sábado, 9 de setembro de 2023


09/09/2023
Claudia Tajes

Dia do Patriota? Me inclua fora dessa

Agora que se sabe que basta uma ideia de jerico para criar uma data municipal em Porto Alegre, pensei em instituir algumas efemérides no calendário da cidade. Deve estar faltando o que fazer na Casa do Povo, bora contribuir com ideias cidadãs

Verdade que não sou vereadora, mas examinando a nominata dos nossos edis, acredito que conseguirei o apoio de um ou outro para os meus pleitos. São 365 dias – que passam voando, é fato –, juntos encontraremos uma vaguinha para louvar algo que não precisaria ser homenageado. Deve estar faltando o que fazer na Casa do Povo, bora contribuir com ideias cidadãs.

Porto Alegre, afinal, tem poucos problemas. O lixo talvez seja prosaico demais para merecer a atenção da Câmara. Já reparou no estado dos containers, vandalizados, estourando, imundos em volta? Faz tempo que a cidade e o lixo andam se estranhando, e o lixo está vencendo. Só não fotografo o container da minha rua para não estragar o apetite dos amigos.

Daria para citar muitas outras demandas com potencial para encher a agenda dos vereadores nos sete dias da semana, incluindo feriados e férias. Mas já que a educação, a saúde, a segurança, a moradia, o transporte e outras miudezas do tipo não parecem relevantes, venho por meio desta sugerir algumas datas comemorativas que podem colocar Porto Alegre, mais uma vez, nos principais jornais e noticiários do país. 

Ou você não ficou orgulhoso de ver o Dia do Patriota no Jornal Nacional, no Jornal da Band, no UOL Notícias, no ICL, no Reinaldo Azevedo, na CNN, nos canais de youtubers e até mesmo na Jovem Pan – na Jovem Pan! – todos ressaltando a inconstitucionalidade da medida, alguns estupefatos e outros tirando sarro da nossa cara?

Mais ainda por ter sido a proposta de um vereador cassado que, na ausência de desculpa melhor, tirou o corpo fora dizendo que apresentou o projeto sem ler. O que me consola é saber que os vereadores que eu sigo não votaram a favor, nem se abstiveram, mas deram o contra direto nesse despautério.

Sem mais delongas, vão aqui minhas sugestões de efemérides para o calendário de Porto Alegre.

Dia do Entrevero: churrasco tem em todo lugar, até na China. Proponho que se homenageie o Entrevero, esse prato único da nossa culinária, que além de tudo é melhor que o triturador da pia da cozinha para acabar com os restos. Aquela lente de contato que você não acha? Procurando bem, vai encontrar no meio do Entrevero. 

Dia do Sorvete Quente: não sei se é típico daqui, mas jamais encontrei aquela maria-mole com gosto de isopor dentro de uma casquinha murcha nos outros lugares por onde andei. É uma homenagem à infância de todos nós, da direita, da esquerda, do centro e de muito pelo contrário.

Dia da Bergamota: data a ser comemorada em um dia de sol de inverno, descascando a berga sem medo de ficar com cheiro na mão e fazendo campeonato de quem cospe a semente mais longe. Um clássico que merece seu lugar no calendário.

Dia do Eleitor Não-Arrependido: depois da promulgação do Dia do Patriota, muitos eleitores porto-alegrenses devem ter se arrependido do seu voto para vereador. Pelo menos, é isso que o bom senso recomendaria. O Dia do Eleitor Não-Arrependido não é fixo, efeméride que acompanha a data das eleições municipais. 

Tudo começa com o cidadão se informando sobre os candidatos à vereança e as propostas que eles têm para a cidade. Depois disso, é só colocar um voto certeiro na urna – independentemente do espectro político do escolhido. Depois é passar os quatro anos do mandato comemorando que não elegeu uma nulidade ou um desastre para a Câmara. No ano que vem já dá para fazer o teste. 

Cumpra-se.


09 DE SETEMBRO DE 2023
Carpinejar

Entrando numa fria

Na minha infância, temia-se a caderneta de fiado do armazém e as contas do telefone fixo, da água e da luz. Era o equivalente ao pânico de hoje no momento de receber a fatura do cartão de crédito.

Havia a data fatídica no início do mês, em que todos os excessos seriam descobertos. Os pais mudavam o seu comportamento, e passavam a se mostrar nervosos, aflitos, ansiosos, rabugentos. E teve um dia da chegada dos boletos em que pesou a minha culpa.

Não conseguia ler no quarto. Dormia com os dois irmãos nos beliches. Eles brigavam comigo quando acendia a luz do abajur.

Para evitar a frequente confusão, e não sofrer com o calor e a invasão dos mosquitos da sala, veio a ideia maravilhosa de ler diante da geladeira aberta. Desfrutaria da lâmpada interna e de refrigeração, um luxo numa residência que somente contava com pequenos ventiladores.

A geladeira redonda e branca, de sobrenome estrangeiro pomposo, Steigleder, me serviria de luminária e ar-condicionado, no melhor dos dois mundos. Colocava uma almofada no chão, e folheava tranquilamente meus livros durante uma hora ou duas, até chegar a dormência.

Alguns autores lidos quase morriam de hipotermia, não eu, nada que eu não resolvesse com minha cobertinha. Lembro claramente do cheiro da comida requentada nas prateleiras de metal, do odor forte do queijo e do salame. Rezava para que não tivesse nenhum alimento vencido e podre capaz de estragar o meu passatempo.

Tudo transcorreu perfeitamente por um mês. Até vir a conta astronômica da energia elétrica. Eu ouvi a minha mãe brigando ao telefone com funcionário da CEEE, alegando que o valor era um roubo, que houve erro na medição, que não justificava o salto vertiginoso dos números de um mês para o outro, já que não tinha ocorrido nada de diferente na nossa rotina.

Depois, eu ouvi a minha mãe discutindo com o meu pai, ambos se culpando pelo desperdício. Trancados no escritório, eles colocavam o disco de Maria Bethânia no máximo volume na vitrola para disfarçar e sufocar os berros.

Em seguida, eu vi a minha mãe controlando o tempo do nosso chuveiro, patrulhando as luzes sem ninguém no aposento, xingando qualquer abuso de nossa parte. Foi um inferno na época, um curto-circuito mental em todos a minha volta, desestabilizei a família com as minhas leituras.

Nunca disse que fui eu. Permaneci neutro como as verduras na gaveta de baixo da geladeira. Imaginava que o castigo seria implacável. Mas, pensando bem, deveria ter confessado. No máximo, eu ficaria trancado no quarto lendo à vontade, sem a importunação dos meus irmãos.

CARPINEJAR

09 DE SETEMBRO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

CIVISMO E DEMOCRACIA

O Brasil acompanhou na última quinta-feira uma celebração discreta, mas repleta de simbolismos, da sua data oficial de Independência. Em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva presidiu o desfile cívico-militar de 7 de Setembro e posou para fotografias juntamente com o ministro José Múcio, da Defesa, e com os comandantes das Forças Armadas, Tomas Ribeiro Paiva, do Exército; Marcelo Kanitz Damasceno, da Aeronáutica; e Marcos Sampaio Olsen, da Marinha. A cerimônia teve pouco público, muito cuidado com a segurança das autoridades e praticamente nenhuma alusão à polarização política decorrente das últimas eleições presidenciais.

Ainda assim, o desfile da Capital Federal foi emblemático por vários motivos. O primeiro deles foi, sem dúvida, a demonstração de convivência respeitosa entre o chefe da nação e os comandantes militares, superando o estremecimento causado pelo envolvimento de oficiais e soldados com a política na administração anterior. Agora, como é desejável e republicano, as Forças Armadas parecem estar novamente concentradas no seu papel precípuo, que é defender a pátria, garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei - como é apropriado numa democracia.

Outra significativa mensagem simbólica do desfile de Brasília foi a presença do personagem Zé Gotinha num carro dos Bombeiros do Distrito Federal. O boneco estilizado, que contribui para a imunização de crianças, representa também a restauração da confiança na ciência médica, depois de um período caracterizado pelo negacionismo, que só contribuiu para agravar os danos da pandemia no país.

