sábado, 3 de outubro de 2020


03 DE OUTUBRO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Não chame gente de animal 

Estou em campanha para que nenhum ser humano, homem ou mulher, desses que a gente vê a toda hora sendo violento, grosseiro, desrespeitoso, corruto e etc., seja chamado de animal.

Animal por quê? Animal parte para a ignorância sem motivo?  Destrói o lugar onde vive?

É racista?

Preconceituoso? Acaba com o futuro dos outros? Trata a fêmea feito lixo?

Se diverte com a desgraça alheia? Humilha? Espezinha?

Não há injustiça maior com um animal do que compará-lo aos incivilizados dos nossos dias. E nunca é demais lembrar que a falta de civilidade não tem nada a ver com classe social ou grana, como se viu no fim de semana passado, nas cenas do restaurante Gero, em São Paulo, e no Leblon, no Rio de Janeiro. Caiu o queixo até de quem já viveu bastante e viu de (quase) tudo.

Baixaria na Alta Roda, Elite Transviada, Se Minha Mercedes Falasse. Vergonha alheia em cartaz.

A nossa mania de chamar os piores humanos pelos nomes de espécies animais: que equívoco. Por que um sujeito que não vale nada é chamado de cachorro se os cães são os bichos mais fiéis que existem? Para protestar - por exemplo - contra um ministro do Meio Ambiente que decidiu passar a boiada e acabar com os critérios de preservação de áreas naturais, a turma se exalta: esse ministro é um cachorro!

Cachorro, vírgula. É um homem. Desprezível como os piores homens.

E o caso da galinha e da vaca? Bichos simpáticos e eternamente a serviço dos humanos. Nem vamos falar aqui dos maus-tratos que sofrem em situações de exploração para não estragar o dia dos leitores. Fato é que, para ofender uma mulher - e são muitos os motivos, como comportamento sexual, atuação política, atitudes de liderança, defesa de causas, para ficar nos mais comuns -, pessoal não deixa barato. Fulana é uma baita de uma galinha! Beltrana é uma vaca mesmo.

Não basta ofender as gurias pelas desrazões acima, ainda tem que botar dois animais dos mais dóceis e úteis no meio. Xingamento 100% sem noção.

Agora, enquanto o Pantanal queima, as imagens dos animais são de partir o coração. Bichos feridos, sem abrigo, sem água, sem comida, sem rumo. Mães tentando salvar suas ninhadas. Onças, jacarés e jiboias atravessando a estrada por instinto, só que não existe mais para onde fugir. Os macacos, que em outros tempos se diria que parecem gente, o que seria ofensivo a eles na atual situação, reagem com desespero. Isso tudo para alguns aumentarem seus já imensos, extensíssimos pastos.

O fogo também revelou a situação do Parque das Onças, no Mato Grosso, perto de onde ficam (ou ficavam) as pousadas mais caras. A região toda tinha um só funcionário para cuidar do único parque de preservação da onça pintada no mundo.

Orçamento: R$ 45.120 por ano. Ou R$123,60 por dia. Quantas outras reservas devem estar na mesma penúria?

É preciso dar o nome certo para quem está promovendo a tragédia no Pantanal, na Amazônia, no Brasil. Não são ratos, abutres, urubus, cobras, burros, nada disso. Não vamos ofender os animais.

O criminoso que está acabando com a natureza é o homem, sempre ele. Sempre miseravelmente humano.

CLAUDIA TAJES

03 DE OUTUBRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

O ÓDIO MAGNÉTICO 

Há muitas maneiras de conceber. Posso supor que exista, entre duas pessoas que se enfrentam, um magnetismo cármico. Coisas acumuladas, asseveram alguns, em outras vidas. Viram, tornam a virar e reencontram quem detestam. Podemos supor, saindo do campo religioso, que seja um tipo específico de identidade. Ninguém ama ou odeia sem que exista alguma projeção. De forma quase matemática, também posso elaborar a teoria de que, se não gosto de alguém, cada vez que vejo a pessoa ela me incomoda. Assim, acabo imaginando que exista uma coincidência em constantes reencontros daquele ser em uma festa ou ao longo da vida. Talvez seja apenas o fato de que eu noto quando reencontro e suponho, de forma narcísica, que exista um plano acima de mim que me faz rever o rosto rejeitado. Deve ser como um farol vermelho: eu acho que pego muitos porque só noto o vermelho e considero o verde natural e adequado a minha impaciência. Por fim: seria apenas um acaso entre o bizarro e o poético?

Jürgen Stroop (1895-1952) foi um dos tantos canalhas nazistas que a guerra empoderou. Membro da SS, teve o trágico papel de reprimir o levante do Gueto de Varsóvia, em 1943. Não bastava matar os habitantes do gueto. Ele, pessoalmente, explodiu a Grande Sinagoga de Varsóvia a 16 de maio daquele ano. Ao apertar o botão dos explosivos, gritou Heil Hitler! A folha criminal do monstro cresceu: massacrou civis poloneses, foi repressor na Grécia e mandou executar prisioneiros norte-americanos. Esse humano infeliz e racista terminou preso após a guerra. Foi julgado no campo de Dachau e enviado para a Polônia, agora um país controlado pelo regime comunista que ele tanto odiou. Novo julgamento e abundantes provas do sadismo de Stroop. Neste momento, voltaremos ao primeiro parágrafo.

Com quem o monstruoso nazista dividiu cela? Kazimierz D. Moczarski (1907-1975) foi participante da resistência polonesa contra o nazismo. Tinha tentado matar Stroop mais de uma vez. Foram inimigos declarados nos anos da ocupação alemã. Enfim, estavam juntos, o nativo e o invasor.

O resultado dos meses de convívio na prisão Mokotów virou um livro: Conversas com um Carrasco (Conversations with an Executioner). Interessante comparar esse texto com a análise de Hannah Arendt sobre Eichmann.

Stroop foi dependurado em uma corda no dia 6 de março de 1952. Moczarski passou mais um tempo encarcerado e, depois da desestalinização, acabou sendo perdoado e solto. Os encontros dos dois foram publicados em uma revista e, depois da morte do polonês, surgiu o livro. Traduzido para o alemão, o francês e o inglês, virou um sucesso. Com o tempo, foi adaptado para a televisão polonesa, tornou-se documentário britânico e foi para o teatro dos EUA pela criação de Philip Boehm.

Stroop e Moczarski não se conheciam até a idade adulta. Durante a guerra, viraram inimigos absolutos. Se um dos dois tivesse conseguido, teria assassinado o outro com prazer. Ambos foram prisioneiros do mesmo regime polonês stalinista e conviveram por meses na mesma cela, na mesma prisão, na mesma cidade onde o ódio de um pelo outro tinha vicejado. No futuro, o polonês seria conhecido pela obra sobre o homem que mais tinha odiado e seu nome, per omnia saecula saeculorum, continuará associado ao do carrasco. Era a coincidência ou magnetismo cármico de que eu falei ao começo?

O encontro de dois inimigos em situação distinta magnetizou muitas narrativas. O cartaginês Aníbal e o romano Cipião travaram uma guerra acirrada por anos. Plutarco comparou as virtudes cívicas e militares de ambos. O ódio entre os dois generais parece tão impressionante que chegou a ter curso uma história apócrifa de que no final da vida, exilados, eles teriam compartilhado muitos momentos de conversas sobre os impérios que defenderam e que agora os rejeitavam.

