terça-feira, 5 de maio de 2009



05 de maio de 2009
N° 15960 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


As páginas de um livro

Somos um país de 95 milhões de leitores – e dois terços deles vêm da escola. A revelação é de uma reportagem de Carlos André Moreira e Paulo Germano, publicada há poucos dias em Zero Hora. Baseado na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, o texto ensina que, por melhor que seja a escola, uma criança só continuará a ler por encantamento – e não por obrigação – se encontrar apoio no ambiente familiar.

Comigo aconteceu o contrário: o lar veio antes da escola. Cresci numa casa em que o livro era artigo de primeira necessidade. Por toda parte havia volumes abertos, enormes prateleiras em que se perfilavam lombadas de todos os calibres e – numa época em que a televisão era uma remota novidade americana – meus pais reuniam amigos à noite para ouvir música e comentar o que estavam lendo.

Muito antes de eu aprender a combinar uma letra com outra, ganhava livros de presente e primeiro ouvia minha mãe contar suas histórias e após tentava reinventá-las decifrando aqueles caracteres misteriosos. Só depois disso a escola foi o caminho natural.

Em outras palavras, não foram os professores que despertaram meu amor pelos livros. Eu já o levava de casa. Creio que foi esse o maior presente que me deram. Em aniversários, Páscoa, Natal, ninguém precisava me perguntar o que eu gostaria de receber. Meus irmãos e eu dizíamos que simplesmente livros.

É uma excelente notícia a de que hoje são as escolas que despertam o apreço pela leitura. Mas essa notícia será melhor ainda quando o apego começar em cada lar. Pois essa é uma missão indelegável dos pais.

Já contei aqui que estive na inauguração da primeira Feira do Livro de Porto Alegre, no distante ano da graça de 1955. Eu era um guri de 10 anos e percorri aquelas tímidas barracas com um olhar de deslumbramento.

Meu pai foi o orador da solenidade, no lado de cá da Praça da Alfândega, e creio que o discurso que fez, dizendo que não há democracia sem cultura, foi o melhor de sua vida.

Eram palavras que eu recordava a cada vez que ele chegava em casa e me estendia a mais bela das dádivas: a das páginas de um livro.


05 de maio de 2009
N° 15960 - CLÁUDIO MORENO


As derradeiras palavras

Para um grego antigo, as derradeiras palavras que alguém pronunciava eram as mais importantes de toda sua vida. Em Troia, o guerreiro agonizante, suspenso por um breve instante entre o mundo humano e o divino, era ouvido com respeito por amigos e inimigos, pois sua fala tinha a autoridade de quem já entrevia o outro lado.

Homero, por exemplo, fez a lança de Aquiles atravessar o pescoço de Heitor sem atingir sua traqueia, a fim de que ainda pudesse dizer alguma coisa antes que a alma deixasse seu corpo.

O que aconteceu com Ulisses nunca mais se repetiu. Quando sua mãe morreu, ele estava tão longe que sequer pôde ser informado; há dez anos tinha deixado sua amada Ítaca para se juntar aos exércitos gregos, e desde então nunca mais tinha recebido notícias de casa.

Quando a guerra terminou, na sua longa viagem de volta, entre os muitos perigos que enfrentou, teve de descer ao mundo dos mortos para consultar Tirésias, o adivinho, sobre o seu futuro e o de sua família - e lá, no meio das sombras, avistou, aturdido, o espírito de Anticleia, que ele julgava ainda viva. Ela se aproximou, carinhosa, feliz de encontrar o filho assim, tão forte e saudável; Ulisses, contendo as lágrimas, quis saber que doença a tinha arrebatado.

“Não foi doença, querido. Senti falta demais de tua ternura e de tua vivacidade, e me deixei morrer. Volta logo para casa, que teu pai, tua mulher e teu filho te esperam ansiosamente”. Apesar da tristeza, Ulisses saiu dali agradecido aos deuses por terem permitido aquele encontro milagroso, sem o qual nunca teria colhido as últimas palavras da mãe e a bênção de seu olhar.

Fora da mitologia, o romano, povo prático, adquiriu o curioso (e assustador) hábito de usar o testamento para fixar as derradeiras palavras dirigidas aos que ficavam. Além de dispor de seus bens, o testador aproveitava a oportunidade para revelar seus verdadeiros sentimentos para com as outras pessoas, familiares ou não.

A leitura era pública e atraía um grande número de curiosos; como se pode imaginar, esses julgamentos póstumos podiam fazer ou destruir reputações, pois supunha-se que o autor, agora já fora de alcance, não mais teria a necessidade de esconder o que pensava. “Os romanos”, disse um grego rabugento, “só dizem a verdade depois que morrem”.

Alguns defendiam esse estranho costume como a preocupação legítima de um povo que, conhecendo muito bem a fragilidade da vida, procurava, pelo testamento, assegurar-se de que os outros haveriam de ouvir o que ele tinha a dizer. Um filósofo irônico como Diógenes, no entanto, batendo o pó das sandálias, não deixaria de fazer a pergunta que até uma criança faria:

“Por que não disseram tudo isso antes que fosse tarde demais?”

domingo, 3 de maio de 2009


Thomaz Favaro

Memória é o que não vai faltar

O disco holográfico, desenvolvido pela GE, armazena 500 gigabytes e custa, proporcionalmente, menos que um disco blu-ray

Algumas tecnologias surgem na hora certa para causar uma revolução. Outras são revolucionárias, mas aparecem na hora errada e não causam tanta sensação. Qual será o caso do disco holográfico, uma nova tecnologia de armazenamento digital de dados anunciada pela General Electric na semana passada?

De tamanho convencional, o produto tem capacidade para armazenar 500 gigabytes de informação, o equivalente a 100 DVDs – o que é um desempenho sensacional. Quando foram lançados, o CD, em 1982, e o DVD, em 1995, mudaram tudo o que se conhecia nessa área.
O primeiro armazenava 200 vezes mais dados que a tecnologia antecessora e representou uma revolução na indústria fonográfica. O segundo ultrapassou a marca dos gigabytes, permitindo a gravação de filmes inteiros numa única mídia. Já com o blu-ray, lançado há seis anos, foi diferente. Apesar de aumentar a capacidade de armazenamento, tornou-se apenas mais uma alternativa entre outras tantas.

"A nova tecnologia holográfica terá de competir também com outras formas de armazenamento, como HDs externos, pen drives e o cloud computing, a estocagem de dados em servidores gigantes e remotos acessados pela internet", diz Waldemar Schuster, analista da International Data Corporation (IDC), instituto especializado em tecnologia.

O nome da tecnologia faz alusão à possibilidade de aproveitar todas as três dimensões do disco para arquivar dados. Ao contrário das mídias ópticas, nas quais os dados são "escritos" numa fina camada de metal, toda a espessura do disco holográfico é composta de um material fotossensível, capaz de armazenar informações.

Há outras pesquisas com armazenagem holográfica em andamento. Uma empresa americana anunciou neste ano planos de introduzir um sistema que usará máquinas de 18 000 dólares e discos igualmente caros. A GE tomou um caminho diferente.

Reduziu a qualidade do holograma para baratear o produto e atingir um público mais amplo. A tecnologia ainda está em fase de laboratório e precisa ser adaptada para a produção em massa. "Nosso objetivo é, com pequenos ajustes, dobrar a capacidade de armazenamento até a data de lançamento do produto, em 2012", disse a VEJA o americano Brian Lawrence, chefe do programa de armazenamento holográfico da GE.

O preço por gigabyte do disco holográfico é estimado em 10 centavos de dólar, contra 50 centavos do Blu-ray. Essa pode ser uma vantagem competitiva. Estima-se que três quartos dos gastos com tecnologia da informação de uma empresa vão para a ampliação da capacidade de armazenamento de dados.

Baratear o custo é uma necessidade crucial para estúdios de cinema, redes de TV e hospitais. Se o disco holográfico conseguir reduzir parte desses gastos, talvez consiga, afinal de contas, desencadear sua própria revolução tecnológica.


Lya Luft

Esse poço tem fundo?

"É frágil uma democracia na qual pobres e ricos, jovens e velhos, reagem com um dar de ombros quando se fala nesses desmandos, nesses abusos,
nessas verdadeiras loucuras – as que sabemos e as piores, que ainda ignoramos"

Houve um tempo em que se ensinava às crianças que, se a gente furasse um poço dias e dias e anos e anos a fio, chegaríamos ao Japão (ou era China que diziam?) e estaríamos no meio de crianças orientais de olhos puxados e costumes muito diferentes. Menina de cidade do interior, só conheci a maravilhosa cultura oriental muitos anos depois.

Adulta, descobri que a vida tem outros poços, nem todos divertidos. Um deles agora se afunda como se não tivesse chão: o poço dos escândalos nossos de cada dia, o poço da nossa desolação e dos nossos enganos. Percebo que, a pior das situações, raras pessoas ainda se dão ao trabalho de se preocupar de verdade. A maioria, talvez para suportar tantos desencantos, dá de ombros dizendo que é isso mesmo, as coisas são assim, no Brasil é assim, no mundo inteiro está ficando assim, e afinal "não tem problema".

Ilustração Atômica Studio

Propriedades produtivas são invadidas sob proteção não se sabe de quem: ninguém parece fazer nada. Congressistas e senadores fazem farras inimagináveis quando ainda acreditávamos neles: não tem problema. Mensaleiros continuam sendo processados, mas não sei que tenham perdido a honra, ou vivam execrados. Agora, no Supremo Tribunal do país, ministros batem boca diante de telespectadores atônitos: parece que perdemos o último baluarte da nossa esperança.

Mas fiquem tranquilos, não tem problema.

Não devemos nos espantar com a generalizada quebra de autoridade. Tudo numa boa, por aqui é assim. Sem stress, que dá rugas, sem exageros, que a gente vira um chato.

