sábado, 11 de fevereiro de 2023


11 DE FEVEREIRO DE 2023
+ ECONOMIA

Que banco é esse que Dilma vai comandar desde Xangai

Agora está confirmado: a ex-presidente Dilma Rousseff será indicada pelo governo Lula para comandar o New Development Bank (NDB, em português Novo Banco de Desenvolvimento), também conhecido como "banco dos Brics". Com isso, Dilma deve se mudar em breve de Porto Alegre para Xangai, na China, onde fica o banco.

Mas que banco é esse? O NDB foi criado como um instrumento do grupo formado originalmente por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (cujas iniciais em inglês formam a sigla Brics). Foi criado oficialmente em 2015 com essa formação. Em 2021, o NDB aprovou o ingresso de outros países emergentes: Bangladesh, Egito, Emirados Árabes Unidos (inclui Dubai e Abu Dhabi) e Uruguai.

Dilma vai substituir Marcos Troyjo, ex-secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia indicado pelo governo anterior. Seu mandato vai até 2025, mas o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, atuou para "convencê-lo" a deixar o cargo para uma indicação do atual governo. O governo brasileiro também já fez contato com os demais sócios, que aceitaram a mudança.

Afinal, será a primeira vez que o NDB será comandado por uma ex-chefe de Estado. Dilma, é bom lembrar, é graduada em Economia. O posto, no entanto, é visto mais como representação diplomática do que um cargo técnico.

Troyjo foi apenas o segundo a liderar a jovem instituição financeira. Foi eleito em 27 de maio de 2020 e começou a exercer o cargo em 7 de julho seguinte. Substituiu o indiano Kundapur Vaman Kamath, que antes havia atuado como presidente da Infosys, segunda maior companhia de serviços de TI da Índia, e presidente do conselho do Icici Bank, o maior banco privado da Índia.

O NDB foi criado para financiar projetos de infraestrutura e de desenvolvimento sustentável. Já financiou 96 obras, aplicando US$ 32,8 bilhões em 17 mil quilômetros de estradas construídas ou melhoradas, 820 pontes, 35 mil unidades residenciais e 1,39 mil quilômetros de túneis ou canais.

MARTA SFREDO

11 DE FEVEREIRO DE 2023
+ ECONOMIA

ESG na prática

A Lojas Pompéia criou sua primeira marca com viés sustentável, a Eco.ar. Um tênis desenvolvido em parceria com o Instituto Lins Ferrão será o primeiro produto da linha.

Foi feito a partir da reutilização de uniformes que seriam descartados. Cerca de 300 quilos de peças acumulados durante três anos passaram por desfibramento. Assim, voltaram a ser fio têxtil, usado para a confecção do cabedal (parte de cima), palmilha e forro do tênis. A Pompéia é uma das empresas do Grupo Lins Ferrão. O instituto foi projetado para desenvolver ações de responsabilidade social e sustentáveis.

ENTREVISTA SERGIO WERLANG Ex-diretor do Banco Central

Ao contrário da autonomia do Banco Central, considerada essencial por quase todo setor produtivo e todos os economistas ortodoxos, a crítica à meta de inflação de 3% encontra eco em vozes do mercado - em tese, até em seu presidente, Roberto Campos Neto. Responsável por implantar o sistema de metas no Brasil em 1999, como diretor do BC, Sergio Werlang está entre os que consideram 3% ao ano "muito apertada" para a realidade nacional. Nesta entrevista, explica os motivos e detalha o que deveria preceder um eventual aumento.

Por que a meta é apertada?

Em 1999, na primeira vez em que se discutiu meta no Brasil - sei porque estava lá (risos) - pensava- se em um número baixo. Eu e Armínio (Fraga, presidente do BC à época) tínhamos essa preocupação e procuramos o professor Aloisio Araujo (doutor em estatística, professor titular da Escola Brasileira de Economia e Finanças). Ele nos disse que países com fragilidade fiscal costumam ter inflação acima de outros. Em 2015, Araujo publicou um artigo na International Economic Review reforçando essa tese.

É o caso do Brasil?

Exatamente. Temos rigidez enorme no orçamento, e o país não pode ter déficit muito grande. Por isso, para ser crível, meta tem de ser um pouco acima de países parecidos, mas sem essa rigidez.

Que países seriam?

A meta do Brasil tem de ser um pouco acima da de países como Chile e México, que usam 3%. Mas não muito maior, entre 4% e 4,5%. Em 31 janeiro de 2017 - lembro porque fiquei apavorado por saber do perigo de descrédito do sistemas de metas -, ouvi o presidente do BC (à época, Ilan Goldfajn) dizer que 3% no longo prazo seria o ideal para o Brasil. Escrevi um artigo contestando, citei o trabalho do Aloisio. De lá para cá, escrevi 11 artigos. Não adiantou. O Brasil precisa ter meta de inflação mais alta, com Temer, Bolsonaro ou Lula.

O aumento tem pré-requisito?

Estamos com a área fiscal em completo desarranjo. Quando isso ocorre, se não arrumar, a inflação sobe, como vimos no final do governo Bolsonaro. Aí, o único jeito de equilibrar é cobrando o chamado imposto inflacionário. O que é fundamental para aumentar a meta e ter certeza de que vai aumentar a credibilidade do BC - não diminuí-la -, é equacionar a situação fiscal de forma crível. O ministro Haddad tem dito que até abril apresenta. Se for crível, começa a cair a taxa de juro dos títulos de longo prazo. Os NTN-B 2050 (títulos de dívida do Brasil) hoje estão em 6,43%. Se começar a cair na direção de 5% - onde estava, no governo Bolsonaro, mesmo com toda a confusão -, vai sinalizar que as pessoas acreditam que a regra poderá ser cumprida.

Então, a meta só deveria subir depois do marco fiscal?

Exatamente. A meta para inflação tem sido anunciada sempre em junho. Teria tempo de sobra para trocar ideias com pares, acadêmicos, mercado, e verificar se a regra fiscal foi ou não crível. Não há necessidade de correr com isso. É importante fazer, mas fazer direito, para ter certeza de que o BC vai ganhar credibilidade, não perder. Aí pode ajustar para nível mais próximo do que o Brasil realmente consegue atingir sem tanto custo. Para atingir 3%, teria de manter o juro muito tempo em 13,75%.

Tem expectativa de trégua entre governo Lula e BC?

Espero que sim, porque toda vez que o presidente ataca o BC, o juro de longo prazo sobe. Se acompanhasse na tela, teria uma ideia melhor de que só piora as condições da política monetária para o futuro. Além de ser muito difícil aprovar o fim da autonomia, teria um efeito bastante ruim, de mais inflação. Não vejo lógica em continuar com essa batida.

MARTA SFREDO

11 DE FEVEREIRO DE 2023
CARTA DO EDITOR

RBS no Exterior

O repórter e colunista Rodrigo Lopes acompanhou nesta sexta-feira, na Casa Branca, em Washington, o encontro entre os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e dos EUA, Joe Biden. A presença de ZH, GZH, Rádio Gaúcha e RBS TV no local foi pautada pela relevância do fato, que tornou públicos os pilares da política externa até 2027. Além de ditar como o Brasil vai se apresentar ao mundo, a viagem ao território americano busca aprofundar vínculos com um dos parceiros mais relevantes para os negócios do país.

As trocas comerciais entre o Brasil e os Estados Unidos em 2022 atingiram o nível histórico de US$ 88,7 bilhões, de acordo com análise do Monitor de Comércio Brasil-EUA da Amcham. O levantamento mostra que o valor superou em US$ 18,2 bilhões (25,8%) o recorde anterior, estabelecido em 2021.

- Os EUA são o segundo principal destino das exportações brasileiras e o maior investidor privado no Brasil. Também são dois países que tiveram suas democracias testadas - os EUA, no ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, o Brasil, em 8 de janeiro de 2023. Lula e Biden têm uma agenda comum de reforço da democracia, contra extremismos e no ambiente.

Rodrigo está desde o final de 2022 em Brasília. Especialista em política internacional, combina informação e análise para retratar o contexto surgido após a posse de Lula para todas as plataformas do Grupo RBS. Ainda em janeiro, na primeira missão de Lula ao Exterior, o repórter esteve na Argentina e no Uruguai, dois vizinhos do país e com relações geográficas e econômicas fundamentais com o Rio Grande do Sul.

