sábado, 3 de agosto de 2019


03 DE AGOSTO DE 2019
SINGULAR

O caminho do reconhecimento

A professora Flávia Twardowski não costuma dizer não pesquise isso ou não vai dar. Orientadora de centenas de estudantes no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), campus Osório, no Litoral Norte, ela se acostumou a ouvir ideias das mais variadas: desde invenções que já existem, e portanto representariam pouco avanço científico, até projetos mirabolantes ou inadequados para serem desenvolvidos em um curto período. A todos, em um primeiro contato, dá atenção. Busca compreender. Pergunta o porquê da vontade de estudar aquilo, o que pode de fato ser feito no Ensino Médio em cima daquela ideia, qual o real interesse do proponente.

Assim, aplica uma série de filtros invisíveis para perceber o quanto os estudantes que a procuram com vontade de levar adiante suas pesquisas querem investir de tempo e de dedicação ao projeto. E ainda motiva os jovens a irem atrás de mais informações, a investigar, descobrir, saber o que já foi e o que ainda pode ser feito na área em questão.

Em novo contato, posteriormente, já fica claro quem está interessado de verdade. Aqueles que não desistem costumam retornar com argumentos mais robustos para motivar seu projeto - ou voltam com ideias totalmente novas. De um jeito ou de outro, criam bases para solidificar as propostas e fazê-las acontecer. E encontram, na professora, o apoio para torná-las realidade.

- A aplicação prática do que se aprende em sala de aula é muito significativa porque ajuda os alunos a enxergarem algum problema. E tentar resolvê-lo baseado no que conhecem. O jovem pega aquele conhecimento teórico, se apropria e tenta transformar em uma solução. Ele se envolve completamente. Quando consegue fazer isso, além de protagonizar a solução que ele mesmo identificou, aprende de forma muito mais interessante. E aquilo ele não vai esquecer - destaca Flávia, doutora em Engenharia de Produção.

Foi assim com Juliana Davoglio Estradioto, que estava ávida por engatar mais um projeto de pesquisa durante seu curso técnico em Administração integrado ao Ensino Médio no IFRS. As propostas anteriores apresentadas por ela, feitas ao longo dos três primeiros anos de estudos - no Ensino Médio integrado do IFRS, a formação dura quatro anos -, sempre sob orientação de Flávia, tinham sido muito bem-sucedidas, rendendo premiações regionais, nacionais e até internacionais para ela. Mas a jovem queria mais.

No início de 2018, então com 17 anos, Juliana foi, animada, à sala da professora para apresentar a nova ideia. Queria criar um casaco ecológico, feito de couro vegetal.

- Eu estava pesquisando sobre jaquetas alternativas ao uso de couro animal, e descobri uma que tinha sido produzida por microrganismos. Fiquei muito curiosa: como um serzinho que não conseguimos nem ver consegue produzir algo tão grande, que podemos até vestir?

Ela chegou com a ideia pronta, tendo já levantado algumas dificuldades e definido hipóteses, metodologia, objetivos. Estava, mais uma vez, cheia de vontade de partir para a prática. Foram surgindo, porém, outras oportunidades no caminho, em meio às orientações no instituto e interações com pesquisadores que ambas conheciam de apresentações em feiras de ciência. Logo Juliana e a professora viram a oportunidade de lapidar aquele projeto e transformá-lo em algo diferente.

A ideia do casaco deu lugar à intenção de criar uma biomembrana - plástico biodegradável produzido com microrganismos - feita a partir da casca da noz de macadâmia, capaz, entre outras possíveis funções, de substituir embalagens de plástico.

Se deu certo, você logo ficará sabendo. Antes, cabe destacar que a jovem, hoje com 19 anos e curso técnico concluído, despertou para a ciência com a orientação de Flávia. Juliana se interessou por participar de um dos chamados regulares que a professora faz em busca de bolsistas - e resolveu se inscrever, no início, ainda no 1º ano do Ensino Médio, de forma voluntária. Era, na época, uma extensão rural, em nada, aparentemente, ligada aos estudos da jovem, voltados para a administração de empresas. Mas seu interesse em pesquisar era maior.

- No meu último projeto, usei a casca da noz macadâmia como se fosse um alimento para microrganismos: ao mesmo tempo em que eles vão se reproduzindo e crescendo, produzem uma membrana. Ela pode ser usada para várias coisas, desde como alternativa para o plástico até aplicações na saúde. Desenvolvi uma embalagem para recolhimento de fezes animais e estamos investigando agora usar a membrana também como um curativo para cicatrizes - orgulha-se Juliana.

E vejamos, então, se deu certo: a jovem foi a ganhadora nacional do prêmio Jovem Cientista, promovido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na categoria Ensino Médio. Depois, ficou em primeiro lugar em Ciências Materiais na International Science and Engineering Fair (Isef), considerada a maior feira de ciências do mundo. Foi selecionada para acompanhar a cerimônia do Prêmio Nobel neste ano. E, ainda, escolhida para dar nome a um asteroide.

Ah, e não foi só.

- Participei da Mostratec (Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia); três vezes da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), duas vezes, da Isef; três vezes, todas com projetos diferentes. Nas feiras nacionais, ganhei quatro primeiros lugares e, na Isef, um quarto lugar em 2017, uma bolsa em 2018 e um primeiro lugar em 2019 - lista Juliana, que desde o início foi orientada por Flávia.

São muitas as histórias de sucesso envolvendo a professora. O caso de Juliana talvez tenha sido o de maior repercussão, mas há dezenas e dezenas de outros alunos inspirados por ela. Na sala que ocupa no campus do IFRS em Osório, Flávia enfileira troféus, medalhas, crachás, certificados. Em cima de uma mesa, figuram ainda lembranças de viagens que seus orientandos fizeram a feiras internacionais sem a sua companhia (nem sempre é possível conseguir recursos para bancar a participação em todos os eventos).

Ela própria recebeu, neste ano, o prêmio Professor Destaque nacional na Febrace, honraria em que já havia sido escolhida como finalista em 2014.

- A ciência é algo que motiva o tempo inteiro. Quanto mais os alunos estudam, mais eles descobrem as respostas. E isso acaba sendo uma motivação de vida. Eles encontram, muitas vezes na ciência, um motivo para continuar vindo para a escola, que muitas vezes não é o ambiente mais interessante de se estar - define a professora.

Sua área de concentração na pesquisa envolve, principalmente, o reaproveitamento de resíduos. Produtos que seriam jogados fora - como as cascas do abacaxi, da laranja, do maracujá, entre muitas outras - recebem nova destinação a partir de estudos que engajam os jovens estudantes. Muitos deles se veem, ao longo dessa iniciação científica e também depois, buscando respostas para dúvidas que eles tinham havia muito tempo, mas não sabiam que eram capazes de solucionar.

- Isso permite que a gente transforme inquietações em dúvidas científicas. E, com isso, consiga encontrar soluções. A pesquisa faz a gente filtrar e qualificar nossas inquietações. É um caminho para garantir a resposta a diversos problemas. Foi algo muito revolucionário para mim - celebra Maria Eduarda Santos de Almeida, 20 anos, outra ex-aluna de Flávia.

