quarta-feira, 2 de julho de 2014





02 de julho de 2014 | N° 17847
MARTHA MEDEIROS

Um beijo só

Duas retas finais: a da novela Em Família e a da Copa do Mundo no Brasil. Acompanho as duas. A novela das nove, comecei a assistir pra valer só no último mês, e façamos justiça ao autor Manoel Carlos: a audiência pode não ser a esperada, mas é uma delícia ver diálogos hiper-realistas e cenas domésticas que se desenrolam num ritmo muito parecido com o nosso, nos dando a possibilidade de sermos voyeurs olhando pelo buraco da fechadura de portas alheias. Me divirto, relaxo, esqueço da vida.

Só uma coisa me aflige, não sei se quem assiste à novela também percebeu: alguns personagens dão três beijinhos quando se encontram. Três. Será o novo modismo da zona sul carioca? Fiquei nervosa, confesso.

Logo agora, quando estamos observando um avanço aqui no Sul: o fim dos dois beijinhos. Não sei como essas coisas iniciam, quem introduz, como pega, mas agora, na capital dos gaúchos, a gente está fazendo como os paulistas, dá um beijo só e basta.

Gosto de simplificações. Gosto de tudo que é enxuto, econômico, objetivo. Poucos meses atrás, estive em São Paulo visitando uma amiga e ela me apresentou sua turma, e saí tascando dois beijos, um que era retribuído e outro que ficava no ar, porque acostumados com um só, os paulistas logo afastavam suas suculentas bochechas depois do primeiro, fazendo com que eu parecesse uma caipira. Oh, infernais dois beijos, para que o excesso?

Pois agora, para complicar, vem a novela das nove lançar três beijinhos. Tem gente que ficou apreensivo com o insosso beijo gay da Clara e da Marina, mas escandalosos mesmo são os três beijinhos entre a Helena e a Shirley. Vamos nos preocupar com coisa séria, por favor.

Não suporto dar três beijos, mas dou quando não há a mínima chance de fuga. Três beijos é um exagero, porém não se sintam menosprezados os que possuem o costume, pois na aristocrática Suíça se dá o mesmo. Três beijos. Por que motivo, não sei.

Mas, excetuando-se a Suíça, o interior do Rio Grande do Sul e os estúdios do Projac, a tendência mundial é a da subtração, os modos se refinam. Me garantiram: em Porto Alegre não se dá mais dois beijinhos. É um só.

Saiu no Diário Oficial?

Um beijo só, aleluia. Tenho dúvida se a ideia já está disseminada, mas diante do desserviço da novela global, ofereço minha contribuição com essa crônica, apoiando. Um único beijo é a elegância da economia. Um único beijo é suficiente para demonstrar nossa simpatia. Um beijo rápido, talvez com o adendo de um abraço nos casos mais íntimos e em situações calorosas, e estaremos todos devidamente cumprimentados.


Antes que me perguntem: no ombro, de preferência, nenhum. E mordida, só entre lençóis.

sábado, 28 de junho de 2014


29 de junho de 2014 | N° 17844
MARTHA MEDEIROS

Coraçãozinho

Quem viaja para um país exótico sempre acaba provando algum prato estranho, fora do seu costume. Nem que seja para fotografar e postar numa rede social com a legenda: sobrevivi.

Escorpião frito em Cingapura, morcego à caçarola no Vietnã, cérebro de macaco na África, sopa de cachorro na Coreia do Sul, ou mesmo uma iguaria chique e nem tão exótica, como o escargot francês – lesma, em bom português. Nada disso mata, mas produz muita cara feia. Minto: algumas refeições matam, sim – o baiacu venenoso da cozinha japonesa, por exemplo. Por mais bem treinados que sejam os chefs que se habilitam a preparar esse peixe, ainda assim 20 pessoas por ano dão adeus à vida depois de ingeri-lo.

Pois o Brasil está tendo a chance de, simpaticamente, dar o troco. Nunca recebeu tantos estrangeiros de uma só vez como no período da Copa, e essa gente toda, de tantas partes do mundo, precisa se alimentar. A caipirinha cai no agrado de todos, mas como eles estarão enfrentando os sólidos? Vatapá não mata, só nocauteia. Buchada de bode dizem que também não mata, mas duvido. E farofa de formiga costuma ser confundida com farofa de amendoim, ou seja, os gringos não devem estar passando muito trabalho no Norte e Nordeste, ao menos nada que se compare com a cena que vi de uns australianos, aqui no Sul, encarando seu primeiro coração de galinha.

“Vocês comem coração de galinha???? Oh, my God!”

Dizer a eles que chamamos carinhosamente de coraçãozinho não minimizou o asco. Entendo: eu também não ficaria comovida se me servissem um filezinho de cobra. Mas cobra é um réptil repugnante, viscoso, traiçoeiro, já a galinha é uma criatura doméstica, pacífica, rechonchuda. Mais arisca do que dócil, é verdade, mas nunca fez mal a ninguém, logo, é tenro seu coraçãozinho.

Tentaram. Mas foi como se estivessem de frente para um olho de cabra, um rabo de camundongo, o músculo de um gambá. Demonstraram absoluto pavor em comer um coração, algo que ainda estava batendo dias atrás, símbolo da paixão e da vida – mesmo de uma galinha.

Uns não tiveram coragem, outros tiveram e fizeram caretas tão repugnantes e sofridas que chegou a me dar pena: coitados, não estava sendo uma experiência cultural, e sim uma tortura impiedosa. Ok, acabou a brincadeira, vamos pedir hot dog para todo mundo – e que ninguém venha comentar as minúcias da fabricação de salsichas.