- A proximidade com os temas do Estado norteou nossa ida a Buenos Aires e a Montevidéu. Tanto é que muitos dos anúncios feitos por Lula impactam o Estado. Lula quis, nessa primeira viagem, mostrar que a prioridade da política externa será a relação com os vizinhos latino-americanos - avaliou Rodrigo.

Responsável pela editoria de Notícias da Redação Integrada, Leandro Fontoura ressalta que a presença de um repórter da RBS em uma cobertura assim permite que o público gaúcho, além das informações das viagens, receba um conteúdo diferenciado.

- Na passagem do presidente pela Argentina e pelo Uruguai, por exemplo, Rodrigo deu ênfase às tratativas de projetos que têm impacto no RS, como a construção de pontes, gasoduto e hidrovia ligando os três países. Desse olhar, não escapam curiosidades como uma brincadeira feita pelo presidente brasileiro envolvendo a contratação do uruguaio Luis Suárez pelo Grêmio - diz Fontoura.

DIEGO ARAUJO INTERINO

Os rentistas agradecem

Como repórter, enveredei por quatro países de regime socialista nos quais não deveria haver mercado livre porque a economia, em tese, era dirigida pelo poder central. Mas nos quatro - Cuba, União Soviética, Venezuela e Iugoslávia - o mercado só não existia na narrativa dos governos. Na vida real, era uma rede paralela de empreendedores extraoficiais ou uma teia clandestina, abastecida por desvios de estatais e contrabando. Mesmo em regimes socialistas, o mercado, esse ente agora tão vilipendiado por Lula e seu entorno, cuida de prover aquilo que é desejado mas escasso em sociedades de economia controlada.

O mercado não está atrás de popularidade. Ele não é candidato, não tem CNPJ ou endereço e reage a rabugices com mais cara feia porque gosta de segurança e previsibilidade. O mercado, avise-se, somos todos nós, em cada transação econômica de cada cidadão a partir da milenar lei da oferta e da procura. Um exemplo simples. Muita gente deixou de viajar de avião na pandemia? Os preços das passagens caem. Todo mundo quer viajar agora? Os preços sobem. Querem controlar o preço dos bilhetes? Alguém vai pagar a conta. Quando as companhias aéreas são estatais, é o contribuinte. Quando são privadas, elas dão prejuízo e muitas quebram.

No Brasil de Lula, tem ministro que deseja povo na rua para forçar o Banco Central a reduzir os juros. Os "rentistas", essa espécie que virou alvo lulista, agradecem. A cada sandice que vem do governo, os juros futuros - ditados pelo mercado real e não pela cabeça dos governistas - sobem mais um tanto, e o dólar, que dá sinais de exaustão em quase todo o mundo, ganha oxigênio extra no Brasil.

O governo está dividido entre incendiários e bombeiros. De um lado, Gleisi Hoffmann, a blogosfera petista e o próprio Lula. Já Rui Costa, Alexandre Padilha e Geraldo Alckmin tentam apagar os incêndios. Fernando Haddad parece perplexo, mas ajudaria se ele apresentasse a Lula a experiência da Turquia. Lá, não há banco central autônomo e o presidente Recep Erdogan decidiu baixar os juros na marra. Demitiu a diretoria do banco e decretou a redução da taxa. Resultado: a lira turca está entre as moedas campeãs de desvalorização nos últimos dois anos. A inflação em novembro do ano passado chegou a 86% ao ano. O mercado é assim, queiram governos ou não.

Agora, a onda de uma esquerda fossilizada é atacar a autonomia do Banco Central. É perda de tempo. O juro está alto porque a inflação ainda tem muito fôlego no Brasil, em boa medida pela irresponsabilidade fiscal do governo. Inflação é o maior inimigo dos pobres, porque bate mais forte nos alimentos e eles não têm como proteger sua renda. Lula quer ajudar os mais pobres? Trabalhe para reduzir, de forma sustentada, a inflação e o déficit público. Os juros, e o mercado, virão atrás.

MARCELO RECH 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023


09 DE FEVEREIRO DE 2023
CARPINEJAR

O poder apaixonante do riso

Lembro que, certa vez, uma colega de jornalismo apresentou seu novo namorado para a turma da faculdade. Estávamos bebendo num restaurante mexicano. Ele parecia atencioso, carinhoso, amável.

Depois de alguns shots de tequila, qualquer história contada passou a ser muito engraçada, e o namorado desandou a rir como se fosse engasgar. Como se a voz dele tivesse sido tocada pelo gás hélio. Ele uivava com um timbre infantil. Um lobo mirim asmático. Até que todos começaram a rir da risada incomum dele e ele ria ainda mais da nossa risada. Naquela noite, perdemos o ar de doer a barriga.

A amiga, antes entrosada e à vontade, testemunhando a parceria entre todos, mergulhou num cenho irreversível. O romance entre eles terminou ali. Naquelas bordas salgadas dos pequenos copos. Azedou com o limão. Simplesmente porque a amiga não teve crush com a gargalhada do rapaz.

Falei para ela que aquilo não era motivo para uma ruptura, que estava sendo excessivamente exigente diante de uma banalidade. Ela me respondeu, taxativa: - Se eu não gosto do riso dele, como é que vou fazê-lo feliz?

Havia preconceito em sua atitude, mas também uma dose forte de verdade. Um dos pré-requisitos para namorar - e pouca gente fala disso - é gostar da gaitada da pessoa. É preciso se apaixonar pela alegria. É preciso se apaixonar pela festa da alma. O riso é o recreio das linhas faciais, o apogeu da espontaneidade, o ápice da liberdade individual.

É essencial se apaixonar pelo jeito como a pessoa sorri para as fotos, como pronuncia com a boca em curva e mostra os dentes na mesa, na intimidade, na roda de samba, no boteco. Mais do que se deslumbrar com o beijo ou a conversa, a exigência é ser arrebatado pelo modo como a pessoa ri.

Não é possível se envolver sem admirar o som do contentamento. O riso é decisivo. O riso é seletivo. O riso é a química maior da convivência. Não pode ser reprimido como um espirro. Não pode ser de terror como uma crise de apneia. Não pode ser rápido a ponto de ninguém percebê-lo.

Não pode ser frustrado como uma praia adiada pela chuva. Há quem ri silenciosamente, aumentando o volume aos poucos. Há quem se joga escandalosamente na primeira nota, como um trompete. Há quem ri espaçadamente, com intervalo comercial. Há quem ri como um aplauso ao final, quando finalmente entende a piada.

No mundo, há um riso compatível com o seu, uma alma gêmea de sua felicidade. Deve procurá-la. O que pode desagradar a uns pode agradar a outros. Existe um riso esperando você, tipo amor à primeira risada. Um riso fofo. Um riso gracioso. Um riso que você fará questão de provocar, que terá o poder de transformar o seu dia, que renovará a esperança do cuidado.

Ame o riso do pretendente antes de formalizar os laços, para ter vontade de ser sempre engraçado. Para nunca perder a animação. Para lembrar os bons momentos. Do contrário, irá preferir a tristeza para silenciar quem está ao seu lado.

CARPINEJAR

sábado, 4 de fevereiro de 2023


03/02/2023 - 16h28min
Fabrício Carpinejar

O maior tranquilizante

Ficamos com a impressão de que a voz dos pais acalma e enternece as crianças. Não eram as histórias que a minha mãe contava que me faziam dormir. Ficamos com a impressão de que a voz dos pais acalma e enternece as crianças. O sonífero não vem nem do timbre, muito menos dos enredos das obras infantis, mas da respiração pausada da leitura. A soletração materna provocava o meu sono na infância. Porque ela lia com tanta paciência que eu chegava a ouvir o seu silêncio, as suas longas pausas, as suas reticências.

As vírgulas e os pontos finais de cada frase me tranquilizavam, me davam abertura para desacelerar e fechar docemente as pálpebras. O sonífero não vem nem do timbre, muito menos dos enredos das obras infantis, mas da respiração pausada da leitura.