Igualmente representativa da nova visão de governo foi a manifestação feita por uma unidade militar formada por soldados indígenas das etnias tariano, kuripaco, baré, kubeo, yanomami e wanano, que saudaram o presidente da República em seus idiomas nativos, com um apelo em defesa da Amazônia. Representavam os povos originários, a diversidade da nossa população, a preservação do meio ambiente e a soberania nacional, valores caros para parcela expressiva do povo brasileiro.

Os quatro eixos temáticos escolhidos pelo governo para a celebração foram observados no desfile principal: paz e soberania, ciência e tecnologia, saúde e vacinação, e defesa da Amazônia. Mas a festa da Independência não se restringiu a Brasília. Nos demais Estados brasileiros, o desfile cívico-militar também transcorreu com absoluta normalidade. Houve, sim, as tradicionais manifestações de natureza política e social. 

Em algumas capitais, ativistas promoveram o Grito dos Excluídos, reivindicando moradia, combate à violência e repúdio ao marco temporal para demarcação de terras indígenas. Da mesma forma, opositores do atual governo e partidários da administração passada manifestaram-se fortemente pelas redes sociais, pedindo boicote aos desfiles, criticando a parcela das Forças Armadas que assumiu posicionamento mais profissional e até celebrando a pouca presença de público nos desfiles.

Nada que a democracia não comporte. O importante é que a celebração dos 201 anos da Independência do Brasil transcorreu de forma pacífica, sem ufanismos nacionalistas e em conformidade com o civismo democrático cultuado pela maioria dos brasileiros.


09 DE SETEMBRO DE 2023
ALERTA CIENTÍFICO

Cheias indicam que RS vive o "novo normal" climático Sinais apareceram há mais de uma década

Aumento da temperatura dos oceanos e da atmosfera tende a agravar supertempestades e exige adaptação a risco crescente

A violência no clima testemunhada pelos gaúchos nos últimos meses não caiu do céu como a chuva torrencial que devastou cidades ao longo das margens do Rio Taquari nos últimos dias. Há mais de uma década, já havia sinais claros de que o Rio Grande do Sul passaria a conviver com temperaturas cada vez mais altas, tempestades mais violentas e chuvas mais caudalosas. Os alertas da meteorologia, porém, não geraram ações capazes de evitar as tragédias atuais.

Em 2011, de forma semelhante ao que se viu agora, uma supertempestade deixou 12 vítimas durante o feriadão da Páscoa em áreas como os vales do Taquari (também afetado desta vez), do Sinos e do Paranhana e reforçou suspeitas de que havia algo diferente nos céus do Estado.

Uma série de estudos disponíveis à época, compilados em uma reportagem de Zero Hora, comprovava essa impressão: até aquele momento, a média de chuva nos últimos 30 anos havia aumentado 8,4% em comparação aos 30 anos anteriores, e os termômetros estavam 0,5ºC mais quentes do que meio século antes.

- Estamos vendo agora o que já vinha acontecendo naquela época - afirma o climatologista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Francisco Eliseu Aquino.

Logo depois da tragédia daquele ano, Aquino, que figurava entre os autores de alguns dos trabalhos, já avisava: "Mais calor e mais umidade contribuem para um número maior de eventos severos como tempestades, já que funcionam como combustíveis para elas". E completava: "Se a pergunta é se o clima gaúcho está mudando, a resposta é sim".

Também já havia indícios claros de que os temporais vinham ganhando violência em ritmo acelerado: no período de 2000 a 2009, havia sido registrada uma disparada de 71% na ocorrência de trovoadas nas regiões do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, e da Base Aérea de Canoas, em relação aos 10 anos anteriores.

Ainda não havia grande certeza sobre as razões para essas mudanças de cenário, mas o aquecimento percebido em nível global já era elencado como um dos fatores mais prováveis, além de outras hipóteses como variações na circulação dos ventos próximos à Antártica.

Perdas

O resultado da combinação explosiva de mais calor e umidade sobre o Estado, pouco mais de uma década atrás, já havia provocado consternação semelhante à atual em razão da morte de 12 gaúchos em um único evento - algo, até hoje, poucas vezes visto. Dessas vítimas, sete eram de Igrejinha, onde foram velados de forma coletiva no Parque da Oktoberfest. A expectativa de que o trauma resultasse em ações capazes de prevenir novas catástrofes, porém, ao contrário dos prognósticos meteorológicos, não se confirmou.


09 DE SETEMBRO DE 2023
CARTA DA EDITORA

CARTA DA EDITORA A cobertura de uma tragédia

Não há nada mais difícil para um jornalista do que fazer a cobertura de uma tragédia. Ao mesmo tempo em que é necessário narrar os fatos, é preciso ter sensibilidade, porque do outro lado estão pessoas arrasadas emocionalmente. É um desafio conseguir retratar o drama e transmitir as informações.

A Carta da Editora dedica o espaço para os relatos de profissionais da Redação Integrada de Zero Hora, GZH, Rádio Gaúcha e Diário Gaúcho que estiveram presentes nas localidades atingidas pela enxurrada no Vale do Taquari.

André Malinoski, repórter - "Considero a cobertura realizada em Roca Sales como a mais difícil já feita na minha carreira de repórter. Ao chegar, ainda nas primeiras horas da manhã, as pessoas caminhavam como zumbis, pareciam anestesiadas, sem saber para onde ir ou a quem recorrer. O impacto visual do cenário, com casas destruídas, postes e árvores caídas, além de carros virados, foi estarrecedor. Muita gente chorava. Havia mortos sob os escombros. Roca Sales foi varrida pelo Rio Taquari. Foi muito difícil separar minha missão como testemunha ocular dessa tragédia. Fiquei muito emocionado pelas perdas das pessoas. Me coloquei no lugar delas o tempo inteiro."

Leandro Staudt, comunicador - "Foi uma enchente histórica, o rio praticamente dobrou de tamanho em 12 horas. Eram municípios sem energia elétrica, sem água, sem telefonia, sem internet. Áreas incomunicáveis, gerando aflição de familiares e parentes que estavam longe. Se falava que era a pior enchente desde 1941."

Yasmin Luz, repórter - "Uma moça, mãe de três filhos, ela e o marido estavam com água no pescoço, tentando tirar o que sobrou das coisas deles. Era muito triste. Ela chorava desolada, porque tinha perdido tudo."

Jefferson Botega, repórter fotográfico - "O Rio Taquari subiu muito, 25 metros, e foi levando tudo que vinha pela frente em Muçum. Tinha uma casa no meio da rua, que tinha sido arrastada, sofá em cima de muro, colchão em cima de árvore. As pessoas vagando pelas ruas, sem saber para onde ir. É uma cena que a gente vê em filme e que agora está aqui, muito próxima."

Paulo Germano, comunicador - "Lembro que o prefeito de Roca Sales chegou a dizer que durante um tempo a cidade era um grande grito de socorro. Se passava pela cidade de barco, porque estava submersa, e se ouvia muita gente gritando por socorro. Chegou um momento em que não conseguiam mais gritar, o frio era tamanho que as pessoas entraram em hipotermia e não conseguiam mais pedir ajuda. O resgate não conseguia chegar. É muito triste."

Lucas Abati, repórter - "Fui ao hospital de Roca Sales, que em dezembro passado completou 90 anos. Os relatos são de que nunca tinha entrado água lá dentro. A gente conseguiu ter uma dimensão maior ao ter acesso ao segundo andar. Materiais, prontuários e anotações que foram perdidos."

Mateus Bruxel, repórter fotográfico - "Uma família esperava por ajuda no segundo andar da casa. Eram oito crianças e seis adultos. O primeiro andar já estava submerso. Foram necessários dois barcos, com ajuda de bombeiros e policiais para remoção com segurança da família pelas ruas alagadas pelo Rio Jacuí."

