quarta-feira, 31 de agosto de 2016

 

31 de agosto de 2016 | N° 18622 
MARTHA MEDEIROS

Guerra de torcidas

Inevitável lembrar o dia da votação do impeachment do Collor. A cada voto favorável à sua saída, eu aplaudia. Era 1992 e eu tinha certeza absoluta de que lado estava. Aliás, não havia divisão, era um processo apartidário. Todos os brasileiros estavam do mesmo lado.

Hoje, o país vive situação similar, mas o país foi rachado em dois.

O discurso de Dilma no Senado, na segunda-feira, foi digno e sua disposição para o interrogatório, louvável. Estava me causando boa impressão, até que vieram as ameaças: se ela fosse deposta, adeus à democracia, seria o fim do país, nenhum contrato assinado teria mais valor.

A gente sabe que não é bem assim. Existe também a alternativa de o país seguir seu curso, fazer ajustes necessários, fortalecer a economia e respirar até a eleição presidencial de 2018. A não ser que a oposição se articule para tirar Temer do governo antes disso, uma ação que chamaríamos de quê? Revanche? Toma lá dá cá? Golpe? Direito constitucional?

Passei então a observar o outro lado do balcão e houve momentos em que concordei com alguns argumentos pró-impeachment, mas não senti a menor vontade de fazer parte daquela turma. Os que julgam Dilma também estão enrolados até o pescoço. Tanta retórica começou a me dar náuseas e percebi que não havia, ali, preocupação com o Brasil, e sim paixão pela política, pelo jogo, pelo poder.

No início da noite, uma câmera flagrou um cumprimento amigável entre Aécio e Dilma. Dava para perceber que sorriam. É isso aí. Tal qual a troca de camisetas entre jogadores ao fim de uma partida de futebol. Todos disputam a posse de bola em campo, mas, no final das contas, é só um esporte. Amanhã um pode estar jogando no time do outro.

É bem provável que a decisão já tenha sido tomada: Dilma saiu ou Dilma ficou. No momento em que escrevo, não sei. Tampouco consigo ter a certeza que tantos têm sobre o que é justo, neste caso, e o que não é. Segundo os comentários deixados nas redes sociais, voltaremos a ser uma ditadura, se ela sair, ou amargaremos uma crise sem fim, se ela ficar. Exagero. Não creio que haverá nem um grande atraso nem um grande avanço, independentemente do resultado. Então torço, antes de tudo, para que vença a lei.

Transformação, pra valer, virá com a continuidade do trabalho da Lava-Jato. Não se pode parar de punir quem roubou, seja de que partido for – começando por Eduardo Cunha. É a corrupção que tem que sofrer um impeachment colossal a fim de abrir caminho para uma renovação no nosso modo de fazer política. Só então evoluiremos, trocando gatunos por pessoas realmente comprometidas e mantendo dinheiro em caixa para investir num projeto de país que nos una de novo.

sábado, 27 de agosto de 2016




27 de agosto de 2016 | N° 18619 
MARTHA MEDEIROS

Falta de estoque

Preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Outro dia quis dar de presente para um amigo um álbum com algumas fotos que sei que ele iria gostar. Não um álbum digitalizado, mas daqueles em que colocamos as fotos nos compartimentos plastificados. Que via-crúcis. A maioria dos álbuns que encontrei nas lojas era de bebês e de noivas. Por fim, encontrei um como eu queria, de capa lisa e com a dimensão desejada. Quando ele recebeu, abriu um sorriso daqueles: disse que fazia tempo que não era surpreendido, e acreditei. Quem ainda se dá o trabalho de revelar fotos?

Ao mesmo tempo, soube de uma livraria em Paris que funciona numa sala onde há apenas uma Espresso Book Machine – uma máquina que imprime livros na hora. Você entra, escolhe o que deseja num cardápio com cerca de 5 mil títulos e em poucos minutos leva para casa seu produto. Como tirar uma Xerox numa casa lotérica.

Os álbuns de fotos estão rareando no mercado. Os livros impressos ainda existem, mas começam a ser automatizados. Discos também ainda existem, mesmo a gente baixando música direto de aplicativos. Cadernos, agendas, revistas, canetas, lápis: tudo em vias de virar quinquilharia inútil, objetos de culto, no máximo.

O mundo físico está se diluindo. E estoque é palavra que cairá em desuso rapidinho.

Observo minha casa e não imagino as paredes sem estarem tomadas por livros até o teto, as estantes entupidas de CDs, as dezenas de canetas enfiadas em potes, minha coleção de cartões-postais, os móveis amparando objetos trazidos de viagens, vários quadros pendurados, o chão forrado de tapetes diversos, os sofás cobertos de almofadas, lenhas e nós de pinho aguardando a hora de arder dentro da lareira. Um armazém doméstico.

Não guardo papelada inútil e rancores antigos, aprendi a deletar rapidinho tudo que é peso morto – para alguma coisa tinha que servir essa tal de maturidade. Mas preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?

Entrar numa livraria onde só existe uma impressora me parece a descrição de um pesadelo. Digo o mesmo de uma casa onde tudo é monocromático, futurista, com muitos espaços vazios sem um cisco à vista, os móveis apenas dois ou três. Afinal, é um hospital ou um lar?

As pessoas andam meio piradas, e acho que essa assepsia só piora o quadro. Não limpem tanto a área, deixem as coisas se amontoarem: pela manutenção das prateleiras, ao menos. Quero poder procurar, furungar e encontrar o que quero, não apenas dar um toque numa tela. É o meu singelo manifesto contra a higienização dos nossos hábitos.



27 de agosto de 2016 | N° 18619 
CARPINEJAR

Até Tóquio

Nunca subestime o poder de argumentação.

Se conversar não convence, pelo menos cansa o outro lado. O outro lado concordará comigo mais para dormir de uma vez por todas do que porque decidiu me apoiar.

Não me interessa ganhar uma discussão, só não quero perdê-la.

Quando estou errado, não deixo de defender os meus argumentos. Posso sofrer uma goleada, mas não desisto de buscar o gol de honra.

Jamais me entrego, jamais entrego os meus amigos. Amizade é a minha máfia. Não confunda o egoísmo com lealdade, é uma questão de preservação pessoal. Caso denunciar os amigos, sacrificarei os futuros álibis.

Homem ilhado é homem vulnerável.

Nego até depois do fim. Não duvido de que a verdade não fique com compaixão da minha forjada coerência. Não tremo de raiva, não grito, não altero o tom de voz. Não consulto o relógio para indicar ansiedade. Olho nos olhos para exalar confiança.

Nenhum mal é definitivo. O importante é não cair nocauteado pela confissão e permitir que o resultado seja fruto da subjetividade dos jurados.

Se você errar o nome da mulher, por exemplo, ainda há conserto. Mesmo que seja na cama. Confie em mim. Aliás, confie em si.

É apenas elogiar o ato falho. Criar um manifesto em defesa do ato falho. Inverter a situação. Nada melhor do que uma torção psicanalítica para evitar fraturas amorosas.

– Eu não sou Priscila. Priscila é o nome de sua ex! – resmunga a esposa, já chorando.

– Eu lhe chamei de Priscila? Que bom!

– Que bom?

– Que bom, amor. Eu estava esperando este momento.

– Tá de sacanagem comigo, troca meu nome no meio do sexo e acha isso normal? Você é um doente! Um doente!