Conforme as pesquisas vão avançando, o tempo dedicado ao seu desenvolvimento aumenta - o que acaba envolvendo alunos e professora ainda mais. São frequentes as mensagens fora do horário de aula, nos fins de semana, à noite e também durante as férias. É uma dedicação e tanto, mas que os envolvidos veem como recompensada. E isso leva, também, a uma maior proximidade entre estudantes e orientadora.

- A Flávia é um dos meus exemplos de vida. De fazer o "a mais", exatamente como fazem os alunos que, além do ensino, se interessam pela pesquisa. A gente não tem essa obrigação. E ela também não. Mas vai atrás, busca recursos, ajuda a levar adiante as ideias que a gente tem. Além de ser uma pessoa maravilhosa, ela é um exemplo de vida - garante Mariane Alves Palacios, 23 anos, uma das primeiras orientandas da professora.

Flávia, que intercala momentos de descontração com absoluta seriedade - e um tanto de timidez - nas salas de aula e laboratórios, não esconde o sorriso ao falar da importância do papel que ela escolheu desempenhar na vida dos alunos. E dela própria:

- É muito gratificante. Não só a pesquisa ser reconhecida, mas você também ser reconhecida por eles. É inacreditável fazer parte da vida de uma pessoa, e aquela pessoa realmente te ter como exemplo. Nunca pensei que isso fosse acontecer comigo. Sempre tive pessoas que acreditaram em mim. E hoje me vejo como a pessoa que acredita neles.

O PROJETO

O que é

Incentivo à iniciação científica de estudantes do Ensino Médio. Em disciplinas de cursos técnicos ligadas ao Ensino Médio e em atividades não vinculadas diretamente aos cursos, estudantes são orientados a desenvolverem projetos de pesquisa inovadores e apresentá-los em feiras e mostras científicas no Brasil e até no Exterior.

Quem faz?

Flávia Twardowski, professora do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), campus Osório.

Desde quando?

O fomento à pesquisa entre estudantes começou no início de 2011, com as primeiras participações em eventos científicos sob a orientação da professora acontecendo logo depois. E, desde então, elas não mais pararam.

Apoio

Ministério da Educação (MEC), Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS).

Objetivo

Despertar o conhecimentocientífico de jovens estudantes para que possam, por meio de projetos de elaboração prática, contribuir para transformar o mundo ao seu redor, sendo os protagonistas dessas mudanças.

Conquistas

Flávia calcula que, desde 2011, seus alunos tenham conquistado mais de 70 premiações, muitas delas com repercussão internacional.

GUILHERME JUSTINO


03 DE AGOSTO DE 2019
LEANDRO KARNAL

FRACASSOS RETUMBANTES

O DESEMPENHO ÉPICO DE ONTEM PODE NÃO SERVIR DE ARGUMENTO PARA AMANHÃ. A FALÊNCIA PARECE APAGAR OS ANOS DE PROSPERIDADE ECONÔMICA. EIS A DISCRETA BELEZA DE ESTAR VIVO. TEMOS NOVA CHANCE DE ACERTAR TODO DIA E, CLARO, DE COLOCAR TUDO A PERDER SEMPRE.


A frase o fracasso lhe subiu à cabeça é extraordinária. Virou até letra de música. É um ataque venenoso lançado a muitos políticos e administradores. Contém certa injustiça. Fracassos podem ser extraordinários na memória. Dédalo era arquiteto genial e prudente. Seu filho, Ícaro, era impulsivo e nada acrescentou à técnica do pai. Pelo contrário, o jovem ignorou os conselhos do sábio engenhoso e aproximou as frágeis asas de cera do carro do sol. 

Resultado da escolha? Até hoje, seu túmulo aquático se inscreve nos atlas como o Mar Icário. Trata-se de um fracasso que nunca subiu à cabeça do infeliz. O referido local da tragédia é uma parte do Mar Egeu. Esse é um outro nome a registrar o erro estratégico. O velho Egeu se matou por engano, supondo que seu filho Teseu estava morto, quando era simples falha de comunicação.

Os mapas parecem um itinerário de equívocos gloriosos. O Estreito de Magalhães ostenta o nome glorioso do português que fez a primeira viagem ao redor do nosso globo. Há 500 anos, pasmem senhoras e espantem-se senhores, alguns ignorantes supunham a Terra plana! Inacreditável a imbecilidade daquela época. Tergiverso. Fernão de Magalhães batizou o belo e complexo trecho austral no nosso continente. Todavia, a primeira viagem ao redor do mundo não plano não foi completada pelo lusitano. No futuro arquipélago das Filipinas, habitantes locais foram indiferentes ao solene tom épico da empreitada e flecharam o capitão ousado. A viagem completou-se sem Fernão.

Volto ao solo. As vitórias napoleônicas estão listadas no Arco do Triunfo, em Paris. No monumento, lemos a batalha de Moscou, evento que resultou em desastre quase absoluto para o corso. O custo dos campos gelados da Rússia nunca foi superado pelo exército francês. A águia imperial morreu por hipotermia. 

A "vitória" de Moscou é uma derrota monumental do projeto napoleônico. O genial estrategista terminaria a vida prisioneiro em uma ilha longe de tudo, tendo seu império retalhado e todos os princípios revolucionários engolfados pela onda reacionária do Congresso de Viena. Em 1840, quando os franceses recuperaram seu corpo em Santa Helena, Bonaparte passou um tempo sendo velado sob o Arco do Triunfo, de onde, hipoteticamente, seu espírito poderia ler a "vitória gloriosa" que apresentou, como efeito maior, a queda do império e o desfile do czar russo vitorioso em plena Paris.

Ferdinand de Lesseps passou à história como o construtor do estratégico Canal de Suez. Embalado pelo sucesso daquela via, atreveu-se a empreender o Canal do Panamá. Foi um desastre retumbante que, curiosamente, pouco tisna a reputação do francês. Seria um Napoleão da engenharia: seu Waterloo não nubla sua Austerlitz. 

O mesmo se pode dizer de Steve Jobs, afastado da própria empresa em meio a crises enormes? O exército soviético acompanha a mesma sina: semi-humilhado diante da fraca Finlândia e apanhando muito até 1943, será sempre lembrado pela vitória na Segunda Guerra. Para o emblemático Churchill, o fracasso de Galípoli seria compensado na vitória da guerra seguinte. Por quais motivos ocultamos fracassos e destacamos vitórias? Quantas ideias geniais você precisa ter na vida para que seus pensamentos idiotas sejam defenestrados? 

A Guernica da década de 1930 equilibra os anos menos brilhantes de Picasso no final da vida? Capitalistas que perderam tudo, como o emblemático Barão de Mauá, deixam de ser competentes? São questões importantes na carreira e na vida pessoal de cada um. Quase todos os Estados brasileiros têm feriados para celebrar revoltas fracassadas, mas, claro, com "vitória moral". Celebramos Cabanagem, Farroupilha, Sabinada, Balaiada e, curiosamente, o esmagamento da Inconfidência Mineira com multas, degredos e uma execução. A vitória total do governo de D. Maria I é, hoje, feriado nacional em homenagem aos que não atingiram seus objetivos naquele século.

A única solução para que o sucesso seja extraordinário é o modelo Nelson: morrer em meio a uma imponente vitória. Tinha 47 anos no apogeu da glória, em Trafalgar. O triunfo do almirante do alto de sua coluna na praça em Londres é permanente. Não teve tempo de falhar ou de desgastar a biografia. Exemplo ainda maior de triunfo inatacável? É o caso do nosso bom presidente Tancredo Neves, de longe, o melhor governante que já foi eleito para o cargo do Executivo Federal. 

