequena análise sobre a loteria. Descobri que, se você dirige, digamos, 2 milhas (3,2 quilômetros) até a loja onde compra o seu bilhete de loteria e depois dirige de volta para casa, sua chance de morrer nessa viagem é mais alta do que a chance de ganhar na loteria. Não é uma coisa racional. É como eu propor um jogo: se você vencer, ganhará US$ 100 milhões; se perder, você morre. 

Provavelmente as pessoas dirão que não querem jogar, mas isso é o que elas fazem quando apostam na loteria. No exemplo que dei, as chances de cada uma das coisas ocorrerem é bastante pequena, então é um jogo inofensivo. Falando de forma realista, a chance de ganhar na loteria é tão baixa que pode ser arredondada para zero. É algo como 0,000000001, que na verdade é zero. As pessoas não pensam dessa forma porque assistem ao vencedor na TV, e ele está feliz. Mas é tudo uma ilusão, porque não vai acontecer com você. Na TV, eles não mostram as pessoas chorando porque perderam R$ 10 ou R$ 100. São essas pessoas que deram dinheiro para quem ganhou. O pensamento mágico diz: "Eu serei o escolhido". Há muitas questões psicológicas aqui.

HOJE, A ESTATÍSTICA ESTÁ PRESENTE NOS SISTEMAS DE RECOMENDAÇÃO DA NETFLIX E DA AMAZON, POR EXEMPLO, E CADA VEZ MAIS AS EMPRESAS COLETAM DADOS DAS PESSOAS. COMO O SENHOR ANALISA O USO EM MASSA DESSES DADOS?

Há riscos de eles serem mal utilizados. A Netflix sabe tudo o que assisto, o Google sabe tudo o que procuro. Isso me lembra o livro 1984 (de George Orwell). Eles sabem tudo: onde você está, para onde está indo. Estão observando você. Desde que o governo não seja uma ditadura que está tentando controlar e punir você, quem se importa? Mas dá a eles a oportunidade de se fazer isso. É quando começa a ficar assustador. Algumas companhias estão se tornando poderosas demais.

O SENHOR TRABALHOU COMO ROTEIRISTA DE JORNADA NAS ESTRELAS: A NOVA GERAÇÃO, ENTRE 1988 E 1989, E DE OUTRAS SÉRIES. ACREDITA QUE A FICÇÃO É NECESSÁRIA PARA O SER HUMANO? EM QUE MEDIDA?

Não sei se é necessária, mas é algo natural para o ser humano. As pessoas gostam de contar e ouvir histórias. Podem aprender sobre a vida real por meio das histórias da ficção. Se baníssemos as histórias, se as tornássemos ilegais ou nos livrássemos de todas elas, não acho que alguém morreria disso, mas talvez a vida não fosse tão rica.

A PROPÓSITO DOS FILHOS, QUE O SENHOR MENCIONOU ANTERIORMENTE: MUITOS PAIS INVENTAM HISTÓRIAS E EXPLICAÇÕES PARA SATISFAZER AS CURIOSIDADES DAS CRIANÇAS SOBRE AS COISAS DO MUNDO. O SENHOR TEVE O CUIDADO DE SEMPRE DIZER A VERDADE PARA ELES?

Sim. Sempre tentei dizer a verdade. Caso contrário, eles acabam descobrindo a verdade e podem questionar: "Por que você me disse a coisa errada?". Talvez eu tenha tentado evitar alguns assuntos ou tentado dizer de uma forma mais suave, mas sempre procurei falar a verdade.

ALGUM CONSELHO AOS PAIS?

Ensinem as suas crianças a serem céticas, a não acreditar em tudo que ouvem, a aprender a pensar por conta própria. Tente dar confiança ao pensamento delas para que sintam que podem descobrir as coisas por conta própria e fazer o que quiserem. Elas precisam saber que podem realizar o que desejam se trabalharem duro.

PLANEJA ESCREVER MAIS FICÇÃO?

Espero escrever um romance. Gosto de mudanças (risos).

FÁBIO PRIKLADNICKI


06 DE JULHO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

Maconha na gravidez

O que diz uma pesquisa realizada com 5,5 mil canadenses que deram à luz entre 2012 e 2017
Do Festival de Woodstock para cá, o consumo de maconha aumenta a cada ano.

De erva considerada maldita, que o preconceito social dizia ser consumida apenas por negros escravos e marginais, da época do Império, ela chegou à contracultura nos anos 1960 e se imiscuiu em todas as camadas sociais.

Uma das consequências mais nefastas da guerra às drogas é a falta de estudos sobre as consequências do uso crônico na saúde humana. Por exemplo, enquanto conhecemos razoavelmente bem os efeitos deletérios do fumo e do álcool, drogas lícitas, no desenvolvimento fetal, o uso de maconha durante a gravidez é cercado de ignorância.

Daniel Corsi e colaboradores acabam de publicar no Journal of the American Medical Association (JAMA) um estudo que analisou os dados contidos no Ontario Better Outcomes Registry & Network. Foram avaliadas 667 mil mulheres canadenses que deram à luz a um bebê com pelo menos 20 semanas de gestação, no período de abril de 2012 a dezembro de 2017.