Fábio Schaffner, repórter - "Os anos vão passando e o jornalismo nos ensina que o que a gente sabe da vida é nada. Jamais vou esquecer o olhar dos moradores de Muçum, a desolação de quem lutou pela própria sobrevivência. Mas, em meio ao caos da cidade arrasada, também vi a fraternidade das pessoas, ajudando na limpeza da casa do vizinho, entregando uma garrafa d?água ou simplesmente dando um abraço. É com a força dessas pessoas que Muçum será reconstruída."

Os depoimentos de parte da equipe com imagens dos locais podem ser acessados pelo link ao lado.

DIONE KUHN

09 DE SETEMBRO DE 2023
marcelo rech

Não basta o alerta

Quando um cataclismo ocorre, além da sua própria severidade, a gravidade é acentuada pelas capacidades de prevenção, previsão, mobilização e resposta. Nos quatro casos, registre-se que o Rio Grande do Sul evoluiu muito nos últimos anos, embora cada tragédia produza suas próprias lições.

Na prevenção, ainda há muito o que fazer sobre alertas às populações em risco, mesmo que nenhum sistema seja infalível. Examine-se o caso da Coreia do Sul. Em julho passado, durante uma visita à Zona Desmilitarizada com a Coreia do Norte, todos os cerca de 40 passageiros do ônibus em que eu estava foram sobressaltados ao mesmo tempo com um estridente plim coletivo nos celulares: era uma mensagem, escrita em diferentes línguas, sobre a aproximação de tempestades. 

O aviso sonoro e por texto é mandatório - ele prescinde de autorização prévia. No mesmo dia, recebi mais três ou quatro alertas com atualizações. As autoridades coreanas também não apenas recomendam a saída de pessoas de áreas críticas: retiram-nas à força, se preciso. Ainda assim, uma semana depois, outra tempestade deixou 40 mortos, 13 deles em automóveis aprisionados em um túnel subitamente inundado.

Na Holanda, onde quase um terço do território está abaixo do nível do mar e é protegido por um sistema de diques, a segurança é obsessiva. Todo mundo sabe que ao meio-dia da primeira segunda-feira de cada mês os alarmes, que cobrem o país inteiro, soarão para testar seu funcionamento. Um sistema de sirenes também passou a ser usado em 16 cidades da serra fluminense, depois de sucessivos aguaceiros deixarem mais de mil mortos. 

Muitos alarmes no Rio, porém, nem sempre funcionam na hora da emergência ou alcançam famílias em áreas remotas. Na Alemanha, registre-se, mesmo com toda a tecnologia e recursos de prevenção e previsão, 173 pessoas morreram na região da Renânia em 2021, quando, em um fenômeno similar ao do Vale do Taquari, os rios subiram em questão de horas e varreram o que havia pela frente.

Não basta prever com precisão e deixar clara a iminência do risco, seja pela imprensa, seja por redes sociais, sirenes ou celulares. As pessoas precisam tomar conhecimento, confiar na mensagem e ter condições ou apoio para deixar suas casas. Sabe-se desde sempre que, quando as advertências se multiplicam ou não se confirmam na intensidade anunciada, acabam caindo em descrédito. Nos EUA, diante do impacto humano e econômico das tragédias, esse é um fenômeno estudado: como tornar mais precisos e efetivos os alertas de tsunami, alagamentos relâmpago, tornados, incêndios florestais e furacões?

Com o aumento de eventos extremos pelas mudanças climáticas, é uma pergunta urgente para o mundo, o Brasil e, como tristemente se constata, também para o Rio Grande do Sul.

MARCELO RECH

sábado, 2 de setembro de 2023


02/09/2023 - 05h00min
Rosane Tremea

Um “pulinho” até a Bélgica

Com pouco mais de 11 milhões de habitantes, o país é um dos mais densamente povoados da Europa 

Castelo dos Condes, em Ghent

Talvez a Bélgica não esteja entre as suas viagens dos sonhos. Acho até que é um pouco negligenciada por quem visita a Europa (ou será que falo só por mim?) Demorei para incursionar por lá, da primeira vez indo só à capital, Bruxelas. Na segunda, há menos tempo, os destinos foram a surpreendente Ghent (ou Gent, ou Gand) e a mais popular, mas não menos interessante, Bruges. 

Com pouco mais de 11 milhões de habitantes, população equivalente à do RS, a Bélgica é um dos países mais densamente povoados da Europa (363 hab/km² contra os 232,24 km² da Alemanha ou, se quiser uma comparação mais local, os 42,5 hab/km² do RS) e faz fronteira com França, Alemanha, Holanda e Luxemburgo. No país há três comunidades diferentes (flamenga, francesa e a germanófona) e três idiomas oficiais (holandês, francês e alemão), o que torna tudo mais diverso. 

Diversidade, aliás, também é a palavra quando se fala de turismo, lazer e cultura – dos passeios de bicicleta às visitas a castelos e pequenas vilas, de caminhadas em florestas a feiras de antiguidades, dos festivais de música aos eventos e exposições internacionais.

Este texto destaca duas cidades citadas lá no início, mas Bruxelas, uma das sedes do Parlamento Europeu, com um importante conjunto de arquitetura Art Nouveau, não deve ser deixada de lado. Das exposições temporárias às permanentes, não esqueça que a Bélgica é terra de artistas e pintores como Rene Magritte (a visita ao seu museu é indispensável) e criadores como Hergé, que deu vida a Tintim (conheci um pouco mais da história no Belgian Comic Strip Center). Sim, é a terra da cerveja, dos queijos, da batata frita e do chocolate, mas eu destacaria, pelo menos em Bruxelas, os doces árabes: as vitrines parecem de joalherias. Antes que eu me estenda mais, vamos aos recortes:

Ghent 

Minha base nesta viagem, a cidade surpreende pela vitalidade e pela iluminação cênica criada por designers. Como não está entre as principais opções turísticas da Bélgica, não à toa ela apela aos visitantes que permaneçam “mais de uma noite”. Sem saber do slogan, fiquei. Aqui não é preciso andar muito para dar de cara com o Castelo dos Condes, construído em 1180 e hoje bem no miolo de Ghent, ou para surpreender-se, não muito longe, com o moderno prédio da biblioteca universitária, erguida sobre um canal nos anos 2000. Por todo lado, grafites convivem com prédios medievais, sem agredi-los.

Essa mistura a deixa vibrante sem tirar-lhe o ar de tranquilidade. Além do já citado Castelo dos Condes, visita obrigatória, eu quis ver o painel (na verdade, um total de 18 painéis) conhecido como A Adoração do Cordeiro Místico, dos irmãos Van Eyck, de 1432, uma das maiores obras de arte já produzidas, na Catedral de São Bavão. Na mesma praça, subindo ao Campanário, no alto do qual fica o dragão símbolo de Ghent, vê-se a cidade quase inteira. Acho que não mencionei que a comida, na Bélgica, é celebrada de maneira especial – é um dos pontos onde há mais restaurantes com estrela Michelin por metro quadrado...

Mas você não precisa ir tão longe. Mesmo nos lugares mais simples come-se muito bem, dos cones de papel com batatas e legumes aos waffles. Ah, um presente ou lembrança especial pode ser um potinho de cerâmica com a celebrada mostarda produzida aqui. E ainda que possa torcer o nariz, literalmente, para eles, é preciso provar os “cuberdons”, balas de goma arábica em formato de nariz – a mais tradicional, arroxeada, vem no sabor framboesa.

Bruges 

O centro histórico inteiro foi tombado como Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2000, após vários prédios merecerem a distinção em anos anteriores – arquitetos costumam chamar a atenção para a unidade visual da cidade, sem ruídos ou deturpações. A peculiar rede de canais que faz sua ligação com o mar lhe deu o título de “Veneza do Norte”. Bruges é tão arrumadinha que parece de mentira. 