– Não, agora é que estou curado. Não preciso mais cuidar do que falo. Vivia me censurando, me inibindo, com medo de lhe magoar. O ato falho prova que tenho confiança em você, que me permito errar e não lhe acho mais fraca, mais tola, mais bobinha, que você amadureceu para mim e demonstra condições de segurar a barra nos momentos difíceis.

– Você vem me enxergando diferente?

– Sim, amor, muito mais forte. Que orgulho de você. Eu a admiro bem mais hoje.

– Mesmo?

– E também prova que não estou mais me defendendo ou pensando naquilo que preciso dizer. Não me controlo na sua frente. Eu me soltei, eu me libertei do passado, posso amar como nunca. O ato falho é um exorcismo, não devo mais nada para Priscila.

– Mas, amor, já estamos juntos há quatro anos?

– Pois é, amor, o ato falho costuma acontecer a cada quatro anos, como a Olimpíada.

– Tudo bem, dessa vez passa, mas não haverá perdão para uma próxima.

sábado, 20 de agosto de 2016



20 de agosto de 2016 | N° 18613 
MARTHA MEDEIROS

Vida dura comparada com a de quem?

Há mil jeitos de aliviar a dor dos outros. Ficamos com a parte mais fácil, tenha certeza


Vamos supor que a mesa da sua cozinha tenha sido atacada por cupins, que você esteja de relações cortadas com sua mãe, que venha sofrendo uma dor-de-cotovelo daquelas, que tenha engordado durante o inverno, que esteja estremecida com uma amiga com posição política oposta à sua, que tenham batido no seu carro estacionado e não deixaram nem um bilhete no para-brisa. Continue supondo: fez as contas e não vai dar para viajar no fim do ano, seu filho admitiu que fuma maconha, e seu patrão encasquetou que você está fazendo corpo mole no trabalho, mas a única coisa mole é seu tríceps.

Sem falar que anda frio, que sair à noite anda perigoso e você andou se estressando com comentários deixados nas redes sociais. O peixe que comeu no almoço estava estragado, e sua prima perdeu o livro que você emprestou. Convidaram você para um casamento, e você não tem roupa. Um maluco caçando pokémons pisou em cima do seu yorkshire. Será porque é agosto?

Pode nada disso estar acontecendo com você, mas certamente você tem sua lista de queixas. Todos nós temos. Mas queixas comparadas com o quê?

Passei uma tarde na Kinder, uma entidade que reposiciona nossos valores. Há mais de 25 anos, oferece educação especial e reabilitação a 300 crianças e adolescentes carentes com sérios comprometimentos neurológicos e físicos. Emprega cerca de 50 profissionais, entre pedagogos, fisioterapeutas, educadores. Mantém uma sede ampla, limpa e bem equipada – tudo mantido com doações privadas e repasses públicos. 

O que acontece lá dentro é um milagre. Cada funcionário trabalha com um baita sorriso no rosto, como se estivesse na Disney. Atendem meninos e meninas com deficiências de moderadas a graves (não há caso leve por lá) e se sentem orgulhosos e plenamente gratificados por fazer diferença na vida de quem nasceu em total desvantagem em relação a nós. Desvantagens como não conseguir falar, não conseguir ficar em pé sozinho, não ter articulação motora.

Quem começou tudo isso foi, de certa forma, uma refugiada. Barbara Fischinger chegou novinha aqui no sul, vinda da Alemanha, e não poupou esforços até realizar seu sonho de viabilizar um projeto de assistência aos que têm comprometimentos múltiplos. O que ela fez e ainda faz é de uma importância que até nos deixa acanhados, nós que nos julgamos especiais sei lá por quê. 

Especiais são aqueles que se dedicam a projetos de inclusão social e o fazem com amor e entrega ilimitada. A nós, resta colaborar. Podendo, entre no site kinder.org.br. Há mil jeitos de aliviar a dor dos outros. Vamos dar uma mão para que esse pessoal prossiga com o que começou. Ficamos com a parte mais fácil, tenha certeza.



20 de agosto de 2016 | N° 18613 
CARPINEJAR



Solidão não é estar sozinho, mas é não conseguir ficar sozinho, não se suportar sozinho.

Assim como a solidão não tem conexão com o deserto e o isolamento. Pode acontecer casado, acompanhado, cheio de gente ao lado.

Solidão é uma insuficiência que cresce: é a infinita capacidade de piorar o mundo para melhorar as reclamações.

Solidão é não encontrar ânimo tanto para acordar quanto para dormir, é quando o desespero desemboca em angústia.

Solidão é guerrear com a imaginação, lutar com a memória, combater os pensamentos. É se posicionar contra o perdão.

Solidão é uma saudade de si.

Solidão é rir sem vontade mais do que ter vontade de chorar.

Solidão é parar de achar graça quando as coisas dão errado.

Solidão é não ser compreendido. É explicar o que machucou e não receber o curativo da atenção.

Solidão é ser desacreditado sempre que se conta a verdade. É revelar uma urgência e ser menosprezado. É expor uma necessidade e não ser levado a sério.

Solidão é a incomunicabilidade. É conviver com alguém e não ter como falar o que incomoda, é perder o ritmo da confissão, é não saber mais como começar uma conversa.

Solidão é ser assaltado várias vezes pela mesma tristeza. É não resolver nunca o problema, é aceitar a falta de solução.

Solidão é jamais encerrar as mágoas, adiar a despedida para fingir que a relação não acabou.

Solidão é não terminar mais nenhum livro e ouvir uma única música ininterruptamente.

Solidão é forjar respostas para não enfrentar as perguntas.

Solidão é chegar muito atrasado na emoção. É um desabafo feito exclusivamente de soluços.

Solidão é ir substituindo a vida por mentiras, é ir substituindo o compromisso pelas desculpas.

Solidão é assumir a culpa por aquilo que não aconteceu e, ironicamente, fugir da responsabilidade por tudo aquilo que aconteceu.

Solidão é ser desajeitado para amar e ser incompetente para odiar.

Solidão é quando o silêncio vira fardo.

Solidão não é o vazio, é ocupar o coração pela pessoa errada.

Solidão é manter um quarto infantil para um filho adulto.

Solidão é lembrar o aniversário um dia depois.

Solidão é um asilo para crianças, um orfanato para velhos.

Solidão é desinteressar-se pelas palavras e, em seguida, desinteressar-se pelo corpo.

Solidão não é ausência de sexo, é ausência de prazer.

Solidão é extraviar o contato com a família e não ter a humildade de reatar.

Solidão é desaparecer para os amigos durante a alegria e depois ver os amigos desaparecendo nos momentos da tristeza.

Solidão é pagar mesada aos defeitos e salário para as dores e não sobrar nada para agradecer aos céus.

Solidão é enjoar de tudo o que antes lhe inspirava, é quando a felicidade transforma-se em tédio.

Solidão é rastejar com asas, não dispor da concentração mínima para recuperar o que era importante.

Solidão é não ser mais solidário consigo.

Solidão é recordar os bons momentos somente para se torturar.

Solidão é inventar doenças e morrer de desgosto pelo excesso de saúde.

Solidão é se sentir só ainda desejando estar só.

sábado, 13 de agosto de 2016



13 de agosto de 2016 | N° 18607 
CARPINEJAR

Quando mordi a minha língua

O que sentimos ou deixamos de sentir está impresso nos mínimos gestos. Você pode ser uma pedra, não falar nada, mas até a pedra um dia será amaciada pelo musgo.