O tratamento estatístico ficou concentrado em 5.539 mulheres que fumaram maconha durante a gravidez e 98.500 que não o fizeram nesse período (grupo controle).

1) Maconha na gravidez aumentou o número de partos prematuros: 10,2% entre as fumantes contra 7,2% entre as que não fumaram.

2) O número de casos de descolamento prematuro de placenta aumentou de 4% no grupo controle, para 6,1% no grupo das que fumaram.

3) Dos bebês nascidos no grupo controle, 13,8% precisaram de internação em UTIs logo após o parto. No grupo das que fumaram durante a gestação foram 19,3%.

4) Os bebês de mulheres que usaram maconha na gestação apresentaram índices de adaptação à vida extrauterina, medidos cinco minutos depois do parto (Apgar), 28% mais baixo.

Por outro lado, entre as grávidas que fizeram uso de maconha, houve 10% de redução nos casos de pré-eclâmpsia e de 9% nos casos de diabetes gestacional.

O aumento do consumo de maconha no sexo feminino tem sido bem documentado em vários países. Um inquérito epidemiológico, publicado nos Estados Unidos pelo Substance Abuse and Mental Health Services Administration, avaliou o uso entre 467 mil mulheres de 12 a 44 anos, no período de 2002 a 2017.

Nos anos de 2002 e 2003, haviam fumado maconha nos últimos 30 dias 3,4% das mulheres americanas. Entre as que se encontravam no primeiro trimestre da gravidez a prevalência foi mais alta: 5,7%.

Em 2017, tinham fumado no mês anterior 7% das americanas. Das que estavam no primeiro trimestre da gestação, 12,1%.

Portanto, no período de 15 anos, o número das que fumaram no mês anterior duplicou na população de 12 a 44 anos, bem como duplicou o número das que o fizeram durante o primeiro trimestre, a fase em que o desenvolvimento fetal é mais sensível às agressões externas.

As mulheres fumam maconha na gravidez em busca da sensação de relaxamento, alívio das náuseas ou porque são dependentes que não conseguem evitar o uso frequente. É importante saber que, pelo menos no primeiro trimestre, o uso é provavelmente inseguro.

DRAUZIO VARELLA


06 DE JULHO DE 2019
JJ CAMARGO

PRISÃO DOMICILIAR

O que acontece quando a idade deságua na inevitável perda da autonomia.

Os que crescem inconformados com o tamanho que têm e que não lhes basta não entenderão, nunca, que o crescimento tem os limites impostos pelo talento na seleção das escolhas, pela parceria animada ou não e, adiante na vida, pela preservação da saúde indispensável para manter o entusiasmo e a produtividade. E que chegará um momento em que a vontade de fazer pode permanecer igual, mas a energia para pôr em prática o planejado começa a fraquejar. E não há humor que resista a esta descoberta.

Alguns grandes empresários nunca conseguem delegar tarefas essenciais porque não confiam que alguém possa ser tão determinado e perfeccionista quanto eles conseguiram - e com isso chegaram aonde chegaram -, e se tornam amargos e intransigentes. Sempre que encontrares um velhinho rico e ranzinza, podes apostar que ele se considera insubstituível e a sua prole, uma decepção.

Quando a idade deságua na inevitável perda da autonomia, a relação familiar que sempre preservou uma distância convenientemente respeitosa sofre um grande estremecimento ao perceber que o autoritário herói da vida toda se transformou (e a impressão que se tem é que isso ocorreu de uma hora para outra) num velhinho frágil com marcha insegura e propensa a tombos frequentes. 

A proibição sumária de dirigir, em geral elaborada no conluio da esposa com o médico da família, costuma ser a primeira castração de privilégios, e a presença de um estranho, para tomar conta do carro que até ontem ele conduzia, é a materialização de tristes novos tempos, em que nem destino, nem trajeto serão mais de sua livre escolha. Nada arrasa mais um ex-todo-poderoso do que depender dos outros para locomover-se. A restrição de movimentos e a necessidade de ajuda para os deslocamentos mais elementares liquidam com a última reserva de autoestima. Porque é duro admitir fragilidade, quando a ilusão de força era a última que lhe restava.

E ninguém pode pretender que alguém que reinou soberano durante uma vida inteira possa, de uma hora para a outra, considerar normal que os familiares, agora donos do seu horizonte, se deem ao trabalho de organizar uma agenda de cuidadores, para que o vozinho não fique só e se exponha a riscos desnecessários.

No fim do ano passado, quando a família me pediu que fosse vê-lo em casa, porque estava muito fraco e encatarrado, relembrei as ótimas confidências que trocamos há uns 15 anos, por ocasião de uma lobectomia que lhe removeu um tumor do pulmão direito. Daquela época, eu guardava a imagem de um homem enérgico, com uma voz poderosa e um sofisticado senso de humor. 