Assim como podemos apressar o cochilo de um bebê em nosso colo apenas respirando alto, sem a necessidade de cantigas de ninar. Assim como adormecemos junto do bebê na cama ouvindo o seu chiado manso de chaleira em fogo baixo.

Os cães, inclusive, nos procuram no quarto pelo mesmo motivo. Eles se aquietam aos nossos pés não pela quentura das cobertas e da nossa pele, mas ao escutar os acordes do nosso sono profundo.

Mais do que aplicativos de chuva ou de mar, o som da respiração derruba qualquer insone. Até porque o barulho de chuva e das ondas são derivados sequenciais da nossa respiração. É igual andamento monocórdio do inspirar e expirar, de dentro para fora, de fora para dentro. A repetição das ondas vindo e voltando ou das gotas quicando nas calhas são parte do grande nariz do universo.

Chego a essa conclusão porque não consigo trair a minha esposa assistindo a filmes ou a séries depois que ela dorme. Bem que eu tento consumar o adultério cultural e acabar o que comecei, mas meus ouvidos são invadidos pelos seu ronronar ao meu lado.

É irresistível. É implacável. É arrebatador. Supera a imitação do bocejo. Sua respiração no outro lado vai me hipnotizando, vai me serenando, vai me agasalhando. É um calor da existência amada que depõe as armas da adrenalina. Nem se eu buscasse um café, retardaria o meu desenlace.

Ergo as costas, pego mais um travesseiro e não adianta: logo estarei roncando de óculos, sentado, congelado na minha posição de vigília.  Entre o sono dela e o meu, deve existir a diferença de alguns minutos. Quando Beatriz apaga, o quarto realmente escurece. Eu sou influenciável pelo ritmo suave de suas narinas. É o meu maior tranquilizante, o meu melhor antidepressivo.

Por mais que lute contra o descanso, ainda o considerando uma perda de tempo, enredado numa crença adolescente que ainda não me desapeguei, por mais que queira me concentrar nas legendas da telinha, aquela melodia me embala e embaça os meus olhos.

Eu me sinto protegido sabendo que ela vive. É a sua vida que me enche de mansidão e me dá segurança para relaxar. Dormir não é um ensaio da morte, porém da confiança de um casal. Pois estamos sintonizados na frequência cardíaca, eu me vejo correspondido, guardado, acarinhado, aninhado. Eu pouso mais do que durmo. Ou talvez, com medo de dirigir os meus pesadelos de noite, eu venho tomando carona nos sonhos dela.


04 DE FEVEREIRO DE 2023
HISTÓRIA

CHIMANGOS E MARAGATOS

O ano de 2023 marca os cem anos da famosa Revolução de 23, ocorrida no interior gaúcho e que teve como protagonistas Flores da Cunha e Honório Lemes. Trata-se da última guerra genuinamente gaúcha. Fechou a tríade de confrontos internos entre sul-rio-grandenses, que teve início com a famigerada e exageradamente romantizada Revolução Farroupilha (1835-1845) e sequência, depois, com a violenta Revolução Federalista (1893), conhecida também como Revolta da Degola.

Um ano antes de estourar a Revolução de 23, os descontentamentos com a ditadura de Borges de Medeiros iam de fraudes nas eleições - Borges governava o Rio Grande do Sul há quatro mandatos seguidos, desde 1898 - à crise na classe pecuarista, que era marcada pela diminuição drástica das exportações de carne para o mercado europeu, devido ao fim da Primeira Guerra Mundial (1918). 

Assis Brasil, líder da oposição, anuncia sua candidatura ao governo, desafiando Borges, que tentava seu quinto mandato. As eleições ocorrem em um clima bastante tenso. Mais uma fraude nas urnas ocorre e Borges acaba reeleito, fato que torna a situação, já muito tensa, insustentável. Em 25 de janeiro de 1923, Borges de Medeiros toma posse ao som de gritos "é pau, é canzil, viva Assis Brasil". E estoura a Revolução.

Os revolucionários de 23 se organizaram em colunas, com seus respectivos líderes nas diversas regiões do Estado: Leonel Rocha (Norte), Felipe Portinho (Nordeste), Honório Lemes (fronteira Sudoeste), Estácio Azambuja (Centro Sul) e Zeca Netto (Sul). Esses grupos possuíam centenas de combatentes. A mais famosa e a que ocupou o maior número de cidades foi a Coluna do General Honório Lemes, o "Leão do Caverá", homem simples, tropeiro e exímio conhecedor do Pampa.

Honório Lemes não tinha o aspecto dos caudilhos tradicionais. Tratava qualquer soldado como um igual. O efetivo de sua tropa chegou a atingir cerca de 3 mil homens. Lemes era um chefe carismático. Usava um linguajar típico, era sagaz e inteligente, ditava as ordens com termos adequados, frases sóbrias ritmadas e pausadas, indicando uma espécie qualitativa da pontuação, mesmo sendo quase analfabeto. Seu amplo conhecimento do território pampeano deu a ele uma grande vantagem com relação aos seus perseguidores. Mês a mês, a Coluna Lemes foi ocupando cidades do interior do Rio Grande do Sul como Alegrete, Dom Pedrito, Quaraí, São Gabriel e Rosário do Sul, entre outras.

No entanto, em Uruguaiana, Lemes não obteve sucesso, pois o intendente da cidade à época era o perspicaz Flores da Cunha. Atento aos acontecimentos nas cercanias da cidade, ele previu a inevitabilidade da luta armada e preparou uma forte defesa nos limites municipais. Com o sucesso da defesa de Uruguaiana, Flores da Cunha foi destacado com incumbência de perseguir Honório Lemes e sua coluna. 

Em 14 de dezembro de 1923, após muitas batalhas e milhares de mortes em ambos os lados, chegou ao fim o último período de sangueira no Rio Grande do Sul. Os revoltosos que exigiam a deposição imediata de Borges de Medeiros tiveram de se contentar com tímidas alterações na constituinte do Estado. O Acordo de Pedras Altas, negociado por Assis Brasil, trazia para o Rio Grande, em troca de mais um período de governo de Borges de Medeiros (que terminaria em 1928), a proibição da reeleição, conforme o padrão federal.

A notável característica gaúcha da "peleia" mais uma vez foi posta à prova em 1923. A dicotomia nos mais diversos contextos evidencia nossa marca registrada: o gosto pelo confronto. É digna de destaque uma das frases de Honório Lemes, que, além de ser atemporal, revela-nos um pouco do modo de pensar desse carismático personagem da História do Rio Grande do Sul. Quando confrontado pelo ministro de Guerra, marechal Setembrino de Carvalho, o ministro interpelou-o:

- Mas afinal, o que é que os senhores querem?

Sem titubear, o inculto fazendeiro que chegara a general no curso da revolução respondeu:

- Não queremos homens que governem leis, e sim leis que governem homens.

? Menos violenta e mais curta do que as duas guerras locais que a antecederam, a Revolução de 1923 causou cerca de mil mortes, segundo historiadores, que costumam justificar o saldo menos sangrento, entre oturos fatores, à baixa participação popular no confronto.

? A divisão entre os grupos em guerra seguiu uma linha estabelecida anos antes: os correligionários de Borges de Medeiros usavam lenços brancos no pescoço e tinham o apelido de "chimangos". Os de Assis Brasil, com lenços vermelhos, eram os "maragatos".

? Ambos os termos tinham origem pejorativa, chimangos (às vezes gafado com "x") em referência a aves de rapina oportunistas e "maragatos" na tentativa de caracterizar uma identidade estrangeira ao grupo (a referência era uma região uruguaia colonizada por pessoas originárias da Maragateria, na Espanha).

? Uma curiosidade cultural associada à guerra é o livreto de poemas Antônio Chimango, de Amaro Juvenal. Trata-se de uma sátira a Borges de Medeiros assinada sob pseudônimo por seu desafeto Ramiro Barcellos e que circulou clandestinamente após tentativa de apreensão por parte do governante. Sua publicação original data de 1915, mas o livro ganhou fôlego com uma segunda edição, publicada justamente em 1923 - o ano do estouro do conflito. 