A primeira bolsa de valores (em frente à casa dos comerciantes “Van der Beurse”) nasceu aqui e ela chegou a ser um dos centros comerciais mais importantes da Europa. Apesar disso, a cidade foi abandonada e entrou em decadência, mas ressurgiu no século 19 e, mesmo tendo sido base para os nazistas na Segunda Guerra, acabou poupada da destruição. Para além do patrimônio arquitetônico, em Bruges é valorizado o patrimônio imaterial, como as procissões (desde 1304, um desses eventos transporta a relíquia do Sangue Sagrado pela cidade) e a arte flamenga. Outro espetáculo tradicional é ouvir os carrilhões do Campanário, na Praça do Mercado, também tombado. 

Por último, mas não menos importante, a cerveja é igualmente patrimônio imaterial (na cidade, há duas cervejarias e um museu da cerveja, e nos arredores há cervejeiros artesanais). Como eu passei um dia apenas, o que é sempre pouco, degustei cervejas no 2Be, na área conhecida como Rozenhoedkaai, que concentra a maioria dos bares e restaurantes e é um lugar lindo para se estar e fotografar.

02/09/2023 - 09h00min
Martha Medeiros

Só quem pode me cancelar sou eu

Recomendo prestar mais atenção à nossa integridade do que na reação de seguidores desconhecidos. A maioria dos seguidores volta, porque a razão de seguir era mais forte do que o desdém temporário

Você tem o direito de discordar do que penso. Talvez tenha se decepcionado com algum texto do passado e nunca mais tenha restabelecido contato comigo nas redes sociais. Um dia me seguiu e outro dia escapuliu, não sem antes avisar (“deixando de te seguir”, o terrorismo básico). 

Enfim, você tem o meu respeito, mesmo que me odeie, pois o ódio é apenas um dos lados da moeda e estamos todos sujeitos a ele. Mas você não tem o poder de me cancelar. Ninguém cancela ninguém, é só um verbo da moda.

Se não foi comigo, foi com outra pessoa. Você discordou das posições de um humorista, de uma influencer, de um jornalista. Só que eles continuam existindo à sua e à nossa revelia, pois você e eu não temos o poder de aniquilar a carreira de ninguém, a não ser que a própria pessoa tenha colaborado muito para isso – sendo negligente, mentirosa, corrupta, sei lá. 

Uma opinião atravessada não é suficiente, e deixar de segui-la nas redes gera apenas uma falsa ilusão de fracasso. Realidade: a maioria dos seguidores volta, porque a razão de seguir era mais forte do que o desdém temporário.

Se em vez de algoz, você foi a vítima, acalme-se, portanto. Cancelam-se matrículas, encontros, reservas em hotéis. Cancelar uma pessoa – conhecida ou desconhecida – é um recurso sensacionalista e causa um pânico artificial. Tentativa de exercer um poder que, de fato, ninguém tem. 

Quando são inúmeros os raivosos, causa certo alvoroço, mas é só uma onda quebrando na areia, o oceano continua manso em sua fundura abissal. Só quem pode cancelar você é você mesmo. Só quem pode me cancelar sou eu.

O autoboicote, sim, é preocupante. Posso me abalar com uma ofensa. Deixar de dizer o que sinto. Não alimentar mais minhas amizades. Desconsiderar minha família. Terminar uma relação amorosa e me fechar para as próximas. Omitir minhas próprias opiniões. Perder a coragem de existir. Sair de cena, me trancafiar no quarto. É o mais parecido com um cancelamento, e mesmo assim, é uma vida que não saiu do ar em definitivo, apenas está gerenciando a própria dor e precisando de ajuda.

Só a morte nos cancela em definitivo. Cancelamento nas redes é uma ameaça com jeito de cartão amarelo, uma tentativa de contenção que ganhou uma relevância exagerada. 

Recomendo prestar mais atenção à nossa integridade do que na reação impulsiva de seguidores desconhecidos. Em tempo: não estou escrevendo em defesa própria, costumo ser muito bem tratada. Estou apenas analisando uma neura que se generalizou.

Que tal retornar ao ponto de partida, quando éramos seres humanos e não números e algoritmos? Ainda dá tempo de não se afogar em uma barafunda sem nexo ou profundidade. Cancelamento? Uma petulância a mais neste hospício digital.

02/09/2023 - 09h00min

Claudia Tajes

Dia do Patriota? Me inclua fora dessa

Agora que se sabe que basta uma ideia de jerico para criar uma data municipal em Porto Alegre, pensei em instituir algumas efemérides no calendário da cidade. Deve estar faltando o que fazer na Casa do Povo, bora contribuir com ideias cidadãs.

Agora que se sabe que basta uma ideia de jerico para criar uma data municipal em Porto Alegre, e o já revogado Dia do Patriota está aí para provar, pensei em instituir algumas efemérides no calendário da cidade.

Verdade que não sou vereadora, mas examinando a nominata dos nossos edis, acredito que conseguirei o apoio de um ou outro para os meus pleitos. São 365 dias – que passam voando, é fato –, juntos encontraremos uma vaguinha para louvar algo que não precisaria ser homenageado. Deve estar faltando o que fazer na Casa do Povo, bora contribuir com ideias cidadãs.

Porto Alegre, afinal, tem poucos problemas. O lixo talvez seja prosaico demais para merecer a atenção da Câmara. Já reparou no estado dos containers, vandalizados, estourando, imundos em volta? Faz tempo que a cidade e o lixo andam se estranhando, e o lixo está vencendo. Só não fotografo o container da minha rua para não estragar o apetite dos amigos.

Daria para citar muitas outras demandas com potencial para encher a agenda dos vereadores nos sete dias da semana, incluindo feriados e férias. Mas já que a educação, a saúde, a segurança, a moradia, o transporte e outras miudezas do tipo não parecem relevantes, venho por meio desta sugerir algumas datas comemorativas que podem colocar Porto Alegre, mais uma vez, nos principais jornais e noticiários do país. 

Ou você não ficou orgulhoso de ver o Dia do Patriota no Jornal Nacional, no Jornal da Band, no UOL Notícias, no ICL, no Reinaldo Azevedo, na CNN, nos canais de youtubers e até mesmo na Jovem Pan – na Jovem Pan! – todos ressaltando a inconstitucionalidade da medida, alguns estupefatos e outros tirando sarro da nossa cara?

Mais ainda por ter sido a proposta de um vereador cassado que, na ausência de desculpa melhor, tirou o corpo fora dizendo que apresentou o projeto sem ler. O que me consola é saber que os vereadores que eu sigo não votaram a favor, nem se abstiveram, mas deram o contra direto nesse despautério.

Sem mais delongas, vão aqui minhas sugestões de efemérides para o calendário de Porto Alegre.

Dia do Entrevero: churrasco tem em todo lugar, até na China. Proponho que se homenageie o Entrevero, esse prato único da nossa culinária, que além de tudo é melhor que o triturador da pia da cozinha para acabar com os restos. Aquela lente de contato que você não acha? Procurando bem, vai encontrar no meio do Entrevero. 

Dia do Sorvete Quente: não sei se é típico daqui, mas jamais encontrei aquela maria-mole com gosto de isopor dentro de uma casquinha murcha nos outros lugares por onde andei. É uma homenagem à infância de todos nós, da direita, da esquerda, do centro e de muito pelo contrário.

Dia da Bergamota: data a ser comemorada em um dia de sol de inverno, descascando a berga sem medo de ficar com cheiro na mão e fazendo campeonato de quem cospe a semente mais longe. Um clássico que merece seu lugar no calendário.

Dia do Eleitor Não-Arrependido: depois da promulgação do Dia do Patriota, muitos eleitores porto-alegrenses devem ter se arrependido do seu voto para vereador. Pelo menos, é isso que o bom senso recomendaria. O Dia do Eleitor Não-Arrependido não é fixo, efeméride que acompanha a data das eleições municipais. 

Tudo começa com o cidadão se informando sobre os candidatos à vereança e as propostas que eles têm para a cidade. Depois disso, é só colocar um voto certeiro na urna – independentemente do espectro político do escolhido. Depois é passar os quatro anos do mandato comemorando que não elegeu uma nulidade ou um desastre para a Câmara. No ano que vem já dá para fazer o teste. 