Não adianta sonegar emoções, traficar amores, camuflar problemas, porque será descoberto. Entregará o que vem lhe preocupando pela aparência. Somos horóscopos ambulantes, biscoitos da sorte prestes a serem quebrados por uma mensagem.

No fim do Ensino Médio, eu vivia brigando com os meus colegas, desafiando os professores, respondendo desaforado aos pais.

Óbvio que fui forçado a visitar a psicóloga da escola. Prometi a mim mesmo que lacraria a boca, ficaria calado durante a consulta inteira, faria terrorismo com a quietude. Não achava justo ser obrigado a me analisar e ainda mais numa época em que a terapia estava vinculada preconceituosamente à loucura.

Eu me ajeitei na poltrona com o meu estojo e caderno de aula debaixo do braço e a indisposição macabra de silenciar a cada pergunta. Mas a psicanalista não questionou nada, e o seu silêncio inesperado foi me enervando. Ela me observava com interesse, e eu querendo cada vez mais me esconder. Quando alguém permanece quieto muito tempo em nossa frente é como encarar um espelho e o tamanho de nossas dúvidas. Ela me provocava não me provocando, ela me emparedava abrindo todas as portas. Aquela liberdade assustadora de não ser cobrado a participar me aprisionava.

Mexi em meu estojo para me distrair. Ela perguntou se eu poderia emprestar uma caneta.

Alcancei uma Bic azul. Ela viu que a tampa estava mordida. Olhou com carinho e comentou:

– Enquanto não morder o tubo, está tudo bem. Eu ri de nervoso e demonstrei curiosidade.

– Morder a tampa significa alguma coisa?

– Significa que não fecha as conversas, que foge das discussões com medo de dizer a verdade, que reprime o desejo e vira as costas remoendo sozinho as suas frustrações e decepções, jamais repartindo a sua verdadeira opinião com ninguém, nem com seus melhores amigos.

Não revelei coisa alguma durante uma hora do encontro, mas ela me decifrou inteiramente apenas analisando a tampinha mordida da caneta. Uma mera, idiota e banal tampinha iluminou o meu comportamento.

A partir daquele dia, nunca mais subestimei a psicanálise e cuidei para morder somente a insossa borracha nos momentos de maior ansiedade.




13 de agosto de 2016 | N° 18607 
MARTHA MEDEIROS

A arte salva

A arte formula perguntas, nos devolve o mistério, nos coloca diante do desconhecimento, que é a única forma de crescer

A já remota cerimônia de abertura da Olimpíada no Rio deixou claro que música, dança e teatro não são supérfluos, que precisamos de um Ministério da Cultura forte e valorizado, e que arte também é uma religião.

A arte possibilita a comunicação instantânea entre povos que não falam a mesma língua e não possuem os mesmos costumes. A arte acessa em cada um de nós uma emoção que suplanta as mesquinharias triviais e cotidianas. Traz à tona valores fundamentais, a começar pela humildade. A arte nos reposiciona: saímos do lugar-comum, transcendemos e passamos a desenvolver um olhar mais amplo e generoso para o que nos cerca. A arte homenageia nossa inteligência e nossa sensibilidade. A arte é universal. É feita de mágica, beleza, espanto. Cala a nossa voz e desperta nossos sentimentos, sem os quais seríamos pessoas vazias, robotizadas.

Através da arte, nos aproximamos de outras vivências e combatemos nossos preconceitos. A arte é empática. Elimina fronteiras. Desconstrói rótulos. Mesmo quando comercial, traz sempre um valor intrínseco. A arte não tem que atender nossas demandas, não tem que ser “boazinha”, não tem que ser prática – ela existe para provocar, para desenterrar aquilo que escondemos de nós mesmos por covardia: emoção dói, por isso choramos. Ela recupera a inocência da infância, aquele tempo de descobertas, quando nada sabíamos. A arte formula perguntas, nos devolve o mistério, nos coloca diante do desconhecimento, que é a única forma de crescer. A arte impõe a subjetividade como caminho para a evolução.

Precisamos da arte para extrair de nós o nosso melhor. Portanto, que nossas escolas invistam em aulas de teatro e música, que mantenham oficinas de literatura, que coloquem o artesanato no currículo, que não apenas levem os estudantes a museus, mas que também os habilitem a manejar luz, som, matéria. Sem desprezar o mundo digital, que as crianças voltem a fazer trabalhos manuais, encontrando uma forma legítima, autêntica e excitante de criar algo que as personalize.

Não é preciso Deus quando se pode contar com maestros, bailarinos, compositores, instrumentistas, cineastas, escritores, pintores, dramaturgos, ceramistas, escultores, designers, atores, cantores, coreógrafos, malabaristas – e inclusive atletas. Nadia Comaneci foi uma artista. Garrincha foi um artista. Toda pessoa que consegue transformar o inesperado em poesia – através de um salto, um drible – reforça nossa autoestima e nossa fé. Se religião é crer, eu creio na arte. Ela não promove guerras, intolerância, terrorismo, repressões. Ela apenas retribui nossa crença nela, fazendo com que acreditemos em nós também.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016



10 de agosto de 2016 | N° 18604 
MARTHA MEDEIROS

O que eu caço por aí

Estava distraída andando pelo parque num dia de sol quando escutei, sem querer, a conversa de duas moças que caminhavam logo atrás de mim.

Disse uma para a outra: “Ele aparece muito depressa, não dá tempo de pegar”.

Imaginei que ela estivesse narrando as desventuras da noite anterior. Visualizei a cena: ela tomava uma caipirinha em uma mesa de bar quando entrou no recinto o homem de seus sonhos, que deu uma rápida conferida no ambiente e logo sumiu porta afora, como era de costume. O comentário dela não fazia todo o sentido? “Ele aparece muito depressa, não dá tempo de pegar”.

Se não era esse o caso, talvez fôssemos colegas de profissão e o comentário faria sentido igual, uma vez que, além de eu estar no parque me exercitando, estava também fazendo algo que minha atividade exige: caçando. Calma. Caçando assunto. Às vezes, eles também surgem muito depressa, nem dá tempo de pegar.

Parece insano reclamar de falta de assunto, já que não se pode alegar que o mundo esteja um tédio. Absolutamente tudo está acontecendo neste ano, a ponto de uma boa piada ter se propagado por aí: “Tentei acompanhar 2016, mas desisto, vou esperar sair em DVD”.

Ainda assim, quem escreve colunas há mais de duas décadas vive com a sensação de ter esgotado seu estoque de opiniões. Olimpíada, corrupção, desastres ambientais, mortes, crises, eleições, retrocessos, avanços, dores existenciais, ativismo político e social: mudam os personagens, os enredos são reescritos, a filosofia clássica é reinterpretada, mas o que é que ainda surpreende de fato? Lembro que até há pouco tempo eu pensava que o último acontecimento realmente impactante deste início de século havia sido o 11 de Setembro, porém até o terrorismo está em vias de se banalizar.

O jeito é extrair uma impressão pessoal não só das grandes questões, mas também das trivialidades que todos estão comentando (e agora todos são todos mesmo), com bom humor ou mau humor, sem se angustiar por não conseguir ser original em meio a bilhões de palpiteiros simultâneos desse universo tecnológico.