LEONARDO LEMES


04 DE FEVEREIRO DE 2023
LIVRO

A OBRA

Eu era criança e já ouvia falar sobre um médico, um tal Dr. De Patta, entrincheirado no hospital enquanto uma turba de moradores ameaçava incendiar o prédio de madeira na cidade onde nasci, Anta Gorda, que fica no Vale do Taquari e hoje tem cerca de 6 mil habitantes.

Não era tratado como fato histórico, desses que se estudam na escola, nem assunto recorrente entre os vizinhos no chimarrão tomado na calçada no fim de tarde. Mas volta e meia meu pai e seus compadres, quase todos nascidos na década de 1920, voltavam ao tema, como história ou como lenda, dependendo da fonte. E eis que, no início deste ano, me chega às mãos o livro O Leão da Calábria, de Nilson Luiz May, que tem como pano de fundo esse episódio que completa um século em 2023. Lançado em dezembro, o livro deve ter nova sessão de autógrafos em março.

May é médico, preside a Unimed Federação/RS e, além da medicina, tem um pé e tanto na literatura, com nove livros publicados. Atuou no Vale do Taquari e por lá cruzou com outro personagem da minha infância, o também médico Sérgio Paulo Bertoglio, falecido em 2022, aos 90 anos, e que clinicou em Anta Gorda entre 1968 e 1972 - Bertoglio é quem o teria ajudado nos contatos com fontes na cidade quando a ideia do autor ainda era escrever uma peça teatral. Queria produzir ficção baseada em histórias reais e viu ali um ótimo mote, mas, com pouca informação, abandonou a ideia por anos.

Ao revirar anotações, décadas depois, May encontrou aquelas sobre o Dr. Michele De Patta, médico calabrês que serviu como oficial na Primeira Guerra Mundial e se transferiu para o Brasil em 1920, 45 anos depois da chegada dos primeiros imigrantes italianos. Conta May, baseado em pesquisas da também médica Leonor Schwartsmann na obra Médicos Italianos no Sul do Brasil, que, como muitos outros, De Patta buscava novas fronteiras para exercer a profissão - à época, não era exigida a revalidação do diploma de Medicina. A descrição da pesquisadora sobre o episódio de Anta Gorda envolvendo De Patta e sua família e um relato do próprio médico - Leoni di Calabria in Terra Riograndense ("Leões da Calábria em terras rio-grandenses", em tradução livre), traduzido por uma de suas filhas, Igéa Lúcia De Patta Pillar, que escreveu Da Calábria ao Brasil: A História de um Médico Italiano - trouxeram os elementos de que May precisava para a sua narrativa.

Fora os nomes da família De Patta - além dele, emigraram para o Brasil a esposa Ersília, dois filhos e uma babá -, de cujos descendentes obteve autorização para usar o nome verdadeiro, o autor observa em uma nota no final do livro que todos os outros personagens ganharam nomes fictícios. Os principais são um professor, a secretária/enfermeira do médico, o padre, o intendente e um curandeiro. Na mesma nota, May adverte: "Recomendo (...) que seja lido como uma narrativa ficcional, tendo por pano de fundo acontecimentos reais".

Do confronto entre De Patta e o padre da comunidade, a versão sempre ouvida de meus conterrâneos, meus poucos conhecimentos históricos então vinculavam aquela batalha a alguma das escaramuças da Revolução de 1923, última guerra civil em território gaúcho que colocava de um lado os chimangos de Borges de Medeiros e os maragatos de Assis Brasil. May fez uma pesquisa minuciosa da época, tanto de acontecimentos quanto de costumes, mas não menciona diretamente a Revolução de 1923. Revela, mais do que tudo, uma dualidade entre a ciência, representada pelo médico e pelo professor, e o desconhecimento de novas práticas, simbolizado pelo curandeiro e pelo padre, além da truculência de autoridades, traduzida na pessoa do intendente. Os mais de 200 colonos que sitiam no hospital o médico e sua família, o professor e a secretária, além de uns poucos pacientes, servem de massa de manobra naqueles tempos de desinformação e violência.

O que aconteceu naqueles três dias de tensão e resistência? Bom, isso ficou para a imaginação do autor e fica agora para a sua leitura. Conto só a sequência: De Patta e a família saíram dali para Porto Alegre e para outras cidades do Interior até se estabelecer em Santa Catarina, onde o médico morreria em 1946. Para mim, restou o gosto de ver eternizado algo que de tempos em tempos voltava à minha memória e um certo arrependimento por não ter dado a devida importância a uma história passada, literalmente, no meu quintal.

O Leão da Calábria

De Nilson Luiz May.

Scriptum Produções Culturais, 296 páginas, R$ 60. Disponível em scriptumpc.com.br, na Martins Livreiro da Rua Riachuelo, em Porto Alegre, e em breve em outras livrarias 

ROSANE TREMEA

04 DE FEVEREIRO DE 2023
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA

O Brasil não é terra fácil para escritores, e o status de fenômeno literário ainda surpreende a publicitária Carla Madeira, 58 anos. Belo-horizontina, ela virou best-seller quando seu primeiro livro, Tudo É Rio (2021), foi relançado pela Record, uma das maiores editoras do país, depois de iniciar a carreira por um selo independente.

A narrativa apresenta o triângulo amoroso formado pelo casal Dalva e Venâncio e a prostituta Lucy, com um componente trágico. Seguiram-se à estreia Véspera (2021) e A Natureza da Mordida (2022), também com episódios brutais. Somados, os livros já venderam 263 mil exemplares.

- A força está no leitor. O acontecimento do livro é no leitor. Por que ele faz um livro acontecer? Porque foi tocado em questões que já estavam dentro dele - comenta a autora nesta entrevista concedida por telefone a Zero Hora.

VOCÊ É UMA AUTORA QUE CONQUISTOU GRANDE SUCESSO DE PÚBLICO EM UM MERCADO LITERÁRIO DIFÍCIL COMO O BRASILEIRO. COMO SE SENTE?

Fico superfeliz. Foi um acontecimento para mim a força que os livros ganharam com o leitor. Sinto uma alegria e uma troca muito grande com as pessoas que leem, com a ressonância das pessoas, ao ver como o livro mexeu com elas. As pessoas me dão muita notícia disso. Tem sido uma jornada intensa de reflexão, de troca, de aprendizado. Às vezes, fico surpresa também com a dimensão que a coisa tomou, mas tem sido incrível, muito bom.

A CRÍTICA TAMBÉM SE DETÉM NA SUA PRODUÇÃO, MESMO QUE NEM SEMPRE COM COMENTÁRIOS ELOGIOSOS O QUE NÃO DEIXA DE SER UM COMPONENTE PARA O SUCESSO, JÁ QUE VOCÊ ATRAI TAMBÉM O LEITOR QUE QUER TIRAR A PROVA, VER SE GOSTA OU NÃO GOSTA. DE QUE FORMA LIDA COM AS AVALIAÇÕES NEGATIVAS?

Estou aprendendo, também. Na época da primeira crítica negativa de Tudo É Rio, talvez até a única mais contundente, sofri. Discordei de alguns pontos que são caros para mim, como a profundidade dos personagens, as camadas que percebo. E, principalmente, por perceber o não maniqueísmo, por ter trabalhado muito com o desejo de construir personagens que não fossem maniqueístas, que fossem capazes do bem e do mal. Vejo uma ressonância muito forte de muitas pessoas ligadas à literatura, à psicanálise. A turma da psicanálise trabalha muito com meus livros. 

Então me assustei, porque a crítica não batia com a ressonância que eu estava vivendo. Esse foi um aspecto que me incomodou. Na época, achei (essa crítica) preconceituosa, julgando o leitor, como se o diminuísse. Me incomodou muito essa visão. Sou publicitária, trabalho com comunicação, e a literatura é um espaço de liberdade. Sou livre para achar o que quiser, não quero fazer literatura preocupada com o que as pessoas vão achar porque a publicidade já é isso, né? Tem que trabalhar com briefing, atendendo expectativas. E a literatura, para mim, não é esse lugar. Como vou proteger esse lugar de liberdade? Como não ficar afetada no sentido de me preocupar se vão gostar ou não? Esse foi um sinal de alerta que essa crítica acendeu. A polêmica é saudável, é um espaço de subjetividade.