Abandonou o mundo em 21 de abril, dia de outro imortal, Tiradentes. Morrer na glória de uma batalha ou na véspera de ela ser travada parece ser a segurança permanente para que seu nome esteja no Panteão dos Heróis para sempre. Infelizmente, para nós, os vivos, os dias se repetem. O desempenho épico de ontem pode não servir de argumento para amanhã. A falência parece apagar os anos de prosperidade econômica. Eis a discreta beleza de estar vivo. Temos nova chance de acertar todo dia e, claro, de colocar tudo a perder sempre. É preciso manter a esperança, até porque continuamos vivos!

LEANDRO KARNAL

03 DE AGOSTO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

TERATOGÊNESE

Era noite de magna borrasca; entre mil raios, rugiam velozes ventos, pavorosos. O uivo de lobos e acres feras afastara ninfas e deidades do bosque; em suas tocas, no oco dos carvalhos, corujas piscavam assustadas. Era prenúncio de portento mórbido, mas, por conjura dos fados, ocorreu 13 dias antes do previsto o parto inglório, em que um monstro nasceria (teratogênese); nesses casos, dão-se reveses, e tudo piorou com o passar das horas. 

Em torno do ser malsão ali gerado, magos malévolos celebravam com taças de fel, quando um deles tomou-o em suas garras e o ergueu aos espíritos noturnos, entre imprecações malignas. Uma gralha aturdida voou e defecou em sua boca, prenunciando a qualidade das falas que dali proviriam. Que monstro aparece nesse mito? Um tal que não cabe na literatura nem deveria caber na História, jamais.

De sua infância pouco se sabe, pois vagava entre aldeias, sem criar raízes. Nunca apareceu professora ou amigo antigo para lembrar algo bom, nem poderia. Suspeita-se de que, a frustrações variadas, somaram-se fortes doses de rancor e ódio, que o marcaram profundamente. Ao chegar à puberdade, ingressou em escola que lhe incutiu cego desejo de poder e amor à violência e lhe impulsionou a arrogância inata. Foi assim gerado e cevado o mito, monstro infausto que um dia subiria ao topo da montanha e, de lá, com brados sempre coléricos, assombraria, uma vez mais, a floresta e ameaçaria ao mundo e aos que um dia sonharam viver com doçura.

Como somos todos feitos de Eros e Thanatos, desejos de amar e matar, o monstro logrou tocar na parte mórbida do povo de Lisarb e provocou paixão epidêmica, assustadora. Mentiras, farsas, delitos e o poder do ódio, por vezes maior que o amor, moveram séquito cego, seitas e safados, dando glória improvável ao ser odiento. 

O que não poderia ser mais que caso gravíssimo de monstruosidade mítica tornou-se símbolo de uma ignorância latente, hipócrita, despudorada, e despertou o monstro íntimo de milhões de alienados. Há milênios essa ameaça é cogitada, e preparados contra ela antídotos eficientes: artes variadas, filosofia, literatura, educação, ciência, o diálogo, a democracia e tudo aquilo que anima a sensibilidade, o pensamento e o bom senso.

Esses dons dissolvem o efeito letal de seres trevosos, e, por isso mesmo, o monstro perseguia tudo o que contivesse luz, saber, amor, imagens do outro, as belezas do mundo, direitos que edificam, serenidade, simpatia e empatia. Sempre bestial, ele trocava o amor que une a humanidade pelo zelo colérico com que a fera fecha-se na toca e protege a própria prole, com filé mignon surrupiado, e não perdia chance de machucar os ouvidos de todos com ignomínias sem precedentes. O prazer e o poder do monstro é ser monstro.

Aos poucos, mais e mais vítimas do monstro perceberam o terror do transe, despertaram para se afastar do cálice de horrores que um destino doente nos impôs e foram achar caminhos para somar-se aos que resistimos, reconstruir a sociedade, semear primaveras e redescobrir o valor das verdades puras e belas da vida, em uma democracia.

Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS | FRANCISCO MARSHALL


03 DE AGOSTO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

PREVENÇÃO DE ALZHEIMER

A mais prevalente das demências tornou-se um problema grave de saúde pública mundial
De uma demência rara que se instalava entre os poucos que ousavam passar dos 60 anos, a doença de Alzheimer se transformou num dos maiores flagelos da senectude.

Estudos conduzidos em diversas partes do mundo mostram que aos 80 anos de idade cerca de 20% a 40% das mulheres e homens já apresentam sinais claros da doença. Daí em diante, esse número não para de crescer. Hoje, é difícil encontrar uma família em que não haja um caso.

Alzheimer, a mais prevalente das demências, se tornou um problema grave de saúde pública mundial, com implicações individuais, familiares, econômicas e sociais.

Na Conferência Anual da Associação Internacional de Alzheimer, ocorrida no final de julho, um grupo de pesquisadores de Chicago apresentou um estudo no qual foram acompanhadas 2,5 mil pessoas, por cerca de 10 anos, com a finalidade de avaliar o impacto de diversos fatores ligados ao estilo de vida na instalação da doença.

Os participantes responderam questionários enviados periodicamente, para avaliar cinco tipos de atividades diárias que já demonstraram interferir com o risco de adquirir demência: 1) dieta; 2) fumo; 3) atividade física; 4) quantidade de álcool ingerida habitualmente; 5) níveis de atividade cognitiva.

Os resultados mostraram que aqueles que não fumavam, consumiam dietas com baixos teores de gordura, bebiam com moderação (no máximo dois drinques por dia para os homens ou um drinque diário no caso das mulheres), praticavam pelo menos 150 minutos semanais de atividade física de intensidade moderada ou intensa e mantinham estímulos cognitivos (leitura, escrita, aprendizado, etc.) apresentavam menor probabilidade de desenvolver Alzheimer.

Até aqui, nenhuma novidade: diversos estudos já haviam sugerido que esses fatores reduziam a probabilidade ou retardavam o aparecimento da enfermidade. O achado novo foi a demonstração de que, quanto maior o número de fatores ligados ao estilo de vida saudável, mais baixo o risco de Alzheimer.

Aqueles que seguiram dois ou três desses fatores associados ao estilo saudável reduziram em 35% a chance de receber o diagnóstico da demência. Essa redução de risco atingiu 59% naqueles que adotaram quatro ou cinco dos indicadores citados.

Quando os autores isolaram os participantes portadores do gene ApoE4, associado à predisposição genética, o mesmo efeito protetor aditivo ficou documentado. Da mesma forma, a proteção aditiva dos fatores citados se repetiu quando os dados foram ajustados para a idade e o nível educacional.

A demonstração de que adotar dieta de baixo conteúdo gorduroso, praticar atividade física com regularidade, moderação no consumo de álcool, ficar longe do cigarro e manter a cognição ativa por meio do aprendizado permanente podem ter efeito aditivo na prevenção da demência de Alzheimer traz esperança para os mais velhos - mesmo para aqueles com predisposição genética -, uma vez que envolvem a adoção de medidas ao alcance de todos.