Sabemos que o mundo político dá voltas surpreendentes e a ciranda dos holofotes é caprichosa. Quando um papa era coroado, alguém dizia ao recém-eleito que a glória do mundo era passageira (Pater Sancte, sic transit gloria mundi!). Algo similar era dito aos generais romanos em triunfo. Seria uma boa frase para todos que assumem cargos. Poderiam dizer algo mais desenvolvido ao que toma posse em qualquer cargo: "Você está no topo agora. O trono já pertenceu a gente que te combatia e em breve o poder voltará a ser dos teus inimigos. Cuidado! A cadeira do poder queima. Quem alto sobe alto cai. A glória política é a mais passageira de todas".

As frases poderiam ser entendidas com dois sentidos. Um homem sábio, porventura, pensasse: "É verdade, preciso pensar que a impermanência domina tudo". Se houvesse a remota hipótese de um menos consciente ser eleito ou indicado para um cargo, a reação poderia ser oposta: "Já que passa, vou aproveitar para enriquecer rápido e proteger minha família". Qual pensamento teria ocorrido ao ex-poderoso Stroop ao ser enforcado? É preciso ter esperança, e ela, geralmente, não está no poder.

LEANDRO KARNAL

03 DE OUTUBRO DE 2020
FABRO STEIBEL

A UNIVERSIDADE DO ESPAÇO 

A Estação Internacional Espacial (ISS) está estudando lançar a Universidade Orbital. O projeto está em fase bem inicial, mas já mostra o quanto o modelo de universidade aqui na Terra é limitado. Falta a universidade, no Brasil e no mundo, aprender com as lições que nos levaram à órbita. Uma delas é usar a internet para avançar nos desafios do milênio.

Se há uma coisa que a covid-19 nos ensina é que modelos híbridos precisam ser adotados por todos. Modelo híbrido é a forma de pensar o mundo considerando o mundo físico e o mundo digital como lados da mesma moeda. Pensamento híbrido é deixar de falar em "educação online" ou "ensino a distância" para pensar em "ensino". É parar de imaginar sala de aula para pensar em espaço de aprendizagem, online ou não.

As universidades são pouquíssimo abertas ao digital, quiçá ao pensamento híbrido. Prova disso é o quanto as faculdades (mesmo aquelas com anos de experiência em Ensino a Distância) suaram para não perder o ano acadêmico no primeiro semestre. No corre-corre de escolher plataformas para dar aulas online, e de saber quem tinha internet suficiente em casa, demos nosso jeitinho brasileiro. Mas ninguém estava preparado para usar internet para o ensino. Ninguém.

Se temos coworking de escritórios, por que não temos colaboratórios de medicina? Se temos marketplaces de saúde ou de eletrônicos, por que não temos o mesmo de cientistas? Se temos homeschooling para menores de idade, porque tão poucos professores usam ferramentas como Miro e Trello para "prototipar" soluções com os alunos entre as aulas? Mesmo as férias da graduação, duas vezes ao ano, poderiam ser híbridas. Até porque as aulas param, mas a pesquisa, não. Com isso, deixamos de ocupar o campus com mais pessoas, justo quando temos espaço para promover inclusão.

A ISS orbita sobre nossas cabeças com seis cosmonautas por vez. O que ela nos ensina sobre universidades? Primeiro, que tudo o que é teórico deve ser prático, aplicado. Exatas ou filosofia, a ciência espacial usa de tudo. Segundo, que países podem colaborar. Se na Guerra Fria todos trabalham em separado, a governança da ISS já é compartilhada (inclusive com o setor privado). E, por fim, a ISS é pensada com cabeça de interoperabilidade. Assista ao filme Apollo 13, com Tom Hanks, para entender o conceito e como um parafuso sem interoperabilidade nos fez fracassar na última tentativa de ir à Lua.

O exercício da Universidade Orbital está só no começo e é acompanhado de dois outros desafios, um relacionado à criação de negócios e outro aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A solução criada deve funcionar como um satélite, uma plataforma, de conexão de atores e práticas. A Universidade Orbital não será um campus no Espaço (a tecnologia não nos permite isso). Mas ela já nos ensina que nosso sistema de educação precisa dar mais voltas na órbita para se inspirar, e ser diferente. Para o infinito e além, onde nenhuma universidade jamais esteve.

FABRO STEIBEL


03 DE OUTUBRO DE 2020
COM A PALAVRA - CLAUDIA COSTIN - professora e pesquisadora, 64 anos

É PREFERÍVEL VOLTAR ÀS AULAS AGORA DO QUE ESPERAR A VACINA

Ex-ministra e hoje diretora de Inovação e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas, é uma referência em políticas públicas na área de educação no Brasil

Mesmo tendo atuado por muito tempo no serviço público, a professora e pesquisadora Claudia Costin ainda se impressiona com a atuação do governo federal na educação. E não de forma positiva: é a falta de protagonismo do Ministério da Educação (MEC) que a preocupa, sobretudo durante a pandemia. Ao menos, observa, a inércia federal deu espaço para que Estados e municípios arregaçassem as mangas e dialogassem. Claudia é um dos maiores nomes brasileiros quando se pensa em políticas públicas na área: foi professora-visitante da Universidade de Harvard, diretora Global de Educação do Banco Mundial e ministra da Administração e Reforma do governo Fernando Henrique Cardoso. Hoje, é diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) e presta mentoria a três secretários estaduais e 50 municipais de educação de todo o Brasil. Nesta entrevista concedida por Skype, ela fala sobre a volta às aulas na pandemia, as boas práticas de países-modelo e sua recusa em ser ministra da Educação do governo Jair Bolsonaro.

O BRASIL VOLTA ÀS AULAS, MAS EM MUITOS ESTADOS A EPIDEMIA NÃO ESTÁ CONTROLADA NOS PARÂMETROS QUE OUTROS PAÍSES ESTAVAM QUANDO RETOMARAM. VOLTAMOS NA HORA CERTA?

Não sou epidemiologista, o que faço é ajudar secretários a preparar a escola para a retomada. O que certamente não queremos é voltar com escolas despreparadas. Por outro lado, surgiu uma narrativa de voltar só com vacina. Conversei muito com epidemiologistas e todos me disseram: vacina para amplas massas não aparecerá antes de 2022. Temos de organizar como fizeram países com cultura de contato físico como a nossa. Hoje, há a consciência de que, se as condições epidemiológicas melhoram, é preferível voltar às aulas do que esperar a vacina. Especialmente se olharmos para crianças de maior vulnerabilidade. Elas estão pior do que se estivessem na escola. Estão na rua, sem a rede de proteção social oferecida pela escola. Dentre as 79 economias que participaram do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), o Brasil tem a segunda maior desigualdade educacional. Precisamos lidar com isso.

O GOVERNADOR DO RIO GRANDE DO SUL, EDUARDO LEITE, CONCLUIU QUE NÃO HAVIA CONSENSO SOBRE SE SERIA ADEQUADO OU NÃO RETOMAR AS AULAS PRESENCIAIS. EXISTE ALGUM CONSENSO?

Há dois consensos. O primeiro é que é fundamental usar máscara. A decisão do governador deve se basear em uma pesquisa recente, segundo a qual crianças com menos de 10 anos são vetores muito mais fracos de transmissão a adultos. Por serem geralmente assintomáticas, não tossem nem espirram, então não contaminam tanto. A segunda questão fundamental é ter retorno escalonado: não dá para ter uma turma de 35 alunos. Geralmente, outros países começaram a retomada com os alunos mais velhos.