TUDO É RIO, SEU MAIOR SUCESSO, FOI LANÇADO PELA PRIMEIRA VEZ EM 2014, POR UMA EDITORA INDEPENDENTE. O TEXTO HAVIA FICADO 14 ANOS PARADO, INCONCLUSO, ATÉ QUE VOCÊ O RETOMASSE. O QUE MOTIVOU ESSE HIATO?

Comecei muito despretensiosamente. Na agência, sou diretora de criação, trabalho muito com a parte de redação, criando filmes, anúncios. Dei aula de redação publicitária na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Eu já tinha essa coisa de escrever e estava sentindo falta de fazer algo mais autoral. Comecei. Era outro começo. Começava pela história das três Marias. Entrei na segunda parte com Lucy. Pretendia cruzar as duas coisas. Entrou em cena a violência do Venâncio contra a mulher e o filho. Uma coisa brutal (o marido bate na mulher e arremessa o bebê longe). E foi realmente brutal para mim. Eu não conseguia sair da situação. Fiquei impressionada por ter escrito e não tinha recurso para seguir. Parei ali. Fiquei 14 anos com aquilo ali guardado.

SEUS FILHOS NASCERAM NESSE PERÍODO.

Acho que essa paralisia teve um pouco a ver com o fato de estar querendo engravidar. Parei e fui viver a vida, tive meus filhos, estava já no segundo casamento. Toquei. Mas aquilo sempre voltava, sempre vinha uma cena ou outra. Quando resolvi voltar, voltei pelo quarto capítulo, que é uma palavra só (Dor). Foi muito simbólico, para mim, fazer um capítulo com uma palavra só. Foi uma síntese do que tinha vivido com aquela brutalidade.

COMO VOCÊ CONCILIOU A CARLA QUE COMEÇOU O LIVRO E A QUE DEU CONTINUIDADE À ESCRITA TANTO TEMPO DEPOIS? ERAM CARLAS MUITO DIFERENTES?

Acho que sim. A experiência da maternidade é muito transformadora para uma mulher. A partir dali, foram muitos acontecimentos pessoais, filhos, casamento. Teve uma vivência muito intensa. Acho que, sem essa maturidade, eu não escreveria isso que escrevi.

FALANDO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E PROSTITUIÇÃO, TUDO É RIO SE SOMOU A UM FENÔMENO RECENTE DE AUTORES COM DIVERSIDADE DE VOZES E TEMÁTICA DE IDENTIDADES POUCO REPRESENTADAS VAMOS CITAR AÍ ITAMAR VIEIRA JUNIOR E JEFERSON TENÓRIO, DOIS OUTROS GRANDES SUCESSOS. A QUE ATRIBUI ESSA TENDÊNCIA?

Acho que tem uma conversa, primeiro, de fugir de uma coisa muito urbana. Há um outro Brasil, mais profundo, que surgiu na literatura. Acho que a questão da mulher, da sexualidade feminina, da violência, levanta questões que já estão dentro das pessoas. Elas já estão pensando, elaborando. Questões identitárias, do feminino, do racismo, da violência doméstica, das minorias, são questões que estão sendo pensadas em todo momento, em todo lugar, em todas as conversas. Estão aí. E acho que o livro vem ajudar a colocar na mesa, a pautar. A força está no leitor. O acontecimento do livro é no leitor. E aí a pergunta é: por que o leitor está fazendo esse livro acontecer? Porque ele foi tocado em questões que já estavam dentro dele. Tenho essa hipótese.

O TEMA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER TEM UM COMPONENTE AUTOBIOGRÁFICO, DA SUA FAMÍLIA.

Minha mãe tinha um irmão que teve vários episódios de violência física contra a mulher. A mesma mulher. A família ficava revoltada com ele, se posicionava, tentava fazer uma rede de apoio para ela, ajudá-la a romper, a sair daquilo. Ela não conseguia fazer esse movimento. Ela começava, nos primeiros dias, saía, mas voltava para ele. Ela tinha uma paixão, uma coisa louca, que ela nomeava como paixão. Eu via a família não dar conta de ela não dar conta de se separar. Eu ouvia comentários do tipo: "Gosta de apanhar", "Tá vendo? Mulher de malandro". 

Lembro que, uma vez, vi um começo de briga e o desespero, o pavor, o sofrimento no rosto dela. Fui para a casa da minha avó, que era ao lado, chamar a família para intervir. Eu ficava muito chateada de ouvir as pessoas falarem "mulher de malandro gosta de apanhar" porque claramente não era isso. Tentava entender por que ela não ia embora. Não era falta de uma rede de apoio. Por que ela não ia? Era uma coisa dela, do tempo dela, que a colocava em risco. Isso me marcou muito. Acho que a família acrescentava sofrimento ao sofrimento dela com a cobrança para que ela desse conta de uma coisa de que ela não dava conta. Como é que a gente podia ajudá-la? É lógico que estou falando em retrospecto, eu não tinha isso tão elaborado.

CLARO, É UMA ANÁLISE DE MUITO TEMPO DEPOIS.

Sabe que aconteceu a mesma coisa com Véspera? Quando escrevi, nem lembrava de um acontecimento que vivi com meu pai. Fui lembrar muito tempo depois, nos clubes de leitura. Ele era matemático, dava aula na UFMG, e eu fazia Matemática lá. Ele estava me esperando na saída da universidade. Cheguei no carro e ele estava muito emocionado. "Acabei de ouvir uma notícia no rádio de que uma mulher estava num ônibus com o filho, ela desceu, deixou o menino do lado de fora, subiu no ônibus e foi embora." Ele estava muito comovido pelo ponto de vista do menino. "Tadinho desse menino. Ele confia nessa mãe, que dor ele deve ter sentido." O que me intrigou foi essa mulher. O que aconteceu para ela ser capaz de largar um filho? É o que acontece em Véspera. Acho que a gente escreve com uma dose muito grande de inconsciente. Acho que o autor, quando escreve, e o artista, de maneira geral, leva com ele uma camada de inconsciente muito forte.

VÉSPERA É O LIVRO DE SUA AUTORIA DE QUE MAIS GOSTO, COM ESSE TEMA BRUTAL: O ABANDONO DE UMA CRIANÇA PELA MÃE. COMO FOI O PARTO DESSA HISTÓRIA?

Essa questão da maternidade atravessa todos os meus livros. Família, esse primeiro lugar onde a gente começa a ter nossas primeiras noções civilizatórias. No núcleo familiar ou na ausência de um núcleo familiar, é onde a gente começa a lidar com essas potências que temos, de bem, de mal. Me interessa muito. O nascimento de Véspera é fragmentado. Teve a ideia desse acontecimento inicial, do abandono, que conversava muito com a história de Caim e Abel. É a primeira história, pelo menos da matriz ocidental que vem com a Bíblia, de rejeição. Deus rejeita uma oferenda de Caim. Acho que esses dois movimentos começaram meio juntos: a mãe exausta, que está por um triz, essa coisa do triz, um centímetro em que você não segura a loucura, a violência. O que faz aquela pessoa ultrapassar essa linha? Ela cruza o limite. Está exausta. Queria investigar isso sem já condená-la. Fiquei sabendo de um crime na Alemanha de uma mãe com três meninos. Ela estava cozinhando, um deles chorando, aquela pressão. Um menino estava agarrado na perna, e ela deu tipo um coice. 

O menininho voou longe, bateu a cabeça e morreu. Lembro de uma amiga da Alemanha me contar esse caso e eu ficar com uma compaixão imensa por essa mãe. Acho que a maternidade põe muitas sobrecargas na mulher. Ela tem que dar conta de tudo e ainda encarar, às vezes, um casamento violento, que é o caso da personagem. Toda essa carga... Que limite é esse? Logo ela se arrepende, mas aí já foi, já foi. É um corpo exausto que rompe o limite. Essas questões me impressionam muito e sinto vontade de pensar sobre elas.

PELA ORDEM DE ESCRITA, VÉSPERA É O MAIS RECENTE. VOCÊ CONSIDERA O SEU TRABALHO MAIS MADURO COMO ESCRITORA?