Que povo estamos nos tornando? Ignoramos essas circunstâncias, que agora não são apenas corrupção escancarada e impune, mas falta de compostura de quem era a última instância de nossa vida problemática, derradeira inspiração para a desorientada juventude nossa. Mas não ignoramos por sermos ignorantes, e sim porque nos dizem que está tudo numa boa, e não adianta reclamar.

A gente se acomoda, se distrai, olha para o outro lado, porque a capacidade de reagir nos foi lentamente, subliminarmente, retirada. Não por sermos um povo acomodado ou superficial, mas mergulhado num estado geral de desinteresse – e isso contagia feito uma nova doença, uma gripe de derrotados nem sempre suínos. Algo negativo e sombrio perpassa este país, e nem os trios elétricos nem zabumbas nem carnavais ou belas danças típicas do interior conseguem disfarçar.

É frágil uma democracia na qual pobres e ricos, jovens e velhos, reagem com um dar de ombros quando se fala nesses desmandos, nesses abusos, nessas verdadeiras loucuras – as que sabemos e as piores, que ainda ignoramos.

(Pois, quanto à chamada farra das passagens, dizem os que sabem das coisas que o pior vai permanecer oculto, não por último para preservar, em alguns casos, a solidez da santa família brasileira.) A gente ou sabe ou imagina, e comenta como se fosse engraçado: quem ainda acredita nos políticos? Quem ainda tem fé nas instituições?

Olhe só o que está acontecendo por aí, e nem é de hoje. Nem vai se corrigir, ao contrário: cada vez aparece algo mais sério, mais sinistro, objeto de reais ou falsas investigações tantas vezes desfocadas e ineficientes, ou aparentemente rigorosas. Sentimos uma lufada de otimismo, agora, sim, a coisa vai endireitar... mas logo se desfaz diante do comentário que vem do alto: tudo resolvido, não tem problema.

Tem problema. Tem muito problema. Não é normal, não é assim o Brasil, não são assim os brasileiros. A falta de autoridade de tantos líderes contamina feito uma gosma escura, uma doença maligna corroendo a decência neste país, tirando-nos discernimento e capacidade de julgar.

Fingimos não saber, fingimos nem ligar. Aos mais simples, como às crianças e jovenzinhos, é repetido que está tudo bem, tudo em ordem. "Não tem problema." Assim, descrentes e céticos, protegem-se com um precoce cinismo, que afinal é um jeito (pobre) de sobreviver na selva moral.

Lya Luft é escritora


Mudanças climáticas são piores do que se pensava

Novos estudos mostram que as previsões catastróficas feitas pelo Painel da ONU em 2007 eram tímidas. A situação é mais grave
Marcela Buscato

DESMANCHE

Cientista observa blocos de gelo em processo de derretimento na Antártica. Na última década, o degelo aumentou em 75%, segundo dados revisados



Representantes da Itália e da Suíça sentaram-se à mesa de negociações para solucionar um problema que pensavam ter resolvido há quase 70 anos: onde começa e termina cada país. Em 1941, quando as fronteiras foram formalizadas, pareceu uma boa ideia usar como marco as geleiras dos cumes dos Alpes, um cartão-postal da Europa. Elas representavam uma referência atemporal. Mas, com o aquecimento global, parte da neve derreteu. E sumiu com a divisão entre os países.

Italianos e suíços resolveram o problema pacificamente: vão usar como parâmetro as rochas expostas pela ausência da neve. Mas o contratempo diplomático mostrou que os impactos mais drásticos das mudanças climáticas já estão acontecendo. E, de acordo com uma nova leva de pesquisas, mais rápido do que se previa.

Estudos recentes mostram que a velocidade do aquecimento global está acelerada se comparada ao que previram há apenas dois anos os cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), a cúpula internacional reunida pelas Nações Unidas para estudar o fenômeno.

As novas pesquisas reúnem dados mais recentes que os compilados no último relatório do IPCC, que em geral datam de 2005. Além de atuais, os últimos estudos são mais precisos porque os pesquisadores conseguiram analisar uma escala maior de tempo, o que confere exatidão à detecção de tendências. “Já estamos no pior cenário previsto pelo IPCC”, afirma a oceanógrafa americana Katherine Richardson, pesquisadora da Universidade de Copenhague, na Dinamarca.

“A situação é até pior que o estimado no caso do degelo do Ártico e da elevação do nível do mar.” (Leia a entrevista) Em março, Katherine e cientistas de vários países se reuniram em Copenhague para dar esse recado ao mundo. Foi a forma que eles encontraram para alertar os políticos que se encontrarão em dezembro, também em Copenhague, para votar um novo acordo para cortar emissões.

Ao lado do biólogo americano Christopher Field, da Instituição Carnegie para Ciência, em Washington, e do climatologista James Hansen, do Instituto Goddard da Nasa, a agência espacial americana, Katherine é uma das cientistas mais ativas no alerta sobre o aquecimento global.

Field estuda como as plantas e os ecossistemas responderão ao aumento da temperatura e tem declarado que o mundo está diante de um futuro climático além de qualquer previsão pessimista. Hansen, que desde a década de 1980 faz advertências sobre o aquecimento global, diz que a sociedade tem menos de uma década para frear as mudanças climáticas se não quiser viver em um planeta irreconhecível.

A maioria dos pesquisadores é mais reticente. Eles temem que afirmações catastróficas desestimulem as mudanças necessárias para diminuir as emissões. Um segundo motivo é o rigor científico. Como qualquer investigação científica, suas medições e análises carregam um grau de incerteza. Para não dar declarações exageradas, muitos pesquisadores acabam não enfatizando o suficiente suas conclusões.

“Sinto-me decepcionado em como demoramos para convencer a sociedade de que o aquecimento global é uma ameaça real”, diz o glaciologista americano Robert Bindschadler, pesquisador da Nasa que há 25 anos estuda o continente antártico. “A maior parte dos cientistas está perplexa com a eficiência dos céticos em destacar as incertezas de nossas pesquisas.”

Apesar da cautela dos cientistas, as evidências reunidas nos últimos quatro anos não deixam dúvidas da escalada das mudanças climáticas. E elas devem integrar o próximo relatório do IPCC, em 2014.

“Algumas consequências do aquecimento já são irreversíveis, como a expansão da área tropical no planeta”, afirma o meteorologista alemão Thomas Reichler, pesquisador da Universidade de Utah, nos Estados Unidos. Reichler diz que em Salt Lake City, onde mora, o verão já está mais seco e as chuvas devem diminuir pelo menos 10% nos próximos anos. É uma previsão preocupante para uma região desértica. “Nossas ações hoje é que ditarão quão ruim a situação vai ficar no futuro.”

Segundo os cientistas, não estamos fazendo o que poderíamos para diminuir a emissão de gás carbônico, o principal responsável pelo aquecimento global. Desde a Revolução Industrial, no século XVIII, nós o emitimos em atividades como a queima de petróleo e carvão para gerar energia.

Ele esquenta o planeta, porque forma uma camada de gás na atmosfera que retém o calor do Sol. Agora que sabemos disso, deveríamos diminuir as emissões. Em vez disso, elas estão aumentando. E em um ritmo que resultaria no pior cenário antecipado pelo IPCC: o planeta ficaria 6,4 graus célsius mais quente antes do fim do século.

O trabalho de um consórcio internacional de cientistas, o Global Carbon Project, mostrou que só entre 2000 e 2004 o crescimento anual das emissões triplicou, de 1,1% por ano nos anos 1990 para 3%. A industrialização de países como China e Índia, com base na queima de carvão, seria a principal causa desse aumento. Em 2004, os países em desenvolvimento teriam contribuído com 73% do aumento das emissões globais.

O cenário mais otimista previsto pelo relatório do IPCC (um acréscimo de “apenas” 2 graus na temperatura) já é considerado improvável. O Hadley Center, no Reino Unido, referência internacional em modelos climáticos, refez suas previsões no ano passado e sugeriu um futuro ainda mais quente. Mesmo que as emissões caiam 3% ao ano a partir de 2010, a temperatura aumentaria no mínimo 2,9 graus em 2100. No ritmo atual, seriam 7,1 graus a mais.

O impacto seria avassalador. Nas contas do IPCC, 4 graus a mais fariam com que o nível do mar subisse até 59 centímetros. Seria o suficiente para desabrigar 313 milhões de pessoas, cerca de 5% da população mundial. Hoje, essa previsão é considerada conservadora demais. Os cientistas já dão como certa uma elevação do nível do mar em 1 metro até 2100. Cerca de 600 milhões de pessoas ficariam desabrigadas.

Segundo estudos, 5% do fundo congelado do Oceano Ártico já começou a liberar metano


A revisão das projeções foi provocada por novas análises do comportamento do oceano nos últimos milhares de anos. E por novos dados que mostram a aceleração do derretimento da Antártica. Pesquisadores da Universidade da Califórnia constataram que, entre 1996 e 2006, o degelo na Antártica aumentou 75%.

A parte mais vulnerável é o oeste do continente. Lá, os cientistas observam a aceleração do derretimento de grandes geleiras como a Pine Island, que mede 250 quilômetros de comprimento. “Geleiras como essa podem derreter em uma questão de séculos”, diz Bindschadler, da Nasa. “Isso elevaria o nível do mar em 5 metros.”


03 de maio de 2009
N° 15958 - MARTHA MEDEIROS


Morrer em vida é fatal

Nunca esqueci de uma senhora que, ao responder por quanto tempo pretendia trabalhar, respondeu com toda a convicção: “Até os 100 anos”. O repórter, provocador, insistiu: “E depois?”. “Ué, depois vou aproveitar a vida”.

É de se comemorar que as pessoas aparentem ter menos idade do que realmente têm e que mantenham a vitalidade e o bom humor intactos – os dois grandes elixires da juventude. No entanto, cedo ou tarde (cada vez mais tarde, aleluia), envelheceremos todos. Não escondo que isso me amedronta um pouco. Ainda não cheguei perto da terceira idade, mas chegarei, e às vezes me angustio por antecipação com a dor inevitável de um dia ter que contrapor meu eu de dentro com meu eu de fora.