A SENHORA VEM ACOMPANHANDO O TRABALHO DO GOVERNO GAÚCHO NA EDUCAÇÃO DURANTE A PANDEMIA?

Pouco. No Rio Grande do Sul, sou mentora apenas do secretário de Educação de Esteio. Conversei com o governador há dois meses.

SOBRE O QUÊ?

Se a volta deveria começar pela Educação Infantil e pela creche. Falei que achava muito arriscado crianças de dois anos ou menos voltarem. Aliás, saiu na resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) que é melhor deixar para mais tarde. As pesquisas mostram que a transmissibilidade é baixa, mas com criança muito pequena é difícil ter distanciamento. Acho que o ideal é creche não voltar agora.

HÁ VÁRIOS PROTOCOLOS CRIADOS NAS ESCOLAS, DESDE A OFERTA EM ÁLCOOL EM GEL ATÉ TAPETE SANITÁRIO E MEDIÇÃO DE TEMPERATURA NA ENTRADA. O QUE É BOBAGEM E O QUE FAZ DIFERENÇA?

O mais importante é organizar cozinhas, refeitórios e recreio para todo mundo não ficar junto - o ideal é cada classe ter o recreio separadamente. Ter tapetes faz algum sentido, mas é muito visual. A pia na entrada da escola faz muita diferença, assim como ver se a criança tem febre. Algo interessante é ensinar às crianças o distanciamento social, como brincar de aviãozinho sem encostar as mãos no coleguinha, ou ainda ensinar formas de manifestar afeto, na qual a criança toca o coração e fala que gosta da outra. Sei que não tem a ver com nossa cultura, mas vivemos um tempo de emergência, então teremos de viver outros hábitos. Valerá a pena se salvarmos vidas, e quem sabe as crianças levem um pouco de seriedade aos pais... Porque o que vemos de pais na praia ou em barzinhos. Quer dizer, só a escola é perigosa?

INCOMODA À SENHORA O FATO DE ESCOLAS ABRIREM DEPOIS DE BARES?

Me incomoda a educação não ser considerada um serviço essencial. É uma visão de que escola é lugar para deixar os filhos para serem cuidados. E a visão de não mandar o filho para a escola até ter vacina esquecendo o que isso significa para as crianças mais pobres em termos de alimentação, cuidado e aprendizagem. Dizer que precisa esperar a vacina é particularmente cruel com as crianças mais pobres.

COMO A PANDEMIA DEVE ACENTUAR A DESIGUALDADE SOCIAL? O QUE DEVE OCORRER NOS PRÓXIMOS ANOS NO BRASIL?

Há um brutal aumento da desigualdade social. Os pais das crianças mais pobres estão perdendo fonte de renda. Além disso, somos um país com alta defasagem idade-série. Ou seja, temos um jovem que deveria ter 11 anos no 6º ano, mas tem 15, por repetir muito. Se o jovem com 17 perde o ano por conta da pandemia, as chances de seu pai, que perdeu renda, pôr o filho para trabalhar são imensas. E, se lembrarmos que vivemos a quarta revolução industrial, na qual a inteligência artificial vem substituindo o trabalho humano, é uma situação muito ruim não concluir o Ensino Médio. As chances de não ter empregabilidade ou capacidade de empreender são enormes. Os jovens têm chance de serem uma geração perdida. Vivemos tempos tristes.

O QUE DEVE SER FEITO PARA AMENIZAR ESSE IMPACTO?

Saber o momento de voltar, e voltar de forma escalonada. Mas é preciso começar. Alguns secretários trabalham com a hipótese de, no Ensino Médio, só ir para a escola quem não tem equipamento em casa. Os professores ficam em casa transmitindo as aulas e, na escola, ficam diretor, diretor-adjunto e coordenador pedagógico organizando o ambiente. Mas todos os secretários estaduais preparam um retorno. Onde a coisa está pegando? Municípios. Nesse período de eleições municipais, dá medo a prefeitos de acontecer algo errado e a oposição acusá-los de não terem sido suficientemente cautelosos.

A SENHORA JÁ CITOU ALEMANHA, FRANÇA E PORTUGAL COMO EXEMPLOS. O QUE ELES FIZERAM E QUE PODERÍAMOS FAZER?

África do Sul também. Todos voltaram com protocolos. Não é que não teve nenhum novo caso. Teve, mas o que se faz: se aparece um caso em uma turma, a turma fica 14 dias em casa. Se aparece em mais de duas turmas, a escola fecha por 14 dias. Chegaram a falar que 70 escolas fecharam na França. Não. É o seguinte: tem 3,6 mil escolas na França e, ao longo do período, aparecerem casos de covid e 70 fecharam por 14 dias. Acho surpreendente a Espanha, onde já chegou a segunda onda e mantiveram as escolas abertas. Não sei se conseguirão manter isso. Eu preferiria ser mais assertiva, mas a realidade é que estamos tateando. Hoje, restaurantes estão abertos, sendo que os riscos são significamente maiores, já que as pessoas não usam máscara. Temos barzinhos e centros comerciais abertos. Só as escolas que não estão.

POR QUE A SENHORA ACHA QUE SE OPTOU POR ABRIR COMÉRCIOS E NÃO ESCOLAS?

Pela crise econômica, que tira emprego de muita gente. Também porque, nas escolas, o maior número de professores é da rede pública, ainda que escolas particulares precisem reabrir porque tem muito professor sendo demitido. Por fim, há uma visão dos sindicatos de que não é hora de se abrir.

O MINISTRO DA EDUCAÇÃO, MILTON RIBEIRO, DECLAROU QUE NÃO CABE AO MEC ORGANIZAR A VOLTA ÀS AULAS PORQUE QUEM DECIDE ISSO SÃO ESTADOS E MUNICÍPIOS. QUAL É O PAPEL DO MEC?

Ele está profundamente errado. O papel de um Ministério da Educação, mesmo em uma República Federativa, é coordenar a política educacional nacional. Se não, não faz sentido existir. O ministro disse isso, mas seu ministério preparou um protocolo biossanitário para apoiar as redes na volta às aulas. Só que, quando ele divulgou esse protocolo, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) já tinham espalhado protocolos para todo o mundo. Houve um protagonismo de ambas as entidades na resposta à covid, ocuparando um espaço não ocupado pelo MEC. O MEC fez muito pouco. O ministro está errado e mostrou que está interessado na continuidade de uma certa guerra ideológica que não ajuda em nada.

COMO A SENHORA CLASSIFICA A DECLARAÇÃO DO MINISTRO DE QUE A HOMOSSEXUALIDADE É UMA OPÇÃO E QUE OCORRE EM FAMÍLIAS DESAJUSTADAS?

Ele tem o direito de ter suas convicções religiosas. Mas elas ferem o que está na Constituição e os direitos humanos, uma causa muito querida à educação. E contrariam a ciência, que diz que ser homossexual não é uma escolha que a pessoa faz.

A SENHORA JÁ FOI MINISTRA. ATITUDES DOS ATUAIS MINISTROS, COMO ESSA, A CHOCAM?

Fui ministra em outro tempo. Vivemos uma era de conservadorismo na qual políticas públicas não são importantes. Tirando a política econômica, o resto parece não ser importante. Fico muito triste com isso tudo. Chego a pensar: puxa, o que fizeram com meu país.