DRAUZIO VARELLA


03 DE AGOSTO DE 2019
JJ CAMARGO

UM CATEQUISTA AMADOR

Para o odorico, a vida campesina, dura e implacável, era ao mesmo tempo escola e religião
O Odorico era um tosco. Muito. Mas a autenticidade era sedutora. Muita também. Descendente de índios, tinha um passo meio arrastado e sorria só com os olhos.

Por ter vivido mais do que a média dos brasileiros, se tornara um brasileiro sábio. Sem o verniz da escolaridade, mas com sensibilidade inata e uma tendência muito curiosa de explicar os problemas do cotidiano a partir das suas próprias crenças. Para ele, peão de estância a vida toda, e responsável pelo cuidado diário das vacas prenhes, o frio desfavorecia a infecção, e não por acaso o mês de agosto era o mais adequado para o nascimento dos terneiros. "Com o frio, o umbigo fecha rápido e sequinho." A primeira vez que ouvi referência a este cuidado foi no pós-operatório dele, quando apresentou uma infecção leve de parede, e quando tentava explicar-lhe que aquela era uma complicação comum ao se operar doenças infecciosas, ele nem parecia ter-me ouvido, e comentou:

- Meu doutor, isto é culpa minha, eu não devia ter me achado um bicho diferente dos outros, e não podia ter me operado no calor de fevereiro!

Na opinião dele, se os rituais do conhecimento campeiro não fossem seguidos, não carecia rezar, porque não adiantava. Talvez por isso não fosse muito apegado a práticas religiosas. Para ele, a vida campesina, dura e implacável, era ao mesmo tempo escola e religião. Depois de uma operação que fizemos, e que afastou seus fantasmas de morte por sangramento pulmonar, ele claramente me elegeu como "o meu pajé" e nos anos que se seguiram, muitas vezes me procurou para que o ajudasse a resolver problemas de saúde, seus ou dos seus. Agora estava internado na unidade de Oncologia com um câncer de uretra e mandou um bilhete pedindo que fosse vê-lo.

A ajuda que ele precisava, essa sim, era original: ele estava brigado com o capelão e achava que eu, "todo letrado e tal", devia ter uma solução para amenizar a bronca que levara do padre, que desistira de visitá-lo porque ao ser perguntado se ele acreditava em Deus, respondera com toda a sinceridade, que era o seu único jeito de responder, que "acreditar ele até acreditava, mas o problema era que já não simpatizava mais com Ele".

Com esta introdução, resolvi fazer uma "anamnese espiritual" e perguntei: "Mas desde quando esta antipatia?".

- Ah, doutor, foi bem triste. A minha velha adoeceu de doença de mulher e começou a sangrar. Apelei pros médicos lá da minha cidade e eles demoraram muito até que conseguiram uma vaga aqui na Capital. Aí demoraram outro tanto pra autorizar a ambulância e viemos com a operação marcada para o dia seguinte, bem cedito. O senhor acredita que, depois dessa correria, Ele, todo metido a poderoso, deixou que ela morresse nos meus braços durante a viagem, apesar de todas as minhas rezas? Então virei os arreios e nunca mais rezei!

-Mas, Odorico, com a sua história me parece que a maior culpa foi da burocracia...

- O senhor acha mesmo? Mas então a minha ida pro inferno tá assegurada, porque o que eu falei mal Dele depois da morte da minha velha foi uma barbaridade! E agora ainda respondi torto pro padre, que podia me ajudar a consertar as coisas com O lá de cima!

Tentei confortá-lo dizendo que uma pessoa boa, como ele, podia acertar as contas direto com Deus, sem intermediários, mas ele argumentou:

- Bueno, mas me disseram que o padre pode arranjar o tal do perdão e então achei que ficava mais garantido!

Assegurei que Deus considerava a pureza a mais genuína das religiões e que esta já vinha com o perdão incluído. Mas ele continuou com a cara desconfiada. Deve ter percebido que eu também não tinha lá tanta certeza.

JJ CAMARGO


03 DE AGOSTO DE 2019
DAVID COIMBRA

Comidas bem fortes

Ela bebia uísque. Poucas mulheres bebem uísque. Menos ainda, caubói. Você sabe como é uísque caubói: puro e sem gelo, como o coração do Pedro Ernesto Denardin.

No Brasil, as pessoas têm mania de profanar o uísque. Houve tempo em que o tomavam com guaraná. Aldir Blanc deu charme a essa fórmula extravagante com uma das mais belas músicas da MPB. É a singela recordação de um bolero nos braços da amada:

"Eu hoje me embriagando. De uísque com guaraná. Ouvi tua voz murmurando: ?São dois pra lá, dois pra cá?".

A moça a quem me referia não conspurcava o uísque com guaraná ou quaisquer outros aditivos. E ia jantar lá em casa num sábado à noite. Já havíamos saído antes, mas junto com outras pessoas. Numa dessas, por algum motivo, a conversa deslizou para o tema de comidas e bebidas fortes. Ela estava bebendo (adivinhe) uísque. Porém, com gelo. Mexeu as pedrinhas com a ponta do dedo, num gesto que considerei provocativo. Ergueu o pequeno nariz. E sentenciou:

- Adoro comidas e bebidas fortes. Bem fortes. Meu uísque, inclusive, prefiro sem gelo.

Achei tão bonito aquilo. Foi então que me exibi, jurando que era exímio cozinheiro de comidas fortes, bem fortes, arrematando com um tiro no escuro:

- Um dia faço um prato especial pra ti.

Ela, sorrindo de lado, miou:

- É só marcar. Gol do Brasil. Arrisquei:

- Próximo sábado? - Feito.

A vida é boa! Eu tinha uma responsabilidade, portanto. Não podia decepcionar.

No sábado pela manhã, corri ao súper. Decidi comprar três garrafas de uísque, inclusive uma de Jack Daniels, o que poderia ser uma temeridade, se estivéssemos lidando com uma purista.

Lembrei que, certa vez, estava na Escócia, em Edimburgo, e fui a uma fábrica de uísque. O guia mostrava como a bebida era preparada, todo o cuidado que tomavam e tudo mais. De repente, ele se virou para mim e perguntou:

- Tens uísque em casa?

E eu, ingênuo:

- Sim: Jack Daniels.

- Não! - ele gritou, me assustando. - Não! Jack Daniels é bourbon!

Perguntei a diferença e ele passou os 15 minutos seguintes me explicando. Foi uma aula interessante, mas não me pergunte o que é uísque e o que é bourbon, continuo não sabendo.

Em todo caso, gosto de Jack Daniels e a moça poderia gostar também. Então, deitei um no carrinho. Antes de sair do setor de bebidas, parei diante dos champanhes. Mulheres adoram champanhe. Peguei uma garrafa. Já ia para o caixa, já estava indo mesmo, quando vi algo que há anos não via: absinto. "A Fada Verde!", murmurei para mim mesmo. "Por Baudelaire! Por Rimbaud! Levemos a Fada Verde para que ela nos encante!"

Levei.

E a comida? Bem, eu havia prometido algo forte. Bem forte. Que comida poderia ser re-al-men-te forte? Fiz o que qualquer homem adulto e maduro faria: liguei para a mãe. Indaguei acerca de comidas fortes. O que ela me disse soou como o bimbalhar do sino pequenino de Belém.

- Ontem fiz um feijão muito bom e está sobrando um monte.

Meu problema estava resolvido. Era óbvio que o próprio Todo-Poderoso e Seu exército de anjos e arcanjos queriam que me desse bem naquele fim de semana.