Exceto o sorriso que quase lhe fechava os olhos, todo o resto estava irreconhecível. Falando baixo, com suspiros intercalados com uma tosse seca, era um arremedo do meu velho amigo, agora numa luxuosa prisão domiciliar. Contou-me dos cuidados excessivos da família e do quanto lhe chateava que a cada hora alguém abrisse a porta para perguntar como estava e, se precisava repor a água do chimarrão. Quando argumentei que eles estavam apenas preocupados que nada lhe faltasse, ele foi definitivo:

- E custava que, em algum momento, um deles se dispusesse a tomar, ao menos, um mate comigo?

Percebendo o quanto dói para um gaúcho a solidão de não ter para quem passar a cuia, pedi-lhe que me alcançasse o mate. E então, descobri o tamanho da gratidão que ele podia colocar num único sorriso triste.

JJ CAMARGO


06 DE JULHO DE 2019
DAVID COIMBRA

Chuvas de verão

Acho que o velhinho aqui da frente morreu. Não o tenho visto. Eu o via sempre da minha sacada, a casa dele fica a poucos metros de distância. Ele mora com a mulher, que também é bem velhinha. Os dois têm cabelos brancos da neve de janeiro e se deslocam com andadores de metal. Calculo que estejam com 90 anos ou mais.

Uma cuidadora mora com eles, o que significa que pobres não são. Esses profissionais ganham muito bem nos Estados Unidos. Dificilmente você contrataria um cuidador por menos de US$ 3 mil ao mês. E, se precisa morar junto, como no caso do meu vizinho, é muitíssimo mais.

Quando o dia está bonito, a cuidadora leva os dois para tomar chá fora de casa, num patiozinho que eles têm. Eu estou aqui, escrevendo, olho pela janela e os vejo saindo pela porta dos fundos. Aí, me detenho no meio da frase. Não interessa se é uma vírgula que estou puxando pela cauda ou um acento que estou fincando na testa de uma vogal, não interessa se estou prestes a encontrar o verbo mais formoso: paro tudo. E fico a observar. 

A cuidadora primeiro põe a mesinha, depois busca um dos velhinhos, que avança lentamente, atrás daquele andador. Em seguida, vem o que ficou esperando na cozinha. Por fim, eles se acomodam, um diante do outro. Tomam chá, suponho que seja chá, e conversam um pouco e calam muito e, de repente, se olham em silêncio.

Gosto quando se olham.

Porque me ponho a especular: há quanto tempo estarão juntos? Cinquenta anos? Sessenta?

Digamos que sejam 50. Você conhece de sobejo uma pessoa quando vive todo esse tempo com ela. Você já passou de tudo em sua companhia. Houve decepções e alegrias, perdas e ganhos, amigos e familiares morreram ou se mudaram de cidade, e vocês ainda estão juntos. Então, em uma tarde de sol ameno, vocês se olham por cima de uma mesa de chá e, o mais espetacular, sorriem um para o outro.

É disso que gosto: eles, às vezes, sorriem um para o outro. Duas vidas inteiras compartilhadas, e eles veem motivos para se alegrar, quando se olham. Devia ser banal; é especial.

Quando vejo essa cena, chamo a Marcinha:

- Eles estão sorrindo!

A Marcinha não fala nada, mas sei que ela está cogitando se, um dia, bem velhinhos, nós também seremos assim. Quem não pensaria o mesmo? Um amor antigo, com a solidez e a suavidade que só o tempo é capaz de produzir, um amor desses é o mais belo que há.

Mas não tenho mais visto o velhinho. Nem passando devagar, atrás da janela, pela cozinha da casa, nem no chá vespertino, na sombra do pátio. Na verdade, a cuidadora não botou mais a mesa para o chá, apesar de o verão ter chegado ao norte do mundo e os dias estarem tão aprazíveis.

Nesta semana, no fim de uma tarde quase quente, a Marcinha estava na sacada e me chamou:

- A velhinha está saindo!

Fui ver. Ela ultrapassou a porta dos fundos passo a passo, com a cuidadora segurando-lhe a ponta do cotovelo. Ficou parada de pé, debaixo de uma árvore. A cuidadora foi para dentro e ela continuou lá, sozinha. Não tomou chá, não fez mais nada. Apenas manteve-se parada, fitando o vazio. Não sei se estou imaginando, mas acho que vi um brilho úmido em seus olhos. Talvez. Não sei. Só sei que, minutos depois, a cuidadora a buscou e a conduziu de volta para o escuro da casa. 

E ela me pareceu mais vagarosa e mais triste. O que terá sido feito do velhinho? Espero que esteja bem. Espero que ele logo saia à rua para tomar seu chá da tarde. E que olhe de novo nos olhos da sua velhinha e ela olhe nos olhos dele e os dois troquem sorrisos mansos e cheios de significado. Em silêncio.

DAVID COIMBRA

06 DE JULHO DE 2019
ARTIGO

MUDOS, POR QUÊ?

Tudo o que seja "estranho" e "inexplicável", quase sempre, encobre alguma sordidez ou maldade disfarçada. Cabe encontrar o disfarce e saber por que surgiu, ou visando ao quê.

No longo debate em torno da CEEE ("sim à privatização" ou "não à privatização") o estranho foi o silêncio generalizado em torno do grande assalto que, em 1987, no governo Pedro Simon, devastou a empresa que fora modelo de gestão e eficiência. Nosso escândalo provinciano é maior do que a orgia do "mensalão". Em valores atuais, vai a mais de R$ 1 bilhão. Na época, acariciou diferentes círculos do governo com propinas de 12 grandes empresas (várias delas, rés na Lava-Jato) e, neste século 21, serviu de "modelo" para assaltar a Petrobras.