O QUE ELEITORES DEVEM COBRAR NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS?

Desconfie de qualquer pessoa que só fala da agenda de costumes ou de corrupção. Eu sou contra a corrupção, mas ser contra a corrupção é pré-condição, não realização. Pergunte o que o candidato quer fazer na educação, dentro da folga fiscal, para que as crianças aprendam mais, e não só construir prédios bonitos. Como vamos recuperar o estrago da pandemia na aprendizagem das crianças? É importante se preocupar com a primeira infância, porque muito do que acontece depois vem após ter recebido alimentação correta, estimulação do cérebro e creche para quem precisa. Também se deve ter um elo entre desenvolvimento econômico e educação: mesmo que o Ensino Médio seja responsabilidade estadual, tem de buscar alternativas de renda para a juventude.

NO ÚLTIMO ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO BÁSICA (IDEB), O BRASIL VIU UMA MELHORA EM TODAS AS ETAPAS, COM UM SALTO MAIOR NO ENSINO MÉDIO. O QUE EXPLICA ISSO?

É resultado de uma longa jornada. Começou quando decidimos ter um Ensino Fundamental com um ano a mais e quando começamos a avaliar a educação em todas as escolas no 5º e 9º ano. Quando, mais tarde, criamos uma cultura de monitoramento de aprendizagem em boa parte dos municípios e Estados, onde se fazem provas regulares a cada dois meses para ver se há evolução. E, também, quando você cria uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e define, com clareza, o que esperar que crianças e adolescentes aprendam. Ao fazermos a prova do Ideb em 2019, ainda não se tinha a Base traduzida em currículos estaduais para o Ensino Médio, mas o esforço de discutir o que precisa ser ensinado e a formação aos professores ajudou. Educação é política de Estado, não de governo. Engraçado que, na ausência do MEC, os secretários de Educação do Brasil inteiro têm se reunido o tempo todo. E vem sendo um trabalho bastante interessante.

ESPECIALISTAS ENTREVISTADOS POR ZERO HORA CITARAM ALGUMAS FORMAS DE MANTER OS AVANÇOS DO IDEB, COMO AUMENTAR O SALÁRIO DE PROFESSORES, MODERNIZAR O CURRÍCULO, MANTER UMA POLÍTICA EDUCACIONAL INDEPENDENTEMENTE DOS GOVERNOS, FORMAR PROFESSORES E MELHORAR A INFRAESTRUTURA DAS ESCOLAS. A SENHORA CONCORDA COM ESSES PONTOS?

Não tem bala de prata na educação, mas algumas coisas ajudam bastante. Melhorar o salário de professores é importante, porque precisa atrair os melhores alunos de Ensino Médio para a carreira. Evidentemente que salário não é tudo, mas, se o salário está em um patamar muito baixo, ainda que o jovem seja um idealista, há um limite. A formação de professores é outro ponto importante, porque universidades infelizmente formam professores não para a profissão. Não há nenhum diálogo entre teoria e prática. Os próprios concursos públicos reproduzem defeitos: há aula prática para ser professor de universidade federal, mas não para ser professor de criança e adolescente, que é muito mais complicado. Também é preciso ensinar o professor e o diretor a trabalharem com dados. Por fim, política de Estado é algo sagrado: não é que um prefeito ou governador novo não possa mudar alguma coisa, mas deve construir o que começou a ser montado lá atrás.

O PISA MOSTRA QUE AS ESCOLAS PARTICULARES BRASILEIRAS SÃO PIORES DO QUE AS ESCOLAS PÚBLICAS EUROPEIAS. O QUE EXPLICA O FRACO DESEMPENHO DAS INSTITUIÇÕES ONDE ESTUDA A ELITE DO BRASIL?

Temos uma desigualdade educacional profunda, mas as escolas particulares frequentadas pela elite se saíram melhor nesse Ideb do que no anterior. Só que, para escolas públicas e privadas, é a mesma baixa atratividade da carreira de professor e a mesma formação inadequada recebida na universidade. O livro A Grande Gripe, de John Barry, mostra que faculdades de Medicina nos EUA e em boa parte do mundo eram muito teóricas e facílimas de entrar porque não havia prestígio na profissão no século 19. Não se exigia conhecimento de biologia e não havia hospitais universitários. Em outros termos, não havia diálogo entre teoria e prática. Foi quando a Johns Hopkins foi criada que surgiu a ideia de um hospital universitário que conectasse à prática. A faculdade não preparava para a profissão, que não tinha prestígio.

É O CASO DAS LICENCIATURAS HOJE?

Sim. Não há preparação para a prática. O Chile, há sete anos, começou a fazer a mesma transformação e, não por acaso, é o país da América Latina com as melhores notas. Desde o primeiro ano da faculdade você está no chão de uma escola - não só para estágio, mas também assistindo à aula de professores. A grande transformação que houve na Finlândia começou por tornar a formação de professores profissionalizante, em guerra com universidades finlandesas. Teve conflitos, foi um caos há 40 anos. Para ser professor lá, não basta ter graduação, tem de ter mestrado profissional extremamente ligado à prática. Você não aprende a ser médico tendo palestras sobre Medicina, tem de estar no hospital universitário desde o primeiro ano. Mas a gente acha que professor não precisa ser conectado à prática...

O GOVERNO FEDERAL PLANEJA VOLTAR A TAXAR LIVROS, SOB O ARGUMENTO DE QUE É UM PRODUTO DAS ELITES. O BRASILEIRO LÊ EM MÉDIA 5,5 LIVROS POR ANO. QUE EFEITOS A TAXAÇÃO PODE TER NA EDUCAÇÃO?

Somos ainda um país de não leitores. O preço do livro é caro porque as tiragens não são grandes. A gente precisa sair desse ciclo vicioso. A própria maneira como trabalhamos a leitura na escola leva a não sermos um país de leitores. A Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação (CNTE) elaborou, em 2002, uma pesquisa mostrando que 60% dos professores não tinham hábito de ler. Faz tempo, mas dá um indicativo de que somos um país de elites não leitoras. A conclusão do Paulo Guedes é o contrário: "A gente lê pouco, então vamos tornar o livro ainda mais caro porque é um produto das elites". Não! Vamos criar uma política de fomento à leitura, que comece na escola - mas não fique só na escola. É fundamental ter bibliotecas públicas em todos os municípios. Sou supercontra taxar os livros, só vai encarecê-los e tornar o Brasil menos leitor. Morei no Exterior várias vezes. O que me impressionou quando fui com quatro filhos para os EUA foi que, na matrícula da escola pública, davam a carteirinha da biblioteca municipal.

COMO A SENHORA VÊ A NOMEAÇÃO, EM DIVERSAS UNIVERSIDADES FEDERAIS BRASILEIRAS, DE REITORES QUE NÃO FORAM OS ESCOLHIDOS POR VOTAÇÃO PELA PRÓPRIA COMUNIDADE ACADÊMICA?

O ideal e a tradição é nomear o mais votado. Não acho errado nomear o terceiro colocado, mas tem que ver quantos votos teve a pessoa. Já vi governador de São Paulo escolher o segundo colocado em uma lista tríplice, mas que teve uma votação importante. O que falamos agora é de uma votação completamente inexpressiva para um terceiro colocado.