Fui até a casa da mãe, peguei um grande pote de feijão e voltei contente para casa. Era uma trapaça, sei, mas um valor mais alto se alevantava, como diria Camões. Para atenuar o engodo, resolvi fazer eu mesmo o arroz, mais uma farofinha de ovo com linguiça frita, mais uma salada de tomates e cebola. Tudo forte. Bem forte.

Aliás, você sabe como tem de ser feita a cebola numa salada? Escalde-a com água fervente. Em seguida, retire a água quente e cubra-a de água gelada. Depois, fervente de novo. E gelada outra vez. Aquela acidez da cebola desaparece. Fica uma delícia.

Constate, por essa dica, como não fui uma fraude completa naquele fim de semana.

Quando a moça chegou, eu fazia exatamente isso: esquentava e esfriava a cebola, enquanto a panela de feijão tremelicava sobre o fogo.

- O feijão, eu preciso de pelo menos 24 horas para fazê-lo! - exclamei.

Ela: - Oh!

Estava impressionada?

- Que uísque você quer, beibe? - perguntei, gentil, conduzindo-a pelo braço até o barzinho onde guardava as bebidas.

Foi nesse momento que tudo começou a desmoronar. Ela olhou para uma garrafa e apontou:

- O que é isso? - Absinto.

- A Fada Verde? - ela suspirou.

Ela conhecia a história da Fada Verde - era mesmo uma mulher especial.

- Nunca bebi absinto - ela contou. - Posso?

- Claro! Por Baudelaire! Por Rimbaud! Liberaríamos a Fada Verde!

Servi um cálice. Ela o tomou com aquela mãozinha e o engoliu rapidamente, fazendo mmm. Foi o primeiro de muitos. Quantos? Não sei. Só sei que ela nem sequer provou o meu feijão. Ou o feijão da mãe. Em coisa de, sei lá, 20 minutos, ela estava dançando e cantando em volta da mesinha da sala. Em 30, estava vomitando todo o meu apartamento. Em uma hora, estávamos os dois dentro de um táxi, em direção à casa dela, ela parecendo aquela jaqueta que tiraram da boca do cachorro, balbuciando que o mundo rodava, rodava mais que os casais.

Foi o fim das minhas aventuras com a moça que bebia uísque mas não podia beber absinto. Vida de solteiro pode ser frustrante.

DAVID COIMBRA

03 DE AGOSTO DE 2019
MÁRIO CORSO

Mulheres que não querem ter filhos

Não querer ter filhos é um assunto que nem deveria ser assunto. Afinal, por que não seria uma escolha de foro íntimo como outra qualquer? Mas não é assim que funciona. No caso dos homens, tampouco é bem-vindo, porém tolera-se que eles não queiram. Afinal, seriam menos afeitos à rotina doméstica, mais amantes da aventura e de horizontes mundanos. Mas as mulheres que podem ter filhos são vistas como traidoras do destino se ousam negar-se à missão reprodutiva.

Nem sempre é uma cobrança direta, mas uma conversa oblíqua em que o subtexto encerra a pergunta: qual é o teu problema? Afinal, a maternidade seria, além de um desejo óbvio, a prova da grandeza da alma e utilidade de uma mulher.

A lógica subjacente é de que existiria uma naturalidade no instinto materno. Portanto, quem opta por não ter iria contra o correto e até contra si mesmo. O refrão mais usado - "depois você vai se arrepender" - revela isso. A mulher que não quer estaria apenas momentaneamente errada, um dia vai se dar conta.

Faz parte da nossa herança histórica patriarcal restringir as mulheres à função materna. Mas convém lembrar que esse olhar reprovador provém com frequência de outras mulheres. A questão tem uma volta a mais. Para as mulheres que dizem sim, as que dizem não acendem questões que elas não querem admitir: primeiro, a maternidade não garante o sentimento de feminilidade autêntica que se esperava decorrer da experiência; segundo, talvez ter filhos não seja quintessência colorida das maravilhas. A recusa joga as outras no dilema: perguntar se realmente querem ter filhos, ou se gostaram de tê-los tido.

O porquê do não querer é múltiplo, caso a caso, muitas vezes decorre de ter outras metas na vida que seriam inviabilizadas ou prejudicadas pelos anos de devoção ao filho. Por vezes, passa apenas por não sentir vocação para o cargo e incumbência. São mulheres conscientes da gravidade da escolha, que não se acham talhadas para tal, ou mesmo sentem-se mais vocacionadas para outras missões. Portanto, não há uma falha, há uma escolha, uma maneira de encarar e levar a vida. Ter filhos não é o destino das mulheres, nem uma reclamação da sua natureza. Ter filhos é uma opção.

Quem trabalha com saúde mental vai lhe dizer que muitas patologias são oriundas de crianças não desejadas, concebidas por pressão social ou moral, criadas a contragosto, às vezes até com zelo, mas sem coração.

A maternidade é linda e realizadora quando há um desejo claro e meios para tanto. Mas maternidade não resolve problemas de identidade feminina. Maternidade não preenche uma vida vazia. Maternidade não resolve uma vida sem norte.

Antes de sucumbir ao senso comum de que a vida só adquire sentido num filho, pense mais. Na dúvida não ultrapasse. Respeite a sua vida e a que virá ou viria.

MÁRIO CORSO


03 DE AGOSTO DE 2019

FLÁVIO TAVARES

OS SÍMBOLOS

A vida se traduz em símbolos. Cada ato humano é um símbolo, na alegria ou na dor. Nas catástrofes, incertezas ou desajustes, os símbolos veem, até, o invisível.

Vivemos um momento crítico, com o planeta e a obra divina da Criação ameaçados pela sanha destrutiva. No Brasil, o perigo pode virar horror pela incompreensão dos que detêm o poder político. Já escasso, o diálogo sumiu nestes sete meses.

Quando Jair Bolsonaro opina, não fala como presidente da República, mas como autoritário rei absolutista. Chega a negar dados da ciência. Nega o desmatamento da Amazônia, diz que as medições dos satélites do Instituto de Pesquisas Espaciais "estão erradas" e "mancham o Brasil no Exterior". Ataca veganos e vegetarianos, como se opção alimentar fosse crime.

Em fúria contra o presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, em linguagem vulgar agrediu o pai, Fernando Santa Cruz, morto em 1974 numa prisão da ditadura por integrar a Ação Popular, a esquerda cristã à qual pertenceram o atual senador José Serra e Herbert de Souza, o Betinho da luta contra a fome e a Aids.

Agora, o ápice: quer abrandar as regras que punem o trabalho escravo...

O símbolo disto (e de muito mais) apareceu dias atrás no corte de cabelo de Bolsonaro, mostrado por ele, no Twitter, como ato de governo, publicado e publicitado ao vivo e de viva voz.

Confortável na capa branca do barbeiro, cancelou a reunião com o ministro do Exterior da França. Trocou a respeitável poltrona presidencial pela cadeira do barbeiro. Terá sido uma caricatura de si mesmo?

Mas e os símbolos da resistência a essa cafona monarquia?

O tríplice pesadelo Lula-Dilma-Temer diluiu esperanças mas não nos cegou. Com a Constituição e a lei, há quem resista.