O processo judicial, iniciado em 1996, corre ainda "em segredo e Justiça" na 2ª Vara da Fazenda, em nosso Alegre Porto. Até hoje não há sentença nem qualquer alegria.

Um silêncio total encobre a fraude. Nos três poderes do Estado, todos são mudos, como se nada existisse. Ou como se recuperar R$ 1 bilhão não fosse fundamental num momento em que a politicalha transformou a antes eficiente CEEE num traste velho, com ferrugem e cupim.

A fraude envolveu dois milionários contratos de equipamento e obras em 11 subestações da CEEE, assinados em ato solene no Piratini em 1987, como "a recuperação do Estado". Sete anos depois, a então secretária de Energia, Dilma Rousseff, descobriu o roubo: as licitações eram "acertadas entre as empresas", sem determinação da obra, terreno ou projeto a executar.

Logo, uma CPI do Legislativo esmiuçou tudo. Lindomar Rigotto, assistente da direção da CEEE, apareceu entre os dois principais envolvidos. Seu irmão Germano Rigotto, do PMDB, na época líder governista na Assembleia, afirma não ter interferido para nomeá-lo. O então presidente da CEEE, Osvaldo Baumgarten, se disse "traído" por Lindomar e pelo diretor financeiro Silvino Marcon e contou que quis demiti-los, sem conseguir.

O inexplicável já tinha rosto. Por que, então, há muito, todos são mudos e cegos nessa roubalheira? A Justiça não julga. O Legislativo não fala. O atual governador, Leite, nada fez para recuperar o roubado. Imitou seus antecessores Simon, Brito, Olívio, Germano Rigotto, Yeda, Tarso e Sartori. A exceção foi Collares, que deu poderes a Dilma para investigar o horror.

Horror? Sim, pois há sangue de permeio. Lindomar jamais foi condenado.

Morreu anos depois, com um tiro certeiro. Por que continuar mudos? 

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES


06 DE JULHO DE 2019
SCOLA ENTREVISTA - ENTREVISTA | HELEN MACHADO, Diretora-presidente da Carris

"Estabilizar a queda de passageiros é desafio"


Cartazes colados nas paredes dos corredores e nos gabinetes da Carris companhia pública de transporte coletivo de Porto Alegre expõem o slogan que virou mantra na empresa e é perseguido com obsessão pelos servidores: meta 2019 zerar déficit. Para uma empresa que acumula prejuízos contínuos que somam R$ 289 milhões de 2012 para cá, parece improvável que isso possa acontecer. Há apenas dois anos e meio, no final de 2016, fechou o ano com rombo de R$ 74 milhões. 

O caminho natural seria a privatização da estatal que opera as principais e mais movimentadas linhas de capital 155 mil passageiros são transportados por dia. Foi quando desembarcou na Carris a administradora de empresas Helen Machado, especialista em gestão e sem filiação partidária. Com outros dois diretores e sete gerentes de área, têm conduzido uma pequena revolução administrativa na empresa.

- Cada um fazia o que queria, ninguém era treinado, não havia processo algum. Chamei todos e disse: "Lá fora têm 13 milhões de desempregados. E vocês, aqui, recebem o salário em dia mesmo com as dificuldades da empresa. Vamos mudar essa realidade".

Será possível zerar o rombo da Carris neste ano?

Temos dois grandes desafios ao longo do ano: estabilizar a queda de passageiros, tentando fazer com que esse índice não cresça mais do que já está, e a questão da renovação da frota. São dois fatores determinantes para alcançar o déficit zero.

O déficit zero é repetido como mantra. Sem isso, qual será o futuro da Carris?

Qual é o negócio que se mantém vivo se não visar resultado, seja público ou privado? Alguém vai pagar a conta no fim do ano. Se é uma empresa privada, quem paga é o dono. Se é pública, a população. Perseguir essa meta tem de ser o "acordar e dormir" de quem está aqui dentro. Não existe outra alternativa. Ou focamos nisso como objetivo de todas as pessoas que estão aqui ou não tem saída. Tem de ter resultado para poder investir, coisa que não acontecia mais na Carris. Se não investe no negócio, perde capacidade administrativa, ainda mais na era em que vivemos.

Vocês têm 160 projetos de gestão em andamento. Mas gestão tem relação com cultura, mudança de hábitos e comportamento. Como fazer isso numa empresa onde todos pareciam acomodados?

Não é fácil. O processo de mudança cultural e do modelo mental das pessoas é o maior desafio de qualquer gestor e exige muita vontade de quem está sendo liderado. Tento passar para os servidores que o resultado do trabalho não vai ficar para mim. Será um resultado para todos. E sempre reforço que os servidores estão aqui para prestar serviço para o cliente, e não estão aqui só porque passaram em um concurso público.

A sua gestão descobriu uma série de irregularidades. Como foi enfrentar esses esqueletos no armário?