A SENHORA FOI SONDADA PARA SER MINISTRA DA EDUCAÇÃO, MAS DECIDIU SEGUIR NA FGV E PRESTANDO MENTORIA EM EDUCAÇÃO. ESTÁ FELIZ?

Muito. Não foi a primeira vez que fui sondada para ser ministra, não só nesse governo. Nessa sondagem, eu logo de pronto falei que não. Estou muito contente com minha etapa de vida. Mesmo que eu tivesse afinidades com esse governo, e não tenho, acho que ajudo mais o Brasil onde estou agora do que como ministra.

MARCEL HARTMANN


03 DE OUTUBRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

A HIPÓTESE DAS AVÓS

Se a vida na Terra tem algum sentido é o crescei e multiplicai-vos. A maioria dos vertebrados morre quando o vigor reprodutivo chega ao fim. Seres humanos são uma das raras exceções.

Sob a perspectiva evolucionista, qual seria a explicação para que as avós, mulheres já estéreis que pouco contribuem para a produção de alimentos, permaneçam vivas e com a cognição preservada?

Um estudo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) propõe uma explicação genética para esse fenômeno. Em 1998, um trabalho de campo havia mostrado que, no grupo Hazda de caçadores-coletores da Tanzânia, sobreviviam mais crianças nas famílias com avós que ajudavam a alimentá-los e lhes transmitiam tradições culturais e ensinamentos ecológicos. Graças a essa atuação, seus genes levariam vantagem na passagem para as novas gerações, teoria que ficou conhecida como "a hipótese das avós".

A deterioração da capacidade cognitiva associada ao envelhecimento, entretanto, compromete essas vantagens e se torna onerosa aos membros do grupo. No estudo da PNAS, o grupo de Aji Varki e Pascoal Gagneux, da Universidade da Califórnia, avaliou a contribuição de um gene (CD33) envolvido no controle das respostas inflamatória e imunológica às infecções e na doença de Alzheimer, enfermidade característica da fase pós-reprodutiva. Pesquisas anteriores haviam documentado que CD33 tem duas variantes (alelos), uma das quais predispõem à doença, enquanto a outra protege contra a proteína que se acumula no cérebro dos pacientes com Alzheimer.

Para elucidar o papel de CD33, o grupo comparou essas duas variantes com as dos chimpanzés e dos bonobos, nossos parentes mais chegados. Verificaram que seres humanos e chimpanzés apresentam níveis semelhantes da variante deletéria, enquanto a protetora atinge níveis quatro vezes mais elevados entre nós. Esse achado sugere que os chimpanzés, primatas em que a morte costuma coincidir com o fim do período de fertilidade, nunca viveram o suficiente para usufruir as vantagens da variante protetora. De fato, entre eles não são encontrados os transtornos cognitivos típicos do Alzheimer.

Pesquisando em bancos de dados do Projeto Genoma, os autores encontraram a variante protetora em etnias africanas, americanas, europeias e asiáticas. CD33 protetora, no entanto, não está presente em todas as pessoas. Conhecê-la em profundidade pode levar a medicamentos que mimetizam seus efeitos.

De qualquer forma, é muito interessante descobrir que nossa espécie selecionou uma variante para nos proteger de uma doença que só se instalará na oitava ou nona década de vida, fase distante da seleção reprodutiva. Esse mecanismo seletivo operaria no sentido de maximizar as contribuições de indivíduos em idade pós-reprodutiva para a sobrevivência dos mais novos.

Os autores concluem que "as avós são tão importantes, que nós evoluímos genes para proteger suas mentes".

DRAUZIO VARELLA

03 DE OUTUBRO DE 2020
BRUNA LOMBARDI

O DESPERTAR DA PRIMAVERA 

Chega a primavera e estamos em crise. Toda crise traz momentos de reflexão. A gente se questiona e procura respostas. Estamos vivenciando mudanças e precisamos saber como mudar. Vivemos um isolamento, cheios de estresse, medo e ansiedade diante do desconhecido.

E como administrar essas emoções? Pensamentos negativos nos atingem, tudo é incerteza. O que vai acontecer com os nossos sonhos, nossas paixões?

O que está acontecendo dentro de nós? Como organizar esse turbilhão de ideias e emoções que mexem com o nosso espírito? Uma sensação de solidão invade os nossos dias.

Precisamos compreender o que sentimos, mas os sentimentos parecem estagnados. O que fazer para desatar esses nós e buscar mais equilíbrio emocional e espiritual nessa nova estação?

Interromper a conversa negativa consigo mesmo é um dos passos mais importantes. Quanto mais falamos mal de nós, da situação em que estamos, mais nos enfraquecemos e fortalecemos as coisas que não queremos.

É bom ter certeza daquilo que a gente quer e não do que achamos que a sociedade espera de nós.

Um exercício para testar a nossa força de vontade é detectar maus hábitos. A gente sempre percebe a indulgência e tudo o que acreditamos ser uma recompensa. Reconhece a falta de disciplina, a procrastinação e as desculpas que inventamos. A gente quer mudar, mas mudar requer uma nova atitude.

Não adianta fugir dos problemas, porque eles sempre vão junto a gente. A única saída é enfrentar, resolver e superar. Mesmo se as tentativas não dão certo, não existe fracasso, são nossos pequenos passos na etapa de evolução.

Sucesso não é um lugar de chegada, é o nosso estado de espírito durante o percurso. Saber reagir ao que acontece, é determinante na jornada. Sempre existem alternativas, opções e escolhas. Novos caminhos e novas descobertas.

Ajuda muito ter alguém com quem conversar de verdade. Alguém que te quer bem e em quem você pode confiar.

Ah, e não se compare com os outros, nem julgue as pessoas. Aliás, não julgue você mesmo. Nada disso é construtivo, pelo contrário, só vai minar a sua auto estima.

Evite o jogo da culpa. Culpar alguém do que acontece com a gente não ajuda em nada. Mesmo que tenham te machucado, desiludido, decepcionado, a responsabilidade pelo que você se sente é sempre sua.

Desapego é necessário e a gente sabe que pra mudar precisamos abrir mão de algumas coisas que temos e somos.

Vivemos em constante fluxo, nada é estático, tudo está em movimento, tudo muda o tempo todo. Heráclito, um pensador grego, dizia que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio, pois da segunda vez nós já mudamos e as aguas do rio também.

A serenidade vem de saber que tudo o que acontece é necessário e chega na hora certa. Esse é o despertar de um novo ciclo, nova estação. Um momento propício para reavaliar o que queremos ser na vida.

Preste atenção no momento presente, siga sua intuição, escute o seu coração. Toda crise nos revela e nos renova. Uma feliz primavera para você.

BRUNA LOMBARDI

03 DE OUTUBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

JUNTANDO OS CACOS 

"Eu preciso de um médico que trate a alma das pessoas! Podes me indicar alguém?"

Esta frase foi colocada logo depois do "em que posso te ajudar" quase sempre acrescido do recomendável "eu preciso saber um pouco mais, então me conte o que só contarias ao teu melhor amigo!".

Essa consulta pode ter acontecido ou, simplesmente imaginada, como introdução para discutir uma situação comum nestes tempos de rabugice coletiva, com todo mundo exasperado pelo demora do fim dessa pandemia, enquanto alguns ironizam que o pico da doença está previsto para o final de 2021, ou não. O certo é que esta experiência insólita de pânico generalizado mexeu com as pessoas de uma maneira inusitada, constrangendo os pretensos poderosos com a democratização do medo, esse sentimento que melhor define a nossa vulnerabilidade.