No Supremo Tribunal, a argúcia de Celso de Mello chamou de "inaceitável transgressão à Constituição" o ato de Bolsonaro mudando a demarcação das terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura, que o Congresso já rejeitara. "É inadmissível e perigosa ameaça à separação dos poderes", lembrou. Outros, como os ministros Fachin, Barroso e Marco Aurélio compõem também a defesa da lei.

Mas, junto aos que detestam o ódio e a discriminação, o melhor símbolo da resistência pela liberdade solidária é a jornalista e escritora Miriam Leitão. Isenta e analítica nos livros, no jornal e na TV, sofreu a fúria verbal de Bolsonaro, que a tachou de "mentirosa" por resistir no passado e, hoje, por revelar verdades.

Nos ataques, o alvo foi a livre imprensa, por ser o grande símbolo.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

03 DE AGOSTO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

O RIO GRANDE DO SUL PODE CRESCER MAIS



Carregam evidências positivas os cálculos apresentados pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), na quinta-feira, mostrando que o nível de atividade do Rio Grande do Sul avançou 0,9% no primeiro trimestre e 1,4% no acumulado de 12 meses. Embora não seja exatamente a mesma metodologia utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para apurar o PIB do país, os números indicam que o Estado vem saindo da crise em melhor ritmo do que a média nacional, puxado principalmente pela indústria e o comércio. É uma constatação a ser recebida com entusiasmo contido, dados os sintomas conhecidos de que a economia gaúcha, em um recorte mais longo de tempo, cresce aquém do seu potencial e em uma cadência abaixo da maioria das unidades da federação.

O Rio Grande do Sul tem um dos principais polos industriais do país, é um dos ponteiros do agronegócio nacional, vê seus parques tecnológicos cada vez mais pujantes, tem mão de obra reconhecidamente qualificada e um povo de diferenciado espírito empreendedor, mas não faltam obstáculos a reprimir a capacidade dos gaúchos de acelerar o desenvolvimento.

Por estar no garrão do país, o Rio Grande do Sul tem como um dos seus principais gargalos a logística. Enviar mercadorias para os principais centros consumidores nacionais custa mais caro aqui. E não só pela distância, mas pela infraestrutura precária na área de transportes - rodoviária, ferroviária e aeroportuária. Há casos que têm solução à vista, como o do Salgado Filho. Para os trilhos, não se pode dizer o mesmo. Como é grande a dependência do modal rodoviário, é primordial avançar no processo de concessões de estradas, diante da pura e simples falta de recursos do governo gaúcho para investir. Sem esquecer de privatizações e parcerias público-privadas (PPPs) em outras áreas, como energia e saneamento.

Não é possível depender apenas de surtos esporádicos de crescimento. O Rio Grande do Sul voltará a ser competitivo na atração de investimentos e deixará de assistir à fuga de talentos quando promover uma dura, mas necessária, reestruturação do Estado. Que passa pela resolução do nó previdenciário, pela redução do excesso de privilégios e benesses a categorias localizadas, por um ataque frontal à burocracia sem fim e por uma revolução educacional, caminho universal para ampliar a produtividade, ainda mais em tempos de uma transição demográfica que levará a uma menor participação relativa de jovens na força de trabalho. É o necessário para a economia rio-grandense voltar a ser uma das locomotivas do país, e não apenas um vagão pesado e inchado no fim da fila da composição.


03 DE AGOSTO DE 2019
+ ECONOMIA

O fim do BNDES

A decisão do governo federal de limitar a disponibilidade de crédito do BNDES a R$ 70 bilhões e retirar os recursos do FAT "é o fim do banco de 70 anos que conhecemos", na avaliação de um de seus ex-presidentes, Luiz Carlos Mendonça de Barros:

- Querem transformá-lo em uma butique financeira da Faria Lima (avenida de São Paulo que concentra instituições financeiras). Não vão conseguir, pois vão sentir a falta dele mais adiante - disse Mendonça à coluna.

R$ 18,9 bilhões foi o lucro da Petrobras no segundo trimetre. Recorde histórico, foi turbinado pela venda da TAG, por R$ 33,5 bilhões, para consórcio integrado pela Engie, empresa com negócios no Estado.

Especializada em moda jovem, a Gang abrirá sua 44ª loja, em Sapiranga, no dia 15. A próxima no plano de expansão da empresa é em Venâncio Aires, em setembro.

A rede Swan Hotéis teve alta de 40% na ocupação das quatro unidades em Portugal no primeiro semestre de 2019 ante igual período dos últimos três anos. Diante do resultado, a empresa gaúcha planeja outro hotel perto de Lisboa.

A slow fashion (moda sustentável) Was elevou em 70% sua receita no primeiro semestre. Ampliou presença em multimarcas de Ijuí, Santo Ângelo e Novo Hamburgo.

A SEMANA QUE EU VI

NOVA REFORMA

Surgiram na terça-feira as primeiras mudanças de nova reforma trabalhista: a revisão das normas regulamentadoras do trabalho (NRs). Duas foram alteradas e uma, extinta. O secretário da Previdência e do Trabalho, Rogério Marinho, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, avisam que vai ter mais.

CORTE OUSADO

Depois de suspense, o Banco Central enfim começou a reduzir o juro básico, na quarta-feira, diante das evidências de estagnação. Foi um corte ousado, de 0,5 ponto percentual, com sinais de que haverá mais. Para ter efeito em consumo e emprego, porém, é preciso garantir que chegue à ponta.

CHOQUE EM ITAIPU

A interminável polêmica da repartição da energia de Itaipu quase derruba o governo paraguaio. Foi uma tentativa tosca, supostamente secreta, de equilibrar as bases de um acordo que claramente beneficia o Paraguai. Lá, a energia barata é um dos incentivos para a atração de empresas brasileiras.

VENDA DE ESTATAL

Na quinta-feira, foi confirmada a privatização da Eletrobras. Era uma das estatais que o presidente Jair Bolsonaro resistia em vender. O comunicado oficial foi feito, agora ainda faz definir o modelo de oferta. Além de térmicas a carvão em Candiota, a Eletrobras tem um terço de outra empresa gaúcha, a CEEE.

MARTA SFREDO

03 DE AGOSTO DE 2019
INFORME ESPECIAL

Paixões, pressão e pautas explosivas no Supremo


É nitroglicerina pura a pauta que espera o Supremo Tribunal Federal (STF) no segundo semestre. A corte voltou do recesso na quinta-feira e, de bate-pronto, impôs uma derrota ao presidente Jair Bolsonaro, retirando do Ministério da Agricultura a atribuição de demarcar terras indígenas. A tarefa volta à Fundação Nacional do Índio (Funai).

Os temas que devem ter grande repercussão na política, na economia e nas ruas incluem assuntos de interesse de lulistas e bolsonaristas. Um dos julgamentos que mais desperta atenção - e pressão por todos os lados - diz respeito a investigações penais que tenham utilizado dados detalhados de órgãos como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), sem autorização judicial. O presidente do STF, Dias Toffoli, suspendeu os processos do gênero, o que beneficiou o senador Flavio Bolsonaro (PSL-RJ), suspeito de desviar salários de funcionários de seu gabinete, quando era deputado estadual, no Rio. Está inicialmente previsto para novembro, mas devido ao furor em torno do assunto, tende a ser antecipado.