Costumo fazer minhas caminhadas sem levar o celular, mas aquelas duas moças atrás de mim estavam com seus smarthphones caçando você-sabe-o-quê, só que quem se deu bem fui eu, pois ele passou depressa e eu consegui pegar – um assunto! Graças ao comentário delas, trouxe pra casa minha caça: a crônica foi escrita, entregue para o jornal e agora está sendo lida. De certa forma, meu Pokémon é você.

sábado, 6 de agosto de 2016


06 de agosto de 2016 | N° 18601 
CARPINEJAR

A gentileza é o óleo das relações


Somos educados com estranhos. A ironia é que não somos educados com quem amamos.

Parece que amar é perder o freio da língua, que deixamos de medir as expressões quando estamos à vontade na cozinha, de abrigo e havaiana, conversando com a família, que intimidade é o antônimo de formalidade.

Existe a mania de entender que a convivência traz a possibilidade de falar qualquer coisa a qualquer hora. Conferimos licença para grosserias sob alegação de espontaneidade.

A preguiça atrofia o amadurecimento, abandonar o cumprimento e o agradecimento traduz um completo desprezo a todos que nos acompanham. É também um sinal de pouca humildade, já que nos sentimos superiores a ponto de nem olhar para os lados.

Não acredito que um filho respeitará o pai se não adotar “com licença” e “obrigado” dentro do lar. Nunca abdiquei, por exemplo, do costume de solicitar a bênção para a mãe no momento em que me despeço dela – baixo a cabeça em obediência aos mais velhos e ofereço a minha testa para receber a sua proteção.

A gentileza começa com o dever de casa e se estende aos demais. Quem abdica da cordialidade com a família jamais será genuinamente afetuoso nem absorverá o sábio rigor do silêncio e a pausa de reflexão diante dos erros cometidos.

O rancor surge da falta de controle. A agressividade emerge da ansiedade.

A educação é pensar duas vezes antes de fazer uma bobagem, representa um intervalo entre os impulsos para organizar a emoção. Ela renova o alvará da rotina, reconhecendo o valor daquilo que se tem.

Educação não é frieza, não é censura, mas proteção para não machucar e ferir os mais próximos.

Desfaz mal-entendidos com a paciência da linguagem. Equivale à uma fisioterapia da alma, quando as palavras se apoiam nas barras do cavalheirismo para fortalecer as longas pernas da verdade.

Não canso de avisar de meus movimentos e retribuir os outros pela preocupação comigo.

Não há dia em que não diga “bom dia” para a minha mulher, mesmo que seja redundante. Não há noite em que não diga “boa noite” para a minha mulher, apesar de dormir e despertar sempre com ela. A qualquer pedido que faço, reitero o “por favor”. É para alcançar o sal ou o controle da tevê. Ela não tem obrigação nenhuma em me atender, trata-se de um agrado a ser recompensado igualmente com o meu capricho.

Não é porque nos conhecemos que dispensarei o cuidado. Até porque o tempo de casamento não torna ninguém resistente, somos mais frágeis e vulneráveis quanto mais nos entregamos.



06 de agosto de 2016 | N° 18601 
MARTHA MEDEIROS

ATLETAS

Meu lugar não é no pódio, e sim na arquibancada, na plateia, na frente da tevê

Em passo acelerado, cruzo com outro caminhante, ambos orgulhosos do nosso feito: num sábado de manhã gelado, não estamos embaixo das cobertas, e sim na rua, colocando as pernas em movimento, o corpo em marcha, isso em plena meia-idade. Ninguém diz. De legging, tênis, rabo de cavalo, fone de ouvido, ninguém diz nada. Esforçados não merecem críticas, apenas incentivo, ou no mínimo um silêncio cúmplice.

Nunca fui uma atleta. Joguei caçador quando criança, andei muito de bicicleta, mas não era uma esportista. Depois me atrevi ao vôlei, mas só um pouquinho. Tentei o tênis uma tarde e meia, não rolou. Frequentei academias de jazz por anos, mas dança é arte, não esporte. O frescobol vingou e vinga até hoje, mas não existe gaúcha no ranking. Fiz meia dúzia de aulas de beach tênis, mas parei quando esfriou. Trilha, só em viagens de aventura, não são cotidianas. No final das contas, me restou a literatura, a mais sedentária das atividades.

Faço pilates há quatro anos e mereceria ao menos um bronze pelas acrobacias que minha instrutora exige, mas o Esporte espetacular me esnoba, nunca irá me filmar, e também ninguém jamais me flagrou conduzindo um caiaque numa praia da Tailândia ou escalando um morro em Machu Picchu. Férias não contam. Melhor esquecer. Não produzo suor suficiente.

Meu lugar não é no pódio, e sim na arquibancada, na plateia, na frente da tevê.

Eu poderia (e provavelmente deveria) ser mais uma a dizer que é um absurdo o que gastaram nessa Olimpíada do Rio, que é um vexame a infraestrutura ser tão meia-boca, mas à medida que o evento acontece, meu espírito crítico vai minguando, contraindo e dando espaço para o coração expandir (palavrinha trazida na bagagem de todas as comitivas: coração).

A verdade é que acho bacana tudo isso.

Vários jovens de diversas nações unidos pela farra, mas competindo por um frame de segundo que pode virar um recorde. Braços musculosos, abdômens inexistentes, bíceps, tríceps e sorrisos confiantes. Gente que se alimenta direito, que acorda cedo, que treina, que vive no ginásio, que quase não namora, ou namora escondido, gente que não chega nem perto de droga, gente que rema, dribla, salta, pontua, supera. De quatro em quatro anos, novos deuses do esporte cantam seus hinos pátrios, carregam medalhas no peito e voltam pra casa com a missão cumprida.

Dessa vez acontece no quintal da gente, nessa casa esculhambada que conhecemos como ninguém, mas mesmo que alguma coisa ou muitas coisas deem errado, só nos resta aplaudir – e no outro dia acordar cedo para caminhar, modestamente caminhar: se não a sua, minha única forma de compartilhar.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016


03 de agosto de 2016 | N° 18598 
MARTHA MEDEIROS

A arte do encontro


Exatamente uma semana atrás, assisti à estreia do programa de entrevistas A arte do encontro, do Canal Brasil (quartas, 21h30min), apresentado por um Tony Ramos também estreante na função. O primeiro convidado foi Antonio Fagundes, seu colega de dramaturgia. Antes mesmo que eles começassem a conversa, um de frente para o outro, apenas com uma estreita mesa separando-os, eu já estava cativada: eram dois homens que ali estavam. Não dois rapazotes, não dois deslumbrados. Eram dois homens vividos, seguros, confortáveis dentro do próprio corpo, dois amantes da poesia, da literatura, da arte, da vida. Dois homens calmos, dois homens sem afetação, dois homens sem necessidade de fazer marketing pessoal, sem disputarem nada entre si.

O povo anda com o parafuso solto, como se sabe. Ou se debocha de tudo, presunçosamente, ou parte-se para a agressão. Muita gente disposta a ferir, ofender, humilhar. Os papos, quase sempre, são rasos. A polarização política continua: se você não grita “Fora, Temer”, seus amigos de esquerda te chamam de golpista, e, se não grita “Fora, Dilma”, seus amigos de direita te chamam de comunista. E estamos resumidos. Então surgem dois homens tranquilos na tevê, numa noite no meio da semana, na hora do jantar, declamando poemas de Fernando Pessoa e fazendo uma leitura de Hamlet, assim, por nada, só pelo prazer de invocar palavras que emocionam.