Sim. Trazer a Carris para um novo padrão de correção e padronização de processos não foi fácil. Ainda enfrento resistências. Recebi ameaças que foram veladas, outra nem tanto, mais diretas. Quando tomei a decisão de assumir a empresa, vim com a vontade de fazer algo diferente. Mas costumo dizer: se tu não tem disciplina para estar em um negócio, não pode estar ali. E as pessoas aqui precisavam ter em mente que tudo o que acontece com a empresa é resultado das ações de cada um.

Qual foi a maior distorção que você encontrou na Carris?

São tantas. Para mim, o mais importante é que a empresa não cuidava minimamente de quem entrava e saía daqui. Como cuidar da empresa se a porta está sempre aberta para qualquer um entrar. Não pode ser sério se for assim. Outra coisa importante foi quando implantamos o programa Fumo Zero, porque temos um posto de combustíveis e as pessoas fumavam aqui. Eram coisas gritantes e me perguntava: como que ninguém olha isso? Como pode o gestor não se preocupar com o fato de o servidor faltar, faltar de novo e ninguém tomar providências. A grande questão é o abandono. Como deixaram as coisas serem abandonadas desta forma? É por isso que o resultado financeiro foi esse.

Como enfrentar a redução do número de passageiros e a concorrência com aplicativos?

Uma das ferramentas que vamos usar é o GPS, que dará precisão e condição para o passageiro ter informação em tempo real. A melhora do atendimento é um dos fatores. Investimento na frota, novos ônibus. Estamos tentando enxergar o que acontece no mundo para encarar nossa realidade. Vamos ter novas tecnologias, novos modais. Não tem como ir contra isso. Precisa ser discutido e pensado. Ficamos até agora muito focados no momento da empresa, mas estamos começando a olhar para isso. Principalmente, na questão tecnológica. Hoje, ainda trabalho com sistema DOS. Como serei competitivo com esse modelo? A transformação digital está aí e precisamos nos conectar.

Serão comprados ônibus neste ano?

Temos um passivo muito grande. A idade média da frota é 9,2 anos. O custo de manutenção de uma frota antiga é enorme e quanto mais velhos os ônibus, maior é o gasto. Estamos trabalhando na capacitação para melhorar a manutenção. É um dos nossos focos. A renovação é um ponto importante e estamos perseguindo isso. Infelizmente, não conseguimos fazer antes. Estamos tentando um financiamento para aquisição de 40 novos ônibus.

E os serviços, como tabela horária?

Estamos devendo muito ainda em relação aos serviços. Temos de equalizar a questão do quadro de servidores. Hoje, 20% do quadro está afastado por motivo de licença. Mais 5% de ausências, isso dá em média cem pessoas que faltam todos os dias. É uma ineficiência que não podemos mais absorver no dia a dia. Por isso, acredito que a tecnologia vai nos ajudar muito. O GPS vai permitir uma evolução enorme. Saberemos todos os passos e caminhos que o motorista percorre. Daí, o eventual ajuste é imediato.

Tem algum guru, um livro lhe inspire?

Olha, por incrível que pareça, quando vim trabalhar, li A Arte da Guerra (Sun Tzun). É um livro que carrego na bolsa.

DANIEL SCOLA

06 DE JULHO DE 2019
+ ECONOMIA

CRISE? QUE CRISE?


Parte do grupo Dimed, como a farmácia Panvel, o laboratório Lifar passa a fornecer perfumaria para a rede de varejo Riachuelo. Com a marca Be.U, a empresa que já faz o mesmo para a Lojas Renner tem 75% de seu faturamento com produtos que levam marca de outras empresas. A projeção para 2021 é de que chegue a 80%. No ano passado, teve alta de 16,4% nesse tipo de projeto ante 2017. Para 2019, a expectativa é de mais 20%. Além de Renner, Riachuelo e Farmácias São Paulo, desenvolve linhas para Amway, Pompéia Casa Fashion e Profarma.

Responsável pela CI Intercâmbio e Viagem, o Grupo CI prevê elevar seu faturamento de 15% a 20% neste ano. Com 130 unidades, inclusive no Exterior, vai expandir operações para a América Latina. No ano passado, faturou R$ 325 milhões, aumento de 1,5% ante 2017.

Lançado em fevereiro, o sistema de franquias da Imóveis Crédito Real já tem unidades em Bento Gonçalves, Capão da Canoa, Garibaldi e Gramado. A previsão inicial era terminar o ano com esse número. A meta, agora, foi atulizada para 15. No modelo, o franqueado atua em vendas, locação comercial e residencial, auxílio nos condomínios e venda de seguros.

A SEMANA QUE EU VI

Acordo histórico

O acerto ocorreu na semana anterior, mas foi nos últimos dias que os detalhes do acordo UE-Mercosul começaram a ser conhecidos. Embute profundas transformações na indústria nacional, mas amarra o Brasil a regras civilizatórias.

Caminho aberto

A aprovação da privatização de CEEE, CRM e Sulgás permite a adesão do Estado ao regime de recuperação fiscal, uma imposição de caixa. Mas é preciso cuidado para que a venda de ativo público não sirva apenas para resolver passivo de curto prazo.