O confinamento desde cedo começou a cobrar seu preço, e a companhia sem tréguas dos cônjuges, privados até das novidades trazidas da rua, remexeu em mágoas represadas e estimulou um previsível acerto de contas. Muitos casamentos ruíram porque um acabou dizendo "o que precisava ser dito", e o outro, sempre tolerante, agora como um animal ferido e enjaulado, retribuiu.

Alguns, sem ânimo para dissecção de relações eternizadas pela mesmice, se deram conta do quanto estavam desorganizados e, com a morte sempre rondando por perto, ficaram chocados com a consciência de não estarem prontos.

Esses cenários resumidos aqui foram tantas vezes levados pelos pacientes aos consultórios dos médicos antigos, esses antiquados que consideram que ouvir é parte essencial da relação entre duas pessoas, mesmo quando a doença de uma delas não provoca nenhuma dor física.

A expressão de extremo descompasso afetivo justifica a demanda por divórcios, e a insegurança em relação a um futuro sem limites estabelecidos tem multiplicado o trabalho dos cartórios onde desaguam os processos dos requerentes de testamentos, pelos tipos que recém descobriram a finitude, sempre mantida distante, como se fosse uma improbabilidade.

Como as glamourosas estratégias de comunicação virtual já esgotaram seus limites de competência, ninguém mais aguenta os abraços virtuais, nem as telas do computador cheias de carinhas amorfas, olhando para lugar nenhum, e sempre alguém perguntando: "Vocês me ouvem?".

É certo que sairemos dessa pandemia mais espertos em comunicação remota, mas o retorno à vida que consideramos de fato normal vai nos encontrar muito diferentes. Quem dera, melhores, apesar de completa incerteza. Para não deixar a paciente do início desta crônica sem resposta, digo que não tenho ideia de para quem encaminhá-la, mas que pode me ligar se a solidão parecer insuportável.

Sei que vai ser difícil assimilar tantas perdas, mas confio que passar por uma experiência tão surreal também é viver. E com uma intensidade insuspeitada no nosso antigo modelo de convívio despreocupado. Historicamente, as tragédias são transformadoras, e pode ser que no fim de tudo cheguemos à conclusão de que as nossas vidas já estavam a exigir uma mudança, desde antes da doença aparecer.

Talvez o mais chocante acabe sendo o quanto demoramos a perceber esta necessidade. Então, vamos juntar os cacos e recomeçar.

Por absoluta falta de alternativas.

J.J. CAMARGO

03 DE OUTUBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

O céu laranja de Porto Alegre

Porto Alegre amanheceu com o céu cor de laranja na sexta-feira. Um céu que Van Gogh gostaria de pintar. Há coisa de seis anos, depois de uma nevasca, a primeira nevasca da minha vida, vi a noite da Nova Inglaterra luzindo quase que no mesmo tom.

Quando digo nevasca, não me refiro a uns flocos de neve flutuando preguiçosamente, fazendo a gente ter vontade de cantar Noite Feliz. Não. Estou falando de tempestade de neve. O que eles chamam de blizzard.

Essa minha primeira blizzard foi assustadora. Os americanos são alarmistas. Uma semana antes, TVs, rádios e sites já anunciavam que aconteceria, pediam que tomássemos o máximo cuidado e passavam instruções: fiquem em casa, abasteçam a despensa, comprem cobertores e lanternas. Falavam muito nisso de lanternas. Alertavam que poderia faltar energia elétrica.

No dia em que ocorreria a blizzard, recebi uma ligação da Defesa Civil, repetindo as recomendações, encerrando com gravidade: "Não se esqueça de comprar lanternas!"

A cidade inteira estava agitada, todo mundo correndo, apressado. A Marcinha foi fazer rancho no supermercado, eu fui pegar o Bernardo na escola e, depois, saímos a procurar as benditas lanternas. Quem disse que encontramos? Todas tinham sido vendidas. Por Thomas Edison, será que ficaríamos no escuro? Finalmente, depois de muito bater perna, achei três lanternas tipo caneta à venda numa famosa ferragem chamada True Value. Comprei-as sofregamente.

Nunca as usei.

Nos seis anos em que vivi em Boston, só uma vez faltou energia, durante 15 minutos, por causa de uma obra que estavam fazendo no prédio em que morava. Mas antes da blizzard eu não sabia disso, então fiquei bem contente com as minhas lanternas e orgulhoso de tê-las achado.

Os canais de previsão de tempo marcaram para o meio da tarde o começo da tempestade, e a tempestade obedeceu. O dia havia começado claro e foi se tornando opressivo, as nuvens se aproximando do solo com jeito de brabas. Depois do almoço, o céu estava lilás. A temperatura foi baixando. Baixando... Na hora aprazada, flocos de neve do tamanho de moedas de um real começaram a cair como folhas mortas, pousando devagar no chão, juntando-se uns aos outros. No começo da noite, se você saísse à rua, afundaria até os joelhos no colchão de neve fofa e branca.

Nós, eu, a Marcinha e o Bernardo, estávamos no calor da nossa casa, jantando e apreciando a paisagem lá fora. Podíamos fazer isso, porque o apartamento era dotado de uma enorme porta de vidro que se abria para a sacada. Não me cansava de olhar para aquele cenário bucólico, em que sobressaía um robusto carvalho que nos abraçava todos os dias. Sério, ele nos abraçava. Era como se nos protegesse. Desenvolvi uma inexplicável afeição por aquela árvore poderosa. No dia em que voltaríamos em definitivo para o Brasil, eu e o Bernardo fizemos questão de ir até o pé dela e abraçar seu tronco. Fiz isso, confesso, e quero fazer de novo, quando estiver lá outra vez.

Naquela noite, a neve foi embranquecendo os galhos nus do imenso carvalho e também os telhados das casas, o gramado da praça, o chão das ruas. A cidade ficou inteiramente branca. E então, quando a luz da Lua conseguiu furar a massa de nuvens, tudo, chão, casas, árvores e céu, tudo ficou cor de laranja. Foi tão lindo, que parei diante da porta envidraçada em silêncio, o peito cheio de alguma emoção entre a alegria de ver e o agradecimento por estar vendo, e aí falei. Sem deixar de mirar a rua, chamei a Marcinha e o Bernardo: "Olhem..." E eles olharam.

Lembrei dessa noite ao ver o amanhecer laranja de Porto Alegre na sexta-feira. Era bem cedo ainda, estava meio escuro. Até parecia noite, mas era o dia que vinha. Chovia uma chuva silenciosa e boa e foi bonito. Fiquei pensando que você pode encontrar belezas em qualquer parte do mundo, em qualquer pedaço de tempo. Basta querer ver. Torci para que meus irmãos porto-alegrenses estivessem contemplando o mesmo céu, mas calculei que a maioria da cidade continuasse sob os lençóis. Senti vontade de despertar a todos. Queria poder convocá-los a admirar aquela cena que Van Gogh pintaria. Queria poder pedir: "Olhem..." E eles olhariam.