Cumpra-se.


02 DE SETEMBRO DE 2023
CARPINEJAR

Números quebrados

Há dois momentos em que festejamos os números quebrados: com o recém-nascido e com o morto.

É paradoxal que o início e o fim estejam entrelaçados em rara contagem.

Não há espera pelas idades completas e arredondadas. Você experimenta intensamente um dia de cada vez, numa matemática distinta daquela que realiza consigo.

No primeiro caso, você comemora a vida que acabou de surgir. No segundo caso, homenageia a vida que acabou de partir. No primeiro caso, assinala a esperança. No segundo caso, sublinha a saudade. No primeiro caso, seus olhos estão voltados para o futuro. No segundo caso, para o passado.

São celebrações opostas em que se pratica idêntico exercício de fixação dos pequenos acontecimentos.

Pois não se quer perder nada dos dois testemunhos, demonstrando-se uma atenção extrema tanto no nascer quanto no pesar. Ritualiza-se a passagem das 24 horas da folhinha do calendário.

Com o bebê, é exaltada a sua evolução, lembrando-se a primeira semana, os primeiros 30 dias, os primeiros meses. E não se dá nenhum desconto, numa agenda precisa e fidedigna. Você é capaz de registrar exatamente passo a passo da sua formação com meses e dias, sem esquecer um amanhecer, sem generalizar, antes de o círculo etário se fechar.

Já com o ente querido que faleceu, executa-se igualmente uma contagem rigorosa, só que da distância, a partir da missa ou do culto. Começa com o sétimo dia e se estende aos meses subsequentes de desamparo. Você aniversaria o sofrimento sem esquecer um anoitecer, antes da virada completa da idade.

Os números quebrados indicam mudanças decisivas e cruciais, seja pelo acolhimento, seja pela despedida. Existiu uma transformação da sua personalidade. Ou passou a exercer uma nova função afetiva, ou deixou de tê-la. Nunca voltará a ser quem era.

Um traço em comum é que está escrevendo a memória por alguém, pois ambos - bebê e falecido - não têm como formalizar suas datas comemorativas. Assim como você não pode controlar a felicidade - cada instante é perpetuado -, tampouco pode controlar a dor - cada lacuna é eternizada.

O que me põe a concluir que a tristeza entra pela mesma porta da alegria. Apresentamos a mesma conservação de miudezas e detalhes diante de uma e de outra. Ou aprendendo a conviver com uma alma, ou aprendendo a sentir a sua falta.

A alma é o como. Como a pessoa particularizava atributos extensivos a todo mundo, como fazia de maneira única aquilo que era padronizado. Como gargalhava. Como dançava. Como conversava. Como caminhava. Como corria. Como transbordava.

Você guarda essas singularidades para jamais esquecer que o tempo não é feito pelos relógios, ele segue unicamente os ponteiros da sua emoção.

CARPINEJAR

02 DE SETEMBRO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

ECONOMIA RESISTENTE

Assim como no período de janeiro a março deste ano e em boa parte de 2022, a economia brasileira voltou a crescer acima do esperado no segundo trimestre de 2023. A atividade, outra vez, mostrou sinais de resiliência e a esperada desaceleração não foi tão aguda quanto projetavam os mais pessimistas. De abril a junho, o PIB do país avançou 0,9% sobre o trimestre imediatamente anterior, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As estimativas do mercado se situavam ao redor de 0,3%. Com a nova grata surpresa, o indicador subiu 3,7% no semestre e foram deflagradas novas rodadas de revisões para cima para o fechamento do ano, para ao menos 3%.

Vieram do consumo das famílias, com crescimento também de 0,9%, alguns dos sinais mais positivos. É possível inferir serem reflexo de uma série de fatores combinados. Entre eles, a própria resistência da economia, que parece não ter sido tão afetada pelo juro alto, usualmente um fator contracionista. Com isso, o mercado de trabalho se mantém aquecido. 

O próprio IBGE mostrou na quinta-feira que a taxa de desemprego no trimestre encerrado em julho ficou em 7,9%, o menor nível para o período desde 2014. Ao mesmo tempo, a renda da população segue a toada de recuperação. A inflação, corrosiva para os ganhos dos trabalhadores, está em processo de acomodação. Mesmo que de forma tímida, a inadimplência começa a recuar, o que pode renovar o fôlego do consumo das famílias no restante do ano.

O bom desempenho do PIB do segundo trimestre de 2023 foi ajudado ainda pela indústria (0,9%), em especial a extrativa, serviços (0,6%) e consumo do governo (0,7%). A agropecuária recuou 0,9%, o que já era esperado em virtude da alta surpreendente do primeiro trimestre, quando o campo foi decisivo para a economia avançar 1,8%. Preocupa, no entanto, a estagnação dos investimentos (0,1%), o que sempre sugere risco inflacionário à frente diante do avanço do consumo das famílias. É também um sinal amarelo quanto à capacidade de expansão do PIB no futuro. Espera-se, porém, que o ciclo de corte do juro e a própria maior confiança na continuação da atividade econômica em uma cadência razoável voltem a trazer ânimo para os empresários.

É verdade que ainda há certo grau de incerteza à frente, especialmente no aspecto fiscal do país. Reside na dificuldade que o governo federal terá de cumprir a promessa de zerar o déficit primário em 2024. Mas há uma nova regra e o próprio ritmo da economia um pouco acima do esperado pode ajudar nas receitas que são necessárias para a arrecadação se aproximar mais das despesas. A conferir.

Deve-se lembrar ainda que o Brasil passa por um período de menor turbulência política e institucional, elemento que também influencia nas expectativas. O andamento da reforma tributária, após décadas de frustração nas tentativas de mudar o sistema de cobrança de impostos, é outra razão a injetar confiança nos agentes econômicos. Mas confiança é um fator que precisa ser cotidianamente alimentado. Conquistá-la demora. 

Mas, em um país com histórico de crises como o Brasil e baixíssimo crescimento nas décadas mais recentes, bastam alguns maus sinais para perdê-la. O momento, de qualquer forma, sem dúvida pende para um cenário mais benigno na comparação com os temores que existiam há poucos meses, apesar de permanecerem as previsões de arrefecimento da economia até dezembro. Basta lembrar que, no início do ano, projetava-se que o país cresceria menos de 1% em 2023. Agora, as projeções já são de 3%.


02 DE SETEMBRO DE 2023
vELHO CASARÃO

Um ano após ultimato de Melo, Olímpico segue abandonado

Há pouco mais de um ano, uma manifestação do prefeito de Porto Alegre trouxe resquício de esperança aos gremistas e moradores do bairro Azenha. Sebastião Melo tentava resolver o impasse que envolve a área do estádio Olímpico. Na ocasião, anunciou que o atual regime urbanístico do imóvel seria revogado se o terreno continuasse abandonado. O prefeito, inclusive, estabeleceu período de 12 meses para que as ações fossem tomadas.

Em setembro de 2022, um projeto de lei foi protocolado na Câmara com este objetivo. A matéria ainda está tramitando na Casa. Se houver alteração no regime urbanístico, o valor do terreno acaba diminuindo. Se mesmo assim nada for feito, Melo sugeriu até que a prefeitura pudesse desapropriar a área e vendê-la.

O prazo passou, e o terreno segue do mesmo jeito que estava em agosto de 2022. O Olímpico é motivo de preocupação para os moradores das redondezas. Eles alegam falta de segurança na região em razão do abandono.

O Grêmio vem buscando articular solução para o problema com as empresas Karagounis e OAS 26. O foco principal é fazer a troca de chaves entre as partes. Hoje, o Grêmio é o responsável pelo Olímpico. Já as duas empresas são as proprietárias do terreno da Arena.

Justiça

No Rio Grande do Sul, o processo é debatido na Justiça. Decisão de junho reafirma que a construtora OAS é a responsável pela realização das obras no entorno da Arena do Grêmio. Se a decisão for mantida, caberá à prefeitura e ao Ministério Público buscar o ressarcimento dentro da recuperação judicial da OAS.