Os dias correm ligeiros. Dezenas de mensagens entram pelo WhatsApp e nos sentimos isolados quando o aplicativo é bloqueado pela Justiça, sem lembrar que podemos telefonar como fazíamos dois anos atrás. Tudo passa rápido, há quem já me pergunte para onde irei no réveillon e ainda nem digeri o almoço. Quase nada permanece, o tempo voa, e então, finalmente, relaxo diante de dois homens sem pressa, que me ajudam a perceber como são sólidas as palavras ditas sem afobação.

Dois homens provocaram esse efeito em mim. Não foram duas mulheres empoderadas, foram dois homens. Num tempo em que os homens parecem ter se transformado em inimigos da sociedade, admito que me senti acolhida por aquelas vozes maduras, por uma virilidade nem um pouco ameaçadora, por um entrevistador que escuta e permite que o entrevistado fale, como deveria acontecer em nossas conversas privadas, duas pessoas que se olham sem aguardarem ansiosas a hora de dar o bote. Eram dois homens adultos que, sei lá por que – talvez porque estejamos na véspera de assistir a uma perseguição por vitórias – me fizeram lembrar que respeitar e admirar o outro não nos diminui em nada.

Não competir também é muito bom.

sábado, 30 de julho de 2016


30 de julho de 2016 | N° 18595 
MARTHA MEDEIROS

O amor e tudo que ele é

Amor é uma forma de escapar da vulgaridade. Amor é uma mentira que amamos contar. Amor é um álibi para crimes e casamentos

O amor já foi uno, concreto e definido. Mas o século mudou e com ele as variantes do amor, que se multiplicaram. Hoje há diversas formatações para vivenciá-lo, são inúmeros os seus significados e ilimitadas as suas maneiras de encantar e transformar. O amor romântico eu e você para sempre é apenas uma de suas modalidades.

O que é o amor, afinal? Impossível resumir num só conceito. Amor é gratidão por alguém ter nos tornado especial. Amor é a realização de um ideal criado ainda na infância. Amor é a possibilidade de repetir o mais importante feito de nossos pais – aquele sem o qual não teríamos nascido. Amor é projetar no outro aquilo que nos falta. Amor é erotismo. Amor é uma experiência sensorial. Amor é carência. Amor é o gatilho para formar uma família. Amor é aquele troço sem razão que bagunça a nossa vida. Que melhora a nossa vida. Que piora a nossa vida. Que justifica a nossa vida.

Amor é uma forma de escapar da vulgaridade. Amor é uma mentira que amamos contar. Amor é um álibi para crimes e casamentos. Amor é a vingança contra a objetividade. Amor é divisão de fardo. Amor é um antídoto contra a solidão. Amor é uma invenção do cinema e da literatura. Amor é paz. Amor é a busca de um tormento que torne a vida mais emocionante. Amor é a vitória do cansaço, já que paixões sequenciais exaurem. Amor é o nome que se dá para uma emoção que nos domina e da qual não queremos ser libertados.

Amamos pais, irmãos, amigos. Amamos os namorados que tivemos e os que ainda teremos, amamos nosso marido até o dia em que ele não volta mais para casa, amamos nossos ídolos até que eles nos decepcionem, amamos nossos filhos mesmo que nos decepcionem, amamos nosso cão e nosso gato quase acima de Deus, amamos Deus acima de tudo pois cremos que ele não nos faltará, amamos a nós mesmos apesar de saber que nem tudo é amável em nós.

Amor não é uma desculpa esfarrapada. Ela é muito bem costurada.

Amor pode brotar de um olhar, de um beijo, de um desejo. Amor é encasquetar. Se alguém lhe faz perguntas a respeito, você, na falta de argumento melhor, responde que é amor, que sempre foi amor, e ninguém espicha a conversa porque contra o amor não há réplica.

Como pode alguém ter amado uma pessoa ontem e hoje amar outra, como pode ter amado uma mulher e hoje um homem, como pode amar duas mulheres ao mesmo tempo, como pode já ter vivido com vários, como pode sentir amor por um salafrário, como pode sentir-se inteiro repartindo-se em dois, como pode ser poli, multi, bissexual, bígamo, hétero, homo, fiel, infiel, amoral? Como, diante deste sentimento, ter alguma certeza?

O amor paira acima das classificações. Tem mil jeitos, mil formas, mil dobras. É a nossa maior proeza.



30 de julho de 2016 | N° 18595 
CARPINEJAR

Ponto cruz da memória

A febre é uma terapia há o degelo de lembranças longínquas que eu julgava esquecidas.

Ocorre um derretimento da memória de longo prazo e acesso antiguidades do meu pensamento com grande facilidade. O factual some, o mais imediato desaparece, em compensação o que estava lá atrás das vivências ressurge como se fosse ontem.

Vem um fluxo livre e rico de evocações. Capturo sons e cores da infância, converto fotografias em preto e branco em animação.

Quando fico com febre, não paro de falar. Deliro. Dou uma palestra exclusiva para a minha mulher. Óbvio que ela se assusta porque não calo a boca.

Mas é um reencontro com o meu passado, sem a censura dos sonhos e o medo dos pesadelos.

Febril, recordo que não conseguia dormir na casa de meu avô paterno. Apagava a luz do quarto e começava uma marcha de ratos pelo assoalho. Eu ouvia certinho a migração dos bichinhos pela extensão das tábuas. Para me assustar, o primo Beto dizia que os ratos se escondiam no piano durante o dia. Por muito tempo, não me aproximei do instrumento. Imaginava que os ratos saltariam das teclas nos recitais de minha tia.

Febril, recordo que viajava na infância deitado num pelego, no bagageiro do carro. Os pais armavam uma cama nos fundos da Belina. Eu e os irmãos vivíamos num universo à parte dos adultos. Brincávamos de Stop e acenávamos aos motoristas que se aproximavam do para-choque.

Febril, recordo que conhecia os vizinhos pelas suas árvores. Era o Edgar do pessegueiro, era a Florinda da laranjeira, era o Pedro da caramboleira, era o Alencar da bergamoteira. Os pés de fruta serviam de sobrenome às pessoas.

Febril, recordo que a minha avó materna me deixava pressionar os pedais da máquina de costura. Debaixo da cadeira, mexia o acelerador usando toda a força das duas mãos. Ela bordava nomes de noivos nas fronhas dos travesseiros, atendendo a pedidos de enxoval em Guaporé (RS).

Febril, recordo daquilo que nem sabia que era meu, revejo o que fui e me dá muita saudade dos meus mortos.

A minha consciência é somente uma questão de temperatura.

30 de julho de 2016 | N° 18595
COMPORTAMENTO


O primeiro ano do resto de nossas vidas

Terapeuta lista os principais desafios dos recém-casados (e como enfrentá-los)
Antes do casamento ou de ir morar junto, tudo parece muito mais fácil. E a terapeuta de casais Cíntia Fernandes Leite explica por que: ambos satisfazem com mais zelo as necessidades e os desejos um do outro, a responsabilidade das decisões é mais leve e, quando se desentendem, os parceiros podem simplesmente sair de perto um do outro. Até o dia em que juntam as escovas de dentes. E aí vem o depois: rotina, contas, questões domésticas, filhos etc. e tal. Mas o primeiro ano é especialmente delicado, um momento de adaptação. Cíntia Leite, que promove workshops sobre como enfrentar a dois os desgastes do dia a dia na Choices Coaching para Casal, de Curitiba, lista os principais desafios e ensina como superá-los. Com a palavra, Cíntia Leite:

ENCARANDO A FASE DE ADAPTAÇÃO

Durante o primeiro ano de casamento, os parceiros deparam com a necessidade de fazer negociações diárias para equilibrar necessidades e desejos de duas pessoas às vezes muito diferentes. A esta exigência somam-se constantes desilusões, pois antes do casamento os parceiros ainda têm uma imagem muito idealizada um do outro e também de como será a relação com essa pessoa e que, naturalmente, costuma ser muito mais otimista do que realista. Portanto, nesse período inicial, a maioria dos conflitos tem base nas dificuldades de negociação sobre pequenos e grande assuntos e também nas suas respectivas desilusões, como por exemplo, de dar conta de que o outro não é “tão carinhoso, generoso ou divertido” quanto parecia no início do relacionamento. E isso também é muito natural, pois os traços mais positivos da personalidade sempre aparecem com mais evidência na fase inicial da relação e os mais, digamos, autênticos, infelizmente surgem quando os parceiros precisam aprender a ceder, em prol da satisfação conjugal.

