sábado, 15 de novembro de 2014


16 de novembro de 2014 | N° 17985
FABRÍCIO CARPINEJAR

A última vez

Se já é difícil dar adeus quando não se ama, imagina quando se ama.

Não é simples colocar um marcador de página numa história de amor e abandonar a leitura.

Reconhecer que jamais terminaremos aquele romance. Não haverá recompensa por aquilo que se leu até ali. Ninguém nos contará o que aconteceu.

Não participaremos do final feliz: os filhos, a velhice lado a lado, a casa cheia de netos. Não estaremos juntos na derradeira linha. É morrer sem ter morrido. É desaparecer estando onipresente.

O livro de sua imaginação ficará fechado para sempre. A relação terminou antes do fim do amor. O leitor terminou antes da obra. Não descobriremos qual será o desfecho.

Não queira viver o dia de uma despedida com a consciência de que é uma despedida.

É uma cirurgia sem anestesia. Será cortado, será remexido por dentro, será costurado, sentindo cada pontada e rasgo, antecipando cada movimento com os olhos abertos. A pele vai doer como um osso, a sensibilidade pedirá piedade, o ouvido apanhará qualquer frase como uma possível sentença salvadora.

Melhor que a despedida seja involuntária, desconhecida, desavisada. Melhor que seja abrupta, de repente, improvisada.

Pois se despedir é sofrer com tudo que lhe tornava feliz. É abrir os braços para a mágoa como se viesse uma alegria em nossa direção.

É um esforço para decorar o estranho momento em que abandonaremos uma vida tão desejada.

O nós é a primeira partilha – o plural perderá seu domínio. Voltará a chamar a pessoa que ama pelo nome, como se não a conhecesse. Não mais de Meu Amor. Não mais de Minha Paixão.

É entrar pelo quarto pela última vez, e ter noção de que será a última vez.

É olhar pela régua que mantém a janela aberta da cozinha pela última vez, e ter noção de que será a última vez.

É abrir o guarda-roupa pela última vez, reconhecer o estalo da divisória de madeira, e ter noção de que será a última vez.

É fechar o registro do chuveiro pingando pela última vez, e ter noção de que será a última vez.

É ajeitar as almofadas do sofá pela última vez, e ter noção de que será a última vez.

É ouvir a respiração perto pela última vez, copiosa, irrefreável, e ter noção de que será a última vez.

É abraçar pela última vez e não soltar porque é realmente a última vez.

É beijar pela última vez e soluçar porque enfim chegou a inacreditável última vez.

É uma coleção de instantes definitivos. Preciosos. Sábios.

Despedir-se é guardar. Guardar é cuidar. Cuidar é nunca deixar de amar.


Quem faz questão de se despedir, quem faz questão de inventar uma despedida, é quem ainda ama. Ama muito. Ama demais. Ama loucamente.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014


12 de novembro de 2014 | N° 17981
MARTHA MEDEIROS

A arte de suprimir

Estava lendo uma longa entrevista com o escritor argentino Julio Cortázar e deparei com sua inspirada declaração sobre “literatura com franjas”, que é aquela cheia de rococós desnecessários. Segundo ele, escritor bom é escritor que se dedica a limpar o texto até chegar a uma estrutura medular. Por isso é tão importante não se dar por satisfeito e reescrever quantas vezes for preciso (para mim, atualmente, tem sido a melhor parte do ofício).

É quando temos aquele monte de palavras na nossa frente e começamos a depurar, polir, retirar tudo o que não agrega, tudo o que não serve. Não raro, é um processo dolorido, pois costumamos nos apegar a uma determinada frase ou a alguma gracinha, mas não devemos mantê-la apenas por capricho: ela pode distrair o leitor e interromper o ritmo da leitura.

É preciso severidade consigo próprio, desapegar daquilo que, mesmo que nos apaixone, compromete o resultado final. Diz Cortázar, e eu humildemente endosso: “Quando corrijo, só uma vez em 100 acrescento algo. Nas outras 99, corrigir consiste em suprimir. Qualquer um que veja um rascunho meu pode comprovar isso: muito poucos acréscimos e enormes supressões”.

Faxinar é uma arte. Vale para textos, armários, gavetas, e também para manias, lembranças, rancores. A maturidade tem muitas vantagens, entre elas a de deixarmos de ser tão sentimentais com nosso passado e promovermos um arrastão em tudo o que é excessivo. Não há mais tempo para delongas: uma vez conhecendo melhor a nós mesmos, hora de priorizar a essência – a nossa e a de tudo.

O que não impede que pessoas mais jovens comecem a se habituar desde cedo a não colecionar inutilidades, como amigos falsos, preconceitos e dramalhões. Hoje, considera-se rico aquele que tem 1 milhão de seguidores no Twitter e curtidas no Face, ou aquele que acredita que um sem-número de sapatos, bolsas e tênis acalmará sua ansiedade, afugentando o vazio. Será mesmo preciso gastar metade da vida até perder essa ilusão? O que nos dignifica não é um guarda-roupa abarrotado ou uma cabeça lotada de neuras. Simplificar, ao contrário do que se pensa, nunca foi provinciano, e sim um luxo que poucos conseguem bancar.

Acumular é que é provinciano. Nem mesmo quando relaciono esse verbo a afeto e dinheiro consigo dar a ele algum crédito, pois acúmulo nada tem a ver com suficiência. Se temos afeto e dinheiro suficientes para viver bem, com paz, conforto e alegria, para que correr atrás de mais e mais? O excesso pode conspirar contra, nos exigindo um esforço extra para manter a roda girando. O suficiente faz a roda girar sozinha.

Tempo esgotado, hora de enviar o texto para o jornal. Desconfio que ele segue com algumas franjas, mas prometo apará-las numa próxima versão.


sábado, 8 de novembro de 2014


09 de novembro de 2014 | N° 17978
MARTHA MEDEIROS

Um jeito de ser

Há muitos anos, tantos que minha memória pode estar me traindo, havia um programa de rádio local que fazia entrevistas e terminava sempre com a mesma pergunta: se você pudesse passar uma tarde conversando com qualquer personalidade mundial, viva ou morta, quem você escolheria? No topo das paradas se revezavam Martin Luther King, John Lennon, Shakespeare, Gandhi, Nelson Mandela e demais nomes desse naipe e magnitude.