Sim. João Cabral de Melo Neto falava que o autor escreve com duas possibilidades: ou para jorrar, transbordar, ou para preencher. Tudo É Rio foi um transbordamento. Escrevi na ordem em que o leitor lê, escrevi de forma visceral. Tem um narrador com uma linguagem muito presente, poética. Véspera já tem o aprendizado da contenção. Aprender a contenção, que não precisa estar tudo ali é, na literatura, um certo nível de maturidade.

A NATUREZA DA MORDIDA (O SEGUNDO A SER ESCRITO E O ÚLTIMO A SER LANÇADO) TAMBÉM TEM UM COMPONENTE MUITO FORTE, ALGO QUE FICA MAIS CLARO SÓ RUMO AO FINAL. O QUE PODE FALAR DO ENREDO, QUE ENVOLVE DUAS MULHERES, BIÁ E OLÍVIA, QUE VÃO REVELANDO E ESCONDENDO, EM CERTA MEDIDA SUAS DORES?

Tenho um carinho enorme por esse livro. E agora, com a revisão que fiz, acho que ficou do jeito que eu queria. Não é que tenha mudanças muito grandes. A Natureza tem uma amizade e também um processo de análise que ocorre ao longo da história. Tem uma pergunta que fiz para o meu psicanalista na época: "O que um psicanalista não pode esquecer que enquanto ele não tiver esquecido ele ainda é um psicanalista?". A Biá está com demência, mas ainda atua como psicanalista com a Olívia. Ela ajuda a Olívia, acontece uma transferência, um processo. 

Tem uma coisa interessante: essa psicanalista, capaz de lidar com os sonhos do outro, não consegue ajudar o marido a resolver o que acontece com ele: tensões eróticas com a filha. Tem uma momento que me comove muito em que ela fala que "é difícil ser mãe de minha filha quando ela não está no meu colo", quando a gente está com os pés na linha da largada, uma do lado da outra. Ou seja, quando competimos como mulher. É o que acontece quando o marido começa a sonhar com a filha. Ele não quer, também fica apavorado com aquilo, está tendo sonhos eróticos com a filha. Vai embora para protegê-la. "Você não tem culpa, mas tem corpo", essa é a grande frase da história. Essa é a frase que Biá fala para a filha quando a pega nua em casa, bate nela e diz para nunca mais fazer isso.

MAS ACHO QUE NEM TODO LEITOR SE DÁ CONTA DO QUE ESTÁ TOMANDO FORMA ALI.

Tem muita gente que, na conversa entre pai e filha, ainda fica com dúvida. É interessante perceber o quanto o incesto é um assunto interditado. Uma das primeiras pessoas que leram, ainda no manuscrito, era muito ligada à literatura. Ele me entregou o livro, nos encontramos para conversar, e ele estava completamente tomado porque viveu essa situação na família. 

Mas eu acho que A Natureza é isso. Tenho gostado muito das trocas que tenho tido. Foi meu livro mais trabalhoso porque eu tinha uma personagem que narrava a história de uma certa maneira, a Biá, com as anotações, e ela é uma psicanalista, que eu não sou. Foi trabalhoso entrar naquilo, descobrir aquela linguagem. Depois tive uma professora de literatura que fez um artigo maravilhoso em que fala que fiz uma coisa muito difícil. Essas duas vozes são muito diferentes, sem cacoete. Você sabe quando é Olívia e quando é Biá. Pelo jeito de falar, pelo viés da psicanálise, pela linguagem de cada uma.

O SILÊNCIO É QUASE UM PERSONAGEM NAS SUAS NARRATIVAS. ESTÁ PRESENTE NA VINGANÇA, NA PUNIÇÃO, NO AFASTAMENTO, NA LOUCURA. PODERIA COMENTAR ESSE ASPECTO?

Tudo É Rio, apesar de ter o silêncio como punição de Dalva (a Venâncio), o narrador é onisciente do início ao fim. Tudo é revelado, toda a dor dela é revelada, mesmo ela fazendo silêncio em relação a Venâncio, mas nada dela fica sem ser conhecido. A dor dela é profundamente conhecida. O narrador é muito onisciente. E mais do que isso: ele se mistura com as personagens. Ele é contaminado pela história que está narrando. Tem uma linguagem mais crua quando vai falar de Lucy, tem uma linguagem mais poética ao contar de Dalva, e vai sendo contaminado. Às vezes, sem travessão, a personagem fala misturada com a voz do narrador. Então, eu saí de Tudo É Rio pensando: quero escrever um livro com silêncio. Pensei muito sobre isso, com muita consciência. 

O que é fazer silêncio ao escrever? E em A Natureza isso me atravessou muito, foi muito consciente. Você falar um pouquinho sobre uma questão e deixar ali, em silêncio, para o leitor, sem tocar naquilo, e você retoma mais na frente. Então, de fato, foi uma investigação muito forte sobre o silêncio. Em Tudo É Rio, não considero que tenha esse silêncio. Tem esse ato de silêncio de um personagem, na punição, mas, na história mesmo, tudo está posto. Ali não tem contenção. É um rio mesmo, correnteza, você muitas vezes é arrastado, não consegue parar de ler. Saí dele falando que não queria mais essa linguagem, não queria a escrita poética. Fui para A Natureza de outro jeito. Até falei: quero fazer um livro que as pessoas queiram ler, fiquem presas, mas que não tenha nada para ser grifado.

O INSTAGRAM ESTÁ CHEIO DE PÁGINAS COM FRASES SUAS GRIFADAS (RISOS).

As pessoas falam: "Ah, você não conseguiu, não". Olívia é tão objetiva, aquela linguagem de jornalista... Não consegui, mas é bem diferente (risos).

SEU PRÓXIMO LIVRO JÁ ESTÁ EM PROCESSO DE ELABORAÇÃO. O QUE PODE ADIANTAR?

Está tão caótico. Tem uma coisa que está me provocando. Até já mudou um pouco... Tem a figura de uma criança no meio de uma situação complexa. Mas tenho pensado, tenho anotado, cheguei a fazer uns dois capítulos. Estou ainda querendo achar um jeito de narrar, a forma. Tenho escrito contos. Vou lançar um na Vogue, inédito. Fiz um conto inédito para um livro da Record, outro para o Instituto Moreira Salles. Meus contos têm uma veia de humor, têm ironia. Acho que isso também está nos meus livros. Véspera tem um pouco disso, apesar da história triste. Uma linguagem mais livre, irônica, certa liberdade com as palavras. A ludicidade da linguagem faz um contraponto. Não sei se você percebe isso. (Sobre o próximo livro) Pode mudar. Ano passado, vivi coisas muito difíceis. Perdi minha mãe, perdi meu psicanalista. 

Minha sócia, que é tipo uma irmã, teve que se afastar por problemas de saúde e ainda não voltou. Ainda não sei se estou com energia para me jogar em uma empreitada dessas. Levei três anos e meio escrevendo A Natureza, três anos escrevendo Véspera e, eu brinco, 14 anos e oito meses escrevendo Tudo É Rio. Em Tudo É Rio, quando voltei, escrevi diariamente. Em Véspera e A Natureza, tive uns intervalos. Fiz uma viagem para buscar minha filha que fez intercâmbio na Bélgica e parei de escrever por um mês. Mas estava anotando, estava em processo de escrita. Nesse sentido, eu realmente já estou escrevendo um novo livro. Estou diariamente pensando nessas personagens que já apareceram, nas histórias, no modo de falar delas. Já tem um bom tempo. Deve ter quase um ano...

ENTÃO FALTAM DOIS, PELO MENOS (RISOS).

Isso mesmo!

LARISSA ROSO

Homem acumula flagrantes de crimes ambientais no país

Há pelo menos oito anos, um homem percorre estradas brasileiras carregando ilegalmente pássaros em condições degradantes. Jabutis e galos também. Ele já sofreu ao menos nove abordagens da Polícia Rodoviária Federal (PRF), além de registros feitos pelas polícias militares. Só no Rio Grande do Sul, foi flagrado três vezes pela PRF.

Pelo menos 1.042 animais já foram apreendidos com o homem - alguns, já estavam mortos no momento do flagrante. ZH apurou que Joelson Cardoso Durval reúne ocorrências policiais ou processos por crimes ambientais em cinco Estados: além do Rio Grande do Sul, Bahia, São Paulo, Pernambuco e Piauí.