O QUE SÓ SE DESCOBRE AO MORAR JUNTO

A partir do momento em que passam a conviver juntos diariamente, a habilidade de conseguir negociar a satisfação das próprias necessidades com as do outro torna-se ainda mais difícil. Assim, caso um dos parceiros seja muito mais impositivo e agressivo do que o outro, tenderá a se impor ainda mais, fazendo com que o outro aceite suas imposições e passe a anular suas próprias vontades. Porém, caso o outro também apresente um perfil mais impositivo, ambos tenderão a competir pela satisfação de suas vontades, o que irá ocasionar diversos conflitos, sempre proporcionais às dificuldades de negociação de ambos.

ALERTA! QUANDO A COMUNICAÇÃO NÃO VAI BEM

Falar um pouco alto ou de forma um pouco impaciente pode acontecer naturalmente. Mas, quando isso se torna um hábito, o casal deve entrar em estado de alerta e identificar as raízes de tanta irritação. Há ainda outros sinais que, quando passam a ocorrer com certa frequência, devem sempre ser tratados como um ponto de atenção: quando se sentem desconfortáveis ao ficarem a dois em silêncio (pois, quando estão bem, ele traz paz); quando perdem a motivação para expressar sentimentos e pensamentos por receio de ser criticado pelo outro; quando começam a fazer ironias e com maior frequência, principalmente criticando o parceiro na frente de outras pessoas; quando passam a discutir mais para saber quem tem razão do que para resolver o problema em questão.

CONCESSÕES: A ARTE DE DRIBLAR AS DIFERENÇAS

A maioria dos casais considera suas diferenças como um possível indicador de que, talvez, a relação possa não dar certo. Porém, quando essas diferenças surgem de forma mais intensa, é também a oportunidade de transformação e desenvolvimento: ambos precisam de um ajuste nas suas formas de pensar, sentir ou se comportar. Portanto, quanto maiores as diferenças, maior a polarização de comportamentos e então maior será a oportunidade para ambos de potencializarem suas virtudes e desenvolverem o que está precisando ser desenvolvido. Assim, em todo relacionamento a longo prazo, ambos passam por uma profunda transformação psicológica, mesmo que não percebam. Em relação a quem deve ceder, diria que ambos sempre devem ceder quando for necessário, desde que busquem sempre expressar e validar suas necessidades assim como levar em consideração as necessidades do parceiro. Pois apenas assim eles poderão se unir de uma forma mais colaborativa para encontrar a melhor solução para seus conflitos.

GAZETA DO POVO

quarta-feira, 27 de julho de 2016



27 de julho de 2016 | N° 18592 
MARTHA MEDEIROS

Gafes virtuais

Entrou uma mensagem no meu WhatsApp de um ator bonitão, com quem eu nunca havia falado na vida, me convidando para um café a fim de conversarmos sobre uma possível parceria profissional. Disse a ele que seria complicado assumir o projeto que ele me propunha por questão de prazo, perfil e outros impedimentos, mas ele pediu que eu ao menos escutasse o que ele tinha a dizer e acabamos marcando o tal café, em tal lugar, a tal hora. Depois de tudo combinado, quis ser simpática e encerrar a troca de mensagens com um emoji sorridente ou com uma mãozinha com o polegar levantado, mas me atrapalhei e mandei um coração vermelho, gigantesco, batendo forte. Pura paixão.

Logo digitei o inevitável “ops, errei”, ele respondeu que já havia cometido mancadas muito piores, hahahaha, kkkkkkk, e por fim a despedida sóbria, como convém a dois estranhos.

Às vezes, tenho vontade de esganar Steve Jobs, Mark Zuckerberg e demais gênios do Vale do Silício que inventaram essas geringonças eletrônicas para conectar os povos e de quebra perpetuar gafes universais.

Você está no WhatsApp com uma amiga, aquela que sabe um segredo embaraçoso sobre você, e ao mesmo tempo com um grupo de 16 outras amigas (conversas simultâneas entre vários destinatários sempre me faz lembrar o filme Koyaanisqatsi). Ca-la-ro, como diria Alberto Roberto, que você vai mandar para todo o grupo, por engano, o comentário sigiloso que era destinado apenas à sua amiga confidente. E dá-lhe voltas para fazer com que as outras 15 pensem que entenderam o que não entenderam. Expert em enrolation: quem de nós não se tornou um?

Sobre o corretor automático, nada mais a declarar. É o maior puxa-tapete do espaço virtual.

Mas nada se compara aos enganos perpetrados por nossos dedinhos automáticos. Sei de mãe que já mandou nude para a própria filha quando deveria ser para os olhos do namorado only, sei de gente que por engano convidou para um jantar familiar o empreiteiro com quem estava negociando um orçamento, sei de empregador que mandou uma minuta de contrato para o funcionário errado e se viu obrigado a reajustar o salário dele, sei de homem que mandou declarações apaixonadas para a própria mulher e teve que explicar que romantismo todo era aquele depois de 31 anos de casados.

Sem falar das vezes em que a gente toca em cima da foto do perfil e acaba acionando o telefone, ligando para a criatura sem querer – nossos dedos, além de automáticos, são gorduchos demais para essas telas mínimas.

Ato falho? Sei não. Significaria que estamos o tempo todo enviando mensagens que nossa consciência não autoriza, e por isso o subconsciente se intromete e faz acontecer. Será? Prefiro acreditar que é apenas dislexia digital – e acidental. Ops.

sábado, 23 de julho de 2016



23 de julho de 2016 | N° 18589 
MARTHA MEDEIROS

O que fazer da vida

“O que você vai fazer da sua vida?” é, antes de uma pergunta, um julgamento sumário, uma crítica

Não tinha nem 10 anos de idade e era invadida por uma excitação boa a cada vez que alguém me perguntava o que eu queria ser quando crescesse. Yeah! Estava confirmado que eu iria mesmo crescer, não era apenas uma hipótese fantasiosa. Eu então respondia: quero ser aeromoça! Se me acusassem de estar com a cabeça nas nuvens, eu aterrissava: então quero ser chacrete! Não importava se o desejo se cumpriria, eu simplesmente idealizava um futuro associado a coisas de que eu gostava, logo, me imaginava cantora, guitarrista (passava os dias ouvindo Suzi Quatro), balconista de supermercado (nas brincadeiras, sempre escolhia atender no caixa), tenista (o esporte da família), psicóloga.

Mentira, eu nem sabia o que fazia uma psicóloga. Só tinha certeza de que jamais seria médica de nenê. Queria me livrar do universo infantil e entrar logo no mundo adulto, que me parecia muito mais divertido.