Quando chegou minha vez de ser entrevistada, tirei um Nelson do bolso também, mas não era o Mandela. Respondi singelamente: adoraria passar uma tarde conversando com o Nelson Motta.

Naquela época, nem em sonhos imaginaria que um dia teria esse privilégio. Até hoje, aliás, não tive – e é provável que nunca tenha. Estamos apenas menos distantes, nossos universos se aproximaram, mas nos jogarmos num sofá pousando os pés em cima da mesinha de centro, como dois velhos amigos? Desconfio que não nesta encarnação.

Por que escolhi Nelson Motta em vez de Freud, Mick Jagger, Woody Allen? Nem eu mesma sei direito a razão de ter negligenciado meus ídolos de estimação. Talvez porque, na presença de grandes nomes, eu me limitaria a fazer uma entrevista, sem conseguir tirar meus sapatos e colocar as pernas para cima. Com Nelson Motta eu conseguiria – acho até que ele não permitiria que fosse diferente.

Antes da literatura, minha maior paixão foi a música popular brasileira, o que explica eu ter seguido os passos desse jornalista e produtor musical que fundiu sua própria vida com a sonoridade extasiante que o Brasil produz. Nossa música é nossa maior riqueza e Nelson Motta não só entendeu isso como a honrou através de artigos, estímulos, descobertas e inclusive com canções próprias. Só isso justificaria meu encanto, mas tem mais.

Tem a coisa do jeito. O que me fascina nas pessoas, qualquer pessoa, é o jeito. Não é o currículo, o discurso, o passado, o futuro, e sim o jeito de dizer as coisas, o jeito de levar a vida, o jeito de sorrir, o jeito de olhar, o jeito, simplesmente – fator tão esnobado, porém de alta relevância, ao menos pra mim.

Nelson Motta me ganhou não só pelos seus livros, mas por ter transformado seu trabalho em mais uma aventura amorosa (talvez a mais importante delas), por nunca perder o balanço das ondas mesmo vivendo a rotina estressante imposta a todos nós, por ser um cara que joga o jogo em vez de assistir da arquibancada, por ser um entusiasta de tudo que é bonito, bom e swingado, por buscar a palavra mais poética para dizer o que poderia soar pouco palatável e por manter inalterado aquele sorriso de menino no rosto, contrariando todas as teses de que o tempo passa e nos envelhece. Quem disse?

Ao completar 70 anos dias atrás, tive o privilégio de estar bem perto dele, tão perto que não resisti em perguntar, como se uma entrevista fosse: qual o segredo, afinal?

Ele: “Não guardar rancor”.


Não tirei os sapatos, mas tirei o chapéu.

09 de novembro de 2014 | N° 17978
FABRÍCIO CARPINEJAR

Não se pode mais idealizar nesta vida?

A mulher sempre é culpada pela idealização. Por esperar demais de um amor.

Porque o amor que ganha não se equipara ao amor que deseja.

Porque há um completo desencontro entre o que ela sonha e o que ela suporta ao acordar, entre o anseio pela cumplicidade e a avareza que aguenta num relacionamento.

E ela se torna culpada: é ela que não valoriza o que tem, não se reduz ao que vê, não agradece o que recebe.

E ela se torna uma esnobe ao abandonar relações justamente por defender sua felicidade. E parece que esta felicidade não existe e está sendo burra em persegui-la.

Será que deveria se conformar com o pior e desperdiçar sua existência com o pior? Não se pode mais idealizar? É um crime conservar o apelo romântico de achar um príncipe, sua cara-metade, seu complemento da alma? Será que ela necessita fingir que a bijuteria brilha como uma joia? Fingir que o coaxo é um canto de cisne? O pessimismo é a expressão da saúde emocional hoje em dia?

A idealizadora sofre, apanha, é xingada, apedrejada, excluída socialmente, é a Geni da canção de Chico Buarque, é a nova Madalena da Bíblia.

Não é ela que está certa, ela que é excessivamente exigente.

Não é ela que sabe o que quer, ela que é perfeccionista.

Não é ela que tem razão, ela que vive cobrando, arrumando briga e procurando defeito.

Não é ela que procura a qualidade, ela despreza as opções.

Seu sofrimento é visto como um despropósito. Acaba ganhando o descrédito dos amigos e da família, o estigma de que é fora da realidade, de que não valoriza o pouco.

Já ninguém acredita quando ela diz que vai casar.

- De novo?

Já todos reclamam quando ela anuncia que cansou de casar.

- Não pode desistir.

Se ela insiste, é louca. Se ela desiste, é louca.

Nunca agrada e corresponde às expectativas dos seus próximos. Mas não pode ter suas frustrações, é proibida de ter suas decepções, é vetada de ter suas desilusões.

Precisa suportar as lamúrias dos outros, mas não pode expressar sua insatisfação.

A idealização é vista como uma alucinação, um distúrbio psicológico: você está querendo alguém que não existe, forçando a projeção, não enxergando o que sua companhia guarda de bom e verdadeiro.

Não pode reclamar de barriga vazia pois está consolidada a ideia de que reclama de barriga cheia. Como se namorar ou casar fosse uma benção, quando é apenas mais uma formalidade do machismo.

Sem idealização, não existe ambição no amor, esperança no amor, fé no amor.


Nivelar por baixo é desastre. Quem se contenta com o banhado jamais cultivará um jardim.

09 de novembro de 2014 | N° 17978
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Sucessão

A derrota da candidatura de Tarso Genro ao governo do Estado (e a de Olívio Dutra ao Senado) me deixou com um desconforto que ainda agora estou tentando entender. Não se trata apenas da derrota dos candidatos da minha predileção, nem da vitória do Sartori, a quem, falando nisso, desejo um excelente governo, esperando que se cerque de gente boa e faça o que cabe fazer. Para a Cultura, não são poucos nem são fracos os potenciais secretários. Na minha área, estão aí José Fogaça e Sergius Gonzaga, duas figuras de primeiro nível.

E, bem, não estou aqui para dar palpites, nem o futuro governo precisa deles, bem sei. Quero é tentar encontrar o fio da meada do meu desconforto. Onde ele começa?

Acho que é uma certa sensação de orfandade o meu ponto. O primeiro enunciado me surgiu assim: bá, os meus candidatos, agora derrotados, andam na volta dos 70 anos. É certo que hoje em dia ter 70 anos não impede nada em matéria de vida produtiva, até na política, essa arena tão particular e agora tão rebaixada da vida. Mas mesmo assim aos 70 anos a curva da vida é outra que aos 50, nem falar dela aos 40 ou 30. (E aproveito para desejar vida longuíssima e fértil aos setentões em causa.)