DAVID COIMBRA

03 DE OUTUBRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

Ameaça em ondas 

Trazem esperança mas também devem ser recebidos com comedimento os números que mostram arrefecimento dos casos, das internações em UTI e das mortes por covid-19 no Rio Grande do Sul, assim como estudos indicando a possibilidade de ter ficado para trás o período mais grave da pandemia. O momento mais crítico teria sido no início de setembro e, agora, o Estado estaria ingressando em uma fase de lento declínio da enfermidade, que já ceifou a vida de mais de 4,8 mil gaúchos. A cautela não tem qualquer relação com questionamento às estatísticas ou à pesquisa que aponta a tendência. 

A parcimônia é baseada na simples constatação de que o quadro pode mudar, com um recrudescimento da enfermidade, caso a população relaxe no distanciamento social, na postura de evitar aglomerações, e nas atitudes pessoais como usar máscara, álcool gel e o ato de lavar as mãos constantemente. Mesmo com o cansaço de mais de seis meses de restrições, afastamento de familiares e amigos, o comprometimento individual segue decisivo na batalha para manter os números em trajetória consolidada de queda.

O Brasil, na média, também vem apresentando nas últimas semanas uma curva descendente de infecções e óbitos, após um longo platô, mas este movimento, da mesma forma, não deve se tornar motivo para a população negligenciar medidas essenciais ao combate da disseminação do agente infeccioso. A retomada gradual das atividades econômicas não prescinde de todos os cuidados, cautelas e limitações, como é o caso das escolas, com o retorno às aulas presenciais compondo uma das fases de flexibilização mais sensíveis em todo o mundo.

O exemplo de quanto o novo coronavírus é traiçoeiro e oportunista, sempre à espreita de descuidos e comportamentos inapropriados, vem de alguns pontos do próprio Brasil, da Europa, dos Estados Unidos e de Israel. Manaus, que gerou cenas dramáticas nos primeiros meses da pandemia no país, atravessa período de novo aumento de mortes e a possibilidade de uma segunda onda, embora a situação ainda gere discordância entre especialistas. Na cidade do Rio, as internações em UTIs voltaram a subir nas últimas semanas. Vários países europeus observam a elevação de casos e, em Madri, a capital espanhola, foi preciso aumentar as restrições à circulação da população de algumas regiões. Na Espanha e na França, ficou claro que os jovens são agora os principais vetores da doença e, como não vivem isolados, os que se arriscam ao contágio acabam mantendo o vírus circulando intensamente.

Diante do perigo de uma segunda onda, é preciso renovar o apelo para a manutenção das atenções básicas e do distanciamento social para que o Estado e outras regiões do Brasil não vejam a repetição de imagens de cidades esvaziadas, em um momento de esgotamento social e econômico. Do governo federal já se viu que não se pode esperar muito em termos de incentivo a comportamento seguro. Como ainda não há vacina segura e de eficiência comprovada, negligências podem colocar a perder meses de protocolos rígidos e forçar a necessidade de retornar algumas casas na caminhada das flexibilizações. O mais robusto obstáculo a uma nova onda é a consciência e a responsabilidade de cada cidadão. Afrouxar os cuidados poderá significar ver o mapa do Rio Grande do Sul outra vez pintado de vermelho.



03 DE OUTUBRO DE 2020
+ ECONOMIA

Risco Trump com covid-19 se soma a temor sobre Guedes 

Causou susto nos mercados, na sexta-feira, o diagnóstico de que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, está com covid-19. Na economia, a situação eleva a já alta incerteza, desde como o governo americano vai se comportar agora até o futuro da eleição para a Presidência dos EUA. Está em dúvida a realização de debates e outros atos de campanha nas próximas duas semanas, metade do tempo que falta para o dia da votação.

Considerando os resultados do primeiro embate com o democrata Joe Biden, pode até beneficiar Trump. Apesar do bate-boca desastrado, pesquisas mostraram leve vantagem para o democrata. Se antes era difícil de prever resultado, agora se tornou quase impossível.

Esse aumento de incerteza faz investidores se refugiarem em mercados mais seguros. Países com economia fragilizada, como o Brasil, tendem a ser mais afetados. Em setembro, houve saída de R$ 2,4 bilhões de estrangeiros da bolsa brasileira. E o fato inesperado colhe o país em momento difícil, com endividamento crescente e dúvidas sobre o compromisso do governo Bolsonaro com o ajuste fiscal.

A bolsa caiu 1,53% na sexta-feira, enquanto o dólar fechou quase estável, mas em R$ 5,666, cotação mais alta desde 20 de maio. Isso ocorreu um dia depois que Bolsonaro afirmou que o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem 99,9% de sua confiança. O que tornou a declaração necessária foi o desgaste de Guedes na discussão sobre como financiar um programa social mais robusto do que o Bolsa Família. E o clima que já não era bom entre Guedes e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, azedou mais na sexta-feira. Em reunião com bancos, Marinho disse que o colega havia perdido a confiança do relator do orçamento no Congresso, Márcio Bittar (MDB-AC), por ter revisto sua posição sobre os precatórios como fonte para o Renda Cidadã.

Ao saber, Guedes afirmou que não devia ser verdade, porque, se fosse, Marinho seria "despreparado, desleal e fura-teto". A piora global e a desconfiança interna fizeram o economista-chefe da corretora Necton, André Perfeito, revisar sua projeção para o dólar no final de ano de R$ 5,90 para R$ 6.

"No mundo anormal, mais mudanças" 

Andrea Kohlrausch havia se tornado presidente da Bibi Calçados há menos de um ano quando a pandemia a obrigou a mudar todos os planos em poucos dias. A empresa, que emprega 1,2 mil funcionários, não fez demissão em massa. Com indústria e uma rede de franquias, já abriu quatro lojas na retomada e prevê mais três no Exterior ainda neste ano.

Distanciamento

"Neste momento, estou em casa, porque meu esposo testou positivo para covid-19. Faz uma semana, ele tem sintomas bem leves, mas nos isolamos. Antes, alternava entre casa e empresa. Demos férias coletivas, depois adotamos jornadas reduzidas. Em agosto, conseguimos retomar 100% da produção. Setembro foi o primeiro mês completo. Aderimos ao movimento Não Demita e mantivemos cerca de 1,2 mil empregos, incluída a unidade da Bahia."

Leitura e lazer

"Participei de muitas lives, vi algumas séries e filmes, como O Dilema das Redes. Estou lendo agora Avalie o que Importa (Bruno Menezes e John E. Doerr), sobre gestão de OKRs (Objectives and Key Results, metodologia adotada pelo Google). Também estou passando um momento único com meus filhos Luísa, de 11 anos, e Augusto, de três. Fizemos uma escala familiar para que possam brincar e socializar. Levamos para andar de bicicleta. Haja criatividade. Eu estava mais sedentária e retomei a corrida."

Combate ao coronavírus

"Não há solução ainda, mas já estamos voltando às atividades. Exportamos para mais de 60 países, lidamos com situações muito diversas, como no Peru, onde houve dias que os homens não podiam sair, e na Argentina, que segue muito fechada. Não dá para se desmotivar, tem de buscar a solução. Atuamos muito no apoio a nossa rede de franquias. Orientamos sobre como atuar no e-commerce, orientamos sobre as MPs e prazo para recolher impostos, apoiamos negociações com shoppings. Ajudamos a ativar o delivery, adotar mecanismos antifraude, a trabalhar nas redes sociais."

Aprendizado

"A Bibi tem 71 anos porque sempre teve coragem de inovar. Vai intensificar a inovação. Temos foco em sustentabilidade e buscamos o equilíbrio com todos com quem trabalhamos. Acreditamos na empatia e na disposição de aprender sempre, e a pandemia reforçou esses princípios."