Além disso, os bancos financiadores da construção da Arena se movimentaram. Banrisul, Banco do Brasil e Santander cobram R$ 226,39 milhões por terem liberado recursos para a construção. E a Justiça de São Paulo determinou a penhora do novo estádio.

JOCIMAR FARINA

02 DE SETEMBRO DE 2023
DIÁRIOS DO PODER

O julgamento do século

Os Estados Unidos, sempre excelentes em rotular midiaticamente episódios estrondosos, têm os seus "julgamentos do século". São aqueles casos rumorosos que costumam dividir opiniões, mas amalgamar a audiência em frente aos aparelhos de TV ao vivo. O século 20 teve vários julgamentos históricos. Mas o último a receber esse estigma foi o caso do ex-ídolo da NFL O. J. Simpson, em 1995.

O primeiro "julgamento do século 21" não será também um só. Serão vários, mas envolverão a mesma pessoa: Donald Trump, suspeito pelo que fez antes, durante e depois da presidência. São quatro processos até agora.

Antes da Casa Branca: ele é acusado de ter subornado a ex-atriz pornô Stormy Daniels para que silenciasse, durante a campanha presidencial de 2016, sobre um suposto relacionamento entre os dois. O caso tramita em Nova York, e o julgamento está marcado para 25 de março de 2024.

Durante a Casa Branca: são dois casos, e os mais graves para suas aspirações políticas. Trump é acusado de ter tentado alterar o resultado da eleição de 2020 na Geórgia. Nessa ação, ficou famoso o telefonema que deu a uma autoridade local - e cuja gravação vazou -, no qual ele ordena que sejam "encontrados 12 mil votos", o suficiente para superar Joe Biden, de quem acabou perdendo no Estado.

Foi por esse caso que ele foi fichado recentemente, tendo sua foto registrada, a famosa mugshot. Ainda não há data para o julgamento, mas a Justiça do condado de Fulton já autorizou a transmissão. Isso não deve ocorrer nos demais Estados, onde a legislação impede o acompanhamento ao vivo.

O outro caso refere-se a seu suposto envolvimento nos ataques de 6 de janeiro, quando seus apoiadores invadiram o Capitólio. O início do julgamento está previsto para 4 de março, uma data fatídica para Trump, que estará em campanha. No dia seguinte, 5 de março, é a Superterça, o famoso dia em que vários Estados americanos votam nas prévias internas dos partidos. Em se tratando de Trump, adepto do "falem mal, mas falem de mim", pode ser tanto bom quanto ruim. Ele ficará fora da maratona eleitoral, mas seu nome estará presente em todos os noticiários.

Depois da Casa Branca: o ex-presidente é acusado de ter levado para sua residência de Mar-a-Lago, na Flórida, documentos sigilosos da administração.

Em 17 de junho de 1994, os americanos acompanharam ao vivo a perseguição policial a O. J. Simpson. Em 2024, o mundo assistirá aos advogados de Trump tentarem driblar a Justiça para postergar audiências. Como nos EUA não há lei equivalente à Ficha Limpa, o ex-presidente, que se diz vítima de perseguição, vai tentar esticar ao máximo os prazos.

Na prática, poderá concorrer. O caso do socialista Eugene Debs, que disputou a presidência em 1920 mesmo estando preso, é sempre lembrado. O ex-presidente, no entanto, se tiver o mesmo destino, será o primeiro político com chances reais de vitória a encarar a situação. O único caso que pode torná-lo inelegível é o do ataque ao Capitólio. A 14ª Emenda proíbe pessoas envolvidas em insurreição ou rebelião contra o governo de ocupar cargos federais ou estaduais.

RODRIGO LOPES

Escola Sesi é inspiração para gestores

Mesmo que uma escola não tenha os recursos de que o Sesi dispõe para criar escolas-modelo, a metod0ologia pode ser replicada por meio do Instituto de Formação de Professores, que começou a funcionar neste ano e que pretende ser um centro de disseminação do conhecimento.

As excursões ao Ceará, a Pernambuco, à Dinamarca e à Finlândia para ver como funciona um sistema de educação que dá certo já podem ser suspensas.

Mais simples e mais barato é ir a uma das cinco escolas de Ensino Médio do Sesi-RS e ver como é possível reproduzir no Estado e nos municípios uma escola praticamente sem evasão. Uma escola em que os alunos terminam o Ensino Médio craques em robótica e fluentes em inglês, têm bom desempenho no Enem e surpreendem os professores na universidade pela maturidade e pelo conhecimento.

Visitei o campus de Gravataí, que também abriga a Educação Infantil, EJA, contraturno escolar e iniciação às artes, mas direcionei o foco para o Ensino Médio, que é o grande desafio dos gestores públicos.

Com ampla área verde e uma arquitetura pensada para tornar o ambiente atraente e sustentável, é uma escola voltada para filhos de trabalhadores da indústria, mas que também recebe alunos da comunidade. Hoje, são 1,2 mil alunos, sendo 400 do Ensino Médio.

Antes que alguém pergunte como são os salários, a resposta é "sim, os professores são bem remunerados", mas esse está longe de ser o único motivo para explicar a empolgação e o comprometimento.

O modelo, construído a partir de visitas a escolas de referência em diferentes Estados e países, empolga professores e alunos porque conseguiu derrubar a ideia de que a escola é chata.

A autonomia dos alunos é construída dos detalhes. No início, nos intervalos e no fim do turno (que é integral), não se ouve sineta ou campainha. Os estudantes sabem que é hora do intervalo ou de ir embora. As turmas não têm uma sala de aula: movem-se de acordo com a disciplina. As salas são equipadas de acordo com a área do conhecimento e mobiliadas de forma a estimular o trabalho em grupo. O que se aprende na teoria é mostrado na prática, em diferentes laboratórios.

Os alunos também são preparados para o trabalho, com os cursos oferecidos pelo Senai como parte do currículo. A diretora da escola de Gravataí, Bianca Visentin, deixa claro que o foco da escola não é o Enem: é preparar o aluno para os desafios do século 21. O bom desempenho no Enem e no vestibular é consequência.

Os estudantes trabalham por projetos e são instados a buscar soluções para os problemas da comunidade. Nesses projetos, aplicam conhecimentos de diferentes áreas e, sob orientação dos 

ROSANE DE OLIVEIRA 


02 DE SETEMBRO DE 2023
INFORME ESPECIAL

Ilusão instagramável

Foram dois meses de espera para conseguir reservar uma mesa. Agora, finalmente, você vai poder viver a experiência de degustar um daqueles pratos sensacionais que viu tantas vezes na tela do celular - sempre em posts de gente bacana. Você também quer ser bacana e postar tudo no Instagram, aquela rede social onde a vida (dos outros) é sempre perfeita.

Chegou a tão esperada noite. Você entra no restaurante e, de cara, é mal atendido. Deixa por isso mesmo - "o garçom deve estar num mau dia" - e faz o seu pedido.

Parece uma obra de arte: tudo muito "clean", tudo muito "poser", tudo muito pouco. Com certeza, o chef usou uma pinça para finalizar a decoração do prato, com direito a espuma saborizada e fumacinha (deve ter um nome em inglês para isso também).

Antes de qualquer coisa, é preciso fotografar, selecionar a melhor imagem, dar aquele brilho, ajustar a cor, aplicar um filtro e publicar. Na legenda, um clássico: "Gratidão". Pronto!

Você dá a primeira garfada, esperando o sabor incomparável. Vem a segunda decepção: a comida é ruim. Melhor tentar a sobremesa. É, também não é lá essas coisas. Você pensa na torta de bolacha da sua mãe.

Hora de pedir a conta. Caro! Um acinte. Mas? é instagramável. Você então faz uma selfie caprichada, sorrindo e olhando confiante para a câmera, antevendo a chuva de "likes".