Rugas, tudo bem. Velhice não é isso, conheço gente enrugada que está saindo da faculdade. A velhice tem armadilhas bem mais elaboradas do que vincos em torno dos olhos.

Ela pressupõe uma desaceleração gradativa: descer escadas de forma mais cautelosa, ser traída pela memória com mais regularidade, ter o corpo mais flácido, menos frescor nos gestos, os órgãos internos não respondendo com tanta presteza, o fôlego faltando por causa de uma ladeira à toa, ainda que isso nem sempre se cumpra: há muitos homens e mulheres que além de um ótimo aspecto, mantêm uma saúde de pugilista. A comparação com os pugilistas não é de todo absurda: é de briga mesmo que estamos falando. A briga contra o olhar do outro.

Muitos se queixam da pior das invisibilidades: “Não me olham mais com desejo”. Ouvi uma mulher belíssima dizer isso num programa de tevê, e eu pensei: não pode ser por causa da embalagem, que é tão charmosa. Deve estar lhe faltando ousadia, agilidade de pensamento, a mesma gana de viver que tinha aos 30 ou 40. Ela deve estar se boicotando de alguma forma, porque só cuidar da embalagem não adianta, o produto interno é que precisa seguir na validade.

Quem viu o filme Fatal deve lembrar do professor sessentão, vivido por Ben Kingsley, que se apaixona por uma linda e jovem aluna (Penélope Cruz) e passa a ter com ela um envolvimento que lhe serve como tubo de oxigênio e ao mesmo tempo o faz confrontar-se com a própria finitude. No livro que deu origem ao filme (O Animal Agonizante, de Philip Roth), há uma frase que resume essa comovente ansiedade de vida: “Nada se aquieta, por mais que a gente envelheça”.

Essa é a ardileza da passagem do tempo: ela não te sossega por dentro da mesma forma que te desgasta por fora. O corpo decai com mais ligeireza que o espírito, que, ao contrário, costuma rejuvenescer quando a maturidade se estabelece.

Como compensar as perdas inevitáveis que a idade traz? Usando a cabeça: em vez de lutarmos para não envelhecer, devemos lutar para não emburrecer. Seguir trabalhando, viajando, lendo, se relacionando, se interessando e se renovando. Porque se emburrecermos, aí sim, não restará mais nada.

terça-feira, 28 de abril de 2009



28 de abril de 2009
N° 15953 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Um rio, um lago

Como a cidade já resolveu todos os seus problemas, volta-se a discutir se o Guaíba é um rio ou um lago. De um lado, a prefeitura considera esse belo espelho que nos abraça como um lago, obediente às conclusões do competente Atlas Ambiental deste cantinho do continente.

De outro, estudiosos argumentam que estamos diante de um curso d’água que corre de um lado para outro, sendo portanto um rio, segundo estabelece a legislação federal. No fundo – ou talvez seja melhor dizer que na superfície –, está uma questão simploriamente prática e sonante.

Nos rios, a Área de Preservação Permanente ocupa um espaço de até 500 metros junto às margens. Nos lagos, no entanto, a proteção é de apenas 30 metros, o que faz uma enorme diferença para quem quer construir um shopping ou um edifício de apartamentos.

Aqui faço ponto e vírgula para uma confissão: de minha janela contemplo a cada manhã ou um mar doce e tranquilo ou uma imensa avenida líquida que me põem em excelente disposição para enfrentar o dia. Fui condecorado com uma vista absolutamente fabulosa do Guaíba.

Me basta olhar o horizonte austral para saber se a manhã será chuvosa ou a tarde ensolarada. Acompanho as evoluções dos veleiros dos clubes náuticos e logo percebo de que quadrante sopra a aragem, ou que ventos me aguardam na rua. E sigo atento às rotas dos navios: já descobri até mesmo, demarcada por boias, a singradura de cada um.

É um panorama a que me acostumei desde os meus primeiros instantes em Porto Alegre. O avião da Varig que me trouxe de Cachoeira na idade de cinco anos sobrevoou o estuário e eu concluí na hora que em nenhum outro lugar do mundo haveria paisagem mais linda. Descobri outras depois em variados pontos do planeta, mas nenhuma que abalasse minha crença de que o Guaíba é bonito pela própria natureza.

Tenho-o agora diante do olhar. É uma coleção única de polido cristal, céus, ilhas, colinas, enseadas e nuvens. Considerando tamanho espetáculo, sou inclinado a crer que não faz sentido algum qualquer debate sobre se é um rio ou um lago. O Guaíba é belo qualquer que seja o seu nome.

Bem parabéns a todos as sogras, leitoras deste blogger. Que o dia seja iluminado para todos.

sábado, 25 de abril de 2009



26 de abril de 2009
N° 15951 - MARTHA MEDEIROS


Sapatos e sapatas

Simone de Beauvoir disse que uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher, e imagino que pra efetuar essa transformação ela precise, entre outras coisas, confirmar seu sexo através de hábitos e manias comuns à espécie. É aí que me pergunto: que tipo de mulher eu me tornei, santo Cristo?

Não gosto de falar ao telefone, por exemplo. Uso o aparelho para o que me foi ensinado: dar recados, combinar encontros, cumprimentar por uma data, agradecer uma gentileza, convidar para um jantar, resolver um pepino, marcar uma consulta, fazer um pedido. Nada que leve mais de dois ou três minutos.

Bater papo, só em ocasiões muito especiais, como matar a saudade de uma amiga que mora longe ou de um namorado que esteja viajando. De resto, e-mails. Se jogar conversa fora ao telefone for um inquestionável atributo feminino, então ainda não me tornei uma mulher comme il faut.

Tampouco me identifico com os Delírios de Consumo de Becky Bloom: acho uma chatice comprar roupa. Geralmente escolho duas ou três lojas da cidade, sempre as mesmas, e lá me resolvo a cada início de estação. Bater perna para olhar vitrine?

Só em viagem, com todo tempo do mundo, e sem ceder ao impulso de ter que entrar em cada lugar e comprar uma coisinha. Se vale para bolsas e sapatos? Vale, madames. Eu simplesmente não compreendo quem tem mais de, vá lá, 20 pares – e estou exagerando na conta porque estou incluindo tudo: tênis, sandálias de festa, escarpins, rasteirinhas, botas, chinelos de dedo e pantufas.

Pra completar meu desajuste, não sou de dar corda pra fofoca. Não gosto de falar de filhos, empregadas e liquidações. Não levo fotos em carteira. Não comemoro convites para chá-de-fralda e chá-de-panela.

Acho peito de silicone vulgar. Nunca entrei no cheque especial. Viajo com uma única mala. Repito vestidos que tenho há 10 anos. Não possuo uma única peça cor-de-rosa. Não sei fritar um ovo. Às vezes até custo a acreditar que não seja sapatona.

Pensei em pesquisar de onde saiu esse termo agressivo, sapatona, para designar mulheres homossexuais. Mas nem me dei ao trabalho, só pode ser por associação a um pé grande, como se fosse prerrogativa dos rapazes calçarem mais de 39.

Já deram uma olhada nos pezinhos das garotas de hoje? São todas ninfas diáfanas que, caso deixassem pegadas na neve, seriam confundidas com o Godzilla.

Me tornei mulher porque me tornei independente, antes de tudo. Não sou de frescura e muito menos de compulsões consumistas.

Mas ainda tenho um lado mulherzinha: choro à beça, sou louca por flores, não vivo sem meus hidratantes, aprecio o cavalheirismo, gosto de ficar de mãos dadas no cinema, devoro revistas de moda, me interesso por decoração e fico chocada quando escuto expressões grosseiras.

Ah, e calço 36.


O DIA DE ÍNDIO DE JOAQUIM BARBOSA

A descompostura quase provoca uma crise institucional no STF por causa do destempero de Joaquim Barbosa – justo ele, um ministro símbolo de coragem, cultura, inteligência e elegância

Alexandre Oltramari - Fotos Gustavo Miranda /Ag. O Globo

POLÍTICA NO TRIBUNAL

O ministro Joaquim Barbosa (à dir.) fez acusações sem provas ao presidente Gilmar Mendes: explosão de temperamento



Em 200 anos de existência, o Supremo Tribunal Federal (STF) nunca testemunhara uma explosão de temperamento tão perturbadora. Na semana passada, durante uma rude discussão sobre a aposentadoria de servidores do Paraná, o ministro Joaquim Barbosa atacou o presidente Gilmar Mendes com uma série de acusações sem fundamento que ele leu em algum panfleto partidário.

Joaquim Barbosa, culto, elegante, inteligente e corajoso relator do processo do mensalão, teve seu "dia de índio" – aquele costume civilizadíssimo de certas tribos do Xingu que concede a cada guerreiro um dia por ano em que ele pode gritar e ofender quem quiser sem sofrer retaliações.

A cena, transmitida pela tevê, começou quando Barbosa acusou Mendes de esconder informações dos colegas. Era falso. Barbosa desconhecia detalhes do processo porque estava de licença médica quando o caso foi julgado. A discussão já seria preocupante se terminasse aí. Mas ela continuou. Irritado com uma afirmação de Gilmar Mendes de que não tinha condições de dar lição a ninguém, Barbosa perdeu de vez a compostura.

"Vossa Excelência está destruindo a Justiça deste país", acusou o ministro. "Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando com seus capangas de Mato Grosso, ministro Gilmar." Mato Grosso é o estado natal do presidente do STF. Capanga é como são chamados os pistoleiros que agem ali.

A maneira inadequada com que o ministro Barbosa expôs suas divergências com o presidente do STF quase mergulhou a corte numa crise institucional. Terminado o bate-boca, o ministro se retirou do STF sem falar com ninguém. Seus colegas, porém, realizaram uma reunião fechada em busca de solução para o conflito. Houve quem defendesse a abertura de processo contra Joaquim Barbosa e até se falou na possibilidade de seu impeachment.