Até o dia que tive que encarar o vestibular sem ter a mínima ideia de qual curso escolher. Acabei optando pela Publicidade porque uma amiga iria fazer também. Já que eu gostava muito de arte, de criatividade, de escrever, quem sabe não dava pé? Deu. E ninguém mais perguntou o que eu queria ser quando crescesse porque, afinal, eu havia crescido. E crescia junto a minha angústia, pois agora a pergunta era diferente: o que você vai fazer da sua vida?

Esta é uma questão que não abre os portais da imaginação, não induz ao sonho, ao contrário, procura nos enquadrar em algo que ofereça um firme suporte existencial. “O que você vai fazer da sua vida?” é, antes de uma pergunta, um julgamento sumário, uma crítica: o que você vai fazer da sua vida além de ficar perambulando pelas noites de sábado, além de programar feriados em Garopaba, além de namorar, além de fazer estágio não remunerado, além de juntar dólares para viajar, além de passar as tardes trancafiada no quarto ouvindo música, além de ficar com a cara enterrada em livros de poesia? 

Nada disso significava fazer alguma coisa da vida, ao menos não da vida que os outros esperavam que você tivesse, e você também esperaria, se soubesse lidar com assunto tão complexo. Não sabendo, tocou em frente, porque quem aguarda uma resposta absoluta não faz nada.

Então você trabalhou, casou, teve filhos, trabalhou, separou, casou de novo, trabalhou, viajou, voltou, trabalhou, envelheceu, trabalhou, viajou, voltou, trabalhou e o final ainda está em aberto.

O que você faz da sua vida? A mesma coisa que todos, provavelmente. Ocupa o tempo enquanto ainda se diverte sonhando com o que quer ser quando crescer.



23 de julho de 2016 | N° 18589 
CARPINEJAR

Cadê a coxinha?

Passei na lancheria da escola para matar a saudade dos pecados de infância. Iria pedir um enroladinho. Já salivava ao imaginar a mordida na massinha. Aproveitaria os minutos antes de minha palestra em colégio na Capital para engordar e ressuscitar os sabores da meninice.

O barzinho parecia idêntico ao de minha época de estudante, com jeitão de trailer e a tampa da janela levantada. Mas não tinha enroladinho, este irmão menor do cachorro-quente.

O tio – todos os atendentes sempre serão tios para mim, não importa a minha idade – demorou a entender o que era enroladinho. Procurando me contentar, ofereceu um hossomaki. Juro que a minha audição tossiu de volta as palavras. Não esperava Tóquio em Porto Alegre, tanto que conferi o logotipo dos uniformes ao redor para me certificar de que não se tratava de um pesadelo.

– O quê?  – Sim, é o que mais sai no recreio – ele explicou. – Tá brincando, né?

– Não, os alunos têm preferência pelos rolinhos finos, quer experimentar? Ainda oferecemos temaki, kappamaki, tekkamaki e uramaki.

Não desejava comida japonesa às 10h da manhã. Qual o destino dos lanches perigosos e gordurosos das escolas? O que aconteceu com o rissoles? Onde foi parar o folhado? Cadê a irresistível coxinha?

Suava frio com o excesso de saúde na infância. Os dedos ágeis e aflitos no guardanapo terminaram trocados por pauzinhos? A mostarda e o catchup perderam sua realeza para o shoyu e o wasabi?

Ninguém mais mastigava pastelina com guaraná? Agora era suco verde e tapioca?

Que medo dessas turmas nutri, que desconhecem o poderio doce das balas Xaxá e 7 Belo. Será que os alunos pedem bolo integral de banana em vez de nega maluca?

Que receio dessa geração fitness que não experimenta o proibido, que come no lanche o mesmo que come no almoço e na janta e que não separa o mundo doméstico da casa do selvagem universo escolar.

Só o que faltava não mentir aos pais. Para a família, eu não relatava os feitos gastronômicos. Preservava a privacidade da gula. Fingia que adorava a merenda, um sanduíche insosso de ricota, e devorava um largo e maravilhoso pastel de carne, com o caroço do ovo saltando na pele dourada.

Amadureci porque sempre cultivei os meus segredos.


23 de julho de 2016 | N° 18589
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A SOLIDÃO É UMA PAREDE DE TIJOLOS


O que durante muitos anos não passou de uma impressão, dessas que alimentam a chamada sabedoria popular, foi cientificamente consagrado em uma pesquisa recente, chancelada pela Universidade de Harvard: a qualidade das relações sociais é que define a chance real de que alguém envelheça feliz. Muito mais do que os níveis de colesterol ou o controle rigoroso do perímetro abdominal.

E a construção de relações afetivas sólidas, ou não, começa inexoravelmente no menor dos nossos universos: a família. O que levamos para aplicação nas rodas sociais externas tem a marca do afeto edificado em domicílio. Por isso é tão suspeita a atitude dos que só se revelam solícitos e generosos com estranhos.

O senhor RR era um desses tipos ranzinzas com os seus, e de alguma influência política na comunidade. A gentileza externa, se descobriu depois, era apenas uma fachada para facilitar-lhe o acesso ao poder. Filho de um pai que herdara e pulverizara uma grande fortuna, cresceu com um sentimento de revolta contra os que haviam comprado o espólio da família. As pessoas mais próximas comentavam que ele parecia ter feito um pacto consigo mesmo de resgatar o patrimônio perdido, custasse o que custasse. 

Quando o conheci, tinha 78 anos e era muito mais rico do que qualquer ancestral jamais tinha sido. A cara enfarruscada antecipava que nada do que conquistara afrouxara as amarras da amargura. Nunca consegui vê-lo sorrir. Temi que tivesse desaprendido, se é que alguma vez soubera. Depois de um tempo, me acostumei com ele assim, porque afinal nada mesmo do que ele dizia ou argumentava tinha a menor graça.

Houve uma grande dificuldade para contatar algum familiar quando precisamos que alguém assinasse o consentimento informado para os procedimentos invasivos, indispensáveis na avaliação da operabilidade do seu tumor de pulmão. Ficou claro que ele tinha produzido uma prole de superocupados, sem nenhum tempo a perder, pelo menos não com ele. 

O Euclides era um negro velho com uma catarata visível e um ar resignado, e era a figura que mais se aproximava da ideia de família. Dormia sentado numa poltrona sempre postada atrás do ângulo de visão do seu chefe, mas atento a qualquer gesto ou ruído. Na noite anterior à cirurgia, o paciente fez um pedido típico dos solitários: “As informações referentes a minha doença devem ser repassadas exclusivamente a mim, pelo menos enquanto eu estiver vivo!”. Dada a minha dificuldade de comunicação com os mortos, aquilo me pareceu bem razoável.

Por meio do Euclides, soube que a ausência de qualquer membro da família no dia da operação se explicava por uma viagem programada havia meses e que, no dia anterior, levara para a França todos os filhos que lá se encontrariam com a mãe para a comemoração dos 70 anos dela. Pelo jeito, a ausência dele naquela festa não representaria um trauma insuperável para os viajantes. A parede que os separava tinha muitos tijolos.

Na última conversa pré-operatória, ainda escorreu um resíduo de rancor reprimido: “Traga todos os papéis de autorização que precisar para completar o seu serviço. Faça o que tem de ser feito e preste contas somente a mim!”. Do alto da sua prepotência, nenhum indício de medo ou de afeto, só rigidez e solidão. Esta combinação que, de tão maligna, diminui o impacto do anúncio de um câncer, diluindo-o no caldeirão do abandono, onde até a morte desejada se justifica.