Polêmica, mas aprovada

A aprovação da reforma da Previdência na comissão especial da Câmara dos Deputados deu alívio ao mercado financeiro e à economia real. A confirmação em plenário antes do recesso é uma possibilidade real.

Mirem-se no exemplo

Na semana do acordo com Mercosul, a União Europeia renovou postos-chave. Ursula von der Leyen vai comandar a Comissão Europeia, órgão executivo do bloco, e Christiane Lagarde, atual chefe do FMI, liderará o BC europeu.

MARTA SFREDO


06 DE JULHO DE 2019
RBS BRASÍLIA

ARMAS USADAS NA APROVAÇÃO DA PREVIDÊNCIA

Emendas, promessas de cargos e engajamento de lideranças de partidos do centrão são algumas das principais armas utilizadas pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e pelos líderes governistas para a aprovação da reforma da Previdência. A expectativa de quem está na linha de frente das negociações é de que, até a próxima quarta-feira, R$ 10 milhões em emendas sejam liberados por deputado. 

Parlamentares também alimentam a expectativa da confirmação do nome de afilhados em cargos federais. Embora o Palácio do Planalto negue que pratica o que chama de velha política, essas conversas estão bastante adiantadas e ajudam a engordar o mapa de votação em plenário. Para não ter sobressaltos, o governo precisa de 320 a 340 nomes confirmados.

Condenável, a prática do toma lá dá cá é um dos vícios mais difíceis de enterrar no sistema presidencialista de coalizão. Justiça seja feita, há outros elementos importantes que também contribuem para que o Congresso esteja mais aberto à aprovação de um assunto tão espinhoso. Esse foi um tema presente na campanha e o próprio Paulo Guedes, então chamado de Posto Ipiranga por Jair Bolsonaro, assumia que iria mexer nas aposentadorias. 

Ninguém, portanto, foi surpreendido pelo texto encaminhado pelo Ministério da Economia. Embora tenham xingado o presidente Bolsonaro de traidor, os policiais não têm razão de reclamar. O mote da campanha da reforma é a retirada de privilégios. Deputados também consideram o clima das manifestações de rua favoráveis ao presidente e à reforma como um sinal de alívio nas bases eleitorais.

Nesse cenário, Maia conseguiu convencer lideranças do PP, um dos principais partidos do centrão, a participar das articulações finais. Experientes, compensaram a falta de traquejo dos novatos. Com grande ajuda do Congresso, Bolsonaro está prestes a concluir um dos principais feitos de seu governo.

ESCUDO HUMANO

A votação da reforma da Previdência ensinou que os articuladores políticos do Planalto precisam servir de escudo humano para o presidente Bolsonaro contra as pautas impopulares. A líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann, e o líder no Senado, Fernando Bezerra Coelho - na foto, ao lado do deputado estadual Frederico D´Ávila (PSL-SP) -, já começam a sentir na pele o ódio das corporações. À frente das negociações na comissão especial da reforma, Joice comemorou nas redes sociais a aprovação. Desde então, vem sendo acusada de traidora e xingada pelos defensores de policiais. Na comissão, representantes da corporação vaiaram os parlamentares contrários aos benefícios.

No mesmo dia, Bolsonaro e os filhos evitaram comentários nas redes sobre o avanço das mudanças nas aposentadorias. Na transmissão ao vivo que faz às quintas-feiras, Bolsonaro preferiu defender o trabalho infantil a falar da aprovação da Previdência. Na sexta-feira, o presidente afirmou que algumas questões da reforma serão "corrigidas" em plenário. Ele não detalhou o assunto, mas nos bastidores insiste em contemplar os policiais. Se depender da equipe econômica, esse destaque não será aprovado. 

CAROLINA BAHIA


06 DE JULHO DE 2019
ECONOMIA

Busca por capacitação pode ajudar na volta ao mercado

Analistas indicam que a procura por qualificação pode auxiliar quem deseja retornar ao mercado de trabalho, em setores como a indústria. Algumas entidades oferecem cursos diversos, pagos ou gratuitos. Entre elas, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial no Estado (Senai-RS).

Diretor regional do Senai-RS, Carlos Artur Trein afirma que, além de conhecimentos técnicos, empresas cobram cada vez mais de seus funcionários o domínio de competências comportamentais, como aptidão para trabalhar em grupo e busca por soluções de problemas de maneira criativa.

- Adquirir novas competências é necessidade constante - comenta o diretor.

Para eventuais interessados, Trein sugere a consulta ao site da entidade (www.senairs.org.br).

A Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS) também oferece cursos gratuitos que costumam durar de 30 a 50 horas. Mais informações sobre as atividades podem ser consultadas no site da entidade (www.fgtas.rs.gov.br).

FECHAMENTOS DE UNIDADES

Empresas de diferentes segmentos fecharam unidades no Estado, recentemente, provocando demissões nos últimos meses. Relembre alguns dos casos.

Nestlé

A companhia fechou, na segunda-feira, posto de recebimento de leite em Palmeira das Missões, no noroeste do Estado. A decisão provocou 18 demissões.