Dias atrás teve churrasco aqui em casa e vi meus dois pequenos sobrinhos devorarem um quilo de coração sem dó, com uma gula de centroavantes. Por que eles não questionam o que comem? Porque a gente só reluta diante do desconhecido. Se fosse servido um canguruzinho a vapor (que os australianos, aliás, adoram), aí teria que ter preleção antes – e nem gosto de imaginar as caretas.

29 de junho de 2014 | N° 17844
FABRÍCIO CARPINEJAR

Separações líquidas

Casar virou namorar, namorar virou ficar, ficar virou provar.

Acredito que todo mundo casa fácil porque é também muito fácil se separar.

Nos anos 70, o casamento era medido por décadas. Mesmo quando um casamento fracassava, durava no mínimo duas décadas.

Nos anos 80, o casamento era medido por anos. Mesmo quando um casamento desmoronava, durava no mínimo cinco anos.

O casamento hoje é por dia. Como se fosse hotel.

Agora, o matrimônio cobra diária. Todo dia é dia de se separar. E por qualquer coisa.

Las Vegas do divórcio é aqui.

Você pode sair de manhã, eufórico e confiante, extremamente disposto, seguro do romance, e quando voltar à noite não encontrar mais ninguém ao seu lado.

Se cometeu uma falha, nem terá oportunidade de se explicar. Se não errou, nem terá chance de entender e desfazer confusões.

É tão simples se divorciar que ninguém mais pretende se estressar. Não há nem o civilizado e educado aviso de despejo. É dar as costas, largar o passado e seguir adiante. Quebrou o amor, troca! Quebrou o amor, compra outro! Quebrou o amor, não vale investir consertando!

Os casais não brigam mais até cansar para, então, se separar. Não brigam mais até esgotar as possibilidades para, então, se separar. Não tentam durante semanas e semanas expor as dores, as feridas e a raiva para, então, se separar. Não recorrem ao choro, à histeria, ao perdão, ao abraço, ao exorcismo, aos centros religiosos, aos amigos, aos parentes para, então, se separar.

A separação vem antes. A separação é a regra. A separação é o hábito. A separação é seca, definitiva, sem explicações.

As pessoas se separam primeiro para depois discutir. As pessoas se separam primeiro para depois conversar. As pessoas se separam primeiro para depois desabafar o que incomoda.

Elas arrumam todas as malas, esvaziam os armários, realizam a limpa no apartamento e depois, se houver vontade, se encontram e sentam frente a frente para resolver as diferenças.

São uniões interrompidas com silenciadores, distante de estampidos e gritos.

Ninguém se separa de fato, todo mundo deserta, todo mundo abandona a convivência.

É uma irresponsabilidade extraordinária com o outro, é uma indiferença tremenda ao que foi construído com o outro, é um desprezo ao que foi sonhado a dois.

E os motivos podem ser os mais loucos e insignificantes. O desenlace não ocorre mais por justificativas duras como adultério e deslealdade.

Há gente que se separa por incompatibilidade de gênios (expressão que denuncia megalomania, o correto seria incompatibilidade de burros).

Há gente que se separa porque não suporta o medo de ser traído.

Há gente que se separa porque estava muito feliz e não aguentava tamanha pressão.

Há gente que se separa porque se viu entregue ao relacionamento e estava perdendo a identidade.

Há gente que se separa porque não sabia mais o que estava fazendo da vida.

Há gente que se separa porque não esperava que fosse assim.


Atualmente entra-se numa relação e não se fecha a porta – a porta permanece encostada o tempo inteiro.

sábado, 21 de junho de 2014


22 de junho de 2014 | N° 17837
FABRÍCIO CARPINEJAR

Tempo parcelado em 30x sem juros

Eu ponho o alarme do celular e acordo antes do primeiro toque. Odeio aquele barulho.

Meu relógio biológico é suíço, não erra, pontual desde que nasci.

Você deve estar perguntando por que ponho o alarme se não preciso dele.

O alarme é uma espécie de segurança, para despertar em caso de morte ou coma.

Brincadeiras à parte, desperto cinco minutos antes do horário programado pelo prazer de desativar aquela bomba-relógio do meu dia. Já estou competindo com o que eu mesmo programei. Não tenho conserto, minha vida é criar rivalidades.

A questão é que sou cricri, colono, caxias. Não faço nenhum adiamento.

Tocou, acordei. Não negocio prazos com o meu corpo. Não viro para o lado fingindo que não é comigo.

Seja no inverno, seja no verão, seja cama quente, seja cama fria, não irei ronronar e babar no travesseiro por mais alguns instantes.

Para um poeta, sou bem prático. É manhã, acabou a mamata, tenho a obrigação de levantar e a responsabilidade de seguir meu trabalho.

Só que coço meu cotovelo em reverência aos preguiçosos.

Como queria ser aquele que arma o alarme e faz trinta sonecas até seu despertar. Trinta!

E não vê nenhum trabalho de pegar o alarme, responder o chamado e esperar tocar de novo.

É como atender trinta telefonemas no meio do sossego, e não se irritar, não xingar e não soltar um desaforo.

É gostar excessivamente de descansar. Não chamaria de descansar, o ato está mais próximo de hibernar.

Eu não consigo, talvez nem entenda, para mim não é mais sono, e sim contagem regressiva, ano novo, explosão de fogos.

Minha alma é de cachorro - perco a tranquilidade com barulhos estridentes.

Não recupero a fantasia com facilidade.

Por absoluta incompetência, o que me resta é invejar os ninjas do relógio.

A cada cinco minutos, o bichinho uiva e o dorminhoco não acorda, graceja, mexe no celular e fecha os olhos sucessivamente.

Que superioridade auditiva, que soberba onírica.

O trim trim trim não incomoda, a dormência não perde sua força de vontade.