Afastada a sugestão mais radical, os ministros discutiram uma moção de censura pública contra Barbosa, mas também não houve consenso. A tese que prevaleceu, depois de três horas de discussão, foi a diplomática. Os ministros decidiram prestigiar Mendes, por meio de uma nota na qual lamentam o episódio e reafirmam sua confiança nele, sem mencionar uma palavra sobre o comportamento de Barbosa.

Em almoço com dois colegas no dia seguinte, Barbosa admitiu que se excedeu, principalmente ao acusar o presidente do STF de possuir "capangas", mas descartou a possibilidade de se desculpar publicamente pelo episódio. O presidente do STF, por sua vez, também preferiu encerrar o caso. "Não há crise, não há arranhão. A imagem do Judiciário é a melhor possível", disse Mendes.

Ao contrário do que a altercação da semana passada sugere, Mendes e Barbosa têm muitos pontos de comunhão profissional e pessoal. Ambos estudaram na Universidade de Brasília, ingressaram no Ministério Público por concurso e complementaram seus estudos no exterior.

A dupla também comunga o mesmo temperamento explosivo, embora esse traço de personalidade seja mais visível em Barbosa, que já se desentendeu com sete de seus colegas no STF e no Tribunal Superior Eleitoral. Mendes, ex-assessor de Fernando Henrique Cardoso e ex-ministro da Advocacia-Geral da União, foi indicado pelo presidente tucano em 2002.

Barbosa, filho de pedreiro, que sempre estudou em escola pública, recebeu a toga de Lula em 2003. Foi escolhido por seus inegáveis méritos jurídicos, mas também pela disposição do presidente da República de nomear alguém com o perfil de Barbosa.

As rusgas entre Mendes e Barbosa, evidentemente, afloraram muito mais pelo que os separa do que pelo que os une. Ambos têm visões de mundo antagônicas. Considerado um elitista pelos adversários, Mendes costuma ser criticado pela maneira arrogante com que expõe suas ideias em público.

Deve-se a ele, contudo, o recente desmonte do estado policial que começava a fincar estacas no coração da democracia brasileira. Já Joaquim Barbosa é considerado um procurador da República disfarçado de ministro.

Ele acha que o clamor popular deve ser levado em conta pelos juízes, principalmente quando se trata de punir ricos e poderosos, e discorda das críticas que Mendes tem feito à Polícia Federal e ao Ministério Público. O ministro terá uma chance e tanto de colocar em prática suas convicções.

Ele é o relator do processo criminal contra os 39 réus do mensalão, o esquema petista que desviava dinheiro público para corromper parlamentares no Congresso em troca de apoio ao governo. Barbosa já deu sinais inequívocos de que dará uma lição de isenção e coerência no caso do mensalão – este, sim, fornido de provas.

Divulgação

Rabugento e poderoso

Por que o inglês Simon Cowell é uma das personalidades mais importantes do showbiz
Sérgio Martins

INSULTOS MILIONÁRIOS

Simon Cowell: ele recebe 36 milhões de dólares por ano da rede americana Fox para estrelar American Idol

Numa entrevista recente, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, definiu desta maneira a atmosfera política ácida na capital de seu país: "Washington é como American Idol – exceto que todos são Simon Cowell". A menção a Simon Cowell é um bom indício da notoriedade que esse inglês de 49 anos conquistou – não apenas na cultura popular dos Estados Unidos, mas ao redor do mundo.

Na bancada julgadora do célebre show musical, ele tornou-se um personagem antológico: o jurado rabugento, implacável, brutal. Mas Cowell tem outra faceta, que veio ao primeiro plano nos últimos quinze dias: a de empresário do showbiz. Foi a escocesa Susan Boyle que ajudou a ressaltar esse outro lado.

A esta altura, as imagens da mulher feiosa mas de voz excepcional, interpretando de maneira emocionante a canção I Dreamed a Dream, já foram vistas mais de 100 milhões de vezes somente no site YouTube. A apresentação original, contudo, aconteceu no Britain’s Got Talent, um show de calouros da TV britânica que tem Cowell não apenas como jurado, em seu papel habitual, mas também como "dono" (ele produz o show e detém seu formato). Logo ficou claro que Cowell vai lucrar muito com a ascensão dessa diva inesperada.

A audiência do Britain’s Got Talent certamente crescerá nas próximas etapas da competição, com os ganhos publicitários que isso acarreta. Além disso, os direitos sobre a carreira musical de Susan pertencem a Cowell, que já anunciou: "É claro que vai haver um disco". Ainda que seja a mais sensacional descoberta de Cowell, Susan não é a primeira nem a única no plantel de sua empresa, a Syco.

Além do Britain’s Got Talent, no ar desde 2007, ele está nos bastidores de um outro programa de sucesso, o The X Factor (iniciado em 2004). Estima-se que já tenha amealhado uma fortuna de mais de 200 milhões de dólares.

Cowell é filho de um ex-executivo da gravadora EMI e de uma dançarina. Entrou para a indústria musical nos anos 70 e na década seguinte lançou seu próprio selo, o Fanfare – que faliu em 1988.

Poucos meses depois, foi contratado como diretor artístico da gravadora BMG e investiu na contratação de artistas pop meio chinfrins, como o grupo Westlife e a cantora Sonia. Então, em 2001, seu amigo Simon Fuller, mentor das Spice Girls, criou um programa de calouros chamado Pop Idol e o convidou para ser jurado.

Suas tiradas contra os candidatos eram tão venenosas – e tão divertidas – que Cowell foi exportado para a versão americana do programa, o American Idol. O resto é história. Com audiência média de 25 milhões de pessoas, esse show tornou-se não apenas o carro-chefe do canal pago Fox, mas o programa mais popular da TV americana. Cowell, a estrela, tem salário de 36 milhões de dólares por ano.

DIVA INUSITADA

Susan Boyle no Britain’s Got Talent: a mais sensacional descoberta de Cowell – mas não a única

No começo deste mês, Cowell deu uma entrevista ao jornal inglês The Daily Mirror afirmando que pode deixar o American Idol no fim de 2009. Ele diz estar cansado. Deve ser verdade. Sua vida tornou-se um vaivém entre Inglaterra e Estados Unidos. Num dia ele está num lado do Atlântico, castigando calouros do American Idol; no dia seguinte, está no lado oposto, produzindo e estrelando seus próprios shows.

Nem mesmo a estafa mais profunda deve tornar fácil a decisão de abdicar da dinheirama de 36 milhões de dólares. Mas Cowell deve ter feito as contas. Seu contrato com a Fox impede que ele venda uma versão do Britain’s Got Talent (que já está em quarenta países) nos Estados Unidos. Desfeito o vínculo com a emissora, ele ganharia liberdade para levar ao país o seu próprio show.

Dias depois da já mencionada entrevista de Obama, Cowell foi ao mesmo programa, o do apresentador Jay Leno, que lhe pediu um comentário. Sua resposta: "Provavelmente Obama quis dizer que as pessoas agora estão mais inteligentes em Washington". Vá discutir com ele...


Mudanças climáticas são piores do que se pensava

Novos estudos mostram que as previsões catastróficas feitas pelo Painel da ONU em 2007 eram tímidas. A situação é mais grave
Marcela Buscato

DESMANCHE



Cientista observa blocos de gelo em processo de derretimento na Antártica. Na última década, o degelo aumentou em 75%, segundo dados revisados

Representantes da Itália e da Suíça sentaram-se à mesa de negociações para solucionar um problema que pensavam ter resolvido há quase 70 anos: onde começa e termina cada país. Em 1941, quando as fronteiras foram formalizadas, pareceu uma boa ideia usar como marco as geleiras dos cumes dos Alpes, um cartão-postal da Europa. Elas representavam uma referência atemporal. Mas, com o aquecimento global, parte da neve derreteu. E sumiu com a divisão entre os países.

Italianos e suíços resolveram o problema pacificamente: vão usar como parâmetro as rochas expostas pela ausência da neve. Mas o contratempo diplomático mostrou que os impactos mais drásticos das mudanças climáticas já estão acontecendo. E, de acordo com uma nova leva de pesquisas, mais rápido do que se previa.

Estudos recentes mostram que a velocidade do aquecimento global está acelerada se comparada ao que previram há apenas dois anos os cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), a cúpula internacional reunida pelas Nações Unidas para estudar o fenômeno. As novas pesquisas reúnem dados mais recentes que os compilados no último relatório do IPCC, que em geral datam de 2005.

Além de atuais, os últimos estudos são mais precisos porque os pesquisadores conseguiram analisar uma escala maior de tempo, o que confere exatidão à detecção de tendências. “Já estamos no pior cenário previsto pelo IPCC”, afirma a oceanógrafa americana Katherine Richardson, pesquisadora da Universidade de Copenhague, na Dinamarca.

“A situação é até pior que o estimado no caso do degelo do Ártico e da elevação do nível do mar.” (Leia a entrevista) Em março, Katherine e cientistas de vários países se reuniram em Copenhague para dar esse recado ao mundo. Foi a forma que eles encontraram para alertar os políticos que se encontrarão em dezembro, também em Copenhague, para votar um novo acordo para cortar emissões.

Ao lado do biólogo americano Christopher Field, da Instituição Carnegie para Ciência, em Washington, e do climatologista James Hansen, do Instituto Goddard da Nasa, a agência espacial americana, Katherine é uma das cientistas mais ativas no alerta sobre o aquecimento global.

Field estuda como as plantas e os ecossistemas responderão ao aumento da temperatura e tem declarado que o mundo está diante de um futuro climático além de qualquer previsão pessimista. Hansen, que desde a década de 1980 faz advertências sobre o aquecimento global, diz que a sociedade tem menos de uma década para frear as mudanças climáticas se não quiser viver em um planeta irreconhecível.