Tarso, Olívio, Raul Pont, Flávio Koutzii, para ficar nos mais notórios líderes petistas do Estado, vêm de pendurar as metafóricas chuteiras eleitorais. O Flávio já tinha largado quatro anos atrás, agora foi o Raul, e os dois se somam aos derrotados de agora. Minha pergunta é: o que se aposenta com eles?

Não sei responder. Certo que há setentões e mesmo oitentões na ativa, no PT e em outros partidos palatáveis para um eleitor e cidadão como eu, capazes de vir a fazer coisas boas e importantes na gestão pública; mas algo se perdeu nas derrotas e aposentadorias aqui evocadas. E me dou conta de que estou fazendo é um balanço da minha geração.

Nós, que andamos entre os 50 e os 60, mais ou menos, quem somos, na arena da política? Sem citar nomes, porque não se trata disso (meus deputados são da minha geração e são gente de valor), penso que não obtivemos mais a síntese que os aposentandos eram e simbolizaram – de algum modo, eles reuniam em si as características de serem ao mesmo tempo gente de ação e de formulação, de eleição e palanque, como de pensamento e crítica teórica. Uns mais, outros menos, essas figuras foram e são a maturidade, talvez o zênite, de um específico jeito de ser de esquerda depois da II Guerra Mundial – e aqui é inevitável ajuntar o adjetivo “sartreano” a esse jeito.

Com o Olívio, o Tarso, o Raul e o Koutzii deu sempre para falar de um grande romance, um filme marcante, um poema, tanto quanto para formular uma leitura da conjuntura política de varejo e para discutir os fundamentos e estruturas do poder. (Evito perguntar ao meu eventual leitor de quantos mais se poderá dizer o mesmo.)

Sei, ainda dá para falar com eles, que estão aí, com saúde e inteligência, e sei que gente como eu vai continuar a contar com eles. Repito que desejo tê-los perto por décadas ainda, mas não consigo deixar de me sentir um tanto órfão com as aposentadorias e derrotas recentes.


Diria um latino, já de si uma figura de outra época: “Tempus fugit”. Bem isso.
RUTH DE AQUINO
07/11/2014 21h08

Juiz não é Deus

O juiz dirigia sem habilitação. Foi multado, estrilou e quis prender a fiscal. Quem ele pensa que é?

Todo juiz que se sente ofendido ao ouvir que “não é Deus” deveria buscar uma terapia para curar a onipotência. Juízes têm a função de julgar, mas estão muito longe de ter a prerrogativa do juízo divino. Não estão acima do bem e do mal.

Por conhecer a fundo as leis, juízes não têm desculpa para violar ou desrespeitar o Código Civil. Espera-se dos juízes, mais que dos leigos, um comportamento ajuizado – é só observar a raiz do adjetivo. Juízes podem, todavia, errar. São humanos, não são deuses.

O juiz João Carlos de Souza Correa abusa do direito de errar. Em fevereiro de 2011, no Leblon, bairro nobre da Zona Sul do Rio de Janeiro, ele foi parado numa blitz da Operação Lei Seca. A fiscal de trânsito Luciana Tamburini, de 34 anos, verificou que ele não estava com sua carteira de habilitação e que seu carro, um Land Rover, não tinha placas nem documentos. Mandou rebocar o carro – cumprir a lei.

Em vez de se resignar por ter sido flagrado em delito, João Carlos não gostou. Identificou-se como juiz de Direito. “Ele queria que um tenente me desse voz de prisão”, disse Luciana. “O tenente se recusou, e o juiz ligou para uma viatura. Os PMs tentaram me algemar e disseram que o juiz queria que eu fosse para a delegacia. Respondi que ele queria, mas não era Deus.”

Informado pelos PMs do que Luciana dissera, João Carlos começou a gritar e lhe deu voz de prisão. Chamou-a de “abusada”. Luciana confirma que são comuns as “carteiradas” de poderosos, do tipo “você sabe com quem está falando?”, mas é raro o infrator se descontrolar a esse ponto.

Ela abriu uma ação contra João Carlos por danos morais depois de sofrer, no Detran, uma sindicância interna, sob pressão dele e de sua mulher, para apurar seu procedimento na blitz. O desfecho na Justiça é uma ode ao corporativismo. O desembargador José Carlos Paes inverteu a ação e condenou Luciana a pagar R$ 5 mil de danos morais a João Carlos, por ter ofendido o réu e “a função que ele representa para a sociedade”. A sentença, datada do último 22 de outubro, é surreal. Vale ler um trecho:

“A autora, ao abordar o réu e verificar que o mesmo (sic) conduzia veículo desprovido de placas identificadoras e sem portar sua carteira de habilitação, agiu com abuso de poder, ofendendo este, mesmo ciente da relevância da função pública por ele desempenhada. Ao apregoar que o demandado era ‘juiz, mas não Deus’, a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado. (...) Pretendia afrontar e enfrentar o magistrado que retornava de um plantão judiciário noturno”.

Você ficou com pena de João Carlos? O que esperamos nós ao encarar uma blitz sem carteira de motorista, sem placa e sem documento? O embate com João Carlos assustou a mãe de Luciana, que nem queria mais deixá-la sozinha em casa. “Quando a gente faz o que é certo, não tem por que ter medo”, disse Luciana. O caso deverá ir agora para o Superior Tribunal de Justiça. “Vou até o final, não me arrependo de nada.”

O juiz João Carlos não é estreante em confusões. Em 2007, como titular em Búzios, no litoral norte do Rio, tentou forçar um transatlântico com turistas a abrir para ele as lojas do free shop. Deu voz de prisão a uma jornalista, Elisabeth Prata, por calúnia e difamação. Ela passou 12 horas detida, foi condenada a cinco anos de cadeia e teve de provar sua inocência. Em 2010, João Carlos foi investigado pelo Conselho Nacional de Justiça por decisões duvidosas que envolviam disputas fundiárias e imobiliárias na Região dos Lagos. Parece que ele pensa mesmo ser Deus.

Nas redes sociais, a história de Luciana deslanchou uma onda de solidariedade. Uma advogada paulista, Flavia Penido, leu os autos do processo, ficou indignada com “o show de horrores” e, mesmo sem conhecer Luciana, abriu uma vaquinha virtual para arrecadar o valor da multa e dar a ela apoio emocional.