É alguém que nasceu com Valium no sangue, com Rivotril no sangue.

É alguém com alto poder de concentração ou de alienação.

O aparelho tocará próximo ao travesseiro durante duas horas, numa espécie de pânico ritmado, e o sujeito somente ficará mais alegre.

Alegre, incrivelmente alegre.

A pessoa raciocina: ainda tenho uma hora para dormir, ainda tenho meia hora para dormir, ainda tenho vinte minutos para dormir, ainda tenho dez minutos para dormir, ainda tenho cinco minutos para dormir.

São pequenas esperanças inventadas de um desespero. O que era castigo torna-se bônus.

Na minha lógica, ela está acordando trinta vezes. Na lógica dela, está dormindo trinta vezes.

Na minha lógica, acordar é ruim é ela não cansa de repetir. Na lógica dela, dormir é bom e ela não cansa de repetir.


Enquanto eu pago o tempo à vista, ela parcela o tempo em trinta vezes sem juros.

22 de junho de 2014 | N° 17837
MARTHA MEDEIROS

Morri

É uma das gírias do momento: Morri (mas dizem que já começa a cair em desuso, fenecendo ela própria).

“Morremos” quando ficamos impactados por algo, quando um acontecimento nos tira o ar, quando não acreditamos no que estamos vendo, ou seja, quando parece que fomos para o céu. Sem fatalismo, é apenas uma gracinha.

Tenho simpatia pelo uso corriqueiro e desestressado de tudo que invoque a palavra morte. Na mesma proporção, sinto um certo desprezo pela reverência aterrorizante que prestam a ela. Qual o problema, morrer?

Não tenho medo da morte porque já morri muito.

Não apenas em momentos quando cabia o uso da gíria (durante minha música preferida num show, quando me deparei com uma praia paradisíaca, quando ouvi algo que eu esperava escutar havia tempo), mas, muitas vezes, no sentido fúnebre mesmo: morri todas as vezes em que me frustrei, morri quando deixei a infância, morri quando deixei a puberdade, morri quando passei por finais de amor, morri quando passei adiante apartamentos em que vivi, morri por todas as minhas desistências, morri diante de cada tarefa terminada, morri quando machuquei algumas pessoas sem querer, morri nas inúmeras vezes em que fui machucada, morri tanto por ferimentos leves quanto por balaços à queima-roupa.

E morri em solidariedade à morte dos outros, morri diante de tragédias que não foram comigo que aconteceram, morri pelas estatísticas, morri de vergonha alheia, morri pelo que passou raspando. Tudo o que acontece de triste a qualquer outro ser humano, passa rente a nós.

Morri por excesso de sensibilidade e às vezes por um rigor desmedido, mesmo que, em termos genéricos, procure ver alguma graça em tudo.

Agorinha mesmo, 10 minutos atrás, morri um pouquinho. Coisa de nada. Já voltei.

Sem morte, não há vida. Quem não morre, não renasce, não volta mais atento, não volta mais amoroso, não volta mais experiente, não volta. Vira cadáver já na primeira morte, que pode ter acontecido aos cinco anos, aos 12, aos 16: quando você morreu pela primeira vez?

Minha relação amistosa com a morte vem justamente do exagero de amor que tenho pela vida, pela profunda capacidade de regeneração que me trouxe até aqui, habilitada para extrair alegria das mínimas coisas e êxtase das maiores. É por já ter morrido muito que vibro quando o telefone toca, quando o dia amanhece com sol, quando vejo os amigos, quando pratico exercícios, quando aprendo uma atividade nova, quando acerto, quando sorrio, quando comemoro.

Não é só a iminência de uma morte definitiva que nos faz valorizar cada dia respirado, mas também as sucessivas mortes pontuais, aquelas que nos dão o passe para finalizar a próxima jogada com mais êxito.

Morreu? Nasce um novo começo.


quarta-feira, 18 de junho de 2014


18 de junho de 2014 | N° 17832
MARTHA MEDEIROS

Cangurus e tamancos

Nesta quarta-feira foi preciso decidir entre acordar holandesa ou australiana – não concebo presença num estádio sem torcer para alguém. Estarei às 13h no Beira-Rio, e mesmo não sendo meu time que entrará em campo, torcerei. Mas para quem? Holanda ou Austrália? Com que roupa eu vou?

Eu tinha pouca idade – quatro, cinco anos? – e já sentia fascínio pela Holanda, um país do qual eu nada sabia, a não ser que tinha nome de mulher e sobrenome de Chico Buarque. Assim iniciou minha simpatia. Holanda, 1 x 0.

Aí ganhei de uma tia um par de tamancos de madeira. Ela havia retornado de uma viagem por aquele país que parecia tão feminino na minha imaginação, enquanto que da Austrália eu ainda não tinha notícias. Holanda, 2 x 0.

Então, virei adolescente e comecei a trocar cartas (cartas!) com uma neozelandesa que, por ser vizinha dos australianos, poderia ser considerada como tal. Foi por causa dela, da Michelle, minha primeira amiga além-mar, que comecei a simpatizar com cangurus também. 2 x 1.

Mas a Holanda tinha tulipas, e desde muito cedo desenvolvi o apego por flores, por todas elas – um apego que se mantém até hoje – e a Holanda marcou de novo: 3 x 1.

A Austrália tinha praias, era um país jovem, a longa distância me induzia a pensar que era um destino para quem não tinha outro objetivo a não ser a boa vida. Mas, afora esse saudável oba-oba, me fazia falta alguma informação mais consistente. Eu seria capaz de citar um pintor australiano? Àquela altura, já havia aprendido a gostar de arte e uma reprodução caprichada de Van Gogh inspirava a família na parede de casa. Holanda, 4 x 1.