A maioria dos pesquisadores é mais reticente. Eles temem que afirmações catastróficas desestimulem as mudanças necessárias para diminuir as emissões. Um segundo motivo é o rigor científico. Como qualquer investigação científica, suas medições e análises carregam um grau de incerteza. Para não dar declarações exageradas, muitos pesquisadores acabam não enfatizando o suficiente suas conclusões.

“Sinto-me decepcionado em como demoramos para convencer a sociedade de que o aquecimento global é uma ameaça real”, diz o glaciologista americano Robert Bindschadler, pesquisador da Nasa que há 25 anos estuda o continente antártico. “A maior parte dos cientistas está perplexa com a eficiência dos céticos em destacar as incertezas de nossas pesquisas.”

Apesar da cautela dos cientistas, as evidências reunidas nos últimos quatro anos não deixam dúvidas da escalada das mudanças climáticas. E elas devem integrar o próximo relatório do IPCC, em 2014.

“Algumas consequências do aquecimento já são irreversíveis, como a expansão da área tropical no planeta”, afirma o meteorologista alemão Thomas Reichler, pesquisador da Universidade de Utah, nos Estados Unidos. Reichler diz que em Salt Lake City, onde mora, o verão já está mais seco e as chuvas devem diminuir pelo menos 10% nos próximos anos. É uma previsão preocupante para uma região desértica. “Nossas ações hoje é que ditarão quão ruim a situação vai ficar no futuro.”

Segundo os cientistas, não estamos fazendo o que poderíamos para diminuir a emissão de gás carbônico, o principal responsável pelo aquecimento global. Desde a Revolução Industrial, no século XVIII, nós o emitimos em atividades como a queima de petróleo e carvão para gerar energia.

Ele esquenta o planeta, porque forma uma camada de gás na atmosfera que retém o calor do Sol. Agora que sabemos disso, deveríamos diminuir as emissões. Em vez disso, elas estão aumentando. E em um ritmo que resultaria no pior cenário antecipado pelo IPCC: o planeta ficaria 6,4 graus célsius mais quente antes do fim do século.

O trabalho de um consórcio internacional de cientistas, o Global Carbon Project, mostrou que só entre 2000 e 2004 o crescimento anual das emissões triplicou, de 1,1% por ano nos anos 1990 para 3%. A industrialização de países como China e Índia, com base na queima de carvão, seria a principal causa desse aumento. Em 2004, os países em desenvolvimento teriam contribuído com 73% do aumento das emissões globais.

O cenário mais otimista previsto pelo relatório do IPCC (um acréscimo de “apenas” 2 graus na temperatura) já é considerado improvável. O Hadley Center, no Reino Unido, referência internacional em modelos climáticos, refez suas previsões no ano passado e sugeriu um futuro ainda mais quente. Mesmo que as emissões caiam 3% ao ano a partir de 2010, a temperatura aumentaria no mínimo 2,9 graus em 2100. No ritmo atual, seriam 7,1 graus a mais.

O impacto seria avassalador. Nas contas do IPCC, 4 graus a mais fariam com que o nível do mar subisse até 59 centímetros. Seria o suficiente para desabrigar 313 milhões de pessoas, cerca de 5% da população mundial. Hoje, essa previsão é considerada conservadora demais. Os cientistas já dão como certa uma elevação do nível do mar em 1 metro até 2100. Cerca de 600 milhões de pessoas ficariam desabrigadas.

Segundo estudos, 5% do fundo congelado do Oceano Ártico já começou a liberar metano

A revisão das projeções foi provocada por novas análises do comportamento do oceano nos últimos milhares de anos. E por novos dados que mostram a aceleração do derretimento da Antártica. Pesquisadores da Universidade da Califórnia constataram que, entre 1996 e 2006, o degelo na Antártica aumentou 75%.

A parte mais vulnerável é o oeste do continente. Lá, os cientistas observam a aceleração do derretimento de grandes geleiras como a Pine Island, que mede 250 quilômetros de comprimento. “Geleiras como essa podem derreter em uma questão de séculos”, diz Bindschadler, da Nasa. “Isso elevaria o nível do mar em 5 metros.”

CONTARDO CALLIGARIS

I love Susan Boyle

O vídeo tem a qualidade de um exemplo moral: sonhar pede coragem, resistência e seriedade

NA TERÇA-FEIRA, eu estava com minha coluna pronta (escrevo entre domingo e segunda) e, ao abrir o jornal, descobri que João Pereira Coutinho, neste mesmo espaço, também tinha-se apaixonado por Susan Boyle.

Tudo bem, não sou ciumento. Mesmo assim, por um momento, pensei escrever, na última hora, outra coluna. Mas, lendo Coutinho, percebi que a gente pode se apaixonar pela mesma pessoa por razões diferentes. Aqui vai.

Em poucos dias, dezenas de milhões de pessoas, pelo mundo afora, assistiram ao vídeo de Susan Boyle cantando "I Dreamed a Dream" (eu sonhei um sonho). Assistiram e choraram lágrimas comovidas.

Acesse a internet e veja uma das versões (por exemplo, www.youtube.com/watch?v=8OcQ9A-5noM). Se quiser mais, assista à entrevista de Susan Boyle à rede americana CBS, durante a qual Boyle canta um trecho da música a capela (watching-tv.ew.com/2009/04/susan-boyle-cbs.html).

Provavelmente, Susan Boyle gravará um CD, e o comprarei. Talvez, um dia, ela venha ao Brasil, e estarei no show, mesmo a preço de cambista. Mas nada disso se comparará com o momento extraordinário registrado no vídeo que está hoje no YouTube. Por quê?

Vamos com calma. Susan Boyle se qualificou nas preliminares para participar de "Britain's Got Talent" (a Grã-Bretanha tem talento), que é mais uma versão (inglesa) de "American Idol", o programa de televisão que começou nos EUA e foi repetido em vários países -no Brasil, "Ídolos", na TV Record. Trata-se, a cada ano, de premiar um cantor ou uma cantora, descobrindo novos talentos.

Na verdade, a seleção para chegar até à final talvez seja o que mais diverte as plateias, nos teatros de gravação ou em casa: o vexame da maioria dos concorrentes funciona como um bálsamo para todas as covardias que nos impedem de correr atrás de nossos sonhos. Algo assim: "Olhe o que aconteceu com quem ousou. Ainda bem que eu não fui!".

Susan Boyle entrou no palco como uma espécie de anticlímax; ela era tudo o que não se espera de uma aspirante a estrela: quase 48 anos, solteirona, desempregada, vestida (disse um amigo estilista) como a rainha Elizabeth se ela fosse pobre, "gordinha" e "feinha". Os diminutivos indicam que sua aparência não era extraordinária nem negativamente, mas a tornava transparente: aquela figura papel de parede, de quem ninguém se lembra se ela estava na festa ou não.

Para completar, respondendo às perguntas de Simon Cowell (que preside o júri), ela pareceu quase tola e um tanto vulgar, balançando os quadris para dar mostra de sua juventude de espírito.

Quando Susan Boyle anunciou que seu sonho era ser cantora como Elaine Page (a inesquecível Grizabella de "Cats", em Londres, em 1981), o júri e a plateia não esconderam seu desdém.

Aí Susan Boyle começou a cantar. A performance foi propriamente incrível; por um instante, pensei que Boyle estivesse apenas mexendo os lábios enquanto tocava uma gravação: uma voz forte, limpa, segura e expressiva, fiel às emoções que se alternam ao longo das letras.

Também a música que Susan Boyle escolheu (letras de Alain Boublil) contribuiu para transformar sua performance numa espécie de exemplo moral: fala de um sonho antigo, sonhado quando "a esperança falava alto e a vida valia a pena", na época em que "os sonhos são criados, usados e desperdiçados"; mas há "tempestades" que "transformam nossos sonhos em vergonha", e, no fim, em regra, a vida massacra os sonhos que sonhamos. Então, qual é a moral da performance?

Para Coutinho, a moral é que, na vida, não basta se esforçar: é preciso ter sorte. Entendo assim: Susan, até aqui, não teve sorte, a gente se comove porque é tarde demais ou porque, enfim, o destino a encontrou em sua aldeia perdida.

Para mim, a moral é outra. Não sei se Susan teve sorte ou não. Cuidar longamente da mãe doente e cantar com os amigos no karaokê da vila é uma vida que pode valer a pena, talvez mais do que uma vida nas luzes da ribalta. O que me comoveu tem mais a ver com a coragem e a resistência de seu sonho.

Os entrevistadores da CBS perguntaram a Susan Boyle como ela conseguiu se concentrar e cantar, embora percebesse que o júri e a plateia não a levavam a sério e já estavam antecipando a zombaria. Ela respondeu, com simplicidade: "É a gente que tem de se levar à sério".

ccalligari@uol.com.br


25 de abril de 2009
N° 15950 - CLÁUDIA LAITANO


O discurso e a prática

Por trás de cada notícia de escândalo, corrupção, jeitinho, malandragem, roubalheira explícita, há uma aula de filosofia.

Um jornal ideal, além do cronista esportivo e do analista econômico, deveria contar com um colunista diário de assuntos filosóficos, alguém que nos ajudasse a entender, à luz do que os grandes pensadores já escreveram sobre o assunto, por que tanta gente, famosos e anônimos, ricos e pobres, pós-graduados e analfabetos, tem dificuldade de distinguir o certo e o errado.

É muito fácil chamar o político de ladrão, colocá-lo em uma posição moral obviamente inferior à nossa e voltar aos afazeres do dia-a-dia – como se não fôssemos todos feitos da mesma matéria que dá origem aos canalhas e aos homens honrados.

Um filósofo alemão chamado Immanuel Kant propôs uma regra infalível para avaliarmos se uma atitude é moral ou não: nunca deveríamos fazer nada que não gostaríamos que virasse uma lei universal.

Dois episódios recentes, em nada raros ou excepcionais, mostram como é frequente que o discurso sobre moral vá para um lado enquanto a prática, esta danada, vai para o outro.