A história do baiano Joelson, 50 anos, é um exemplo de quando o crime compensa. Quem afirma isso é o promotor Alexandre Saltz, da Promotoria de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre. Ele faz uma crítica direta à Lei de Crimes Ambientais, de 1998, que, ao prever pena branda para esse tipo de situação, permite série de benefícios ao suspeito, alimentando essa repetição criminosa.

Até ser processado e condenado - a uma pena de no máximo um ano e que, portanto, não o levará à prisão -, o suspeito tem duas possibilidades de benefícios. O primeiro é a transação penal, que é um acordo com o Ministério Público em que a pessoa recebe pena antecipada privativa de direito ou multa. Se os termos forem cumpridos, a punibilidade é extinta.

Depois, mesmo já tendo sido beneficiado com transação penal, se for novamente processado, o réu tem direito à suspensão condicional do processo. Neste caso, a suspensão é ofertada junto à denúncia, desde que o acusado preencha requisitos. O processo fica suspenso pelo prazo de dois a quatro anos. Se as condições tiverem sido cumpridas, depois desse prazo a punibilidade é declarada extinta.

Legislação

A Lei de Crimes Ambientais sofreu modificação em 2020 e teve aumentada a punição para quem comete maus-tratos contra cães e gatos, o que impede a aplicação dos benefícios de transação e suspensão do processo. A pena, neste caso, é de dois a cinco anos de reclusão, multa e proibição da guarda do animal. Em caso de morte do bicho, a pena pode ser aumentada.

Dessa forma, a legislação criou um desequilíbrio na proteção aos animais, como se o bem-estar de cavalos ou pássaros, por exemplo, fosse menos importante do que o de cachorros e gatos.

Saltz destaca outra grande dificuldade para a responsabilização em casos como o de Joelson: a falta de um sistema nacional de informações sobre ocorrências policiais e até procedimentos judiciais. Até ZH procurar a Promotoria de Defesa do Meio Ambiente para saber o andamento de expedientes relacionados a Joelson no Rio Grande do Sul, o MP gaúcho desconhecia os flagrantes dele em outros Estados. ZH apurou as ocorrências no país com base em registros da Polícia Rodoviária Federal.

- Para termos acesso aos antecedentes policiais ou judiciais de alguém em outro Estado, tem de fazer solicitação formal, não tem sistema com esse dado disponível, e isso leva tempo - explica Saltz.

ADRIANA IRION 


04 DE FEVEREIRO DE 2023
CONSELHO EDITORIAL

PINTANDO A ALDEIA

Com alguma dose de razão, colegas de Rio e São Paulo caçoavam de mim, então diretor de Redação, sobre como Zero Hora noticiaria que um cometa aniquilaria o planeta no dia seguinte. Enquanto a maioria diria que o mundo seria extinto, a manchete de ZH, segundo a zoeira deles, seria: "O Rio Grande do Sul acaba hoje".

Noves fora a brincadeira, o fato é que a fórmula de sucesso da RBS na comunicação inclui, desde sua fundação, a alquimia de saber identificar e tratar de temas locais com qualidade, credibilidade, profundidade e atratividade, e entregar esses conteúdos aos públicos conforme suas esferas de interesse. "Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia", sintetizava, com toda a propriedade, o escritor russo Leon Tolstói.

Um breve exemplo dessa convicção. Três dos maiores cronistas da RBS, já falecidos, construíram legiões de admiradores porque souberam ser universais falando de e no Rio Grande do Sul. O Bom Fim de Moacyr Scliar, o IAPI de David Coimbra e o entorno de Lupicínio Rodrigues expressado por Paulo Sant?Ana traduzem bem essa capacidade de enxergar o todo a partir da perspectiva local e transformá-la em visões únicas e globais.

O dilema de ser regional mas ao mesmo tempo universal e cosmopolita, sem resvalar para o provincianismo, permeia boa parte das discussões do Conselho Editorial da RBS. Uma palavra-chave para se perseguir essa linha editorial é singularidade. Os veículos da RBS nunca terão a melhor posição para cobrir o impacto econômico da covid-19 na China, mas devem ser os mais capacitados a entender e explicar como as perspectivas da economia chinesa afetam os ciclos econômicos gaúchos e a vida dos cidadãos comuns por aqui.

Com a lógica de cobrir os acontecimentos pela ótica gaúcha, cabe à RBS também estar presente nos locais e momentos decisivos do Brasil e do mundo. É por isso que a RBS investe no acompanhamento de jogos da Seleção, Olimpíadas, guerras e outros eventos marcantes, além de manter, há décadas, uma presença em Brasília, recentemente reforçada por Rodrigo Lopes. Quem quer que represente olhos e ouvidos dos gaúchos tem de saber cada vez mais pintar sua aldeia e ser ao mesmo tempo universal.

MARCELO RECH

04 DE FEVEREIRO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

A ADVERTÊNCIA DO BANCO CENTRAL

Ficaram menores as chances de o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) dar início, ainda neste ano, a um novo ciclo de cortes da taxa Selic. Se isso de fato se confirmar nos próximos meses, reduzem-se também as possibilidades de a economia brasileira, em desaceleração, reagir em um ritmo mais forte. O desfecho, neste cenário, seria um PIB inferior a 1% em 2023, como projeta hoje o mercado, o que, por certo, afetaria inclusive a popularidade do governo Luiz Inácio Lula da Silva.

O comunicado do Copom, após o colegiado confirmar na quarta-feira a manutenção do juro básico do país em 13,75% ao ano, foi um recado claro para o Palácio do Planalto. Além do cenário externo nebuloso, ainda há "elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país e estímulos fiscais que implicam sustentação da demanda agregada". Mais do que diminuir as esperanças de corte da Selic neste ano, o BC alertou que poderá até elevar novamente a taxa caso os índices de preços e as expectativas não tenham a trajetória esperada.

Seria proveitoso se o governo, especialmente o presidente Lula, compreendesse que ruídos desnecessários também têm consequências reais. Ao sinalizar aumento dos gastos públicos, criticar as metas atuais de inflação e atacar a autonomia do Banco Central, o Planalto sinaliza que pode ser leniente no combate ao dragão que ao fim devora justamente a renda dos mais pobres e, no futuro, tentar uma redução do juro na marra, uma experiência com resultados desastrosos há não muito tempo.

Mesmo que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, venha se esforçando para amenizar declarações do presidente, não há certeza sobre qual postura irá preponderar. O resultado é o contrário do desejável. As expectativas de inflação vêm subindo e, com isso, não há espaço para o Copom indicar corte da Selic. 

O presidente da República, em entrevista veiculada na noite de quinta-feira, voltou a colocar em dúvida a autonomia formal do BC no futuro. Como se poderia esperar, os juros futuros tiveram alta expressiva na sexta-feira, em um cenário também afetado por componentes externos. Isso conduz a crédito mais caro, o que é péssimo para os investimentos produtivos e para os endividados, com reflexos em uma atividade econômica mais débil. Mas é o paraíso para os rentistas tão criticados por Lula, que ganham com as aplicações seguras vinculadas ao juro.

Lula fez, especialmente em seu primeiro mandato, um governo que soube conciliar responsabilidade fiscal com cuidado social. Seria positivo se seguisse o que deu certo, e não a fórmula causadora de uma profunda crise nos anos seguintes. Na terça-feira, em reunião na Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Haddad pediu um voto de confiança do mercado e prometeu uma regra fiscal "crível e exequível", a ser apresentada até o final de abril, para em seguida ser analisada pelo Congresso. 

Os brasileiros almejam uma economia crescendo de forma sustentável, a continuidade da melhora do mercado de trabalho e o controle da inflação, junto à queda dos juros. Enquanto aguarda-se para conhecer a proposta da nova âncora fiscal do país, o ideal seria o presidente evitar ruídos que apenas tornam mais pedregoso o caminho para alcançar o cenário desejável.

sábado, 28 de janeiro de 2023


28 DE JANEIRO DE 2023
PÓS-CREDITOS

A EXCELÊNCIA DO EXCESSO

Babilônia (Babylon, 2022), em cartaz nos cinemas de Porto Alegre, é um filme sobre excessos e um filme excessivo. Essa combinação mostrou-se repulsiva à maioria dos críticos e também ao público - apesar de trazer os nomes de Margot Robbie e Brad Pitt à frente do elenco, o título sobre a Hollywood das décadas de 1920 e 1930 escrito e dirigido por Damien Chazelle foi um fracasso comercial nos Estados Unidos: nas bilheterias, arrecadou menos de US$ 15 milhões, quantia que não paga nem 20% do orçamento.