23 de julho de 2016 | N° 18589 
L.F. VERISSIMO

Um bar no Leblon


Com tanta gente com medo de vir para o Rio, onde tem zika, assaltos e corruptos saindo, apropriadamente, pelo ladrão, é bom lembrar os visitantes ilustres que já estiveram por aqui e saíram ilesos. E imaginar que tivessem ficado, seduzidos pelo nosso sortilégio tropical, pela caipirinha ou por qualquer outra razão.

Imagine se os ficados se reunissem regularmente num bar do Leblon, desprezando suas diferenças de idade e das épocas em que estiveram no Brasil. Aquele ali com as longas barbas brancas, por exemplo, é o decano do grupo. Seu nome é Charles Darwin e ele chegou ao Rio de Janeiro num navio chamado Beagle. 

Apaixonou-se pelas praias, pelas florestas e pelas mulatas, abandonou sua expedição científica e ficou. Quando querem provocá-lo, os outros integrantes da roda pedem “Conta aquela da evolução”. É uma teoria meio maluca do velho sobre a seleção natural na evolução das espécies. Se tivesse voltado para a Inglaterra e publicado sua teoria, ela teria causado uma revolução no pensamento humano. Mas sair do Rio de Janeiro, nem pensar.

Essa que está chegando, caminhando com dificuldade, é Sarah Bernhardt. Era uma atriz famosa quando veio se apresentar no Brasil. Aqui, teve um acidente no palco, machucou a perna, a perna foi mal tratada no hospital e o resultado é que anda com uma perna mecânica. Ficou no Rio e acabou como assistente de figurinista da Globo, onde todos a chamam de “Madame Sarrá”.

Essa figura que acaba de sentar-se entre Darwin e Sarah é interessantíssima. Romeno ou coisa parecida. Seu nome é Saul Steinberg. Desembarcou no Recife, foi para o Rio e, apesar de ter, como lhe diziam, “um traço meio esquisito”, conseguiu emprego numa agência de publicidade e vendeu uns cartuns para a Cruzeiro. Quando a revista fechou, o Millôr ainda tentou ajudá-lo, mas Steinberg preferiu deixar, brasileiramente, para lá e arranjar um cargo público. O negócio dele é um chopinho e um bom papo.

E há também os “professores”, Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss. Os dois estão sempre de bermudas e sandálias. Braudel lecionou por um tempo na USP e escreveu alguns livros mal recebidos pela crítica acadêmica brasileira. Desanimou e foi para o Rio, onde leva uma vida tranquila, joga seu voleizinho de praia e não perde reunião do grupo. 

Lévi-Strauss veio ao Brasil fazer um curso de antropologia, casou-se com uma índia (“Que tetons”, diz ele até hoje, com saudade) e, depois de viúvo, instalou-se num pequeno apartamento em Copacabana, onde se dedica a sua paixão secreta, ver novelas na TV. Sempre é o último a chegar, sob vaias dos outros, depois de ver as novelas das seis, das nove e das onze.

E quem é esse que chega, irritado como sempre? É Orson Welles! Sim, o diretor de Cidadão Kane. Ele nunca mais saiu do Rio, depois que veio ao Brasil fazer um filme que nunca completou, na década de 1940. E nunca mais fez um filme, apesar de estar em luta constante para conseguir financiamento. Ocupa-se em anarquizar os filmes dos outros. Mas hoje parece estar de bom humor. Senta e faz um sinal para o garçom:

– Ó, gente boa, um chope e aquela linguicinha!



23 de julho de 2016 | N° 18589 
DAVID COIMBRA

O que move o idiota

O pai do rapaz que foi preso por associação com o Estado Islâmico disse que o filho é um idiota – li na matéria do Carlos Rollsing, em Zero Hora.

Os dois, pai e filho, criavam galinhas em Morro Redondo, no interior profundo do Rio Grande do Sul. Levavam uma vida tranquila, até porque não deviam ter outra opção. Dormiam cedo, acordavam cedo. O pai só estranhava que o filho não saía do zap zap, que é como ele chama aquele aplicativo de mensagens que a Justiça brasileira adora bloquear. Na verdade, nem era o zap zap. O idiota se comunicava com seus amigos idiotas por outros meios.

Ao falar do caso, o pai volta e meia embargava a voz, contou o repórter. Fiquei com pena. Como consolo, diria a ele que jovens, em geral, são idiotas. Muitos, inclusive, deixam de ser jovens, mas não deixam de ser idiotas.

O caso desse rapaz é interessante, porque é ilustrativo. Sua família não veio do Oriente Médio, ele não viajou à Síria, nem muçulmano é. Provavelmente, seu conhecimento do que se passa naquele gomo do mundo tem a profundidade de uma letra de axé music.

Por que, então, ele se alinhou ao Estado Islâmico? O pai respondeu: porque é idiota.

Mas o idiota sempre tem uma motivação. Ele precisa de algo que justifique o exercício da sua idiotice. É isso que os seres humanos, idiotas ou não, fazem o tempo todo: procuram um sentido para suas existências. A vida humana necessita de sustentação teórica tanto quanto de água. É o que nos diferencia dos bichos. O bicho vive. Ponto. O homem tem de saber por que vive (ou achar que sabe).

A razão da existência pode ser qualquer uma, embora as mais populares sejam ideologia e religião.

Para o idiota, não faz diferença. Ele pode ser muitas coisas. Pode ser um fanático político, que acredita que quem não concorda com ele é canalha. Ou um religioso fundamentalista, que mata em nome de Deus. E aí não me refiro apenas aos muçulmanos. Não. No começo dos anos 300, o imperador Constantino jurou que, na véspera de uma batalha importante, sonhou com uma cruz luminosa acompanhada de uma voz que lhe aconselhava: “Com este sinal, vencerás!”.

Constantino mandou desenhar cruzes nos pavilhões de seu exército, e venceu. O imperador disse a seus soldados que Jesus, o profeta do amor, os ajudou a decepar, mutilar e matar os próximos que militavam no outro exército.

Constantino, no entanto, não era um idiota: era um espertalhão. Idiotas foram os soldados que acreditaram nele. A cruz deu sentido a muitas idiotices humanas, como agora o dá o crescente.

No momento em que alguém tenta explicar um ato terrorista por alguma motivação que não seja a idiotia humana, esse alguém está se aproximando do idiota e da sua idiotia. Dizer, por exemplo, que a Europa sofre atentados devido à colonização do passado é o mesmo que dizer que a minissaia motivou o estupro. A Europa é vítima do terror, e a vítima, nós sabemos, nunca é a culpada.

O que estou dizendo é que a religião, a ideologia ou o futebol não são causas da idiotice. São meios. O que os idiotas querem não é salvar as almas, os pobres ou a zaga do seu time. Eles querem o mesmo que queria o idiota de Morro Redondo: respeito.

O idiota quer ser respeitado. Ao dar um sentido à sua vida, ele pretende se tornar, de alguma forma, admirável. Ele anseia ser admirado pelas outras pessoas.

E isso, surpreendentemente, é uma boa notícia sobre o ser humano. Porque para nós, homens e mulheres que vivemos debaixo do sol, o que importa, mais do que tudo, mais do que as nossas vidas, mais do que as vidas de outras pessoas, são as outras pessoas. Parece uma contradição. Não é. Até as pessoas que matam outras pessoas importam-se, apenas, com as outras pessoas.