Reflexões

"Uma das frases que uso é ?quem tem um porquê enfrenta qualquer como?. A empresa tem propósito claro, que é contribuir para o desenvolvimento feliz e natural das crianças. É importante que cada pessoa busque seu propósito. Não há um novo normal, vamos ter um mundo anormal, em que as mudanças vão se acelerar. Com tanta informação disponível, o que vai importar é a capacidade de execução. Nessa retomada, já inauguramos quatro lojas, abrimos a segunda no Equador, a primeira internacional do ano, e ainda devemos abrir mais três no Exterior neste ano. Ainda não vencemos o coronavírus, mas estamos retomando com prevenção e segurança."

Indústria de alimentos para cães e gatos de Garibaldi, a Nutrire ampliou seu plano de expansão para o Exterior. A empresa passa a fornecer produtos para o Catar. Vai começar com o envio de um contêiner com 12 toneladas de ração. A empresa gaúcha já vende para outros oito países árabes.

A embalada na construção civil também chegou a Gramado. Entre abril e agosto, a Scalla Incorporações vendeu 70% das unidades de um novo prédio na cidade da Serra com 20 apartamentos.

Depois de gerar 1,14 mil postos em julho, o setor calçadista criou outros 6,3 mil em agosto. É uma reação depois de quatro meses seguidos de perda de empregos, mas ainda faltam 36,6 mil para voltar ao nível de dezembro de 2019 (269 mil postos de trabalho).

MARTA SFREDO

03 DE OUTUBRO DE 2020
J.R. GUZZO

Bolsonaro vai se arrepender 

O nome que se deu como o escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro para a vaga que está sendo aberta por estes dias no Supremo Tribunal Federal é o que os agentes das companhias de seguro chamam de "P.T." - desastre com "perda total". Em relação a ele, a única coisa que o presidente poderia fazer de útil é dizer que foi tudo um mal-entendido - o tal Kassio Nunes Marques, o homem preferido pelas gangues que operam no Congresso e no baixo mundo do Poder Judiciário em Brasília, "garantista" ao gosto da esquerda e abençoado por Gilmar Mendes, Toffoli e seus parceiros, tem tudo para ser o herói do pior momento dos quase dois anos do governo Bolsonaro.

A reação ao anúncio divulgado no noticiário foi mais uma dessas anomalias que a vida pública brasileira de hoje oferece. A maior parte dos que de uma forma ou de outra apoiam o governo achou que o nome é um horror; sua indignação com ele, e com Bolsonaro, ficou evidente de imediato nas redes sociais.

Quem gostou, vice-versa ao contrário, foi o bonde que circula entre a esquerda nacional e a "Confederação Brasileira da Corrupção Responsável": PT, centrão, OAB, escritórios milionários de advocacia criminal, garantistas, intelectuais orgânicos, inimigos da Lava-Jato, os ministros do STF que se especializam em proteger acusados de corrupção, a mídia que condena tudo o que Bolsonaro faz etc. Uns, é claro, não dizem em voz alta que apoiam; mas ficam quietos, o que dá na mesma.

O apoio mais chocante ao nome de Kassio Nunes - que nunca foi juiz, está na magistratura por nomeação de Dilma Rousseff e ficaria no STF pelos próximos 27 anos, até 2047 - veio do seu conterrâneo Ciro Nogueira, senador pelo Piauí e denunciado formalmente em fevereiro de 2020 pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, caso que está enfiado numa gaveta do STF. Precisa dizer mais alguma coisa?

O preferido do senador, além dessa qualificação, tem uma soma de realizações profissionais como jurista equivalente a três vezes zero. É contra a prisão de criminosos após a sua condenação em segunda instância (segundo ele, é preciso "justificar" por que o sujeito teria de ir para a cadeia só porque foi condenado duas vezes) e a favor da construção de mais prédios para esses tribunais superiores que se multiplicam por aí; acha que os seus palácios atuais não são suficientes.

Logo no começo do governo Bolsonaro, circulou no mundo político a notícia de que um dos seus filhos estava para ser nomeado embaixador do Brasil nos Estados Unidos - nada menos do que isso. Foi um espanto tão grande, que a ideia acabou sendo abandonada. Para o bem-estar de todos e felicidade geral da nação, o arrependimento, como aconselhava Santo Agostinho, veio antes do pecado. Aguarda-se, agora, o momento em que Bolsonaro vai se arrepender - se antes ou depois do desastre.

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes

J.R. GUZZO

03 DE OUTUBRO DE 2020
CARTA DA EDITORA

O repórter 

A função mais nobre do jornalismo e, ao mesmo tempo, a mais complexa e desafiadora é a do repórter. Nove em cada 10 recém-formados começam na profissão nessa atividade. É como se fosse um rito de passagem para quem quer seguir na carreira. Não é uma regra - e há exceções que desmentem o que acabei de dizer -, mas o recomendável é não queimar essa etapa. Parte, depois de um tempo, vira editor, gestor, colunista, apresentador. Mas uma grande parcela opta por continuar na reportagem, de tão apaixonante que é.

A Redação Integrada de ZH, GZH, Rádio Gaúcha e Diário Gaúcho tem um dos melhores times de repórteres do país, não apenas pela excelência mas também pela abnegação. Um dos mais experientes e versáteis dessa equipe é Humberto Trezzi. É o que chamamos no jornalismo de repórter puro-sangue. São quase quatro décadas fazendo reportagens que já lhe garantiram 74 prêmios, internacionais, nacionais e estaduais.

Há 32 anos em Zero Hora, Trezzi coloca entusiasmo e dedicação em tudo o que faz. Como integrante do Grupo de Investigação da RBS (GDI), fez reportagens como as que revelaram o poder das facções criminosas instaladas no Rio Grande do Sul, a indústria da falsificação de cigarros e a venda de casas ilegais em áreas ambientais. Fez coberturas internacionais nas guerras civis de Angola (1996) e da Líbia, durante a Primavera Árabe (2011), e dos cartéis no México (2009), entre outras. Além de repórter, é também colunista de segurança, área na qual sempre teve forte atuação como repórter.

Trezzi costuma dizer que uma das maiores gratificações para um repórter é ver que uma investigação jornalística teve consequências, que ajudou a contribuir para uma sociedade melhor. Em junho, no auge da pandemia, ele e o colega da RBS TV Giovani Grizotti mostraram casos de pessoas com poder aquisitivo que estavam requisitando o auxílio emergencial de R$ 600 do governo federal, dinheiro destinado a parcela da população carente. Até uma noiva, que se casaria no Caribe, e uma empresária, dona de um Mustang, estavam na lista.

Depois da reportagem, alguns dos beneficiados devolveram o dinheiro. O material publicado em ZH e GZH e veiculado na RBS TV serviu de base para investigações criminais e cíveis da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Na quinta-feira, a PF desencadeou um mutirão para interrogar suspeitos de fraudar o auxílio emergencial. Dos 172 suspeitos, 36 foram revelados pelo GDI.

- Comprovamos mau uso do dinheiro público e, o que é ainda melhor, nossa reportagem induziu pessoas a devolverem os recursos recebidos de forma indevida e ajudou nas investigações dos órgãos competentes - conta Trezzi, que já trabalha em outras frentes de investigação, sempre com a disposição de quem está começando na profissão de repórter.

DIONE KUHN