Na economia, o Supremo deve ainda se manifestar sobre a constitucionalidade da tabela do frete, após uma enxurrada de ações contestar o controle de preços para o transporte de mercadorias. O assunto mexe com os humores dos caminhoneiros, apoiadores do presidente e categoria que frequentemente ameaça nova paralisação, caso não tenha a sua demanda atendida.

Há ainda temas com contato com a Lava-Jato, que agora ganham um ingrediente extra de tensão, com a revelação de mensagens trocadas entre membros da operação indicando a intenção de Deltan Dallagnol, chefe da operação em Curitiba, de investigar Toffoli. Um deles é a discussão da constitucionalidade da prisão em segunda instância, que interessa ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não há certeza, mas a tendência é de o assunto ir a plenário.

Está também no radar a ação que questiona a imparcialidade do então juiz Sergio Moro nos julgamentos que envolvem Lula. O resultado ficou mais imprevisível após virem a público as mensagens privadas do hoje ministro da Justiça, publicadas pelo site The Intercept.

O semestre de matérias explosivas no STF reserva ainda pauta relativas à descriminalização de porte de drogas e relacionada à flexibilização do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aumentando as possibilidades de apreensão de adolescentes que cometeram delitos, o que vai ao encontro do discurso bolsonarista de endurecimento de penas.

CAIO CIGANA - INTERINO

sexta-feira, 2 de agosto de 2019


Jaime Cimenti
Princesa, fauno, fantasia e realidade

Quando estreou nos cinemas em 2006, o filme Labirinto do Fauno, do consagrado escritor, diretor e roteirista mexicano Guillermo del Toro, encantou público e crítica com sua história mesclando sonho e realidade, trazendo para a fantasia o cruel universo do cotidiano da Espanha fascista de Franco. Treze anos depois, a produção segue conquistando fãs, mostrando que histórias são atemporais. O filme recebeu três Oscar e vários outros prêmios relevantes.

O labirinto do fauno (Intrínseca, 320 páginas, tradução de Bruna Beber) é o romance do qual se originou o filme - e tem autoria de Guillermo del Toro e da escritora e ilustradora alemã Cornelia Funke, best-seller no mundo inteiro com seus contos de fada modernos. As ilustrações da obra são Allen Williams.

A narrativa traz a jornada de uma menina de 13 anos pelo Reino dos Homens e pelo Reino Subterrâneo. No ano de 1944, era uma vez uma princesa perdida havia muito, muito tempo, numa floresta repleta de encantos e mistérios, e um Fauno disposto a ajudá-la a voltar para a casa.
Diante da brutalidade de seu cotidiano na Espanha fascista, a menina Ofélia, cujos melhores amigos são os livros, é conduzida a um universo mágico, que extrapola os limites entre o sonho e a realidade, beleza e horror.

Ofélia e a mãe grávida do Capitão, seu segundo marido e padrasto de Ofélia, cruzam uma estrada de terra que corta uma floresta longínqua ao Norte da Espanha, para chegar num lar estranho, um moinho de vento tomado pela escuridão e pela crueldade do Capitão Vidal e seus soldados, dispostos a tudo para exterminar os rebeldes que se escondem na mata.

O que não sabem é que a floresta abriga também criaturas mágicas e poderosas, habitantes de um mundo subterrâneo repleto de encantos e horrores, súditos em busca de sua princesa há muito tempo perdida, uma princesa, que, segundo os sussurros das árvores, finalmente retornou ao lar.

Intercalada com ilustrações e contos de fadas inéditos, baseados em elementos-chave de O labirinto do fauno, a obra é uma impactante ode ao poder das histórias, seja em imagens ou palavras, capazes de transformar a realidade a nossa volta.
O que é arte?

Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? São perguntas que estão aí desde sempre desafiando pensadores, cientistas, religiosos e os meros mortais. Há quem pense que nunca teremos respostas definitivas e que até é melhor assim: a vida com alguns mistérios insondáveis e com uma pergunta atrás da outra.

O que é arte? Essa é outra pergunta gigante, de tamanho oceânico e que há milênios vem obtendo respostas variadas, em diferentes cantos do planeta. Difícil definir o que é arte, na medida em que os conceitos vão mudando de época para época, de país para país e de pessoa para pessoa.

De mais a mais, a criatividade humana, as forças da natureza, os materiais e métodos utilizados pelos artistas e outros componentes, inclusive científicos, sempre podem trazer inovações e apresentar algo diferente. Pode surgir algo novo sob a luz do sol, contrariando o que diz o sábio livro bíblico Eclesiastes. Arte e artistas verdadeiros são os que trazem mudanças. "Mudei o tango porque um artista que não muda é um artista morto", disse Astor Piazzolla.

O que é arte? 

(Editora Nova Fronteira, 256 páginas), polêmico ensaio do genial escritor russo Leon Tolstói (1828-1910), publicado, originalmente, em 1898, que, agora, volta às livrarias com belas ilustrações, tradução de Bete Torii e ótima introdução do escritor e tradutor Marcelo Backes, doutor em Germanística e Romanística pela Universidade de Freibeurg, Alemanha, traz fatos e ideias interessantes para quem queira compreender os fenômenos artísticos.

Tolstói publicou Guerra e Paz entre 1857 e 1859, o romance considerado mais perfeito e tradicional de todos os tempos, e Ana Karenina em 1877. Ao escrever O que é arte?, Tolstói estava mergulhado no crepúsculo da vida e mergulhado na crise religiosa que o levou a viver isoladamente em sua propriedade em Iasnáia Poliana. O ensaio tomou-lhe 15 anos de trabalho.

O autor apresenta vários conceitos de arte, ao longo de autores e tempos, desde a Grécia até os teóricos alemães, ingleses e franceses, seus contemporâneos ou pouco anteriores.

Tolstói queixa-se das várias definições clássicas de arte, que acentuam o prazer vinculado à beleza em detrimento de uma missão fundamentada do bem. Tolstói acha que a arte não deve ser mero prazer, e sim um meio para realizar objetivos maiores da humanidade.

O autor apresenta suas próprias definições: "Arte é a atividade humana que consiste em um homem conscientemente transmitir a outros, por sinais exteriores, os sentimentos que ele vivenciou, e esses outros seres contagiados por esses sentimentos, experimentando-os também".

Escreveu Marcelo Backes sobre o livro: "Se, portanto, no final da vida, o moralista venceu o artista, o que salva Tolstói é, além do caráter curioso e, às vezes, extravagante de alguns de seus pontos de vista, a organicidade de sua obra, ou seja, o fato de o artista já ser moralista e de o moralista, em que pesem as vociferações contra sua própria arte, continuar sendo um pouco artista. E o que é arte? É uma obra importante para conhecer esse artista".

lançamentos

Das terras bárbaras (Tordesilhas, 334 páginas), caudaloso romance do economista e diplomata Ricardo da Costa Aguiar, estreia literária madura do autor, traz personagens movendo-se na barbárie das florestas, no Brasil de quatro séculos atrás. Pessoas cuspiam fogo, andavam nuas, escravizavam índios e traficavam negros. A narrativa se entrelaça com os dias atuais.

Até onde o amor alcança (Faro Editorial, 176 páginas) traz contos do gramadense Júlio Hermann, autor de Tudo que acontece aqui dentro - Cartas de amor nunca rasgadas (Faro Editorial), que apresenta contos que falam da vida, de jovens, de relacionamentos amorosos e muitas outras coisas que andam por aí.