Quem nunca fez um papelão desses ou caiu numa armadilha do tipo? Provavelmente, só aqueles que ainda resistem ao mundo virtual. Nesse universo paralelo orquestrado pelos algoritmos, as arapucas estão por todos os lados: na praia paradisíaca e deserta que, na verdade, é suja e superlotada, no muro multicolorido e fotogênico que esconde um lixão, no mirante encantador onde é preciso encarar meia hora de fila para tirar uma foto (e ter direito a 30 segundos de contemplação).

A coisa toda virou um negócio. Já existem listas dos lugares "mais instragramáveis do mundo" (e isso vale também para TikTok, Facebook e o que mais houver). Há hotéis, lojas, confeitarias, casas noturnas e bares com ambientes hiperdecorados, pensados sob medida para atrair o público das redes.

A turma do marketing não tardou a descobrir que posts e curtidas são o novo "boca a boca", com a vantagem de que cada publicação tem um alcance infinitamente maior. O impacto é ainda mais extenso quando se contrata um "influencer" para "dar o start". Se o estabelecimento viralizar, não tem erro: no dia seguinte, haverá clientes aos borbotões.

A crítica também é hipócrita, afinal, as armadilhas só existem porque nós, humanos, somos vaidosos por natureza. Todo mundo quer estar "bem na foto". Só que a busca pela perfeição também é perversa. Não é à toa que a saúde mental das pessoas anda aos frangalhos. E isso não aparece nas redes.

Proponho, pois, um desafio. Neste fim de semana, vou fazer uma fotografia de um prato de comida delicioso e nada instagramável e - doce vingança! - vou postar no meu perfil (@ju_bublitz) no Instagram. Quem me acompanha? Se aderir, já sabe: prepare-se para perder seguidores.

Queremos diminuir a fila de espera por transplantes no país inteiro. Nasce em Porto Alegre essa campanha de solidariedade.

Marcos Frota

Ator, ao se tornar embaixador da campanha lançada pelo Estado para incentivar a doação de órgãos e tecidos no Rio Grande do Sul.

Tudo que acontece no Samu é de conhecimento da chefia toda.

Jimmy Herrera Espinoza

Agora ex-coordenador da central estadual do Samu, em Porto Alegre, admitindo possíveis irregularidades no cumprimento dos horários de médicos, reveladas por Giovani Grizotti, do Grupo de Investigações da RBS.

Sempre estão encontrando jeito de burlar lei para não pagar imposto.

Luiz Inácio Lula da Silva

Presidente da República, após enviar ao Congresso Nacional propostas que mudam a tributação sobre fundos de altíssima renda.

O que me deixa mais feliz é poder gerar emprego.

Galvão Bueno

Comunicador, em entrevista à colunista Gisele Loeblein, na Expointer, sobre sua atuação como empresário do agronegócio.

Meu sentimento é igual ao de cada um dos gaúchos, de total e profunda indignação.

Eduardo Leite

Governador do Estado, ao comentar as revelações sobre supostas fraudes no Samu.

Eu vejo, muitas vezes, isso ser tratado como uma espécie de ação ?Robin Hood?, de uma revanche, e não é nada disso.

Fernando Haddad

Ministro da Fazenda, ao defender a taxação dos fundos de super-ricos.

Estamos numa fase que exige 100%. Se sair meio dormido no primeiro jogo, pode levar dois ou três e depois custa muito. Fomos bem nesses jogos de mata-mata.

Enner Valencia

Jogador do Inter, sobre o confronto na semifinal da Libertadores da América contra do Fluminense.

Uma denúncia pode ser, inclusive, anônima, mas tem que existir formalmente.

Arita Bergmann

Secretária estadual da Saúde, ao confirmar que denúncias sobre o Samu chegaram ao governo, mas não avançaram por falta de formalização.

Não há segredo, é trabalho sério e compromisso com o povo e com o futuro do país.

simone tebet

Ministra do Planejamento e Orçamento, sobre o resultado do Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre, que veio com alta de 0,9%, em comparação com os primeiros três meses de 2023.

Não é porque eu tenho dinheiro que estou bem. Tudo isso que eu fiz também é feito no SUS, e isso precisa ser valorizado. É importante que todos se informem sobre, e essa será agora a minha missão.

Fausto Silva

Apresentador de TV, que fez questão de exaltar o SUS e a família do doador que permitiu o seu transplante de coração.

Além de pintor, o artista italiano Michelangelo, ícone do Renascimento no século 16, foi um proeminente escultor. São dele duas obras marcantes da arte ocidental: David, sobre a qual escreverei na próxima semana, e Pietà (abaixo).

Criada em 1499 a pedido de um cardeal francês, a estátua de quase dois metros de altura representa Jesus morto nos braços da mãe. Ainda que a mesma imagem tenha sido reproduzida por um número infindável de artistas, a mais famosa é a de Michelângelo. Esculpida em mármore de Carrara, ela está na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Repare no realismo dos traços e nos detalhes impressionantes, como as dobras de roupas, os semblantes e os gestos.

JULIANA BUBLITZ

sábado, 26 de agosto de 2023

26/08/2023 - 09h00min
Martha Medeiros

Livraria de verdade precisa ter o cheiro do tempo

É preciso que o cliente se esgueire entre as estantes, esbarre em preciosidades, tropece em edições de 20 anos atrás.Livrarias que honram seu nome precisam dedicar-se à arte de acolher

As livrarias mais encantadoras nasceram do sonho de alguém. Não deixam de ser um negócio, claro, mas foram concebidas, antes de tudo, como realização de um projeto pessoal, uma declaração de amor à cidade onde abriram suas portas. 

Tornaram-se reais através do desejo de se ter um lugar para fugir do que é hostil e estéril. São livrarias idealizadas mais pela inocência do que pela ajuda de uma calculadora.

Livraria de verdade precisa ter o cheiro do tempo. Não pode ter iluminação hospitalar. Nem muito espaço para caminhar. É preciso que o cliente se esgueire entre as estantes, esbarre em preciosidades, tropece em edições de 20 anos atrás. 

Não apenas os últimos lançamentos e best-sellers. Livros! Livros desabando sobre nossas cabeças, empilhados nos cantos, desalinhados nas prateleiras, livros em idiomas diversos, livros que você um dia não pôde comprar por não ter dinheiro (faz de conta que hoje tem), livros difíceis de encontrar, livros que acabaram de sair da gráfica, livros de autores que já morreram (mas que nunca morrerão), livros clássicos e revolucionários, livros bons, livros ótimos e os fenomenais.

De onde saiu essa nostalgia toda? Foi despertada pela história de Sylvia Beach, que fundou a icônica Shakespeare and Company nos anos 20 do século passado, em Paris (décadas antes de a loja ser transferida para as margens do Sena e ter virado o ponto turístico que é hoje). 

A despeito das facilidades digitais, você também ama livrarias? Então, leia A Livreira de Paris, de Kerri Maher. É uma viagem. Espirrei algumas vezes e fui muito feliz durante a leitura.

Daqui até o fim do ano percorrerei eventos literários Brasil afora para lançar minha nova coletânea de crônicas, o que sempre dispara meus batimentos cardíacos. 

Na próxima quarta-feira, dia 30, autografarei Conversa na Sala em uma das minhas livrarias preferidas do Rio de Janeiro, a Travessa, em Ipanema, com seu chão de azulejos portugueses, mesão de madeira ao fundo, poltronas de couro, funcionários que entendem do ramo e uma clientela de fé. Se você estiver por perto, te vejo lá às 19h, para as selfies invariáveis e para fugirmos juntos do que é hostil e estéril.


26/08/2023 - 09h00min
Claudia Tajes

É alegria, mas pode chamar de assédio

Ele disse que não foi por mal, mas quem vê o beijaço que Luis Rubiales tascou na Jenni Hermoso tem lá suas dúvidas. Efeito Rubiales: imagina se a moda pega na festa de premiação da firma?

Ele disse que não foi por mal, coisa do calor da emoção – e de comum acordo. Mas quem vê o beijaço que o presidente da Federação Espanhola de Futebol tascou na Jenni Hermoso, jogadora campeã do mundo, tem lá suas dúvidas sobre o tal comum acordo.