Na temporada de premiações, faz um pouco mais de sucesso. No Globo de Ouro, ganhou em música original, composta por Justin Hurwitz, e disputou as categorias de melhor comédia ou musical (embora não seja nem uma coisa nem outra), atriz, ator (Diego Calva) e ator coadjuvante; no Critics? Choice, venceu em design de produção, assinado por Florence Martin e Anthony Carlino, e concorreu a outros oito troféus; compete como melhor elenco no SAG Awards, do Sindicato dos Atores dos EUA, e recebeu três indicações ao Bafta, da Academia Britânica: design de produção, figurino (Mary Zophres) e trilha sonora. São as mesmas categorias no Oscar, que não deu a onipresença merecida por Babilônia e nitidamente desejada por Chazelle.

Alçado à condição de jovem prodígio quando lançou, com 29 anos, Whiplash: Em Busca da Perfeição (2014), pelo qual conquistou o Oscar de roteiro adaptado, o cineasta estadunidense já havia celebrado Hollywood em La La Land: Cantando Estações (2016). O musical estrelado por Ryan Gosling e Emma Stone igualou o recorde de indicações à estatueta dourada estabelecido por A Malvada (1950) e Titanic (1997). Das 14, venceu seis, incluindo melhor direção - Chazelle é o mais jovem ganhador da categoria (tinha 32 anos e 38 dias na data da premiação).

O espectador de Babilônia pode reconhecer características de La La Land, de Whiplash e também de O Primeiro Homem (2018), sobre o astronauta Neil Armstrong. Novamente, Chazelle conta uma história sobre dois jovens que perseguem o sucesso em Los Angeles - outra vez, temos uma aspirante a atriz, Nellie LaRoy, papel da australiana Margot Robbie, indicada ao Oscar de atriz por Eu, Tonya (2017) e ao de coadjuvante por O Escândalo (2019), e se não um pianista, temos um cara que carrega o piano, o faz-tudo Manny, interpretado pelo mexicano Diego Calva. Novamente, sonhos podem se tornar perigosas obsessões. Novamente, o cineasta busca sincronizar som e imagem, em uma simbiose alucinante orquestrada em parceria com seus colaboradores habituais: o editor Tom Cross e o compositor Hurwitz - autor de um tema absolutamente empolgante e totalmente contagiante, que parte da instrumentação de uma banda de jazz dos anos 1920 mas acrescenta toques de rock e música eletrônica.

O público também deve identificar semelhanças com o clássico Cantando na Chuva (1952) e o oscarizado O Artista (2011), afinal, esses três filmes abordam a complicada transição do cinema mudo para o cinema sonoro em Hollywood. A trama de Babilônia vai de 1926 a 1936, com um epílogo justamente em 1952. Para contextualizar a época, desenvolver os dramas dos personagens e reconstituir o impacto das transformações tecnológicas, Damien Chazelle adotou uma duração que uns encaram como exagerada - são três horas e nove minutos -, mas bem normal na comparação com outros filmes de destaque nas premiações e nas bilheterias: Avatar: O Caminho da Água tem 192 minutos; RRR, 187; Batman, 176; Pantera Negra: Wakanda para Sempre, 161; Elvis, 159; Tár, 158; Os Fabelmans, 151; Triângulo da Tristeza, 147; Nada de Novo no Front, 143; Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, 139; Top Gun: Maverick, 131.

Elefante

De qualquer forma, exagero é a palavra adequada tanto para definir Babilônia quanto a Hollywood daqueles tempos. Logo na primeira cena, o filme avisa sobre o que vem pela frente. No meio do deserto californiano, enquanto três homens tentam transportar um elefante em uma carreta, um deles acaba levando um banho de fezes do animal. Não haverá pudor em mostrar a orgia regada a álcool, cocaína e urina realizada na mansão do produtor cinematográfico Don Wallach, dono do fictício estúdio Kinoscope, festa em que o tal elefante é aguardado para ser uma surpresa literalmente de peso. Não haverá pudor nem limite: dezenas, talvez centenas de atores e figurantes participaram dos 10 dias de filmagens da festança. Chazelle demonstra ter absoluto controle sobre o caos, ora apostando em intrincados planos-sequência comandados pelo diretor de fotografia sueco Linus Sandgreen, para ilustrar a suntuosidade do ambiente, ora investindo em inúmeros cortes para traduzir a atmosfera febril.

Se as festas eram extravagantes, o trabalho era turbulento e arriscado. Antes de O Cantor de Jazz (1927), como o som ainda não importava, vários filmes podiam ser rodados ao mesmo tempo ocupando diferentes espaços do mesmo set: um faroeste aqui, um épico de capa e espada ali, um drama contemporâneo acolá. Outra vez, Chazelle consegue colocar o espectador dentro de um cenário confuso e nervoso sem jamais perder o foco, o objetivo.

O que não é exagerado em Babilônia é o número de personagens. Os principais são apenas três. Nellie e Manny compartilham a mesma ambição: querem estar em um set de filmagem - "o lugar mais mágico do mundo", como dirá alguém -, ela à frente das câmeras, ele, nos bastidores.

A suburbana Nellie atravessou o país (veio de New Jersey) a bordo de uma autoconfiança - "Ninguém se torna uma estrela. Ou é ou não é"- forjada por anos e anos de penúria e desprezo. De origem mexicana, Manny tem como trunfos um otimismo quase inabalável e sua capacidade de resolver as coisas. Por isso, acaba sendo empregado por Jack Conrad, um astro do cinema mudo inspirado em John Gilbert e Douglas Fairbanks, entre outros, e encarnado por Brad Pitt, vencedor do Oscar de coadjuvante por Era uma Vez em Hollywood (2019). Jack está sempre bebendo e trocando de esposa. Nos momentos de sobriedade, tece reflexões sobre o encantamento exercido pelas salas de cinema: "Filmes são mais importantes do que a vida. Filmes fazem você sentir. Filmes mostram que você não está sozinho!".

Ao redor desses três personagens, gravitam três coadjuvantes importantes. Lady Fay Zhu (Li Jun Li) é uma cantora andrógina. Sidney Palmer (Jovan Adepo) é um trompetista negro. Elinor St. John (Jean Smart, multipremiada pela série Hacks) é uma jornalista de fofocas. Somadas às histórias de ascensão e queda de Nellie, Manny e Jack, suas trajetórias ajudam a exemplificar a volatilidade de Hollywood e como o talento e o estrelato não protegem do moralismo e do racismo.

Pois é: apesar de se passar quase um século atrás, Babilônia não deixa de refletir sobre a Hollywood de hoje, igualmente pressionada a lidar com uma transformação de teores tecnológicos e mercadológicos - o avanço das plataformas de streaming, impulsionado durante os anos da pandemia de covid-19. E a descida ao inferno conduzida pelo assombroso personagem interpretado por Tobey Maguire parece apontar para o que seria o futuro, portanto, o presente da indústria cinematográfica: os tipos grotescos, a pirotecnia e a depravação daquele submundo de Los Angeles podem ser um espelho da hegemonia dos super-heróis, dos efeitos visuais e do apelo sexual das celebridades atuais.

Mas o desencanto convive com a esperança no filme. Por mais que haja tensão e tragédia, por mais que nos mostre como a glória e a destruição podem andar lado a lado, Damien Chazelle não deixa de declarar seu amor pelo ofício e de homenagear seus antecessores (fica o desafio: tente identificar todas as obras referenciadas no frenético e poético clipe de encerramento). Babilônia nos lembra do poder que o cinema tem de imortalizar os mortais - e algumas cenas hão de se tornar perenes na memória do espectador, vide a vibrante e emocionante sequência da estreia de Nellie LaRoy em um estúdio. É como a jornalista Elinor diz a certa altura para um certo ator: "O seu tempo acabou, mas você deve ser grato. Você passará a eternidade com anjos e fantasmas".

PÓS-CREDITOS