Duratex

A dona da marca de louças sanitárias Deca também confirmou, na segunda-feira, o fechamento de unidade no Rio Grande do Sul, localizada em São Leopoldo, no Vale do Sinos. A fábrica empregava 480 pessoas. A empresa não informou o número exato de demissões, porque parte dos funcionários poderá ser transferida para outras operações.

Pirelli

A empresa irá transferir, de Gravataí para Campinas (SP), a produção de pneus de motocicletas em 2021. O anúncio ocorreu no último mês de maio. À época, a companhia gerava 900 empregos diretos na Região Metropolitana.

Kimberly-Clark 

A multinacional anunciou, em fevereiro passado, o fechamento de fábrica em Eldorado do Sul. Cerca de 260 funcionários atuavam no local. De origem americana, a Kimberly-Clark desenvolve itens de higiene pessoal, como guardanapos, fraldas e absorventes femininos.

Quaker

A multinacional PepsiCo, dona da marca de produtos de aveia, confirmou em maio deste ano o fechamento de sua fábrica em Porto Alegre, que funcionava desde a década de 1950. O término das atividades da Quaker resultou na demissão de 180 empregados.

Bottero

A fabricante de calçados fechou, em julho de 2018, quatro unidades produtivas em Nova Petrópolis, Osório, Parobé e Santo Antônio da Patrulha. O fim das atividades causou 630 demissões.

sábado, 29 de junho de 2019



29 DE JUNHO DE 2019
LYA LUFT

Uma insensata rosa

Por que não começar citando Borges: "Por que brota de mim - quando o corpo repousa e a alma fica a sós - esta insensata rosa?".

Talvez seja uma boa resposta - ou proposição de novo enigma - para a pergunta tão comum sobre a inspiração. De onde ela vem? Como aparece, de que lugar obscuro emerge, ou cairá dos céus?

Nunca encontrei resposta certa, mas essa frase de Borges me parece adequada. Não sabemos a resposta, eu não sei, talvez não haja. O termo "inspiração" já desperta alguma suspeita de quem trabalha com arte, seja ela qual for: música, pintura, escultura, literatura, teatro, dança, não importa. Pois nem sempre estamos bem dispostos (alguém diria "inspirados"), mas em geral temos de prosseguir no trabalho. 

Há trabalhos que precisam ser feitos, mesmo tratando-se de arte, um pouco mais complexa do que engenharia, economia e outros - ou não -, ainda que não tenham nos dado duros prazos, ou prazo algum. Posso parar por algumas horas, dias, e - pelos muitos anos de experiência - sei que, se for bom para meu livro, a vontade, o encantamento, a palavra ou frase, o personagem, voltarão no lugar certo, na hora certa.

Mas não há garantias, é sempre um passeio à beira do abismo.

Gosto de emprestar, nesse assunto, o episódio descrito por Marguerite Yourcenar: ela escrevia um texto, absorta, sobre a morte de Zenon, para seu livro, quando chega o encanador para consertar algo na pia. Marguerite levanta, ele entra, conversam um pouco, ele faz seu trabalho, ela paga, ele senta a convite dela e conversam mais um pouco. Yourcenar e sua companheira moram num lugar remoto, nevava lá fora, e o trabalho do encanador era importante. Ela lhe oferece café e o pão que tinha assado naquela manhã.

E, quando o encanador se vai, diz ela, maravilhosamente: "A morte de Zenon continuava lá, à minha espera". A frase dela me parece gloriosa e verdadeira, e nos dispensa, a nós artistas, de dar com muita facilidade essa desculpa "não me veio inspiração". Acho fácil demais, preguiçosa demais, simples demais, essa explicação. Em geral, não ficamos aéreos aguardando que algo suba de nossas entranhas ou desça das nuvens, a não ser em alguns necessários e meio inexplicáveis momentos. Além disso, falo por mim, pois cada escritor, ou outro artista, tem seu jeito, suas maneiras, recursos, hábitos e chatices.

O que funciona é um encantamento com uma palavra, um rosto, um drama, um fato qualquer. E aquela criatura, humana ou não, começa a ter corpo, sofrimentos, felicidades: e a gente se apaixona, e inventa uma paisagem interior, talvez também externa - e escreve.

E trabalha: arte é trabalho, às vezes duro, exaustivo, que nos exalta ou abate, em que acreditamos ou desacreditamos, mas - operários que somos - continuamos a exercer. Queremos a frase melhor, a curva melhor, o som mais precioso, o gesto mais expressivo, ainda que nos pareça, muitas vezes, nosso absoluto fracasso e total ruína.

Além da dura lida, importa, sim, aquela insensata rosa que desabrocha quando menos esperamos: além dos ruídos, das tristezas, das euforias, e das cotidianas chateações. Inspiração, quem sabe, existe.

LYA LUFT

29 DE JUNHO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Jejum salva


Milhões de pessoas ainda sentem fome neste país, porém outros tantos milhões comem e ainda ficam acima do peso ideal. A fórmula para manter a boa forma não é segredo: alimentação balanceada + exercícios físicos. Mas, como se sabe, nada é tão simples, e mesmo quem não é gordo costuma penar para perder os famosos dois quilinhos extras - meu caso. Troquei o suco de laranja pelo suco de uva integral, tento evitar pão branco, procuro comer mais frutas e verduras, enfim, medidas paliativas que a gente adere quando o caso não é grave.