No caso da “farra das passagens” – o uso das cotas de viagens dos deputados para financiar passeios ao Exterior para amigos, familiares e namoradas – chama mais a atenção a presença de políticos do chamado “grupo ético” na lista dos que usaram as passagens de forma indevida do que o escândalo em si.

O deslize dos “éticos” é mais eloquente do que todo o esforço do baixo clero do Congresso para impedir que as medidas moralizadoras discutidas na quarta-feira passada entrassem em vigor. Aqueles que brigam pelos seus privilégios com a sólida convicção de que eles são a própria razão de ser do mandato não nos ensinam nada – são o senso comum da classe política brasileira.

Mas quando os poucos que parecem genuinamente interessados em provar que é possível fazer política de uma forma diferente não conseguem perceber nada errado no fato de o dinheiro público estar sendo usado para financiar assuntos privados a conclusão óbvia é de que nem o “grupo ético” está muito seguro sobre o sentido da palavra ética.

O mesmo impacto simbólico teve o escândalo com os filhos bastardos do presidente paraguaio Fernando Lugo. O assunto virou piada – talvez porque a imagem de “macho latino” não seja de todo negativa para um político sul-americano, mesmo quando ele é um ex-bispo.

Os que discutem o assunto a sério têm questionado a obrigatoriedade do celibato ou a honestidade de um político que, como padre, já vivia uma vida dupla.

Mas o que mais chama a atenção nesse episódio não é o fato de Lugo, como tantos, ter tido uma vida sexual ativa durante o sacerdócio, inclusive relacionando-se com uma menina de apenas 16 anos.

O que realmente impressiona é o fato de que ele abandonava os filhos, como se não tivesse nenhuma responsabilidade com relação a eles, nem mesmo financeira. Como se a paternidade fosse uma questão de escolha – assim como manter-se ou não dentro da Igreja.

Em espanhol, “pai” e “padre” são a mesma palavra. Padres podem abrir mão da batina e seguir sua vida com a consciência limpa, já os pais não podem desistir dos filhos e fazer de conta que eles não existem.

Que um homem que fez isso tenha vivido boa parte de sua vida pregando a compaixão e a moral é daquelas situações que nos lembram que a alma humana pode ser um casarão cheio de quartos escuros – mesmo quando o dono da casa é um fabricante de lâmpadas.

quarta-feira, 22 de abril de 2009



22 de abril de 2009
N° 15947 - MARTHA MEDEIROS


Uma carona pra morte

Éclaro que nos comove ver pessoas que, no auge da depressão, tiram a própria vida por não enxergar mais nenhum caminho possível à frente.

É um ato de desespero quase sempre planejado e que deixa familiares e amigos de mãos atadas, impotentes. Mas nossa comiseração se transforma em raiva quando essas pessoas cometem o desatino de levar junto com elas quem não pediu pra embarcar nessa viagem sem volta.

Aconteceu em Novo Hamburgo, aconteceu em Livramento. No primeiro caso, uma mulher de 47 anos, falida, matou o marido, a irmã e a sobrinha antes de tentar um fracassado suicídio, porque julgou que estaria fazendo um bem a eles, evitando que herdassem sua colossal dívida.

No outro caso, uma mãe matou os dois filhos, de seis e oito anos de idade, antes de tirar a própria vida. Ambos os casos mostram uma prepotência sem tamanho.

Ok, para chegar a um ato extremo como o suicídio, a pessoa não está bem, não se pode cobrar dela equilíbrio, mas, ainda assim, a palavra prepotência é justificada. Se não queremos que nossos amores sofram com nossa ausência, basta ter a coragem de ficar, de seguir vivendo, a despeito de todo o sofrimento.

Porém, se não há mais como seguir adiante, que assumamos essa decisão solitariamente. É covardia querer sair de cena acompanhada, sem permitir que nossos filhos ou cônjuges permaneçam e enfrentem a própria dor. Eles se recuperarão. Será que é isso que o suicida não tolera?

Há que se ter integridade até para se matar. Os crimes passionais são outro exemplo dessa covardia, geralmente perpetuada por homens que, sem condições emocionais de aceitar que sua namorada ou esposa não os quer mais, as privam de seguir vivendo para que elas não voltem a amar: eles as matam e se matam em seguida, encerrando de vez sua trajetória de humilhação.

Volto a dizer: sei que estou me referindo a pessoas que estão psicologicamente comprometidas, fora de si. Ainda assim, me custa perdoá-las pela insanidade consumada. Onde é que fica a humildade?

Como uma pessoa pode se sentir dona da vida dos filhos, de seus parceiros, de seus familiares? Que “generosidade” é essa de procurar evitar o sofrimento dos outros, lhes ofertando a morte em troca?

Prepotência. Não encontro outra palavra para definir aquele que se julga no direito de decidir que é hora de todos partirem juntos.

terça-feira, 21 de abril de 2009



21 de abril de 2009
N° 15946 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O país dos lobos

Presenciei esses dias, aprisionado no trânsito ante um sinal vermelho, um espetáculo de violência. Uma jovem mãe, com a idade na qual as adolescentes de classe média se preparam para o vestibular ou malham nas academias, carregava no colo um bebê de poucos dias e travava uma guerra particular com outro filho, que caminhava ao seu lado.

Este menino, de uns dois anos, chorava, talvez de cansaço, talvez de fome, e a mãe lhe dirigia uma coleção de palavrões que só me deixou menos abismado do que os cascudos com que o acertava, sem dó nem piedade.

Todos vestiam trapos, padeciam de miséria e de desesperança.

Falto de ação no carro, ou, quem sabe, sobrante de omissão, me bateu uma revolta tão funda quanto inútil. Refleti, enquanto o auto arrancava, que aquela era a crua cena, a explícita razão por que tantas crianças preferem a incerteza das ruas ao território de desamor de seus próprios, precários lares.

As estatísticas estão aí, frias e terríveis, a comprovar que os maiores agressores de pequenas vítimas indefesas não são os estranhos, mas algumas das pessoas que lhes estão mais próximas. Há um incomensurável déficit de afeto e de compaixão no chamado país da cordialidade.

Nem remotamente imaginem, contudo, que a agressividade seja monopólio dos deserdados. Há enormes provisões de brutalidade, arrogância, prepotência permeando a convivência urbana em todos os andares da pirâmide social. Podem não ser tão manifestas como no rude episódio que narrei. Mas são por vezes mais torpes.

Não, eu não condeno de todo a jovem mãe que maltrata o filho. Eu a deploro, eu a lastimo. Ela própria é uma maltratada pela vida que não escolheu, mas a que foi sentenciada no áspero jogo da sobrevivência.

É o produto pronto e acabado de uma nação decomposta por disparidades iníquas. Parece claro no entanto que a doença da impiedade contagia pobres e párias, ricos e remediados.

Vêm dias em que penso que o homem é mesmo o lobo do homem. Formamos uma imensa alcateia. Dela só nos libertaremos pelo árduo aprendizado da solidariedade e do humanismo.

domingo, 19 de abril de 2009


DANUZA LEÃO

Por onde anda o amor?

Será que as pessoas ainda se apaixonam, amam como amavam, pensam no ser amado o tempo todo?

SEMANA PASSADA estava em casa vendo TV e vi que ia passar, naquela noite, "Piaf" -que eu já tinha visto duas vezes no cinema. Não resisti e fiquei esperando, impaciente, que o filme começasse.

E foi muito bom ter visto pela terceira vez, pois percebi uma coisa que tinha me escapado das duas primeiras: a música de fundo, que no filme não é cantada, é tocada quase que o tempo todo baixinho, muito sutilmente, e é uma belíssima canção, se não me engano de Raymond Asso, que se chama "Mon Légionnaire". Linda, linda, como quase todas as que Piaf cantava. E eu fico me lembrando daquela que foi uma época de ouro da música no mundo inteiro.

A partir dos anos 30, tivemos, entre compositores e intérpretes, Cole Porter, Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Montand, Brel, Trenet, Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Isaurinha Garcia, e mais tarde Tom, Vinicius, Chico, Caetano, Edu, Bethânia, Gal, Roberto e tantos mais, todos diferentes, mas o que podia haver de melhor, tanto assim que suas músicas são lembradas, tocadas e cantadas até hoje no mundo todo, por todas as gerações. E houve também a disc music, com algumas inesquecíveis.

Mas a partir daí, o que aconteceu com a música? Das mais recentes, não conheço nenhuma maravilhosa, de nenhum país. Qual foi o último sucesso de que me lembro? De Rod Stewart cantando canções antigas, mais nada.

Andei falando com uns jovens amigos e a explicação foi que, tendo o mundo se expandido tanto, criaram-se novos nichos de música, que são por sua vez apreciados por determinados nichos de pessoas. Curiosamente, as coisas não são mais tão universais como eram antes da globalização.

Mas não foi só isso que mudou. Até a bossa nova, as músicas -da França, dos EUA, do México, do Brasil- falavam de amores infelizes, de corações despedaçados, sendo que os tangos usavam e abusavam da figura da mãe -"la madrecita".

A bossa nova fez com que os amores ficassem mais leves -nem por isso as pessoas sofriam menos por amor-, mas agora eu não entendo mais nada. Vamos ao fundo da questão: será que as pessoas ainda têm uma dor de corno, daquelas de se enfiar na cama e nem querer saber se está chovendo ou fazendo sol? A julgar pelas músicas atuais, não.

Comecei falando de música, mas agora vou falar de amor. Será que as pessoas ainda se apaixonam, amam como amavam, pensavam no ser amado o tempo todo e fariam qualquer coisa -como diz "Hino ao Amor", de Piaf, renegariam sua pátria e seus amigos se lhe fosse pedido- pela pessoa que amassem?

Vamos falar de coisas bem banais: deixariam de ir a um jogo de futebol, se isso lhes fosse implorado? De ir à praia? Dariam o último pastelzinho da travessa à pessoa amada? Será que o amor está acabando?