Primeiro que o presidente saliente, Luis Rubiales, segurou a cabeça da guria de um jeito que, nem se ela quisesse, escapava daquela boquinha ardente. Isso depois de um abraçaço de corpo inteiro, desses em que cabe a um dos envolvidos – no caso, à moça – afastar a parte de baixo do próprio corpo para não encostar em órgãos alheios indevidos.

Está no vídeo: primeiro ele apertou a jogadora, depois grudou-lhe um beijo na boca. Ainda dá a impressão de que, na saída, Rubiales só não deu um tapa na bunda da Jenni porque se lembrou – milagrosamente – de que aquilo não era uma parrilla na garagem da casa dele, e sim um evento transmitido para o mundo todo. Mas que o mãozão do dirigente concupiscente pegou no terço final das costas da atleta, pegou.

Consta que a Jenni Hermoso entrou no vestiário reclamando do acontecido. A imprensa repercutiu na hora e, em lugar das imagens dela em um lance do jogo ou segurando a taça, foi a foto da Jenni sendo beijada pelo Calvo da Sangria que correu o mundo. 

Isso, é claro, jamais aconteceria com um jogador homem. No máximo dos máximos, ele seria obrigado a usar um manto real bordado de fios de ouro, como o Messi teve que vestir para levantar a taça na Copa do Catar. E a gente já achou o fim da picada.

As reações contrárias à atitude do presidente inconveniente foram imediatas. O ministro do Esporte da Espanha classificou o fato como absurdo. A ministra dos Direitos Sociais perguntou: se fazem isso com toda a Espanha assistindo, o que não farão longe dos nossos olhos? 

A deputada Martina Velarde, do Podemos, que na Espanha é um partido socialista, não passou pano. “Quantos Rubiales tivemos que aturar ao longo da nossa vida, quanta cumplicidade já aguentamos de camaradas e machões que os encorajam e defendem. Tantas situações incômodas e desagradáveis. Nojo”.

O presidente lascivo é reincidente em bandalheira. Pouco antes, tinha sido flagrado comemorando o gol da sua seleção ao lado da Rainha e de outros integrantes da realeza e do governo espanhol. 

Nessa tribuna de honra, em que um mínimo de protocolo seria de bom gosto mesmo na alegria, Rubiales pulou, gritou e segurou o pinto como quem diz, ó o orgulho espanhol. Aí já merecia o cartão amarelo. Então veio o beijo na boca da Jenni Hermoso. Cartão vermelho para ele.

Diante do escândalo do presidente libidinoso, Jenni Hermoso se pronunciou através da Federação Espanhola de Futebol, o que não deixa de ser um tanto suspeito. Segundo a cartolagem, a jogadora declarou que “foi um gesto mútuo e totalmente espontâneo pela imensa alegria que dá conquistar uma Copa do Mundo”. Até a mãe da Jenni veio a público minimizar o ocorrido: “Elas são campeãs, isso que importa”.

Já Rubiales gravou um vídeo de supostas desculpas em que começa falando da alegria de vencer a Copa e emenda: “mas também há um incidente que tenho de lamentar, por tudo o que aconteceu entre uma jogadora e eu”. O cara de pau ainda dividiu com a Jenni a responsabilidade pela bola fora dele. E foi além: “não percebemos o que se passou, porque considerávamos algo natural, normal e sem qualquer má-fé”.

Se o beijo na boca foi assédio sexual, essas são as desculpas mais parecidas com assédio moral que eu já vi na vida. A Espanha é a campeã da Copa do Mundo Feminina. Mas esse Rubiales, eita sujeitinho de décima divisão.


26 DE AGOSTO DE 2023
DRAUZIO VARELLA

ABUSO DE REDES SOCIAIS

O cérebro humano é uma máquina que a seleção natural moldou para o aprendizado. Acontecimentos rotineiros não nos emocionam, somos ávidos por experiências novas que nos surpreendam de forma agradável.

Na evolução, foi desenvolvida uma rede complexa de mediadores químicos para reconhecer os estímulos ligados às sensações de prazer, com a finalidade de distingui-los daqueles inócuos e dos que nos causam mal estar. Para o cérebro, o que dá prazer deve fazer bem para o funcionamento do organismo.

Esse mecanismo foi tão importante para a sobrevivência da nossa espécie, que arquitetamos uma rede extensa de circuitos de neurônios e de mediadores químicos encarregados de reconhecer e transmitir as sensações de bem estar e de prazer. Eles explicam porque gostamos tanto de alimentos saborosos, de temperaturas amenas e de relações sexuais.

Conectada aos circuitos envolvidos no reconhecimento dessas sensações, há outra rede de neurônios, incumbida de disparar os estímulos comportamentais necessários para irmos à busca da repetição daquilo que nos trouxe prazer.

Nossas ações são reguladas pelo equilíbrio (ou pela falta dele) entre essas duas circuitarias. Na depressão, por exemplo, a dificuldade em reconhecer os estímulos associados à alegria e à felicidade conduz à falta de motivação para ir em busca deles. Em sentido contrário, estão as motivações que nos levam a tomar banho, bem como as que explicam o retorno do desejo sexual depois da abstinência.

A seleção natural, entretanto, não contava com a capacidade humana de subverter esse mecanismo natural por meio da administração de drogas psicoativas ou de comportamentos repetitivos que provocam prazer intenso, inatingível no cotidiano.

Ao cheirar cocaína, fumar maconha, cigarro ou tomar café, ocorre liberação de diversos mediadores químicos que atuam nas sinapses, entre os quais a dopamina, a "molécula motivacional" por excelência. A explosão de prazer causada por eles ativa a circuitaria encarregada da busca para repeti-los. Esse mecanismo explica porque o usuário de cocaína continua repetindo a dose mesmo quando entra em "paranoia". Uma vez ativada a circuitaria da busca, o comportamento se repete ainda que o prazer tenha desaparecido.

O que as mídias sociais têm a ver com as drogas psicoativas?

Diversos estudos demonstraram que a dopamina é um neurotransmissor sensível aos estímulos das mídias digitais. Quando consumimos em série vídeos no YouTube, TikTok, Instagram, podcasts, ocorre liberação de dopamina nos centros de recompensa, os mesmos ativados pela cocaína, maconha e o cafezinho. Um "like", um post, uma imagem no Instagram ou uma dancinha no TikTok provocam pequenos picos de dopamina nas sinapses.

É claro que esses picos são muito mais baixos do que aqueles provocados pelas drogas psicoativas, porém são projetados pelos técnicos das plataformas para ativar os circuitos de recompensa de forma continuada e persistente.

Num mecanismo semelhante ao da abstinência de cocaína, a liberação exagerada de dopamina é seguida por um período em que sua produção fica tão baixa que surge ansiedade e depressão. O usuário, então, corre atrás do celular, não para ficar feliz, mas para se livrar dos sintomas da abstinência. Por isso, caro leitor, você fica com aquela sensação de "vazio" depois de passar horas vendo imagens e mensagens postadas na tela.

As mídias sociais quebram o equilíbrio que existe entre prazer e recompensa, quando os picos de dopamina são obtidos por meios naturais, no decorrer do dia: as refeições, o encontro com amigos, o sorriso da criança, o livro.

As crianças e os adolescentes são as maiores vítimas desse comportamento problemático. Ficam de tal modo dependentes das redes sociais, que são capazes de passar o dia inteiro diante da tela, em busca do prazer que já nem sentem na intensidade de antes. Seus circuitos de recompensa foram sequestrados por um hábito de aparência inocente

Do ponto de vista molecular, não é parecido com o que acontece na dependência de drogas ou no jogo?

O impacto deletério a curto prazo da tecnologia digital nas vidas de crianças e adolescentes não é pequeno: isolamento social, vida sedentária, obesidade, desinteresse pelos livros. E, no futuro? Não temos a menor ideia.

DRAUZIO VARELLA