No momento, ando atraída pelo novo queridinho de quem ama dietas: o jejum intermitente, que consiste em passar 12, 14, 16 horas sem ingerir nada além de água. Não adote este jejum sem consultar antes um especialista. Estou trazendo o assunto porque sou das que acreditam que o corpo armazena nutrientes suficientes para manter nossa energia, mesmo sem a gente se alimentar por um longo período (volto a dizer, converse com um profissional) e também porque o tema serve de gancho para discutirmos outro jejum, e esse qualquer um pode começar agora mesmo. É o jejum existencial. Não para ficar magro, e sim para ficar leve.

As pessoas se empanturram de encrencas, sem levar em conta a inteligência emocional. Já ouviram falar vagamente a respeito, acham que todo mundo é beneficiado por ela, mas, na prática, continuam investindo no autoboicote, e dá-lhe vida pesada. Jejum é a solução. Jejum salva.

Passe 12, 14, 16 horas sem pensar que estão te perseguindo, sem fazer fofoca dos outros, sem criar confusão, sem levantar a voz, sem acreditar que é mais sabido que os demais, sem achar que o mundo lhe deve favores e reverências, sem chatear a humanidade. O que é um chato? Cada um tem uma definição. 

A minha: é aquele que acha que todos estão interessados no que, na verdade, só a ele interessa. Então, corte as minúcias, corte o egocentrismo, corte a soberba, corte a desconfiança, corte a brutalidade, corte a deselegância, corte a impaciência, corte a arrogância. O que sobra? Um cara querido, uma garota fácil de lidar, gente bem-humorada sem nariz empinado. O que sustenta essa gente? A autoestima. Ninguém precisa ser grosso para ser visto. Ninguém precisa ser exibido para ser amado.

Corte queixas, implicâncias e a tendência a rugir por besteiras. Não seja o terror das reuniões, o namorado estressado das festas, a sobrinha que faz longos discursos durante o churrasco, a vítima de sempre no grupo de WhatsApp, o magoado eterno. Evite colocações inoportunas e não procure cabelo em ovo. Que ovo? Jejum! Por 12, 14, 16 horas seguidas, não crie caso. Duas vezes por semana, procure não ser tão pessimista, alarmista, ranzinza. Deixe o celular carregando em casa e vá dar uma volta a pé no quarteirão para descarregar-se. Emagrecer é difícil, perder peso não é.

MARTHA MEDEIROS


29 DE JUNHO DE 2019
CARPINEJAR

O x da questão

O gaúcho é apaixonado por pão. O churrasco apenas tem sentido com pão de alho. Quem é de fora não vai entender. Sem a entrada, o sabor da picanha se esvai, a costela não tem a mesma realeza.

O pão de alho não é um acessório, mas um protagonista da churrasqueira, um familiar gastronômico tão importante quanto o salsichão. Não há como dispensá-lo da tertúlia dos espetos. Sua ausência provocará imediato boicote e sucessivas vaias.

Gaúcho molha o pão na sopa, molha o pão no café com leite, molha o pão na massa para limpar a porcelana, molha o pão na feijoada para pescar o baio.

O pão é um segundo garfo. Um talher de nossa ansiedade. Tanto que existe a tradição imperiosa do xis nos pampas. Em vez do hambúrguer, priorizamos esse banquete portátil.

É colocar tudo dentro do pão e prensar. É a principal refeição das madrugadas gaudérias quando os restaurantes estão fechados.

Quem já não saiu de uma festa ou de um jogo de futebol ou de um show e foi matar a fome num trailer de sua preferência? Se não fez isso ainda, não pode ser chamado de gaúcho.

O xis é um PF (prato feito) no pão. Um prato de caminhoneiro no pão. Um prato de estivador no pão. É o equivalente ao tropeiro mineiro, só que condicionado entre duas fatias.

Trata-se de uma variação escandalosa do portenho choripán. Uma dissidência carnavalesca e carregada de elementos da versão econômica de nossos co-irmãos.

O mais conhecido é o salada: carne, ovo, tomate, alface, maionese, milho. Mas pode homenagear todos os menus, de strogonoff com batata palha a lasanha com camadas de queijo e presunto.

Num mero sanduíche, repete-se as etapas de um rodízio de carne. Assim o vivente tem a oportunidade de comer um x-coração ou um x-lombo e sentir de volta o gostinho do fogo de chão no céu da boca.

A mordida requer malabarismo. Não se deve mastigar de qualquer jeito para não desmoronar a obra de arte. Os incautos correm o risco de perder o recheio na primeira dentada. Os joelhos necessitam de afastamento, os braços pedem a posição concentrada de mesa, e, de modo nenhum, recomenda-se virar os olhos para o lado. Apreciá-lo depende essencialmente de foco: não dá para conversar e comer ao mesmo tempo. O alimento é muito sensível ao deslizamento.

Quando alguém devora um xis, a sensação é que ele está rezando. Agradecendo a Deus por morar no Rio Grande do Sul.

CARPINEJAR