“A gente deveria brigar menos nas redes sociais por besteira e canalizar essa energia para atazanar quem realmente merece ser atazanado”, disse Flavia. Até a sexta-feira, já haviam sido coletados mais de R$ 20 mil. Luciana ficou surpresa e feliz. Disse que doará o excedente. Contou que seu maior desejo é ganhar a ação, sem precisar tocar no dinheiro arrecadado. Hoje licenciada da função, Luciana aguarda nomeação na Polícia Federal. Quer ser delegada.

Será que João Carlos sabe com quem está lidando? Com a opinião pública.

O Brasil convive com muitas arbitrariedades cotidianas. Cansa. É uma vida às avessas, que embaralha os conceitos, beneficia os espertos e prejudica os honestos. Para ser excelentíssimo, é preciso impor respeito pela integridade. Para mudar o país, não basta rezar. Um bom começo é saber que ninguém aqui é Deus. Nem o senhor doutor João Carlos de Souza Correa. Amém.


sábado, 1 de novembro de 2014


02 de novembro de 2014 | N° 17971
MARTHA MEDEIROS

Morra bem

Um dos meus textos mais conhecidos chama-se A morte devagar, que publiquei na véspera de Finados de 2000 e que logo ganhou o mundo com o título Morre Lentamente. No início foi equivocadamente atribuído a Pablo Neruda, por isso o espalhamento e seu sucesso. Passado tanto tempo, já me devolveram a autoria e hoje esse texto virou canção na França e entrou no roteiro de um filme italiano - sem falar nas traduções para o espanhol, que alguns desconfiados ainda acreditam ser seu idioma de origem.

Na época, aproveitando a proximidade do Dia dos Mortos, escrevi puxando as orelhas (não os pés) daqueles que morrem em vida: os que evitam o risco, a arte, a paixão, o mistério, as viagens, as perguntas – apenas atravessam os dias respirando.

Hoje, neste dia de Finados, 14 anos depois, reitero: não morra lentamente. Morra rápido, de uma vez só, sem delongas. Morra quantas vezes for necessário.

Quando fiz meu mapa astral, ouvi da astróloga: “Você tem dificuldade de lidar com ambivalências, gosta das coisas esclarecidas, para o bem ou para o mal”. E ela concluiu: “Morrer é algo que você faz bem, ficar em banho-maria, não”.

Sombrio? Soturno? Ao contrário. Entendi com clareza sobre o que ela falava. Morte é a antessala da luz. Não a morte definitiva, que encerra o assunto, mas as diversas mortes em vida, os vários falecimentos a que somos submetidos. É preciso morrer bem enquanto se vive.

Cada final de amor é uma pequena morte, por exemplo. Morre lentamente quem fica alimentando fantasias de retorno, planejando vinganças, cultivando lembranças com naftalina. Sei que dói, mas não deixe esse amor definhando na UTI, dê logo a extrema-unção, acabe com isso, morra rápido, morra de vez, para que possa renascer ligeiro também.

Finais de carreira, finais de amizade, finais de ciclo: mortes que acontecem aos 30, aos 40 anos, em qualquer idade. Dói, dói demais, não estou negando a dor, mas o que você prefere? As dúvidas, as ilusões, o apego? Prefere a sobrevida a uma vida nova? Confie na experiência de quem já se enterrou algumas vezes. Morra. Morra bem morrido, baby.

Final de juventude, final da faculdade, final de uma viagem de intercâmbio: vai ficar agindo como se tivesse 18 anos para sempre? Mate o garoto, renasça adulto.

A morte daqueles que amamos é trágica, mas nossa própria morte, não. Ela é uma contingência de nossa longa existência, e essa não é uma frase cínica, simplesmente é assim. Nossos sonhos morrem. Nosso passado morre. Nossas crenças, nossas fases. Fazer o quê? Morra bem. Morra com categoria. Com dignidade. O menos lentamente possível. Morra de morte bem arrematada, uma, duas, três mil vezes, morra em definitivo sempre que for exigido, para sobrar tempo.

Tempo pra vida em frente.

02 de novembro de 2014 | N° 17971
FABRÍCIO CARPINEJAR

Cafonices necessárias

Na vida existem cafonices necessárias. Coisas que precisam da breguice para manter seu charme.

É o cafona imprescindível – quando arrumadas, não têm graça nenhuma. É o cafona fundador de nossas experiências. O cafona fundamental, conhecemos de um modo e não há como enxergar diferente. Perdura uma ligação insubstituível com o nosso olhar da infância.

Penso de imediato em pano de prato e churrascaria.

O pano de prato sempre traz aquelas flores e frutas pintadas, toscas, primárias, mal acabadas. Um cacho de uvas ou o botão de uma rosa. E só é bonito pela sua ingenuidade. Se fosse uma obra de arte, seria uma echarpe. Se fosse de um tecido bom, seria um lenço. Ele é feito para a discrição, para ser uma toalha de mesa do fogão, um sudário dos pratos e copos.

Ninguém lembra onde comprou e como surgiu em nossa casa: simplesmente aparece nas gavetas. Não tem valor algum, mas não vivemos sem ele. Entra na categoria do inútil necessário. Não é levado à tábua de passar, não recebe o vapor do ferro, é tratado sem pompa e circunstância, dobrado direto ao ser pego do varal. Tanto que recebe a borda colorida da costura para se diferenciar do pano de chão. A moldura de tricô corresponde a um aviso para não ser jogado fora.

O mesmo aspecto amavelmente grosseiro deve emanar de uma churrascaria. Não confio em churrascaria chique, com mesas limpas, protetor nas cadeiras e guardanapos de pano. Rodízio de carne não pode sofrer síndrome de restaurante japonês. É gerar um mal entendido, igual a transar com um travesti jurando que é mulher.

Churrascaria depende de uma vulgaridade mínima: palito de dente e caixinha de farofa à disposição, e a toalha de papel vegetal, reposta a cada nova turma de famintos.

Não é um lugar para afetação. Churrascaria que se preza tem jeitão de cozinha. O espaço inteiro é uma imensa cozinha, da porta de entrada até os fundos da residência. O salão não guarda diferença alguma com o clima de bagunça das panelas. Haverá gordura no chão, farelos, rastros da pressa dos espetos. O sapato cola ao caminhar pelos corredores. O ideal seria permitir cuscos junto das pernas para pescar as sobras – mas seria muita evolução do cafona.