Há muito tempo não ouço ninguém me dizer que está morrendo de paixão, nem homem nem mulher. Os homens não são muito de confessar essas coisas, mas as mulheres estão preferindo ir a uma academia de ginástica a sair com um homem com más intenções. O que é uma pena.

Porque não há nada melhor do que viver uma paixão, e se ela não der certo, sofrer muito por ela.

danuza.leao@uol.com.br


O Homem Ideal

Dia desses lia numa destas revistas femininas uma espécie de enquete, onde as mulheres respondiam como era o homem ideal. Embora muitas conclusões beirassem à incredulidade da existência do tal homem, algumas respostas eram realmente curiosas.

O homem ideal tem que ser carinhoso e romântico sem ser meloso. Responsável sem ser viciado em trabalho, que tenha uma "aura" de poder mas que não seja autoritário. Um bom percentual de vaidade se faz necessária sem lembrar Narciso e é fundamental também que seja inteligente e bem informado.

E o que me chamou mais atenção: precisa pagar a conta do restaurante pelo menos no primeiro encontro e não ficar querendo rachar sempre nos encontros posteriores.

Lendo essas exigências cheguei a ficar com pena dos homens. Deve ser difícil ser romântico e carinhoso e saber exatamente qual é a linha tênue que separa estas duas coisas da melosidade.

Complicado isso de ter "poder" — que eu suspeito seja através de um cargo profissional ou de uma boa conta bancária — sem se acostumar a ser bem servido e esquecer de ser autoritário. Como se define um homem vaidoso? O que se veste bem mas pode ter uns quilos a mais? O que se veste como um surfista e frequenta academias?

Fiquei imaginando um dia, que normalmente tem umas 17 horas úteis, de um homem ideal. Acorda às sete horas da manhã, vai para a academia malhar por uma hora. Toma banho, um rápido café da manhã (muito light), lê o jornal (ele precisa ser bem informado) e vai para o trabalho. Dedica quase quatro horas na conquista da responsabilidade e da tal conta bancária.

Almoça com alguém importante em busca do tal do poder e segue a tarde dedicando mais umas cinco ou seis horas à responsabilidade. Terminado esse expediente, o homem ideal começa outro antes de chegar em casa, onde sempre tem muitas coisas a fazer: passar na loja de moda masculina, na banca para saber das revistas mais atualizadas (as que ele não assina, claro) ou na livraria para adquirir algum livro pertinente .

Ah, sim, às vezes também na lavanderia, na floricultura (romantismo, certo?) e no barbeiro. Se ele passar em um destes lugares por semana, preencheu todos os dias, exceto o domingo, que será dedicado ao ócio, quem sabe, e ao cinema com certeza.

Chegando em casa, toma outro banho e liga para a mulher amada para combinar alguma coisa para amanhã, torcendo para que a floricultura tenha feito a entrega corretamente. Hoje, ele tem que folhear algumas revistas depois de comer qualquer coisa e continuar a leitura daquele livro e também, deus é pai: já são dez horas da noite. Com sorte, ele vai poder dormir perto da uma da madrugada, não sem antes ver o Jornal da Noite.

Amanhã ele tem o dia parecido com o de hoje, mas à noite janta com sua amada, paga a conta do restaurante. "Sua casa ou a minha", madrugada romântica e ardente e depois de amnhã às sete horas, a vida continua.

Lá pelas tantas, esse homem ideal, o príncipe poderoso, responsável, vaidoso, inteligente, culto e carinhoso, começa a ficar com cara de sapo. Porque será? Fico tentada a acreditar que ser sapo é mais confortável e que o homem ideal tende a ser um fracasso induzido pelo stress.

Seria tão bom se homens e mulheres pudessem se encontrar sem expectativas e, principalmente sem querer responder às alheias. Quem sabe, nesse dia, com essa mania insana que a gente tem de tentar ser feliz, se descubra que o homem ideal é aquele com quem estamos dividindo nosso pedaço de dia.

Talvez o homem ideal não precise ter uma lista de qualidades, mas qualidades únicas que dêem vontade de listar, só para enaltecer e não esquecer. E sobretudo, que faça uma mulher acreditar que é merecedora deste homem, ideal o bastante para se estar com ele.

Cláudia Letti

sábado, 18 de abril de 2009



19 de abril de 2009 | N° 15944
MARTHA MEDEIROS


O amor que a vida traz

Você gostaria de ter um amor que fosse estável, divertido e fácil. O objeto desse amor nem precisaria ser muito bonito, nem rico. Uma pessoa bacana, que te adorasse e fosse parceira já estaria mais do que bom. Você quer um amor assim. É pedir muito? Ora, você está sendo até modesto.

O problema é que todos imaginam um amor a seu modo, um amor cheio de pré-requisitos. Ao analisar o currículo do candidato, alguns itens de fábrica não podem faltar. O seu amor tem que gostar um pouco de cinema, nem que seja pra assistir em casa, no DVD. E seria bom que gostasse dos seus amigos.

E precisa ter um objetivo na vida. Bom humor, sim, bom humor não pode faltar. Não é querer demais, é? Ninguém está pedindo um piloto de Fórmula 1 ou uma capa da Playboy. Basta um amor desses fabricados em série, não pode ser tão impossível.

Aí a vida bate à sua porta e entrega um amor que não tem nada a ver com o que você queria. Será que se enganou de endereço? Não. Está tudo certinho, confira o protocolo. Esse é o amor que lhe cabe. É seu. Se não gostar, pode colocar no lixo, pode passar adiante, faça o que quiser. A entrega está feita, assine aqui, adeus.

E agora está você aí, com esse amor que não estava nos planos. Um amor que não é a sua cara, que não lembra em nada um amor idealizado. E, por isso mesmo, um amor que deixa você em pânico e em êxtase.

Tudo diferente do que você um dia supôs, um amor que te perturba e te exige, que não aceita as regras que você estipulou. Um amor que a cada manhã faz você pensar que de hoje não passa, mas a noite chega e esse amor perdura, um amor movido por discussões que você não esperava enfrentar e por beijos para os quais nem imaginava ter tanto fôlego.

Um amor errado como aqueles que dizem que devemos aproveitar enquanto não encontramos o certo, e o certo era aquele outro que você havia solicitado, mas a vida, que é péssima em atender pedidos, lhe trouxe esse e conforme-se, saboreie esse presente, esse suspense, esse nonsense, esse amor que você desconfia que não lhe pertence.

Aquele amor em formato de coração, amor com licor, amor de caixinha, não apareceu.

Olhe pra você vivendo esse amor a granel, esse amor escarcéu, não era bem isso que você desejava, mas é o amor que lhe foi destinado, o amor que começou por telefone, o amor que começou pela internet, que esbarrou em você no elevador, o amor que era pra não vingar e virou compromisso, olha você tendo que explicar o que não se explica, você nunca havia se dado conta de que amor não se pede, não se especifica, não se experimenta em loja – ah, este me serviu direitinho!

Aquele amor corretinho por você tão sonhado vai parar na porta de alguém que despreza amores corretos, repare em como a vida é astuciosa. Assim são as entregas de amor, todas como se viessem num caminhão da sorte, uma promoção de domingo, um prêmio buzinando lá fora, mesmo você nunca tendo apostado. Aquele amor que você encomendou não veio, parabéns! Agradeça e aproveite o que lhe foi entregue por sorteio.


Genética não é espelho
Gabriela Carelli

Nascer com patrimônio genético idêntico não significa que as pessoas crescerão tendo corpo, mente e doenças iguais.

A descoberta de que os hábitos e o estilo de vida mudam o comportamento dos genes está na raiz de uma revolução extraordinária para a medicina. Ela ajudará na criação de remédios personalizados, capazes de alterar o genoma para deter o desenvolvimento de doenças e de transtornos psíquicos

Mirian Fictner/Pluf Fotografias



ARTIMANHAS DO GENOMA

Fisicamente, as gêmeas univitelinas Adriana (à esq.) e Andréa Zamprogna, gaúchas de 33 anos, são idênticas. No comportamento, porém, são muito diferentes. Andréa é mais tímida e sofre de ansiedade. "Fomos criadas do mesmo jeito, mas nossas vidas tomaram rumos opostos", diz Adriana. A maioria das diferenças que os gêmeos univitelinos desenvolvem ao longo da vida se deve à ação do ambiente sobre os genes

O sequenciamento completo do genoma humano, obtido há seis anos, ao cabo de um esforço coletivo de pesquisadores americanos, ingleses, canadenses e neozelandeses, foi uma das mais espetaculares conquistas científicas de todos os tempos. Do estudo resultou um mapa com a posição de cada uma das múltiplas variações dos genes, os tijolos moleculares que se combinam no coração das células para definir as características físicas dos seres humanos.

Cada pessoa tem de 20.000 a 25.000 genes. Com exceção dos gêmeos univitelinos, como as gêmeas que ilustram esta reportagem, não existem dois seres humanos com a mesma combinação genética. A cor dos olhos, a tendência para engordar, o temperamento, a propensão para determinadas doenças são características definidas mais ou menos fortemente pelas bases químicas dos genes. Mapear o genoma humano foi o começo, e não o fim, de uma ambiciosa linha de investigação.

O mundo científico ficou ainda mais complexo depois do mapeamento genético feito há seis anos, quando os pesquisadores passaram a se dedicar a entender a função de cada um dos genes e, o supremo desafio, explicar as razões pelas quais eles às vezes exercem suas funções e outras parecem hibernar preguiçosamente nos cromossomos sem nunca ser ativados – ou por que mesmo pessoas com estoque hereditário idêntico, como os gêmeos univitelinos, podem carregar um mesmo gene, mas que se expressa de maneira totalmente diferente num e noutro organismo.