E chegou o dia de viajar para o Exterior pela primeira vez. Europa, meu foco. Quando desembarquei em Amsterdã, aluguei uma bicicleta, tomei algumas Heineken e me entortei a fim de homenagear a bebedeira arquitetônica das casas que margeiam seus canais, umas escoradas nas outras, como quem volta de uma noitada forte. Pirei com (e em) Amsterdã. Já era uma goleada: 5 x 1.

Quando a Austrália parecia irremediavelmente humilhada, eis que assisto a um filme com um ator australiano que eu nunca vira antes. Ele se chamava Hugh Jackman e me causou boa impressão. A Austrália descontou com categoria: 5 x 2.

Eis a lógica matemática da Copa. Ao menos a lógica de uma fan (farrona) do esporte, que não entrou em nenhum bolão, não entende profundamente de futebol nem de nada, que não sabe muito bem para quem torcer quando não é a seleção do seu país que está em campo, mas que faz questão de acompanhar o entusiasmo da festa com a irreverência permitida pela ocasião. Para quem torcer, Van Gogh ou Wolverine? E para qual resultado?


5 x 2. É justo. Afinal, o que se quer é gol para tudo que é lado. E Van Gogh gostava de girassóis.

sábado, 14 de junho de 2014


15 de junho de 2014 | N° 17829
FABRÍCIO CARPINEJAR

Choro emprestado

Tenho um péssimo hábito de não anotar o sobrenome dos meus contatos do celular. Digito rapidamente o primeiro nome e deu. Livro-me da tarefa.

Assim, quando vou telefonar para meu amigo Everton, enfrento a loteria de cinco Everton na minha lista e não sei qual é o Everton verdadeiro. Não que os outros sejam falsos, mas o Everton mais próximo está ladeado de xarás eventuais e efêmeros do mundo dos negócios.

Para falar com Everton, acumulo gafes. Como não sei sequer os primeiros dígitos de seu número, sou obrigado a perder uma manhã inteira confirmando seu telefone. É ridículo, ligo para vários intermediários para ter a certeza de um destino.

Enfrento enrascada ainda maior diante de nomes tradicionais como Ana, Maria, Pedro e Zé. Daí a roleta russa se converte em guerra ucraniana. São 15 opções de cada um para criar constrangimento, gastar lábia e pedir desculpa.

Minha preguiça sempre me coloca em situações embaraçosas. Esses dias, recebi um SMS de minha amiga Natalia, avisando que não iria para aula porque sua mãe faleceu. Aquilo me calou fundo. Encheu de lágrimas os dois copos de requeijão de meus olhos. Não questionei o contexto “Aula? Que aula?”, afinal não frequentava mais nenhum curso com ela.

Respondi apenas meus pêsames e perguntei onde seria o enterro e qual o horário.

Tinha sido colega de Natália no Ensino Médio. Foi minha confidente e conselheira inseparável. Recordava sua mãe nos servindo sanduíche de mortadela e suco de laranja quando estudávamos no quarto para as provas finais. Conservei essa terna imagem para ter o que desaguar no sofrimento.

Ao chegar no velório no São Miguel e Almas, não localizei a cabeleira loira de Natália.

O silêncio do lugar acentuava os gemidos e miados dos parentes. Cadeiras em L asseguravam ordem e fila na demonstração da dor.

Esperei sentado um pouco para ver se esbarrava em alguma lembrança. Não reconheci ninguém.

Decidi cumprimentar o homem perto do caixão. Raciocinei que era o viúvo e pai de Natália. Eu me aproximei e abracei longamente o sujeito. Chorei copiosamente em seus ombros. Ele retribuiu chorando mais alto. Dei dois socos em suas costas. Ele revidou esmagando meus braços. Eu soltei uma frase consoladora tipo “A vida é terrível!”, ele concordou soluçando.

Sozinho, ao lado da falecida, observei o vidro buscando entender se a morte tinha inchado seu rosto ou ela havia envelhecido em pouquíssimo tempo.

Depois de me desidratar no cemitério, telefonei para Natália e lamentei que não a encontrei na despedida de sua mãe.

- Minha mãe, Fabrício? Isola! Está vivíssima da silva.

Acho que chorei pelo morto errado. Fica como crédito para o próximo enterro.

15 de junho de 2014 | N° 17829
VERISSIMO NA COPA | L.F. Verissimo

NA CARA

OOscar tem a expressão permanente de um menino que acaba de saber que o Papai Noel não existe. Ele destoa dos barbudos e cabeludos do resto da Seleção, o que não teria a menor importância se não fosse uma explicação possível para a restrição que muita gente mesmo depois da sua atuação contra a Croácia lhe faz. Ele simplesmente não teria a cara adequada para estar num time de adultos.

Oscar compensa o pouco físico com a determinação. Não foram poucas as vezes em que ele parecia ter perdido a bola, contra a Croácia, e a recuperou. É o típico jogador que se poderia chamar de oferecido – é sempre uma opção de jogada, em qualquer lado do campo. Acrescente-se a isso o passe certeiro, o bom chute e a inteligência, e temos um jogador completo. Mas sem cara de jogador.


Isso faz diferença? Faria se o rosto de garoto correspondesse a uma falta de experiência e maturidade. Mas ele joga com a seriedade e a sabedoria de um veterano. Para que a resistência a ele acabasse, talvez fosse recomendável disfarçar sua enganosa inocência. Quem sabe uma barba?

15 de junho de 2014 | N° 17829
MARTHA MEDEIROS

A casa do vizinho

Muitas situações provocam estranhamento, e uma das mais inquietantes é entrar no apartamento de um vizinho de prédio. Está ali a mesma sala, do mesmo tamanho que a sua, com a mesma orientação solar, a mesma disposição das paredes, a mesma cozinha, os mesmos quartos e banheiros mas nada, nada é o mesmo.

A parede que na sua casa é cor de marfim, na do vizinho está pintada de vermelho, o que muda a atmosfera do ambiente, faz com que pareça menor. Você, que adora plantas e coleciona bugigangas trazidas de viagens, entra cautelosa naquele apartamento gêmeo ao seu, porém totalmente despojado de humanidade, mais parece um show room.

Onde você tem um aparador lotado de porta-retratos, o vizinho colocou um espelho do teto ao chão. Você deixa um sofá branco e confortável virado em direção à sacada, enquanto seu vizinho têm duas chaise longue de aço cromado e couro preto que ficam paralelas uma a outra, voltadas para uma parede onde ele possui uma televisão do tamanho de um aquário do Sea World.

Ao entrar na cozinha dele, imagina que está dentro de uma nave espacial, tudo é cinza chumbo e imaculadamente limpo, enquanto sua cozinha tem uma fruteira de papel machê trazida da Bahia e armários de madeira.

O lavabo dele é revestido com um papel de parede austero e elegante, o seu se manteve como a construtora entregou, com azulejos sem graça, e você nem trocou a torneira original, simplesinha – a dele deve ter sido transplantada de algum castelo francês, é um colosso. Se você tivesse um lavabo igual, é lá que receberia as visitas. Aí você lembra que tem um igual, só que o seu parece um banheiro de rodoviária.

Apartamento de vizinho causa desconforto porque inevitavelmente será mais bem cuidado ou mais desleixado que o seu, mais escuro ou mais claro, mais atraente ou mais insosso. A disposição dos móveis parece incorreta, tudo sugere uma grande transgressão, e você não se sente acolhido, tem vontade de sair correndo daquele lugar que foi concebido de um jeito estranho a fim de confrontar você. É isso. O apartamento do vizinho lembra que há outras formas de viver, enquanto você julgava que só havia uma: a sua.

Cada um de nós concebe a vida de uma determinada forma, decora a seu modo os dias e noites, colore suas paixões com suavidade ou desespero, dá um revestimento aos seus traumas ou os deixa a nu, expõe suas esquisitices ou as joga para baixo do tapete.


Cada um de nós recebe o mesmo espaço para existir e o arranja, inventa, traduz, transforma e recria de acordo com uma identidade que será sempre única, particular. Quando você tiver um ataque de petulância e achar que só o seu jeito de viver é que é certo, dê um pulo no apartamento do vizinho. E assombre-se com a quantidade de novos mundos que existem nas portas ao lado.

sábado, 7 de junho de 2014

LINDO FINAL DE SEMANA.

Os mesmos gestos...
Comunicações de energias.
Sem palavras e sons.
Apenas combinações.
Vibrando no mesmo tom.
Harmonia é isso encontros.
Atrações por semelhanças.
Ninguém as desmanchas.
Eternamente eladas.
São crenças.
Jamais quebradas.

Sol Holme

Desejamos ser compreendidos porque desejamos ser amados.
Então aprenda a amar mesmo sem compreender
O semelhante. Amar também é renúnciar!

Bem que a vida poderia ser como um filme,
Adiantar nas horas ruins, voltar os momentos
Bons e sempre ter um final feliz!






LINDO FINALDE SEMANA ANJO AMIGO.
ELA. . .
É profundamente religiosa
 e natural.
Com simplicidade da alma é mística e conhece valores únicos.
A força do encontro das águas como o som dos ventos.
Respeita trovões e raios porque sente a força da natureza.
Também entende a dureza das pedras o poque foram feitas.
Sente os sabores dos silêncios e faz deles uma palestra.
Sempre atenta a sinais porque sinalizam estradas...
mostrando encruzilhadas o som dos pássaros elevam pensamentos
e com isso soa uma orquestra belezas efêmeras e eternas fazem dela
uma chama acesa tem encontro com anjos em forma de festas onde
recebe suas bençãos sempre grata com a vida ajoelha-se diante do altar
e agradece em preces: . " Obrigado Senhor meu Deus por tanto amor
no meu ser sem esse amor sou uma poeira sem cor amo-o por toda...
Eternidade... Amém."

Sol Holme



08 de junho de 2014 | N° 17822
MARTHA MEDEIROS

A casaca

Ele, colorado fanático, era casado com uma também colorada, e tiveram dois filhos, dois meninos que obviamente torciam para o Internacional, herdando a paixão da família. Muitos pais têm uma vontade, às vezes secreta, de que os filhos sigam sua profissão, pratiquem a mesma religião, desenvolvam preferências idênticas, mas quando se trata do time de futebol, a vontade deixa de ser secreta para ser escancarada: os filhotes são induzidos abertamente a honrar a camiseta do time.

Não raro, os pais colocam a escolha futebolística do bebê já declarada na porta da maternidade. Nasceu Matias, nasceu Luciana, e ao lado do nome o distintivo doFlamengo, do Vasco, do Atlético, do Corinthians ou de qualquer que seja o clube daquela criança que não ousará transgredir uma tradição sagrada.

Mas eu estava falando do Internacional, e de um colorado casado com uma colorada com quem teve dois coloradinhos. Pois ele se divorciou da colorada. E os meninos, de nove e sete anos, ficaram morando com ela, como quase sempre acontece. A separação não chegou a ser litigiosa, mas tampouco foi um passeio num jardim florido: as pendengas de sempre sobre valores de pensão, partilha de bens, sem falar no ciúme corrosivo em relação à nova namorada com quem papai já desfila - como são rápidos esses homens.

Pois ela, a mãe, ainda sem um namorado para distraí-la, e considerando-se levemente injustiçada com a situação toda, resolveu irritar o ex-marido (“para não perder a prática”, diz ele). Virou gremista. E, claro, está catequizando os dois moleques para que virem também.

O homem está fora de si. A ex-mulher está usando todos os recursos disponíveis: hinos, uniformes, influência de amiguinhos, idas ao estádio, histórias mal contadas, chantagem emocional e vasto repertório de doutrinação. Os meninos começam a vacilar. O plano está prestes a dar certo.

Eu disse a ele que duvido que os filhos mudem de lado: um pai torcedor costuma ser invencível como exemplo. Mas ele teme pela chegada de um padrasto que desequilibre essa balança de vez.

Que drama.

Virar a casaca é um direito, mas não deixa de ser uma traição. Quando escuto um brasileiro dizendo que vai torcer pela Argentina ou para qualquer outra Seleção que não a nossa, não consigo evitar o muxoxo. Sei que o futebol pode ser alienante, pode reforçar ou enfraquecer a imagem de governos, portanto é legítimo o protesto político em forma de torcida contra, mas sempre é incômodo ver a paixão perder para o racionalismo. Pô, de vez em quando é preciso parar de pensar e se entregar para a emoção - para não perder a prática, que seja.


Vale para adultos e mais ainda para crianças, cuja inocência não merece ficar órfã.

08 de junho de 2014 | N° 17822
FABRÍCIO CARPINEJAR

Um jeans nunca sai barato

Não tema quando sua mulher subir numa balança. A balança é de menos. A balança não é de nada.

Se ela pisar numa farmácia e verificar seu peso, não sofra por antecipação, não se amedronte com o resultado. Talvez sua esposa saia rindo, diga que não confia na fidelidade da máquina e que não se preocupará à toa. A ordem das coisas e da casa permanecerá inalterada.

Mas fique tomado de toda a cautela quando ela provar jeans em uma loja.

Não pense que ela está comprando apenas mais uma peça, que ela apenas desejava uma opção escura com cintura alta ou intermediária, que é uma saída de praxe ao shopping. Não entre de patinho nesta conversa furada de provador.

Verá o Apocalipse sem bainhas. Sua tranquilidade pode terminar. Seu mundo pode ruir.

A calça é a real balança da mulher. É a única medição em que ela confia cegamente.

É não entrar em seu número, é não fechar o zíper apesar dos pulinhos, é não entender a falta abrupta de sintonia entre as coxas e a bunda, é perceber os gomos saltando das pernas, que sua esposa irá enlouquecer. Não calará mais a boca dali por diante com dietas do suco, da proteína, do chá verde, do miojo, dos pontos, da sopa, da lua, do sol, de Beverly Hills, do bairro Cavalhada.

Abandonará o shopping com uma longa lista de cortes e restrições, num enxugamento alimentar jamais visto em sua residência.

Acabou o romance entre vocês. Acabou suas mordomias, suas escapadas da rotina a dois, sua pizza pepperoni.

Ela vai cancelar todos os possíveis jantares, vai anular qualquer cinema durante o mês para não comer pipoca e tomar refrigerante, vai suspender a viagem programada para Gramado, vai acabar com os passeios noturnos pelos bares (já que não deve beber).

Ou seja, ela deixará de viver. E por causa do maldito jeans que não serviu nela, você também deixará de viver.

Ninguém engorda sozinho. E, preste atenção, ninguém emagrece sozinho.


O preço de morar junto está embutido na calça.

quarta-feira, 4 de junho de 2014


04 de junho de 2014 | N° 17818
MARTHA MEDEIROS

Não pode

Nunca tinha feito uma ressonância magnética. Primeira vez. Retirei os brincos, a roupa e coloquei um daqueles uniformes azuis de doente. Sentei no banco do corredor, de frente para uma parede, e fiquei ali uns 20 minutos esperando ser chamada. Tudo prometia ser lento, até meus pensamentos se arrastavam. Quando já estava quase pegando no sono (era noite), escutei meu nome e entrei na sala. Outra dimensão. Outro ritmo. Tudo veloz. Ouvi do médico: “Deita.

Levanta as pernas no três: um, dois, três. Tá aqui os fones de ouvido por causa do barulho. Tá aqui a campainha se precisar falar comigo. Não te mexe. Não pode. Não pode”. Levou um segundo e meio para me dizer tudo isso, emendando uma frase na outra como se fosse um cantor de rap. E lá me fui cápsula adentro. Só lembrava da parte do “não pode”.

Minha respiração ficou mais profunda. Não te mexe. Não pode. Respirar podia? Percebi meu peito subindo e descendo, arfando conforme eu inspirava e expirava. Deveria trancar a respiração? Havia um som constante nos arredores, parecia o de uma máquina de lavar roupa em funcionamento. E ali, dentro da cápsula, acontecia uma rave, batidão eletrônico, deu a maior vontade de dançar.

Não pode. Não pode. Não pode.

Claro que, não podendo nada, deu também uma coceira no queixo. Eu precisava tossir. Uma mecha do cabelo me incomodava junto ao pescoço. Quase funguei. Tive duas contrações involuntárias nas pernas. O corpo inteiro dava ordens para eu subverter a situação: vai, mulher, te mexe, coça, tosse, funga. E eu ali, múmia obediente, embalsamada, petrificada, ansiosa por movimento.

Basta a gente ouvir um “não pode” para o desejo acordar.

O proibido é uma tentação, sempre foi, desde Adão e Eva. Avisem-me que “não pode” e terei vontade de pular o portão que protege um jardim privado, de entrar na sala destinada apenas aos funcionários, de estacionar na vaga para idosos, de sentar à mesa reservada para quem ainda não chegou ao restaurante, de fumar dentro do avião – e eu nem fumo.

Mas impunidade não é para qualquer um. Cidadãos honestos que pulam muros, entram em salas privativas, estacionam onde não devem, sentam no lugar destinado a outros e fumam no banheiro da aeronave certamente serão multados, advertidos, humilhados. Só se mantém inalcançável o transgressor profissional, aquele que assalta alguém, rouba um carro – esse ninguém pega.

Então, eu, bem educada e temente às ordens que me dão, não me mexo. Faço apenas aquilo que pode, aquilo que resultará num diagnóstico certeiro, sem chance de equívoco: é uma mulher que dá para se confiar.

Que vasculhem meu esqueleto à vontade, não há ressonância que revele os pequenos crimes que nunca cometi.


sábado, 31 de maio de 2014

WALCYR CARRASCO
30/05/2014 21h49

A arte da pechincha

Na Holanda, uma senhora que me atendia me passou o preço de um suvenir. Respondi: “Pela dúzia?”

Adoro pechinchar. Sou capaz de discutir por centavos. Como toda arte, a pechincha exige talento e disposição. Em Israel e na Turquia, conheci templos, cidades subterrâneas, lugares que fazem parte do patrimônio cultural da humanidade. Mas uma das minhas melhores recordações são as lutas por desconto nos mercados árabes. Em Israel, ao discutir o preço de uma mala comum, ouvi o que considero o maior elogio, de um vendedor árabe.– Mister, you are so hard!

E chegou no meu preço!

Em Istambul, cheguei a ponto de devolver um kit de temperos de US$ 30. Eu só chegava a US$ 10. Fingi que ia embora, o vendedor correu atrás de mim, entregou o kit e levou os US$ 10.

Um dos segredos na pechincha é ter cara de pau. Seja onde for. Na Holanda, perguntei o preço de uma lembrança num quiosque de produtos típicos. A velha senhora que me atendia deu o valor. Respondi: “Pela dúzia?”.

Seguiu-se uma briga de duas horas por cada tamanquinho de porcelana, miniatura de moinho de vento ou camiseta com a palavra Amsterdam. Um casal de japoneses acompanhava a cena surpreso. A mulher chegou a inquirir um amigo que me acompanhava nas compras: – Como você suporta ficar perto desse sujeito?

Como acontece em todos os lugares do mundo, ela disparou o mais antigo refrão dos vendedores: – Se eu vender por esse preço, serei demitida.

Respondi que não acreditava, que ganharia aumento por vender tão caro. Durante a batalha, falamos de nossas vidas. Com cerca de 80 anos, respondeu que era viúva duas vezes e não pretendia casar mais, para não ter de fazer café e cuidar de marido.
– Já enterrou dois, enterre o terceiro – disse eu.

Rimos. Uma boa discussão sobre pechincha entra em intimidades, brincadeiras capciosas, falsas agressões. Terminamos quase nos abraçando, enquanto eu pagava as compras.

Nos mercados árabes, o vendedor só respeita quem pechincha. Fica até um pouco decepcionado quando alguém aceita o primeiro preço. O segredo é começar com um décimo do valor pedido. Ou perguntar se aquele é o preço da loja toda, não do tapete. Muitas vezes, terminei tomando chá com eles, satisfeitos, nos olhando com respeito mútuo.

Muita gente tem vergonha de pedir desconto. Bobagem. Seja nas feiras livres ou nos grandes magazines, desconto sempre é possível. Em loja de cadeia de eletrodoméstico, o vendedor diz que não, não. Depois responde:
– Vou ver o que posso fazer.

Entra no computador. Pois é. O programa já sugere várias categorias de preço. A tabela e aquele para quem guincha como um porco estripado. Em certo momento, ele diz: – Cheguei ao máximo. O computador não aceita abaixo disso.

É a hora de chamar o gerente. Aí vem uma autorização extra! Mais abaixo! Já consegui, em empresas que montam cozinhas e armários embutidos, meus 60%. Essas empresas trabalham com margens boas de lucro, estão abertas a alternativas de pagamento, diferenças à vista ou parcelado.

Em lojas elegantes, que oferecem cafezinho e taça de champanhe, com vendedoras bem trajadas, parece até feio pedir desconto. Não é. A maioria só não pede porque parece falta de fineza chorar preço. Um aviso: o dinheiro é meu, é seu. Defendê-lo é justo. Se, depois, algum vendedor me chamar de miserável pelas costas, qual o problema? Fui fazer uma compra, não estabelecer amizade. De fato, os vendedores tendem a se tornar mais amigos de quem pechincha. Na discussão, trava-se uma relação mais próxima, mais humana e divertida.

Outro dia, fui a uma loja de utensílios domésticos, num shopping sofisticado. Me interessei por uns vasos. Na guerra estabelecida, veio a gerente. Ela ligou ao supervisor, para chegarmos a 5% em três vezes. Pouco, mas melhor que nada. Mesmo grandes grifes masculinas se deixam vencer, também nos 5%. Que sensação agradável, um desconto!

Em outras, reconheço, desconto é impossível. São joalherias, onde um brinco ou relógio custa uma grana. Choro, choro e parcelo em dez vezes sem acréscimo, no cartão. Aí,  já na porta, lamento com a gerente:
– Mas nem um presente você vai me dar?

Já descolei uma carteira de couro para passaporte, uma manta lindíssima de cashmere. Se compro uma caixa de charuto, saio com cinzeiros, isqueiros, o que estiver dando sopa. Seja na feira ou no shopping, meu negócio é pechinchar. Só é preciso perder a timidez e ir em frente. No final, dá uma incrível sensação de vitória!



31 de maio de 2014 | N° 17814
CLÁUDIA LAITANO

Que bonito é

Dois argumentos a favor da paixão pelo futebol sempre comoveram este mole coração ateu. O primeiro é aquele da memória de infância, do guri levado pela primeira vez ao estádio pelo pai e que aprende a associar a paixão pelo clube àquela experiência original de afeto e inserção familiar. O segundo é o da utopia de um repertório afetivo comum a ricos e pobres, intelectuais e analfabetos, jovens e velhos. O futebol como um Google Tradutor instantâneo de afinidades esteja você na Ucrânia, na África ou no interior do Ceará, seja você operário ou patrão. Que bonito é.

É possível que o futebol como legado de pais para filhos nunca tenha sido tão importante quanto nos dias de hoje. São escassos os patrimônios simbólicos suficientemente estáveis a ponto de criarem a percepção de que podem sobreviver de uma geração para a outra. Valores morais, convicções políticas ou religiosas e tradições familiares tornaram-se fluidas e cambiantes.

O time de coração, por sua vez, ainda sugere permanência, passagem de bastão, afirmação de identidade. Não é de se espantar que os pais se apressem a pendurar a camiseta do clube na porta do quarto da maternidade. Não haveria muitos outros símbolos para exibir ali com tanta convicção.

A fantasia de que a paixão pelo futebol permanece acima da divisão de classes, por sua vez, anda cada vez mais difícil de ser sustentada no mundo real das arenas padrão Fifa. Em sua palestra no Fronteiras do Pensamento na última segunda-feira, o americano Michael Sandel, professor de ética em Harvard, lembrou o tempo em que a diferença de preços dos ingressos nos estádios de beisebol não passava de US$ 3.

O patrão e o empregado sentavam lado a lado, enfrentavam a mesma fila nos banheiros e comiam o mesmo cachorro-quente gordurento. Nos últimos 30 anos, observa Sandel, lá como aqui, os estádios passaram a reproduzir a lógica do apartheid social de escolas, shoppings, hospitais, parques. Ricos para um lado, pobres (se chegarem lá) para o outro. A falta de espaços de convivência entre pessoas de diferentes origens e perfis, sustenta o filósofo, estaria corroendo um dos fundamentos da democracia: a percepção de que, mesmo que alguns cheguem ao estádio de ônibus e outros de carro importado, todos fazem parte da mesma torcida/nação – e se reconhecem uns aos outros.

É possível que a divisão dos brasileiros em relação a esta histórica Copa do Mundo, embretados entre a paixão nacional e a indignação com tudo o que não dá certo no país, esteja refletindo não apenas a crise de um sistema que favorece a descrença na representação política, mas também, em alguma medida, a nostalgia dos tempos em que o estádio de futebol era o último espaço onde ainda era possível sonhar com um país um pouco menos desigual e cindido.


Que bonito era.

sábado, 24 de maio de 2014


25 de maio de 2014 | N° 17807 MARTHA MEDEIROS

Quanta felicidade eu aguento?

“Te desejo toda a felicidade que puder aguentar”. Foi com essa frase que uma pessoa que gosta de mim encerrou seu e-mail, e fiquei petrificada diante do computador, um pouco pela explosão de gentileza de alguém que nem conheço, e outro tanto pela contundência que me fez pensar: quanta felicidade eu aguento?

Desde que lancei um livro com a palavra “feliz” no título (a coletânea de crônicas Feliz por Nada, de 2011) que respondo até hoje a uma infinidade de entrevistas com esse mote: o que é, afinal, ser feliz?

Bom, quando estou triste, estou feliz. Não sei se isso responde.

Felicidade não tem a ver com oba-oba, riso frouxo, vida ganha. Isso é alegria, que também é ótima, mas que não tem a profundidade de uma felicidade genuína que engloba não só a alegria como a tristeza também. Felicidade é ter consciência de que estar apto para o sentimento é um privilégio, e que quando estou melancólica, nostálgica, introvertida, decepcionada, isso também é uma conexão com o mundo, isso também traz evolução, aprendizado.

Feliz de quem cresce. Mesmo aos trancos.

Infelicidade, ao contrário, é inércia. A pessoa pode passar a vida inteira sem ter sofrido nada de relevante, nenhuma dor aguda, mas atravessa os dias sem entusiasmo, anestesiada pelo lugar comum, paralisada por seu próprio olhar crítico, que julga aos outros sem nenhuma condescendência.

Para ela, todos são fracos, desajustados ou incompetentes, e não sobra afetividade nem para si mesma: se está sozinha ou acompanhada, tanto faz. Se lá fora o sol brilha ou se chove, tanto faz. Se há a expectativa de uma festa ou a iminência de uma indiada, tanto faz.

Essa indiferença em relação ao que os dias oferecem é uma morte que respira, mas ainda assim, uma morte.

Eu reajo, eu me movo, eu procuro, eu arrisco – essa perseguição a algo que nem sei se existe é a uma homenagem que presto à minha biografia. Nada me amortece, tudo me liga, tanto aquilo que dá certo como também o que dá errado. Felicidade é uma palavrinha enjoada, que remete só ao bom, mas dou a ela outro significado: é uma inclinação abrangente e corajosa para a vida, que nunca é só boa.

Já a infelicidade é uma blindagem contra o encantamento, é negar-se a extrair das miudezas o mesmo feitiço que as grandezas proporcionam.

Eu celebro o suco de laranja matinal, o telefonema de uma amiga, a saudade que eu sinto de algumas pessoas, o sol caindo no horizonte, a luz que entra pela janela do quarto ao amanhecer, a música que escuto solitária e que me remete a uma inocência que já tive – e pelo visto ainda tenho. Celebro o já vivido e o que está por vir, as risadas compartilhadas e o choro silencioso, e todas as perguntas que um dia talvez sejam respondidas.


Como esta: quanta felicidade eu aguento? Não sei. Que venha. Recusá-la é que não vou.