Todo rodízio gaudério apresenta um mural em sua parede com cascata e cavalos empinados, feito por algum parente do dono. A arte rústica e amadora indica que encontrará qualidade e fartura no lugar. Péssimas pinturas equivalem, no jargão popular, a ótima comida. São estrelas informais do Guia Quatro Rodas. É um selo popular de autenticidade da picanha.

A cafonice produz uma tranquilidade de vida eterna: preserva situações e objetos que nos acompanham desde o nosso nascimento e que não se modificaram com a modernidade.


Reforça nossa crença na informalidade do simples, em que não dependemos de efeitos especiais para encontrar a felicidade.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014


29 de outubro de 2014 | N° 17967
MARTHA MEDEIROS

A tal correria dos dias

O que é luxo para você? Já houve quem respondesse: uma bolsa Prada, um vinho Romanée-Conti, a suíte do Hotel Hermitage em Montecarlo. Aí ostentar passou a ser brega, e as respostas mudaram: levar meus filhos à escola, almoçar em casa todos os dias, encontrar os amigos uma vez por semana. Tocante, mas familiar demais. Até que se optou por algo mais contemporâneo: luxo é ter tempo. É o que 10 entre 10 entrevistados respondem hoje.

Quem ousaria discordar? Luxo, de fato, é ter tempo. Ainda mais nestes dias turbulentos, em que se corre de um lado para o outro vivendo contra o relógio. Estão todos megaocupados, não estão?

É o que se diz. Você tem que renovar a carteira de habilitação, tem que cortar o cabelo, tem que visitar um cliente, tem que levar a bicicleta para o conserto, ir à farmácia, ao dentista, à aula de pilates, à terapia, esperar o eletricista, levar o cão para passear, mandar um sedex e ainda utilizar oito das 24 horas do dia trabalhando. Aliás, seu dia ainda tem 24 horas? Parabéns. Eu devo ter bobeado, pois afanaram umas cinco horas do meu.

Resultado: você não tem mais tempo para nada. E isso é uma constatação tão irrefutável, tão crível, tão corriqueira, que os outros não questionam, aliviando você da culpa que sente por estar sempre alegando falta de tempo quando, muitas vezes, a falta é de interesse.

Dar uma carona para sua tia tagarela até a rodoviária numa sexta-feira chuvosa às sete da noite? Você adoraria, mas está entrando numa reunião.

O filho do seu vizinho vai estrear como DJ de um bar no outro lado da cidade? Você adoraria, mas está entrando numa reunião.

Churrasco do pessoal da empresa no domingo, num sítio a 170 quilômetros de distância, sem sinal de internet, tendo que levar a própria bebida? Você adoraria, mas está entrando numa reunião. De condomínio, sério!

Marcaram reunião de condomínio para quarta-feira? Você adoraria, mas às quartas sempre fica doente.

Adiaram para quinta? Você acaba de baixar hospital.

Você não tem tempo para nada que não queira fazer, e ninguém o acusa de antipático porque estão todos na mesma situação, sem “tempo” para aquilo que antes nã tinha escapatóia, mas que atualmente tem, graças à abençada agenda lotada. Luxo mesmo é viver numa era tã esquizoide, que te concede a desculpa perfeita para estar em outro lugar.

Mas de mim você não escapa. No próximo sábado, dia 1º à 16h, autografarei as antologias Paixão Crônica, Felicidade Crônica e Liberdade Crônica na Feira do Livro de Porto Alegre. Nem pense em alegar falta de tempo. Arranje uma desculpa mais original ou então vá. Estou contando com você.


sábado, 25 de outubro de 2014


26 de outubro de 2014 | N° 17964
MARTHA MEDEIROS

A nova juventude

O que não falta é frase satirizando a primeira etapa da vida. Exemplo: A juventude é um defeito facilmente superável com a idade. Outro: A juventude é uma coisa maravilhosa, pena desperdiçá-la em jovens. Quem ultrapassou essa fase dourada hoje olha para ela com certo desprezo. Não de todo equivocado: a maturidade, de fato, se não é nosso período mais fértil, certamente é o mais sabido. Algum benefício tinha que trazer essa tal passagem do tempo.

No entanto, em vez de fazer coro com a soberba habitual dos maduros, vale dar uma espiada mais generosa para a garotada. Afora os neorretardados que proliferam nas redes esbanjando pobreza de espírito, a geração atual tem uma postura mais humanizada em relação a questões importantes da vida. Vale a pena escutá-los.

O tema da homossexualidade, ainda debatido à exaustão na mídia, já saiu de pauta entre os adolescentes. Nada mais natural do que meninos e meninas namorarem parceiros do mesmo sexo. Ser favorável ou desfavorável à causa gay? Concordo com eles: chega a ser constrangedor a gente se declarar a favor ou contra o que não nos diz respeito. É muita arrogância.

Quanto à busca por uma profissão, mudanças visíveis também. O dinheiro continua sendo uma preocupação, mas já não ocupa o topo das paradas. O que se deseja é fazer diferença para a sociedade, trabalhar no que se gosta, personalizar sua atuação, deixar marcada uma ideia, uma consciência, um caminho diferente, um novo olhar. Nem que para isso se invente uma profissão que nunca existiu, que se formalizem atividades que antes não eram consideradas. Estudar segue fundamental, mas a sequência colégio-vestibular-faculdade vem ganhando bifurcações. Se a felicidade não estiver na vida sólida e estável que os pais sonharam, paciência. Os sonhos dos velhos terão que se adaptar a uma realidade menos regrada.

Sim, ainda existem os adolescentes convencionais, que sonham com casamentos convencionais e empregos convencionais e que querem enriquecer, consumir e ser “alguém”. A diferença é que esse “alguém” padrão, que se amparava em hierarquias para estabelecer juízos de valor, não representa o jovem moderno que quer construir uma sociedade mais horizontalizada. A noção de riqueza está mudando de foco: ir para o trabalho de bicicleta pode dar mais status a um profissional do que conquistar uma vaga no estacionamento reservado aos patrões.