Para efeito de diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças, o que se descobriu depois do mapeamento do genoma constitui o começo da verdadeira revolução biológica. Equivale à abertura de uma nova porta para o conhecimento humano. Já se sabia que os fatores ambientais, ou seja, as experiências, os hábitos e o estilo de vida também influem nesses processos. Não se tinha ideia, porém, de como se dava essa influência.

Agora, não apenas se encontraram os mecanismos de ação dos fatores ambientais como se constatou que eles são muito mais atuantes na ativação ou desativação dos genes do que se pensava. Isso abre frentes extraordinárias para a medicina. No futuro próximo, entre outros recursos, será possível desenvolver remédios personalizados, destinados a fazer interferências pontuais no genoma de cada paciente.

Lailson Santos

PESQUISA DO FUTURO

O aposentado Daphnis de Lauro, de 84 anos, e sua mulher, Esther Citti, de 80, não desenvolveram nenhum tipo de doença relacionada ao envelhecimento. Pessoas como eles estão sendo recrutadas pela geneticista Mayana Zatz para formar um banco genético com amostras de DNA de idosos saudáveis. No futuro, com os avanços que se esperam na genética, as informações serão usadas para entender melhor as doenças e combatê-las

O tipo de alimentação, o nível de atividade física, o tabagismo, o uso de medicamentos, as experiências emocionais – todos esses fatores agem para "ligar" ou "desligar" determinados genes, ou seja, torná-los ativos ou conservá-los adormecidos. Nos dois casos, ocorrem alterações físicas e psicológicas em seu portador. Essas mudanças podem ser para o bem ou para o mal, atenuando sintomas de doenças ou provocando seu desenvolvimento.

Os gatilhos que ativam ou desativam os genes são acionados por trechos do genoma que até pouco tempo atrás os cientistas tinham por inúteis – o chamado DNA lixo. Agora se sabe que eles servem de elemento de ligação entre os fatores ambientais e os genes. Esse ramo da genética que estuda a interação entre o ambiente e o genoma é conhecido como epigenética.

O geneticista americano Randy Jirtle, da Universidade Duke, usa uma analogia para explicá-lo. Disse Jirtle a VEJA: "Imagine o material genético existente no organismo como um computador. O genoma é o hardware. Para que a máquina funcione, é preciso ter softwares. Os mecanismos epigenéticos são os softwares. Eles produzem resultados distintos rodando sobre um mesmo hardware, ou seja, o genoma herdado dos pais".

Até recentemente, acreditava-se que as alterações epigenéticas ocorriam apenas na fase de desenvolvimento fetal. Enquanto o embrião se forma, a ação dos genes pode ser modificada pelos nutrientes que chegam a ele pelo cordão umbilical. É por isso que se aconselha às mães a ingestão de ácido fólico, uma das variantes da vitamina B.

O consumo dessa substância, nos três primeiros meses de gravidez, pode desligar genes relacionados às más-formações congênitas. Agora, sabe-se que as mudanças no genoma acontecem ao longo da vida. A maior prova disso está no estudo feito com gêmeos univitelinos. Idênticos, eles possuem o mesmo código genético. No entanto, os genomas de ambos se tornam diferentes no decorrer dos anos, o que comprova a ação do ambiente no código genético.

O estudo mais significativo sobre a influência da epigenética em gêmeos foi feito pelo Centro Nacional de Investigações Oncológicas da Espanha. Os geneticistas avaliaram quarenta pares de gêmeos univitelinos, com idade entre 3 e 74 anos. Os pares de gêmeos mais jovens, e também aqueles que tinham o mesmo estilo de vida, possuíam genomas muito semelhantes.

Em pares de gêmeos mais velhos, principalmente aqueles com hábitos distintos, os cientistas encontraram diversas diferenças nos padrões genéticos. "É impressionante como uma pequena diferença na vivência ou mesmo na dieta pode fazer um dos gêmeos desenvolver um câncer e o outro, não", disse a VEJA o geneticista Moshe Szyf, da Universidade McGill, no Canadá.

Marcos Rosa

GENE QUE AMEDRONTA

O empresário Marcelo Rodrigues Afonso passou parte da infância à procura do pai, alcoólatra, nos botequins do bairro onde morava. Seu avô paterno tinha o mesmo vício. Marcelo não bebe. Mesmo assim, frequenta um grupo de apoio. "Tenho medo de ter herdado o gene do alcoolismo e, um dia, prejudicar a vida da minha mulher e dos meus filhos", diz

Ao apontarem para a cura de doenças atacando-as na escala infinitesimal dos genes, as novas descobertas da ciência representam um novo marco na linha de pensamento iniciada no século XIX pelo naturalista inglês Charles Darwin, autor da teoria da evolução. Darwin foi contemporâneo do monge agostiniano austríaco Gregor Johann Mendel (1822-1884), mas, certamente, não teve acesso às pesquisas pioneiras dele sobre a transmissão de caracteres hereditários em ervilhas.

Mendel só viria a ter seus méritos reconhecidos mesmo quase meio século depois da morte de ambos, quando os resultados de suas pesquisas, de tão exatos, passaram a ser tidos como leis biológicas.

Sem Mendel e, obviamente, sem saber da existência do DNA, dos cromossomos ou dos genes, Darwin formulou um mecanismo de transmissão de caracteres entre gerações que se baseava no que ele chamou de "células gêmulas". Essas células viajariam pelo corpo até os órgãos sexuais e de lá passariam às gerações seguintes.

O mecanismo pelo qual a informação genética é transmitida através das gerações finalmente foi elucidado em 1953, com a descoberta da dupla-hélice do DNA pelos cientistas James Watson e Francis Crick.

Essa descoberta abriu caminhos para a fertilização assistida, para a clonagem de seres vivos e para a produção de alimentos transgênicos. Também permitiu os testes de paternidade e o teste do pezinho em recém-nascidos – exame capaz de detectar anomalias e evitar o retardo mental, a cegueira e a surdez. A nova fronteira da genética é estabelecer de forma precisa como o ambiente influencia os genes.


Internet, o bem e o mal

"É triste que um meio de comunicação, pesquisa, lazer e descobertas como a internet seja usado tantas vezes para fins tão negativos"

Com suas maravilhas e armadilhas, a internet faz parte de meu cotidiano há muitos anos: fui dos primeiros escritores brasileiros a usar computador. Com ele, a cada manhã começa meu dia de trabalho, buscas e descobertas, pesquisa e comunicação.

A internet, que isola os misantropos avessos aos afetos, une os que gostariam de estar juntos ou partilham as mesmas ideias, mas também serve para toda sorte de fins destrutivos, que vão da calúnia política à vingança pessoal.

Ilustração Atômica Studio

Talvez seja uma falha, mas nem tenho site: gosto da minha privacidade, num mundo que adora os holofotes e quer ser filmado, fotografado, estar em youtube e orkut, visto por webcams ou celulares indiscretos, por vezes perversos.

De um lado, o vulgar: ditas celebridades curtem viver e morrer em cena, e fazem questão de mostrar, se possível, as entranhas. Exibem-se bundas e peitos, detalhes picantes (em geral desinteressantes) da vida pessoal, frivolidades, histeria ou maledicências.

De outro lado, o grave. Exemplo: rapazes filmam num celular oculto cenas pessoais com suas namoradas ou amigas e as espalham via internet; com fotografias inocentes, criam-se imagens maldosas que acabam num youtube ou orkut, para alegria dos mentalmente maldotados. É bem triste que um meio de comunicação, pesquisa, lazer e descobertas como a internet seja usado tantas vezes para fins tão negativos.

Ter um blog me cansaria: leio os de jornalistas cuja opinião vai me interessar no curso do dia e dos acontecimentos mais singulares. Mas um blog meu seria extremamente sem graça, então dispenso disso a mim mesma e meus leitores. Alguém estranhou que eu não estivesse no Orkut, no qual, por um tempo, houve, entre outras mil coisas, duas tribos: os que me amavam e os que me detestavam.

Visitar um lugar assim me cansaria mortalmente, e o tédio é um de meus inimigos. Minha alegria está em curtir meus amores, os lugares que me encantam ou abrigam, os livros e a música, e a natureza. Incluo entre meus prazeres as melhores coisas que internet e televisão proporcionam. (Excluam-se programas que divulgam o patético convívio numa casa-jaula humana. Se ainda não foram filmados usando o vaso sanitário, aguardem.)

Nos questionamentos sobre crianças e adolescentes que lidam com os meios eletrônicos, tenho uma sugestão: dar-lhes discernimento para que possam entender e escolher.

Continua, porém, o drama da involuntária, muitas vezes nem sabida, exposição de pessoas desavisadas à maledicência e à calúnia, à invasão não consentida da privacidade pelas câmeras, às montagens sobre fotos banais, às informações falsas que alguns julgam engraçadas – toda sorte de maldade de que as vítimas não podem se defender.

Tais indignidades jamais seriam feitas em público, ou assinadas embaixo: florescem na sombra da covardia e da mediocridade, do desrespeito e de poucas luzes intelectuais.

Se é ingenuidade ou desinformação mandar via internet textos apócrifos de Clarice, Drummond ou Borges, inventar uma falsa despedida de García Márquez anunciando que está à beira da morte ou atribuir a Fernando Pessoa versinhos derramados, é cretino e mau denegrir pessoas que nem sabem o que lhes está acontecendo. Já existe uma instrumentação legal para caçar e punir pedófilos que tentam assassinar moralmente menores de idade.

Agora, urge que se crie um equivalente para casos como os que acabo de citar, pois causam dor a quem não merece nem pode se explicar. E que ele seja muito eficaz: para que gente indefesa não tenha exibidas, por desaviso e inexperiência, intimidades próprias; nem se escrachem, por malignidade e deficiência mental, intimidades alheias.

Dois defeitos são inatos e incorrigíveis no ser humano, e de ambos nos livre o destino: burrice e mau caráter. O uso doentio de um instrumento tão fantástico quanto a internet, quando não é psicopatia, é uma conjunção desses dois melancólicos atributos.