Seja um líder de heróis - Como transformar sua equipe em um esquadrão imbatível em tudo o que faz (Gente Editora, 256 páginas), do empresário, escritor e palestrante Leandro Moreira, ajuda cada líder a inspirar, ensinar e transformar, apresentando técnicas de gestão de pessoas e negócios, com vistas a construir uma equipe extraordinária.

a propósito...

Seria interessante saber o que Tolstói diria sobre a arte depois que ele faleceu, em 1910, aos 82 anos, pouco depois de fugir de casa. O que diria o romancista maior sobre esses tempos pós-modernos, de "arte conceitual", de contornos indefinidos, de individualismos e egos amazônicos, de estranhas relações das artes com os críticos e os mercados?

O tempo e as pessoas "comuns" são, talvez, os melhores definidores e juízes do que venha a ser arte. Arte é mudança e novidade, para cada pessoa, cada artista e cada lugar. Neste momento brasileiro, é bom lembrar que arte é criação e expressão livres, e que o novo sempre vem. 

Jaime Cimenti

sábado, 27 de julho de 2019



27 DE JULHO DE 2019
LYA LUFT

Trocando sinais

Tenho falado e escrito sobre dramas ou alegrias no convívio humano, amigos, amores, família (que significa amor e amizade também).

A dificuldade de comunicação é uma realidade, por vezes pungente, outras até cômica, ou ainda dramática. O filho ou amigo que de repente se queixa: “Aquela vez você me disse isso, e me doeu tanto, que ainda não consegui esquecer”. Mas quando foi isso? Uns 10 anos. Cinco. Mais ainda. E a gente se espanta: “Mas que loucura! Eu jamais te diria isso! Aliás, nem uso essas palavras!”.

Um dos dois tem razão, jamais saberemos qual, pois memórias são muitas vezes fantasias, não só em crianças, em adultos também. Tudo se confunde um pouco nas névoas do tempo, análise e terapia podem mostrar isso. Quanto sofrimento por engano, quanta chateação vã.

E mesmo que a gente tenha dito aquilo, ou feito aquele gesto, ou virado as costas e ido embora, hoje já não somos aquela pessoa de anos atrás: podemos estar piores, mas muitas vezes mais mansos, mais amorosos, mais generosos, porque mais sofridos.

Mais experientes, o que em geral nos torna mais tolerantes, menos críticos. (Ou não.) Enfim, o que pretendo aqui é comentar, mais uma vez porque é sempre real e frequente, essa troca de sinais confusos, esse desencontro entre a intenção de quem dá ou faz, ou diz, e o que recebe, sente, sofre – com ou sem razão. Muito conflito assim se desenrola injustamente, tolamente, porque mal-entendidos, enganos, nos atropelam a cada hora neste labirinto numa floresta que é o dia a dia.

Além de tudo, há tantas visões do mundo, tantas interpretações dos fatos mais corriqueiros, quantos seres pensantes existem: cada um com sua disposição: cética, otimista, trágica ou indiferente. Feliz ou tristonha. No fundo, a vida é um teatro, e um cenário com muitas portas, que estavam ali – ou que nós desenhamos. Mas, aqui e ali, abrem-se para encontros que nos transformam, nos tranquilizam, ou nos servem e servirão de apoio, porto, acolhida e força. Além daqueles que nos destroem, nos fazem adoecer, nos rasgam ao meio, ou por alguns momentos nos sombreiam com surpresa e decepção.

Somos em parte vítimas, em parte autores, desse teatro simples e terno, ou louco e trágico, ou maravilhoso. Nos vestimos nos camarins, rimos ou choramos atrás das cortinas. Também vendemos entradas; às vezes, vendemos a alma.

Atropelos, tolices, dramas ou mal-entendidos, embora criados por nós, dificultam essa tarefa existencial, que precisa de resistência, calma, audácia e fervor – e de alegria, quando aprendemos a contornar as armadilhas e nos construímos, do jeito que dá, do jeito de cada um, muitas vezes com alguém.

Da mesma forma que entre amigos, família, amantes, ou meros conhecidos, todos trocamos sinais – também eu e meus amigos imaginários de agora: meus leitores. Por isso, escrevo.

LYA LUFT

27 DE JULHO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Um projeto de passado


Em 1970, eu tinha nove anos e a certeza de que vivia no melhor país do mundo: não havia violência, fome, desemprego, só paz e amor. Um general assumiu a presidência e dali por diante eu cantarolava pela casa uma música que dizia "Ninguém segura a juventude do Brasil". Nos adesivos dos carros, lia-se "Brasil, ame-o ou deixe-o". Se alguém não gostava daquele paraíso, tinha mesmo que sumir, pô, que ousadia se queixar de uma nação próspera e pacífica. Ganhamos a Copa do México, ninguém perdia um capítulo de Irmãos Coragem e eu rezava todas as noites, agradecida a Deus pela sorte de ser brasileira - aliás, o que Ele também era.

Em 1980, eu tinha 19. Fazia a faculdade de Comunicação e namorava um colega que não parecia em nada com um galã de novela. Assistia aos filmes do Godard, tinha Simone de Beauvoir na mesa de cabeceira e cantarolava Beatles e Rolling Stones. Colecionava uma revista chamada Pop e ainda estava impactada pela peça Trate-me Leão, do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone. Pela TV, acompanhava a volta de exilados políticos (Gabeira, Brizola, Betinho), entendendo finalmente que aquele país da minha infância era um paraíso de fachada - não havia liberdade. Seguravam a juventude do Brasil, sim, com tortura e desaparecimentos súbitos. Já não rezava.

No curto espaço de 10 anos, deixei para trás a alienação e entrei na vida adulta, bem menos cor-de-rosa, porém mais verdadeira e interessante. E a partir de então, fui moldando minha mentalidade à medida que o mundo mudava, e como mudou. Se antes mulheres eram obrigadas a trocar de sobrenome ao casar, logo passaram a praticar livremente sua sexualidade e a ganhar seu próprio dinheiro. Depois da ditadura, vieram eleições diretas. Viajar ficou mais fácil. 

O cinema brasileiro se fortaleceu, escolas promoviam Feiras do Livro, veio a TV por assinatura e seus múltiplos canais. As alterações climáticas provocaram consciência ambiental, a internet revolucionou a forma de se trabalhar e se relacionar, o preconceito contra homossexuais diminuiu. O politicamente correto, mesmo chato, ajudou a civilizar as relações. Passamos a ter acesso ilimitado à informação, evoluções na ciência e na medicina, mais proteção aos animais, inúmeros movimentos pró-aceitação das diferenças. O mundo avançou, mesmo aos trancos, mesmo ainda com muita violência, mesmo ainda com desigualdade. Avançou porque todos nós - cidadãos, instituições, nações - temos um projeto de futuro.

Ninguém em sã consciência investe num projeto de passado. Não é natural, não é racional, não é inteligente. Portanto, que sigamos abrindo portas e janelas, arejando nossas cabeças, saudando o novo, aprimorando o que ainda não está bom, amadurecendo nossas escolhas - crescendo, enfim. Com alegria, liberdade e confiança. Enfrentemos as dificuldades inerentes a toda caminhada, em vez de apoiar um retrocesso piegas, simplório e mal-intencionado, que só visa nos iludir com um mundo que não existe mais.

MARTHA MEDEIROS