Outro dia falava sobre tatuagens com duas garotas e me peguei aplicando o velho discurso a respeito do cuidado que elas deveriam ter antes de tomar decisões definitivas. Foi quando me dei conta de que até o definitivo mudou de configuração. Elas não veneram o “pra sempre” – o que acho ótimo, mas então por que fazer uma tatuagem? Simplesmente para homenagear uma etapa da vida. Não haverá arrependimento se o assunto não for levado com tanto drama. Tatuagem deixou de ser uma condecoração vitalícia. Nada mais é vitalício.


Basta que seja sustentável.

26 de outubro de 2014 | N° 17964
ANTONIO PRATA

A oposição fluorescente

Não vou votar no Aécio, hoje, mas enquanto estiver acompanhando a apuração, no início da noite, um lado meu torcerá secretamente para que ele ganhe. Esse meu lado (que não revelarei a ninguém, caro leitor, só a você, confiante na sua discrição) teme menos os próximos quatro anos sob um governo do PSDB do que os efeitos anabolizantes e lisérgicos que outro quadriênio petista pode causar à direita mais raivosa deste Brasil varonil.

Quando digo direita raivosa não estou me referindo a quem é a favor da independência do Banco Central, de um Estado menor e um superávit maior. Estou falando dos Bolsonaros e Felicianos, da turma que prega “direitos humanos para humanos direitos”, que deseja “afogar esses nordestinos” e diz, em rede nacional, que “órgão excretor não é órgão reprodutor”. (Aliás, quando ouvi aquele homúnculo cometer essa afirmação, com a segurança que só a profunda ignorância traz, me perguntei: será que ele faz xixi pelo sovaco? Ou ejacula pelo bigode? Mas não divaguemos, voltemos ao assunto).

A chegada do PT à presidência, 12 anos atrás, teve um pernicioso efeito colateral: por ser um partido historicamente ligado às minorias, permitiu à direita mais tacanha camuflar seu preconceito contra negros, mulheres, gays, índios e pobres sob uma papagaiada libertária, de crítica ao poder.

A partir de 2003, o cara vinha com uma piadinha jurássica do tipo “o melhor movimento feminino sempre foi o movimentos dos quadris” e queria aparecer na foto com um sorrisinho transgressor, tipo, “si hay gobierno, soy contra!”. Fazia um número de stand-up racista e alegava estar combatendo a censura do Estado e a opressão do politicamente correto. Falava “as zelite” e “meus deretcho” fingindo zombar do Lula, quando estava é babando a ancestral demofobia.

Tal reação conservadora me parece desproporcional aos avanços dos últimos anos. Afinal, apesar de alguma melhora, continuamos profundamente desiguais. Os negros seguem pior do que os brancos, as mulheres ainda ganham menos do que os homens, gays não podem se casar e, vira e mexe, são acariciados por heterossexuais com socos, pontapés e lâmpadas fluorescentes.

A direita raivosa, contudo, cada vez mais ensandecida, acredita que vivemos numa mistura de Venezuela com Sodoma. Pior: os inegáveis casos de corrupção e outras patacoadas do PT fazem com que o discurso retrógrado chegue àqueles que não comungam de seus preconceitos, mas se indignam, com razão, com os erros do governo. Se na passeata de apoio ao Aécio, na última quarta, em São Paulo, que a revista Economist chamou de “Revolução do Cashmere”, a multidão gritava “Viva a PM!”, o que gritará em 2018, caso a Dilma ganhe?

Com o PSDB no poder, porém, os paranoicos delirantes não teriam como ver, em cada esquina, a ameaça de uma revolução cubana comandada por travestis-negras-maconheiras-aborteiras. Abaixariam seus dedinhos exaltados e, cofiando os anacrônicos bigodes, teriam de assumir que seu ódio não é nada além do velho racismo, machismo, homofobia e demofobia do nosso Brasil varonil.


Sem alternância de poder não é só a situação que corre o risco de perder o pé da realidade: a oposição também precisa, de tempos em tempos, cair do seu troninho.

26 de outubro de 2014 | N° 17964
FABRÍCIO CARPINEJAR

Confirma

Votar não é somente eleger governador e presidente.

É a possibilidade de rever o bairro da infância e reencontrar antigos amigos.

Como a maior parte dos eleitores vota sempre no mesmo lugar, e costuma ser a zona do primeiro voto, tem a opção de visitar a família e rever colegas que nem o Facebook é capaz de localizar.

Muitos não transferem o título eleitoral, apesar da constante mudança de endereço. Apreciam preservar este domingo para exercer a nostalgia e a evocação dos laços.

A eleição torna-se uma repescagem da nossa memória. Um retorno sentimental às origens. Um passeio emocional para nosso ponto de partida.

Há quem viaje para sua terra natal com esse pretexto para conviver com os primos e tios. Há quem atravesse a cidade para caminhar nas ruas de suas malandragens infantis. Há quem entre de novo no colégio onde estudou, com aquela sensação estranha de invadir um santuário.

Rodoviárias e aeroportos estarão abarrotados de filhos pródigos com seus travesseiros e sua esperança por uma segunda chance.

Além de escolher nossos governantes, a eleição é o momento em que refletimos sobre o que nos tornamos e o que ainda queremos ser. Tem um contexto de reflexão e remissão, de julgamento de si e perdão ao outro.

Votar é virar a página de nossa biografia, retomar leituras interrompidas, soprar o pó das lombadas, tirar o marcador dos parágrafos incompreendidos.

Enquanto pensamos em quem receberá o peso verde de nossos dedos, decidimos o que podemos fazer com os nossos ressentimentos e brigas.

É definir – junto do país e do Estado – o destino de nossa paz individual.

Talvez seja a hora de aceitar a desculpa da mãe e matar a saudade do chimarrão na varanda de sua casa. Talvez seja a hora de prolongar o mandato por mais quatro anos de um amigo que a gente deixou de ver. Talvez seja a hora de levar o filho para conhecer onde passamos a adolescência.

Votar é reunir nossas forças para enfrentar o passado e as rusgas de antigamente. É aperfeiçoar os planos de governo de nossa vida, reorganizar nossas alianças, rever o que não deu certo na gestão passada de nossos hábitos.

É renovar os votos de casamento, de parceria, de paternidade e maternidade.

Eu já desfiz desentendimentos com irmãos no dia da votação. Por acaso. Não marquei nada – o próprio destino agenda reconciliações.

Quando fui votar, aproveitando que a urna familiar continua sendo na Escola Tubino Sampaio, no bairro Petrópolis, um abraço inesperado, uma risada espontânea e uma lembrança tocante já foram suficientes para desarmar o ódio e reiniciar a cumplicidade.

O amor precisa de tão pouco para retornar a ser o que era. Nada supera o olho no olho, o rosto diante do rosto, a singeleza do corpo atento e carente pedindo proximidade.


Votar é também voltar. Voltar para o lugar inicial de nossa felicidade e se abastecer de afeto até a próxima eleição.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Miro Saldanha-Nem eu sei

Perfil Gaúcho - Miro Saldanha

Miro Saldanha-Primavera Pampeana


Miro Saldanha - Covardia

22 de outubro de 2014 | N° 17960
MARTHA MEDEIROS

Sem arrego

“Resmungos e ranger de dentes não vão ajudar, as coisas mudaram e precisam ser assimiladas o quanto antes, porque vieram para ficar. Resistir ao que de todo modo vai acontecer seria falta de sabedoria e perda de tempo.”

Me senti uma garotinha de cinco anos ao ler esse puxão de orelhas que havia sido direcionado a mim. Em três linhas eu havia sido chamada de birrenta e burra. Tranquei o choro.

Mas logo me dei conta de que eu não tinha mais cinco anos e que não deveria levar a reprimenda tão a sério, afinal, foi direcionada a mim, mas também a outros tantos, e por alguém que nem me conhece direito. Resolvi achar graça e tocar minha vida sem me perturbar com questões menores.

Mas ele não se abalou com meu pouco-caso e seguiu com a artilharia pesada.

“Tenha cuidado com esse cansaço que pesa sobre a alma, pois é ele que induz a acreditar na ilusão de que os problemas poderiam ser resolvidos de uma tacada só, com fórmulas mágicas. Isso não acontecerá de jeito nenhum.”

Rogando praga. Insolente. Quem disse que estou com cansaço na alma, quem?

Resolvi ler o que ele dizia sobre os outros signos. Realmente, ele não era um representante da geração paz & amor, mas pegava mais leve com Áries, Gêmeos, Libra. Comigo é que a rudeza imperava. Perseguição nítida.

A solução era simples: deixar de dar ibope para as suas ralhações astrológicas. Ignorar. Estava decidida a fazer isso a partir do dia seguinte. Porém, o novo dia amanheceu, como sempre amanhece, e eu me vi espichando o olho para aquele quadradinho minúsculo com três pequenas linhas onde cabia toda a ira do universo contra mim. Foi então que compreendi como funciona a cabeça dos leitores que odeiam certos colunistas do fundo do coração. Xingam, rosnam, ofendem, mas não os abandonam nem sob decreto.

“Nada que for feito intempestivamente ajudará a resolver coisa alguma. Certamente, não será fácil conter os impulsos, mas, se você não se empenhar nesse sentido, sua alma não merecerá ser chamada de humana. Contenha-se!”

Nunca homem algum ousou mandar eu me conter, o abusado foi o primeiro – e ainda usou ponto de exclamação!

Mas se há algo que sobra em mim é resiliência. Se ele acha que vou bater em retirada, engana-se. Vou continuar aqui, pode continuar me atacando, eu aguento.

“Os temores arraigados em sua alma (lá vem ele com essa história de alma outra vez) têm sobre você o poder que você lhes outorgar, nem um pouco a mais do que isso. Esses temores são fantasmas que assombram a perspectiva de progresso que se encontra disponível”.

Entendi. É tudo coisa da minha cabeça. Sou responsável pelas minhocas que coloco na cabeça, e você é apenas um filósofo a serviço dessa reles criatura que teima em não evoluir.

Não me faltava mais nada. Humilhada pelo meu próprio horóscopo.

sábado, 18 de outubro de 2014


19 de outubro de 2014 | N° 17957
MARTHA MEDEIROS

A fantasia de jogar tudo para o alto

“Me chame de louca e me ganhe para sempre.” Tá, não é bem assim, mas parecido. Quanto mais cresce e se estabiliza a campanha pelo politicamente correto, mais as pessoas gostam de serem chamadas de loucas. Mulheres, quase todas. Principalmente as que não são.

Mulheres em geral são responsáveis, centradas, focadas, sabem bem o que querem e o que não querem: uma maneira de dominar a loucura intrínseca que as tenta. Ainda por cima, mulheres são mães, o que elimina de vez a chance de saírem da casinha (a não ser que a criatura seja louca MESMO). Todas carregam dentro o gene da insensatez, mas a maioria se controla, precisa amamentar de duas em duas horas, não esquecer de buscar as crianças no colégio, providenciar arroz e feijão à mesa todo dia, como despirocar?

Então elas abafam o desatino (aquele mesmo desatino que quem não se responsabiliza por ninguém extravasa) e ficam ali curtindo a fantasia da demência em silêncio, imaginando: “E se?”.

E se eu fizesse minha mala, dissesse bye-bye para a família e fosse passar um ano meditando na Índia?

E se eu fizesse minha mala, dissesse bye-bye para a família e fosse morar sozinha num quarto-e-sala no centro da cidade?

E se eu fizesse minha mala e aceitasse aquele emprego em São Paulo? E se eu fizesse minha mala e fosse cursar teatro em Nova York? E se eu fizesse minha mala e comprasse um sítio para ter a horta, o pomar e o jardim com que sempre sonhei? E se eu fizesse minha mala e me alistasse num projeto voluntário para finalmente dar um sentido a minha existência?

Tem sempre uma mala a ser feita no mundo das mulheres pseudoloucas.

Ou mais grave: um homem.

E se eu casar com ele mesmo ciente de que ele tem três ex-mulheres e oito filhos? E se eu fugir com esse desmiolado que só sabe tocar violão e mais nada? E se eu me arrepender de largar esse esquizoide que me fez mais feliz do que todos os homens sensatos que conheci?

Loucura e amor são parentes consanguíneos.

Quem olha de soslaio para uma mulher, jura que ela é confiável. Quase sempre é mesmo. Mas chame-a de louca, mesmo ela não sendo de fato, e terás uma mulher secretamente realizada em seus braços. Loucas, era tudo o que desejávamos ser, não fôssemos obrigadas a levar a vida tão a sério. Afinal, alguém tem que monitorar essa baderna aí fora.

19 de outubro de 2014 | N° 17957
FABRÍCIO CARPINEJAR

A MAIS CHATA DE TODAS

Sei que a chatice é mais nossa do que o outro. Só é chato quem não desperta a nossa curiosidade.

O chato é o que está interessado em nossa atenção, mas ele não nos interessa. Não é um problema dele, mas nosso.

A chatice é uma caridade que não deu certo. Não consegue conversar com a pessoa, por mais que tente. Despende o máximo de energia somente para cumprimentar.

Entre diversas espécies de chatos, nada supera a mulher que saiu de uma relação e só fala disso no primeiro encontro. A que mostra mensagens que troca com o ex no celular, pede opinião sobre o que deve fazer e cria uma histeria dos diálogos passados e dos inbox no Facebook.

É uma presença insuportavelmente incômoda.

Ela abusa da boa vontade de qualquer pretendente para desabafar e procurar cumplicidade.

Estão sozinhos, mas o acompanhante segura vela igual. Vela para um defunto.

Ela destrói o romance antes de começar. Com o que não seduz ninguém: a indiscrição.

Não se fala de relacionamentos anteriores no primeiro encontro, eis uma regra de etiqueta.

Transar ou não transar é o de menos. O que se deve guardar na carteira: não se fala de relacionamentos anteriores no primeiro encontro.

É uma falta de educação e de elegância.

Ainda não tem história junto, o mínimo de entendimento, e ela já deseja que ele concorde com seu sofrimento. É como rubricar um abaixo-assinado sem ler o que está escrito.

Não há sentido em despejar intimidade e detalhes escabrosos do que já viveu logo de saída. Nenhum tribunal é propício a flertes.

Uma mulher que desanda a criticar o ex no primeiro encontro provoca medo, assusta de verdade, parece psicopata.

Pois quem conta seus segredos com facilidade não terá respeito algum com o outro.

Você, que já fez isso, deixe agora de fazer, ouça meu conselho – que é de graça. Reserve o momento para arejar a cabeça, para oferecer uma chance, para distrair o coração, para curtir a prosa, a comida e o vinho.

Falar do ex é anticoncepcional do charme. É a pílula do dia seguinte do amor.

Desfaz o encanto. Pode vir vestida como uma princesa e será vista como megera. Pode liderar a pesquisa de intenções de voto e será percebida como a rainha da rejeição.

O primeiro encontro não é o momento para reabrir o passado, e sim para tentar descobrir um futuro diferente.

É de uma grande antipatia confundir aquele sujeito que aceitou sair, que se arrumou todo, com seu terapeuta, com sua cartomante, com seu conselheiro.


No fim da noite, o homem se identificará mais com o ex, e ainda vai invejar a inteligência dele por não estar mais ao seu lado.

19 de outubro de 2014 | N° 17957
ARTIGOS

O PESO DAS COISAS

O que é mais pesado? Um quilo de uvas ou um quilo de bananas? Um quilo de algodão ou um de chumbo?

Estas perguntas da idade infantil despontam nos “debates” entre os candidatos a nos governarem como presidente da República e governador estadual, como se o óbvio tomasse conta da vida e voltássemos a interpretar o mundo com a ingenuidade das crianças.

A uma semana da eleição que decidirá sobre nossos futuros governantes, a cada dia sabemos menos deles, do que foram ou são, do que pensam ou pretendem. Os debates cara a cara na TV deveriam servir para esclarecer posições e posturas e, assim, desvendar o passado e dissipar dúvidas sobre o futuro para que o voto fosse escolha consciente, não um simples apertar de botões na urna eletrônica, acompanhado de um suspiro de pesar do tipo “tudo dá no mesmo...”.

Não merecemos esse exibicionismo em que ambos os lados se proclamam “o melhor” e o “único honesto” para tentar encurralar o outro, como se debater fosse uma ferina troca de empurrões e tiros verbais. Desapareceram os compromissos com grandes projetos para enfrentar temas cruciais. O aquecimento global e a destruição da vida no planeta são o grande desafio do século 21, mas nenhum candidato fala nisso nem pia sobre o meio ambiente.

Ou, na visão infantil sobre “o que pesa mais” (um quilo disso ou um quilo daquilo?), os candidatos não sabem que o aquecimento global incide na saúde humana, na produção de alimentos e na vida em si?

Em compensação, Aécio e Dilma se deleitem em mútuas acusações, em tolas brigas infantis, cada qual buscando mostrar que o outro é pior. Quando indaga sobre a “lei seca”, Dilma não quer saber o que Aécio pensa da proteção no trânsito, mas insinuar que ele é afeito à bebida. Quando ele pergunta sobre o irmão da presidente, não quer saber da família, mas dizer que também ela cultiva o nepotismo. Tudo se reduz a um bate-boca, como o dos casais em crise, à beira da separação, em que cada lado vomita os defeitos do outro, não para salvar coisa alguma, mas para destruir o que ainda reste.

No Rio Grande, tudo é similar, embora menos desrespeitoso. Em vez de projetos e compromissos, Tarso e Sartori recitam migalhas, como se governar fosse distribuir esmolas à porta da igreja, deixando o resto nas mãos de Santo Antônio. Faltam propostas concretas, mas sobram apelos à emoção infantil e até as mães dos candidatos surgem recomendando o filho.

Nada é maior do que a figura materna, mas indago: pretender transformá-las em meloso artifício de propaganda não será um jeito de os candidatos continuarem a nos ocultar o que são de fato? Afinal, que mãe deixará de falar bem do filho?

Na caça ao voto (guiados pelos “marqueteiros”, não por ideias do mundo), os candidatos se autotransformam em “heróis supremos”. Ignoram que, na eleição, o fundamental é o eleitor, não o voto, pois sem eleitor não há voto nem eleição. Portanto, os candidatos devem respeito ao eleitor.

Nada é mais desrespeitoso, porém, que esse entrevero de maldades ditas à meia-luz, em que os candidatos inventam e fantasiam, como se o eleitor fosse um boneco de ventríloquo, que faz de conta que opina, quando nem sequer fala nem tem voz.

Nadamos sobre denúncias de falcatruas aceleradas. No escândalo mais recente, o da Petrobras e grandes empresas de obras, agora aparece envolvido também o PSDB de Aécio, e não só o PT, o PMDB e o PP, que apoiam Dilma. Tudo está à vista, tal qual o ebola na África Ocidental, que só começou a ser combatido, no entanto, ao se alastrar como perigo letal por todo o planeta.

Mas, aqui, a única medida do “debate” eleitoral é saber se um quilo de uva pesa mais do que um quilo de banana!


Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES