sábado, 9 de setembro de 2017


09 DE SETEMBRO DE 2017
LYA LUFT

De primeira necessidade


Às vezes, paro para pensar - na verdade, faço isso com muita frequência, minha mãe já reclamava, "essa menina sempre no mundo da lua". Naquele tempo, eram sonhos. Hoje ainda são, mas dali resultam trabalhos: poema, artigo, romance. Conto.

Tenho pensado em como simplificar mais a vida, nesta fase que tantos temem, ah, a terrível passagem do tempo - mas por enquanto me agrada. Simplificar a roupa foi fácil, até porque nunca fui modelo de capa de Vogue. Calça comprida, camiseta preta, suéter ou um tipo quimono. Sapato idem, pois sou pesada e com um chatíssimo problema inato na coluna, ótimo é calçado rasinho.

Com o tempo, a maturidade, a experiência e alguma ousadia, fui simplificando várias coisas. Com algumas é difícil, exemplo: as relações pessoais. Não é fácil afastar sem ferir, sem despertar desconfianças, o bom sujeito que liga fora de hora para contar seu drama avisando que devemos escrever sobre isso ou exigindo um artigo de jornal contra algo que lhe desagrada. Aquela pessoa tão legal, que nos últimos tempos só fala de doenças, remédios, rancor contra tudo e todos: sombras de que ninguém precisa a mais na vida. Simplificar as saídas: sou realmente um bicho da minha toca, uma mulher da sua caverna. Minha casa sempre foi minha zona de conforto, por várias razões, inclusive fobias.

Quero poucas pessoas, assim me aflijo menos, eu que sou aflita: parceiro, família, amizades especiais, as fiéis funcionárias que me ajudam na enorme incompetência para o doméstico, e que eu quero bem. Os leitores que me dão tanta alegria com seu carinho. Sou feliz com as horas no computador, na poltrona com livro, ou olhando a paisagem, de onde me vem muita informação: aquela frase, aquela palavra, aquele personagem... ou simplesmente beleza. Os verdes mudando de nuance conforme o dia passa; os nevoeiros que deixam tudo mágico, do jeito que eu gosto. No Rio, até hoje meus amigos se espantam: "Essa gaúcha maluca gosta de dia com nevoeiro ou chuva!".

Também preciso simplificar o que ofereço à minha alma: reduzir o número de noticiosos a que assisto, fissurada desde sempre pelas loucuras (às vezes maravilhas) do mundo. Levar menos a sério algumas novidades médicas amadoríssimas ou prenúncios de mais desgraças, me interessar menos (de momento) pelas intrigas brasilienses e desastres do Congresso, que haveriam de me tirar o sono se os hospedasse por mais tempo e com mais atenção. A gente sempre pode se ajudar, se corrigir, se pegar no colo e se agradar um pouco, para não cultivar aquela extrema chatice que só resmunga, só se lamenta, só faz previsões das mais sombrias e, se desse, espantaria até a si mesmo do convívio cotidiano.

Mas eu lhes digo: não é fácil. Parece que a estrada está lamacenta demais, não se avança sem sujar o calçado. A irresponsabilidade geral está enorme, corrói a fímbria da alma; país e planeta andam adoentados, e é coisa feia. Nós, agarrados à casca desta terra, pobres cracas, precisamos nos dividir numa necessária esquizofrenia: metade atenta à chamada realidade, metade curtindo sonho, amores e beleza, que afinal ainda existem - e são produtos de extrema necessidade.

lya.luft@zerohora.com.br

sábado, 2 de setembro de 2017


02 DE SETEMBRO DE 2017
CAPA

A VOZ DELAS ECOA NAS REDES

Às 14h33min de 16 de agosto, uma mulher publicou um texto de 142 linhas no Facebook sobre o relacionamento que teve com um músico da banda Apanhador Só - no relato dela, um homem desleal, que usava artimanhas psicológicas para oprimi-la e chegou a quebrar seu dedo durante uma discussão. Às 18h01min do dia seguinte, o grupo anunciava a suspensão de suas atividades, por meio de um post na mesma rede social.

A repercussão rápida do caso, que logo se tornou assunto nacional, evidencia a força feminina na internet. Historicamente coadjuvantes em espaços tradicionais de debate, as mulheres amplificam e fazem valer a sua voz nos canais digitais - além de oferecer o ombro para as outras ou estimular alguma reação coletiva.

- O feminismo se popularizou, virou um debate corriqueiro. Não é mais assunto daquela meia dúzia de chatas que ficavam "pentelhando" os caras - resume Maria Fernanda Geruntho Salaberry, integrante do Coletivo de Mulheres da UFRGS e da organização da Marcha das Vadias.

Na última segunda-feira, foi a vez de a escritora Clara Averbuck publicar um relato pessoal no Facebook, afirmando que havia sido estuprada. "O nojento do motorista do Uber aproveitou meu estado (ela havia bebido), minha saia, minha calcinha pequena e enfiou um dedo imundo em mim", descreveu. 

O resultado imediato foi uma enxurrada de comentários de apoio, de mulheres e homens, e o aplicativo de transporte em duas horas e meia informava ter banido o motorista. Mais tarde, ainda no mesmo dia, a escritora incentivou: "Que meu caso sirva para que outras mulheres não tenham medo de expor o acontecido. Que não se culpem". Clara ainda convidou internautas a relatarem situações de assédio utilizando as hashtags #MeuMotoristaAbusador e #MeuMotoristaAssediador.

Acredita a ativista Maria Fernanda que, com o advento das redes sociais, as mulheres encontraram um ambiente para denunciar e também discutir sua realidade fora dos espaços convencionais - uma reivindicação que já durava décadas. Formaram-se grupos que permitem conversar sobre questões que poderiam deixá-las constrangidas individualmente. Nesses espaços, diz Maria Fernanda, elas recebem o amparo de outras mulheres:

- Antigamente, a mulher apanhava e achava que o problema era ela, achava que não estava fazendo direito. Hoje, entra na internet e percebe que não é só com ela. E outras mulheres se solidarizam.

Como descreveu a filósofa Marcia Tiburi em um artigo publicado em 5 de dezembro de 2015 em Zero Hora: "As mulheres que não se sabiam feministas estão se descobrindo, saindo do armário do patriarcado também pelos portais virtuais". Falando por telefone com a reportagem, ela aprofundou a argumentação, explicando que, de tempos em tempos, o movimento irrompe na história, valendo-se dos mecanismos de sua época. Contudo, pondera que, impulsionado pelas redes sociais, o feminismo cresceu no Brasil apenas como discurso, já que a representação política das mulheres continua ínfima:

- Nas redes, parece que tudo está andando muito rápido, mas não está. Há uma matança incrível de mulheres, uma violência inacreditável.

A historiadora Ana Maria Colling, especialista em história das mulheres e gênero, acrescenta:

- São novos tempos, mas a palavra de ordem segue a mesma da década de 1970, quando dizíamos: "Meu corpo me pertence". Se a palavra de ordem ainda é a mesma é porque alguma coisa não avançou.

Para a historiadora, de tanto ouvirem do marido, do padre ou de qualquer homem que são menores, por muito tempo, as mulheres se apropriaram desse sentimento.

- Mas isso está mudando - comenta Ana Maria Colling. - Eu não sou a mesma que foi minha mãe ou minha avó, e certamente nossas filhas serão diferentes.

Em movimentos como o feminismo, uma geração conquista, a seguinte usufrui e, em determinado momento, há uma geração posterior que naturaliza a nova realidade - dando-se conta de que ainda faltam avanços. Se há um resultado prático esperado do ativismo feminista nas redes sociais, para Ana Maria é a capacidade de desnaturalizar qualquer tipo de agressão contra a mulher, a começar pela cultura do estupro.

No combate online das violências contra as mulheres, as campanhas marcadas pelo uso de hashtags, como a lançada por Clara Averbuck, constituem uma das principais armas. Conforme levantamento divulgado em 2014 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 26% das pessoas entrevistadas concordaram com a afirmação "Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros". Na época, milhares de mulheres responderam divulgando fotos de seus corpos expostos acompanhadas da inscrição #EuNãoMereçoSerEstuprada.

Dois outros grandes movimentos estabelecidos nos canais virtuais tiveram muita popularidade: #meuprimeiroassedio, por meio da qual as brasileiras partilharam depoimentos sobre a ocasião inaugural e traumatizante em que se viram vítimas de abuso masculino, e #meuamigosecreto, com denúncias de práticas e comportamentos machistas que conheciam - sem revelar nomes.

Em abril deste ano, atrizes e apresentadoras de TV fizeram uma campanha contra o ator José Mayer, consequência de uma denúncia de assédio sexual da figurinista Susllem Tonani. Entre outras, famosas e anônimas, Fernanda Lima, Astrid Fontenelle, Alice Wegmann e Drica Moraes se mobilizaram com a hashtag #ChegadeAssédio e também com outra, que sintetiza a solidariedade e o engajamento das mulheres nas redes: #MexeuComUmaMexeuComTodas. A TV Globo chegou a suspender o galã em função do episódio.

Também houve recentemente episódios que começaram com a denúncia não da vítima, mas de testemunhas, caso da suspeita de agressão cometida por Marcos Harter contra Emilly Araújo no Big Brother Brasil, também da Globo - que culminou com a expulsão do participante. Igualmente midiática, a denúncia de Poliana Bagatini, grávida, contra o então marido, o músico sertanejo Victor, foi outra que acabou com a saída do acusado da televisão - ele teve suas falas cortadas de um episódio já gravado do The Voice Kids e pediu afastamento do programa. A dupla sertaneja viu sua agenda afetada - um show em Pelotas chegou a ser cancelado -, Victor foi indiciado e ele e sua mulher se separaram.

Angelo Brandelli Costa, professor do programa de pós-graduação em Psicologia da PUCRS, observa que são vários os grupos que agora conseguem fazer sua voz ser ouvida:

- A internet quebra hegemonias na ocupação dos espaços tradicionais de debates. Em termos de poder, a esfera pública sempre foi ocupada por grupos majoritários. Isso mudou.

Já Raquel Recuero, professora e pesquisadora da UFPel e da UFRGS ligada ao campo das redes sociais, relata que movimentos ganham força nessas mídias porque é mais fácil se mobilizar na internet e encontrar quem tem pautas em comum. O próprio algoritmo do Facebook "entende" o que o usuário quer ver e mostra mais sobre os temas de seu interesse, com base nas suas atividades online. O problema é que a mesma rede social que une também tem o poder de polarizar. É aí que, muitas vezes, impera a lei do extremo: se você não está a meu favor, é meu inimigo.

- Quando a conversa se dá pessoalmente, você vê o outro, e a tendência é amenizar determinadas questões, afinal, ninguém quer terminar toda santa conversa dando um soco no seu interlocutor. Na internet, falando diante de uma tela, as pessoas tendem a se exaltar. E o debate perde características importantes, uma vez que o objetivo passa a ser silenciar o outro - comenta Raquel.

A falta do "olho no olho" também facilita linchamentos morais das mulheres que se expõem fazendo as denúncias e também de homens que, em função de alguma atitude ou relato, são considerados machistas.

- Há projeções das massas sobre indivíduos e há manipulações das massas. Hoje em dia, as pessoas pensam de maneira insuficiente sobre o que estão fazendo, além de desconhecerem o campo do Direito. Às vezes estão xingando o outro e cometendo um crime, mas não sabem que não se pode caluniar, difamar - diz Marcia Tiburi.

A filósofa acrescenta que as redes são um espaço de denúncia, de escândalo e de mistificação, no qual qualquer um exerce sua visão de mundo como um "inconsciente a céu aberto". Mas ela pondera: as ideologias às vezes se apresentam na sua verdade e, noutras, no seu esvaziamento:

- Muita gente usa as redes sociais em busca de diálogo, para expandir suas perspectivas. Ao mesmo tempo, parece que basta chegar na internet e se autoafirmar. O simples fato de se dizer feminista amplia o cenário do feminismo, mas não amplia a qualidade do feminismo que se propõe - opina. - Há de se tomar muito cuidado com essa carnavalização. O feminismo não é uma coisa fácil. Se fosse, a gente já teria transformado a sociedade.

O papel que o homem deve exercer nesse debate não é consenso. Há quem queira que eles participem, há quem queira integrá-los, mas também há quem reserve ao público masculino um espaço limitado.

A ativista Maria Fernanda compara esse debate a uma assembleia de trabalhadores - diz que os patrões não participam da reunião porque legislariam em causa própria. Ela defende que ter homens no debate pode inibir as mulheres - e eles podem, ainda, querer falar mais alto que elas:

- Temos 10 mil anos de patriarcado, do homem decidindo as coisas. Eles não estão acostumados a ficar quietos.

A solução, segundo Maria Fernanda, é que eles conversem sobre feminismo com os cerca de 3,5 bilhões de homens que há na Terra, poupando as cerca de 3,5 bilhões de mulheres.

- Você acha que está qualificado para discutir sobre situação das mulheres? Converse com seu brother que é mais machista do que você, ou com seus filhos, sobre como se deve respeitar a mulher. Não vai faltar gente para você conversar - diz a ativista.

A historiadora Ana Maria vê a questão de outra forma. Para ela, o debate não deve ser uma "briga de dois exércitos" - mulheres versus homens:

- Se o homem é feminista, pode vir participar. O que não se quer é que participe um homem ou uma mulher machista.

Para o escritor Fabrício Carpinejar, antes de qualquer outra coisa, o homem tem de aprender a não ser o centro das atenções e começar a ouvir mais do que falar. Depois disso, deve praticar uma velha qualidade (que muitas vezes se perde nos debates das redes sociais): a empatia. Ele prega que o homem tem de se colocar no lugar da mulher - um lugar em que, historicamente, nunca esteve.

Carpinejar compartilha da ideia de Ana Maria, de que os homens se sentem amedrontados, acuados diante da iminência feminista nas redes sociais.

- Mas eu acho que o susto é uma forma de sensibilidade. Os homens pensam: não posso mais ser do jeito que eu era, então como vai ser agora? - diz o escritor. - Hoje uma vida privada é uma vida pública, não é mais permitido ter duas caras.

A respeito de uma possível sensação masculina de que "não se pode falar mais nada", Brandelli Costa comenta:

- Essa cultura de que debate a respeito de gênero deve ser silenciado é conivente com injustiças e violências contra mulheres.

jessica.weber@zerohora.com.br


02 DE SETEMBRO DE 2017
PIANGERS

Deu bandeira!

Foi com algum constrangimento que falei sobre maconha com minha filha pela primeira vez. Ela tinha 10 anos. Não pelo tema, que aqui em casa achamos que é dever dos pais falar sobre tudo, mas pela situação. A menina estava fazendo um trabalho escolar sobre o México, cartolina com letras enfeitadas contando a história da nação, e bem grande no meio do cartaz tinha uma bandeira mexicana tirada da internet. 

Era a bandeira do México, sem dúvida, verde branca e vermelha, a águia com uma serpente no bico, ramos de louro embaixo, mas, na bandeira que minha filha pegou da internet, uma gigantesca folha de sete pontas aparecia em destaque na boca da águia. Se você procurar bandeira do México no Google Images vai encontrá-la, no meio de tantas outras bandeiras mexicanas caretas, a bandeira que minha filha escolheu. Achei esta mais enfeitada, me disse a pequena. Mas esta tem uma folha a mais, não é a bandeira correta, argumentei. É a mais bonita, ela me disse.

Bonita ou não, por alguns momentos pensei em deixar que a menina fizesse a apresentação na frente da turma. A professora, talvez, nem notasse. Minha filha iria mostrar as virtudes do batalhador povo mexicano, explicando o brasão de armas e o deus da guerra, e quando perguntada sobre a estranha folha no bico da água diria: "é só um enfeite". 

Mas sempre existe um garoto de 10 anos com um irmão mais velho, um garoto que já identificou um padrão nas roupas do irmão e perguntou o que era aquela planta na camiseta, no boné ou no caderno. Identificando a folha, denunciaria para toda a turma: "Maconha! Aquilo é maconha!". Minha filha diria que é apenas um enfeite que deixa a bandeira mais bonita, mas tenho certeza de que o mole impactaria sua nota.

"É uma planta ilegal que as pessoas fumam pra ficarem tipo bêbadas", disse pra ela. "Pegaria mal usar essa imagem no trabalho de classe", expliquei. "Mas porque as pessoas não bebem cerveja pra ficarem bêbadas?", perguntou Anita, a menina das argumentações intermináveis. "Algumas preferem fumar", expliquei, relembrando os colegas da faculdade. "Mas porque cerveja é legalizada e essa planta não?", me perguntou a menina. É uma boa pergunta, eu reconheço. Não sei porque eu insisto em responder às perguntas infantis. Crianças são especialistas em perguntar, eu sou um amador na arte de responder.

"Anita, simplesmente tira esta bandeira do México e substitui pela bandeira sem a folha", eu disse. "Por favor!" Substituição feita, trabalho apresentado, Anita voltou pra casa com uma nota oito. Foi prejudicada por alguns erros de português. Desatenção boba, você sabe como é. Papai aqui ficou tão atrapalhado com a bandeira que não deu atenção pro trajeto com g.

PIANGERS


02 DE SETEMBRO DE 2017
CARPINEJAR

Fisioterapia do coração

Quem sofre por amor perdido precisará encontrar a calma dentro do desespero. É quase insuportável, mas até hoje não existe outro jeito. A tranquilidade será obtida fazendo tudo a contragosto, mas nunca deixando de fazer. Nunca deixar de pontuar, ainda que sejam empates modorrentos. Nunca deixar de comparecer na rotina. Nunca deixar de seguir o cotidiano mais banal, mesmo não querendo. Nunca deixar de conversar, apesar do silêncio longo das lembranças magoadas.

Não deve, de maneira nenhuma, fingir felicidade, apenas não seja sufocado pela imobilidade. Ocupe os seus horários para o tempo não se fixar inteiramente naquela pessoa perdida.

É não ter vontade de dormir, e resistir na cama, no escuro, para o sono finalmente aparecer com seu livro monótono. É não ter vontade de abandonar o quarto e abrir as janelas para a claridade impor a sua realeza e realidade.

É não ter vontade de sair, detestar o sol brilhando nas árvores, e dar uma caminhada pelo bairro.

É não ter vontade de comer, enfrentar a careta e juntar força para levantar quatro garfadas grandes por refeição.É não ter vontade de cuidar dos filhos, e entender que eles não têm nada a ver com as suas escolhas erradas e não merecem sangrar junto.

É não ter vontade de tomar banho e entrar no box por obrigação, forçado por si mesmo, carregado por si mesmo, como alguém que depende da ducha fria para acordar da bebedeira dos pensamentos.

É não ter vontade de trabalhar e desenvolver projetos dentro daquilo que é possível, perdoando a lentidão com a constância. 

É não ter vontade de arrumar a casa e seguir lavando a roupa, ligando a máquina, mantendo o esforço braçal de estender as peças prendedor por prendedor. Doerá o gesto alçado ao céu, entretanto respire fundo e vá colocando bandeiras brancas em seu varal.

A aparência de ordem ajudará o caos interno a ser menos barulhento.

A dor é egoísta e deseja que suspenda a rivalidade: desmarque qualquer compromisso e pare qualquer prazer para senti-la completamente. Combata a exclusividade da angústia mantendo as suas tarefas mínimas: levantando quando não há esperança, passeando quando não há força, cantando uma canção favorita bem alto quando o choro roça a garganta e embaça os olhos.

A comida não terá gosto, a água não levará embora a sujeira por dentro, o dia não se mostrará aventureiro, nenhuma frase alheia apresentará relevância, nenhuma viagem provocará curiosidade, nenhuma visita despertará atenção, porém continue a estar presente de corpo - o espírito virá depois, o espírito volta.

Separar-se é perder a alma e prosseguir com o casco. É uma fisioterapia exaustiva e, a princípio inútil, para voltar a estar de pé. Você não consegue enxergar a recuperação porque a ruptura é recente e a vergonha é imensa. E também porque recomeçar do zero sempre será mais difícil, envolve uma ideia de retrocesso e derrota.

Mas a contrariedade cura pois lhe conservará ativo.

Um passinho de cada vez, não mais que isso, não menos que isso. Seja um passarinho caminhando sem pressa de voar e, assim, fortalecerá os pés das palavras para readquirir, lá adiante, o amor pela vida.

CARPINEJAR


02 DE SETEMBRO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

A distância entre mim e o caos


Desliguei o computador, abandonei revistas e jornais na área de serviço (mausoléu das más notícias), escolhi um livro e fui para a sacada tentar dar ao sábado uma cara de sábado mesmo, e não de segunda-feira. Essa mania de trabalhar nos fins de semana pode ser muito produtiva, mas é preciso saber parar e experimentar a vida sem a ajuda de aparelhos.

Antes de abrir o livro, olhei para fora. Moro num andar alto, e a vista que tenho é bem abrangente. Enxergo minha rua, esquinas, os prédios vizinhos, algumas casas e um parque, e também uma avenida ao longe, um posto de gasolina e a copa das árvores de outro parque. Até dois morros, eu enxergo. Nos edifícios mais próximos, posso inclusive bisbilhotar o que acontece no interior dos apartamentos, meu momento "janela indiscreta" sem precisar de luneta.

Sendo assim, como se estivesse diante de uma tela panorâmica, passei a observar um casal lá embaixo passeando com o cachorro, um homem empunhando uma raquete de tênis e caminhando rumo ao clube, um carro que passou em baixa velocidade sem colidir com outro e sem atropelar ninguém, uma idosa em pantufas e robe de chambre pendurando roupas no varal do seu pátio, uma garota adolescente caminhando com fones de ouvido e cruzando com um garoto que não a assaltou, um homem sentado numa cadeira de praia na calçada, tomando seu primeiro banho de sol do segundo semestre, a persiana de uma janela sendo aberta no prédio ao lado sem que nenhum deprimido saltasse lá de dentro, o porteiro batendo papo com o entregador de pizza sem que nenhuma gangue o rendesse a fim de fazer um arrastão nos apartamentos. 

Estava tudo dentro de uma fascinante normalidade.

Assim tem sido aqui nas redondezas. Eu caminho todos os dias pelos quarteirões, vou a pé para o estúdio de pilates, percebo orquídeas nascendo em árvores, moças passeando com carrinhos de bebês, gente saindo com seu automóvel de dentro das garagens. É bem verdade que já escutei tiroteio de madrugada, já escutei sirene de viatura, já escutei histórias de roubos, que é quando minha vizinhança se aproxima das notícias da tevê e das queixas que transbordam no Facebook, mas ver, nunca vi.

Finalmente, abro o livro, que narra conflitos psicológicos sem nenhum derramamento de sangue, e me dou conta do silêncio da minha casa e da minha circunstância. Nem uma freada brusca, nem uma ambulância ruidosa e apressada, nem mesmo o miado do meu gato interrompe minha concentração e minha fé - está tudo em suspeita calmaria.

A violência da vida se mantém muito bem escondida quando estou desconectada. Quase acredito na paz.

MARTHA MEDEIROS

02 DE SETEMBRO DE 2017
LYA LUFT

Caio F.

No dia 7 de setembro, quinta-feira, haverá no Theatro São Pedro o início de um festival sobre Caio Fernando Abreu. Não vou poder estar presente, mas gravei um pequeno depoimento que deverá me representar naquela hora.

Minha relação com Caio foi singular: dez anos mais moço do que eu, aniversariando um dia depois de mim, eu o conhecia de nome desde seu primeiro livro, sobretudo por comentários inusitados de severos professores e críticos literários: "Esse rapaz nasceu pronto. Raríssimo um escritor nascer pronto".

Muitos anos depois, Luciano Alabarse pergunta se eu permitiria que ele encenasse um de meus romances, Reunião de Família. Como sempre, minha primeira reação foi dizer não. Nem eu sei por que fobia, quase sempre esse é meu primeiro movimento. Depois, aceito o que me parece bom, e possível: já não estou disposta a cruzar o país dando palestras e entrevistas. Um começo de sabedoria me faz cultivar minha toca, meu sossego.

Mas quando Luciano comentou que a adaptação seria de Caio, que tinha gostado muito do livro, superei minha hesitação e concordei, quase feliz. Daqueles dois juntos, só podia sair coisa boa. Foi assim que algumas vezes Caio F. e eu nos encontramos, em geral na minha casa. Nasceram amizade, profundo respeito, lealdade. E um humor meio nosso, a que vou me referir mais adiante. Aliás, ele comentava com amigos: "A Lya, com aqueles cândidos olhos azuis, não sabe nada daquilo que escreve, as loucuras e tragédias. É tudo psicografado". E ria, voz grave e olhos brilhantes, misto de ironia e ternura.

Continuamos amigos, raramente nos encontrando, ele em São Paulo ou Londres, eu aqui em Porto Alegre e por pouco tempo no Rio. Nos escrevíamos, aquela coisa nada regular do Caio, duas, três longas cartas, deprimidas e angustiadas, outras engraçadas: "Estou feito uma velhinha inglesa, varrendo a casa, tomando chá, nada de drogas, nem sexo, nem coisa nenhuma. Um santo". Falava de solidão, desencanto, falta de dinheiro, amores infelizes.

Pouco antes de sua morte, já sem receber visitas, do hospital, alguém me ligou: o Caio queria falar comigo, pedia que eu ligasse. Há um bom tempo não nos víamos nem nos falávamos, talvez desde que elogiei, comovida, o pungente artigo em que comentou sua doença. A enfermeira passou o fone para ele, a voz era a mesma. A pergunta veio direta, e simples: "Lya, o que você acha que vai acontecer comigo, quando eu me libertar deste corpo?". Olhei pela janela, lembro que chovia forte: "Acho que vai ser como deve ter sido nas mortes recentes das duas pessoas que amei muito: pura intuição, deslumbramento. Numa fulguração, vamos entender tudo isso que aqui nos intriga tanto, e por isso escrevemos".

Breve silêncio, ele então disparou: "E se não for assim?". Respondi espontaneamente, com aquele humor meio louco que havia entre nós: "Olha, Caio, se não for assim, se depois desta vida complicada a gente descobrir que existe um Deus rabugento com fita métrica na mão para nos avaliar, nós dois vamos virar uns diabos bem loucos e fazer muita maldade neste mundo".

A resposta foi aquele riso, na sua voz inesquecível. Poucos dias depois, ele morreu. Mas sua voz, sua arte, seu gênio, suas dores e amores, e nossa despedida, estão aqui comigo para sempre.

lya.luft@zerohora.com.br

quarta-feira, 30 de agosto de 2017


30 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Palhaços


Nem duas, nem três: são muitas as pessoas que têm medo de palhaço, ou tiveram, quando crianças. Não lembro se eu tinha também, mas não me sentia confortável na presença deles. Em primeiro lugar, porque acho desagradável ter a obrigação de rir. Fico gelada quando alguém pergunta: "Conhece a piada do...?". 

Ai, meus sais. Geralmente digo que conheço e pulo para o próximo assunto, mas certos momentos exigem bons modos e a gente então escuta e oferece aquele hahaha amareladíssimo. Torço sempre para que o contador seja excepcional, porque é ele que torna a piada boa ou não.

Mas voltando ao palhaço. Além de ele personificar a obrigação do riso, ele me parecia apenas um bobão que tratava a todos como crianças, e eu não queria saber dessa condescendência. Balde com água de papel picado? Acho bonito e poético, desde que eu esteja assistindo ao espetáculo Fuerza Bruta ou qualquer outra encenação adulta. 

Eu devia ser meio piradinha, mas o fato é que sempre considerei performance de gente grande mais divertida, tanto que meus palhaços preferidos são Woody Allen, Lenny Bruce, Monty Python, a turma do Porta dos Fundos e, aproveitando a deixa para homenageá-lo, Jerry Lewis, que acabou de sair de cena.

O único palhaço de circo que eu gostava não trabalhava em circo, mas na tevê: Renato Aragão. Sim, eu gostava dos Trapalhões, mesmo eles sendo politicamente incorretos, ou talvez por isso.

Pra terminar minha lista de implicâncias, havia o fato de o palhaço estar sempre paramentado com aqueles suspensórios caretas e aquele nariz vermelho manjado - a Lady Gaga, em início de carreira, tinha mais criatividade. Já o disfarce do Batman eu curtia, pois o traje de vinil preto, com capa, me parecia cool e sexy. Piradinha e depravadinha.

Bozo? Fala sério.

Mas fui conferir Bingo, o Rei das Manhãs, porque o cinema é uma fantasia que me interessa, e adorei o filme, que vai muito além da mera biografia. Vi ali um homem. Adulto. Impulsivo. Atrevido. Alterado. Valente. Maluco. Um cara que se joga, que se dá bem e que se dana. Que tem uma história, e ela não é uma piada.

Além da atuação intensa e apaixonante de Vladimir Brichta, o filme ajuda a matar a saudade de Domingos Montagner, que muito antes de ser galã da Globo trabalhava como palhaço e dignificava ainda mais essa profissão - o palhaço é um artista. 

O problema sou eu, que, mesmo tendo sido uma menina feliz que usava maria-chiquinha, que andava de bicicleta, que adorava boneca, que brincava no mar com uma planonda vermelha e que lia gibis, já estava de olho na vida adulta, onde o picadeiro é bem mais amplo, o texto bem mais longo e a graça e a desgraça dão-se as mãos sem marmelada.

martha.medeiros@terra.com.br

sábado, 26 de agosto de 2017


26 DE AGOSTO DE 2017
CARPINEJAR

O caráter que se revela na confissão
Contar um segredo é a triagem do caráter. Ou o segredo liberta ou aprisiona. É confessando algo de que nos envergonhamos que saberemos se a pessoa é a nossa amiga ou não. Não tem teste tão veemente, com efeitos mais imediatos.

O confessionário prova se o outro é leal. Expor uma lembrança triste a quem não é de confiança logo vira chantagem, logo vira moeda de troca, logo vira favor. Pode não espalhar para os demais, mas usará a informação para obter vantagens e transformar a culpa em superioridade.

Aquele que não é amigo se aproveita da fragilidade para garantir benefícios. Fortalece a vítima para desmerecê-la. Levanta para cima, diz que o segredo é nada, dissuade o medo, para rir depois da queda.

Não é um amigo, porém um inimigo em potencial, um adversário disfarçado de bons modos. No fundo, não tem escrúpulos. Aproxima-se para impor os seus interesses. Está jogando sujo para ganhar recompensas fáceis.

Ele se faz de compreensivo e compassivo com o objetivo de manipular a relação. Há como prever o Judas antes da confissão. Pois Judas trai com um beijo. Será alguém que se mostra muito carinhoso de uma hora para outra. Tem pressa de saber tudo a seu respeito, sem nenhuma razão aparente. Aparece forçando a intimidade, com convites generosos e apoios nababescos.

Cuide com o que fala. Porque aquilo que falar mostrará a natureza de suas companhias.

A decepção virá rapidamente na forma de um insulto e de uma ironia. No primeiro desentendimento, o túmulo de cimento das palavras não resiste às marteladas da profanação. A traição será sempre a violação de uma confidência. Os suspeitos não mudam com o tempo. É um colega de trabalho concorrendo com você. É um antigo afeto querendo vingança. É um familiar ressentido com o passado.

Amigo que é amigo escuta e esquece, e jamais volta para o assunto. Ouve e apaga. Escreve na água, para a onda levar. Escreve na areia, para o vento cobrir. Cumplicidade é como bebedeira, nunca lembrar o que aconteceu durante a vulnerabilidade da conversa.

Amigo que é amigo mantém a decência de uma gaveta, de um cofre, de uma chave. Demonstra a sobriedade educada e gentil de ajudar e desaparecer. Já cumpriu o papel de dividir as dores e frustrações. Não alimenta a ambição de ser maior do que o silêncio.

CARPINEJAR


26 DE AGOSTO DE 2017
PIANGERS

Amor à moda antiga


Um amigo disse pro filho, dia desses, antes de dormirem, que o amava daqui até o céu. O garoto ouviu, levantou as sobrancelhas, calculando a distância impressionante. Olhou pro pai e, na tentativa de expressar amor de volta, falou: Eu te amo tipo daqui até o ventilador.

Somos uma geração de pais carinhosos. Dizemos "eu te amo" como quem diz "bom dia". É tanto "eu te amo, filho" que tenho medo que não valorizem. Às vezes, inventamos novas formas de comparação. "Amo você daqui até a lua." "Amo você mais que tudo." "Amo você 10 vezes infinito." Já ouvi tantas vezes de minhas filhas e valorizo cada uma delas. Todas me dão água nos olhos. Abracei-as mais do que abracei minha mãe, acredito. Tenho mais fotos delas, guardadas em HDs e com backup na nuvem, do que as câmeras de 24 poses jamais conseguiriam tirar.

Em geral, tivemos pais mais distantes. Queriam que fôssemos durões. Meu avô trabalhava na roça, cortou cabelo e dirigiu caminhão pra dar estudo pra minha mãe. Esta, por sua vez, criou sozinha o filho e sustentou a casa com salário minguado. A vida, realmente, era mais séria pra eles. Nada de delicadezas. Nada de desperdício de comida. 

Nada de tablet e iogurte. Nada de "eu te amo" terça à tarde. Abraços eram ocasiões especiais, Natal e olhe lá, que a vida não é fácil e você tem que estar preparado. Mas, quando vinha um carinho na cabeça, rapaz, a gente ficava bobo. Um pouquinho de colo, quando a gente já era grande demais, era o céu. Beijo de boa noite, paraíso.

Uma amiga contou que o pai nunca lhe disse "eu te amo". Ela procurava carinho, ele não era muito de papo. A conversa era toda com a mãe. O pai era comunicado e comunicava, não havia diálogo.

De vez em quando, ele botava as crianças pra dormir. Era assim: os três filhos de banho tomado deitavam, cada um em sua cama. O pai entrava no quarto, o silêncio respeitoso tomava conta do lugar, e o senhor começava a desenrolar os mosquiteiros que ficavam em cima da cama deles. Estendia a proteção cuidadosamente sobre os filhos, sem dizer uma palavra. 

Olhava com atenção pra ver se nenhum mosquito tinha ficado do lado de dentro. Verificava se não havia frestas para outros mosquitos entrarem. Fazia isso para cada um dos três filhos, sem trocar uma palavra. Depois de tudo pronto, ia até a porta e dizia: "boa noite". As crianças respondiam: "boa noite". O pai se ia. E as crianças sentiam como se tivessem ouvido "amo vocês".


26 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Na calada da noite

Na calada da noite, quando o silêncio é tão denso que não se escuta nem o espirro de um guarda noturno, meus pensamentos delirantes despertam, e meu cérebro começa a azucrinar.

Eu ordeno a ele: quieto! Estamos na calada da noite, essa expressão não te sugere nada?

Ele não me dá trela e passa a listar as preocupações que me aguardam no dia seguinte. Amanhã, você precisa trocar o horário da aula de inglês com a Karin, será que ela estará livre na quarta? Amanhã, você precisa acrescentar batata-doce na lista de compras do supermercado. Amanhã, você precisa checar que barulho é aquele que seu carro está fazendo quando dá ré. 

Amanhã, você precisa adicionar mais 10 minutos de cenas no roteiro do filme que está escrevendo e dar uma sacudida na personagem principal, ela ainda está meio desmaiada. Amanhã, você precisa escrever mais duas crônicas inéditas de qualquer jeito, ou não conseguirá viajar tranquila pro Rio. Amanhã, você precisa checar se a camisa branca está limpa para a palestra.

São 3h30min da manhã, e a noite segue calada, mas meu cérebro não fecha a matraca. E o pior está por vir: ele logo entrará em sessão de terapia. Adora fazer isso no meio da madrugada.

Tenho a impressão de que aquele texto que você publicou duas semanas atrás foi um recado para uma amiga sua. E não ter respondido aquele WhatsApp de anteontem foi uma provocação estúpida. Se você tem vontade de largar tudo, por que não larga? Aliás, comece largando o pé da sua filha, deixe que ela viva do jeito que quiser. Não acredito que você vai falar de novo sobre aquela vez em que perdeu o avião porque ficou trancada no banheiro. Óbvio que você não queria embarcar.

São 4h30min da manhã, nunca fiquei presa em banheiro de aeroporto, então é sinal de que a terapia desandou e agora estou entrando naquele período dramático em que recebo a visita dos meus demônios, sempre pontuais.

Essa mancha no seu braço. Está com a maior pinta de ser um melanoma. Você precisava ter tomado três cálices de vinho? Marque uma hora no gastro se não quiser morrer de cirrose até a próxima sexta-feira. Você não vai viver muito, sabe disso. A dor no joelho é da idade, mas o aperto no peito é problema cardíaco grave, você tem um mês de vida, você tem duas semanas de vida, você tem que deixar um bilhete de despedida para seus entes queridos, tchau querida, acho que você não vai nem acordar.

São 6h da manhã, o guarda noturno espirra, e eu acordo. Fim de mais uma tagarelice cerebral numa noite calada coisa nenhuma.

MARTHA MEDEIROS

O espelho sobre a mesa de jantar

Desde quando me lembro, família tinha para mim uma importância extraordinária. Meu pai a considerava muito. Era a árvore, com raiz e galharia, com sombra, com tempestade, ramos caindo, raios atingindo, mas estava ali, a velha árvore. Eu, menina intrometida, de orelhas em pé ouvindo conversas adultas, pois durante alguns anos fui a única criança na casa, absorvia aquelas tramas, dramas, comédias, e coisas ternas e alegres que passavam como fios de teia de aranha entre tantas pessoas.

Eu adorava os almoços: avôs, avós, tios, tias, primos, primas. Aquilo me dava uma extraordinária sensação de proteção e pertença. E tudo se refletia num grande espelho diante da mesa de jantar. Também me fascinavam - não foi por nada que décadas depois comecei a escrever sobre laços familiares, embora nada a ver com aquela minha família - as conversas e posturas, que em qualquer grupo podem passar da inocência à bizarrice. Sentada à mesa, tendo de me esticar para manejar os talheres, embora posta sobre almofadas, com as perninhas balançando no ar, mais do que comer ou beber meu suco, eu espiava as pessoas.

Tomava um distanciamento involuntário, que me divertia e assustava: as pessoas pareciam salsichas enormes, com tufos de cabelo em cima, buraquinhos com olhos dentro, que giravam, outro buraquinho que se abria e fechava para receber comida ou soltar palavras. Ali aprendi que palavras podem ser plumas ou punhais - e que significam muito mais do que aquilo que expressam. Que uma inflexão muda o sentido, de amoroso para crítico; e que as mãos complementam tudo, com arabescos bailarinos por cima dos pratos.

Talvez tenha nascido assim meu encanto pelas palavras, pelo que dizem nos sons ou letras, e mais ainda nos espaços brancos ou silêncios. Ou isso simplesmente veio comigo como a cor dos olhos e dos cabelos, um sinal qualquer. Para mim, foram sempre motivo de felicidade, palavras como balas de tantos sabores e cores, ou pedrinhas coloridas que eu revirava na boca como se fossem pitangas ou uvas.

Sou uma mulher das palavras, e família tem entre elas um lugar especial: mais do que dissidências, importam as semelhanças; mais do que contradições, reinam os encontros; mais do que as ausências, predominam os gestos, as vozes, ou os sinais num WhatsApp. Uma dor por mal-entendidos pode ser curada com a palavra certa; uma ilusão alegrinha pode virar ferida, mas a gente nunca tem certeza...

Esse berço, esse colo ou esse peso chamado família pode magoar, irritar e salvar se tivermos a sorte de nascer num grupo amoroso. Nas horas mais escuras, essa rede pode nos impedir de cairmos no alçapão embaixo do poço. Nada como lembrar brincadeiras infantis entre irmãos, carinho de pais abrindo a porta com braçadas de orquídeas, dessas pequenas meio silvestres que florescem presas aos troncos das árvores no jardim. Nada como jogar conversa fora com quem se recorda, e nada como semear recordações futuras para os que, tão jovens, ainda nem têm passado.

Não sei onde foi parar aquele grande espelho, com um raro tom rosa-antigo. Quem sabe ainda estamos lá, presos: imortalizados os momentos felizes, os risos, brindes, lágrimas - e todos nós, como éramos um dia.

LYA LUFT

quinta-feira, 24 de agosto de 2017



23 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Nossos velhos moços

Peguei a foto e observei. Ela tinha 38 anos. A bordo de um vestido preto decotado e elegante, parecia uma embaixatriz moderna, uma mulher do jet set, e ele, a seu lado, aos 40, usava terno e gravata e tinha alguns poucos fios grisalhos no cabelo, apenas o suficiente para emprestar uma maturidade charmosa ao look. Ambos poderiam estar em um anúncio da grife Giorgio Armani ou numa festa em Montecarlo. 

Seus sorrisos largos e peles bronzeadas indicavam uma vida de atividades ao ar livre e programas culturais. Eles adoravam ir a concertos e ao teatro - tudo indicava que teriam uma longa e divertida vida pela frente, e de fato tiveram e ainda têm. Mas eu, no canto esquerdo da foto, espiando com o rabo de olho para aqueles dois, lembro bem: só pensava em como eram velhos meus pais.

Ah, a ingênua soberba dos 15 anos. Recordo aquele baile onde nós três fomos fotografados juntos: eu e meus pais matusaléns. Em minha completa ingenuidade e ignorância, acreditava que juventude era uma calça azul e desbotada e que ninguém era mais livre e sábio do que nós, os de menor. 

Os campeonatos de surfe na Guarita, a piscina do Juvenil, os shows no Gigantinho, do que mais precisaria uma adolescente alienada para querer parar o tempo e ser feliz para sempre? Ficava apavorada com a ideia de me tornar uma anciã como aqueles dois senhores a quem, naquela noite já distante, eu vi dançarem com uma desenvoltura que me fez cobrir o rosto com as mãos. Que mico, meus pais ainda vão pra pista nesta idade.

Hoje reparo que minhas filhas me dirigem um olhar atravessado quando uso um vocabulário vintage e penso que elas, da mesma forma, devem me enxergar como um fóssil do Tiranossauro rex. Ou talvez não. Talvez elas tenham outra visão da passagem do tempo e, ao me verem ir a shows de rock, viajar com uma mochila nas costas, namorar e ainda fazer planos para o futuro, compreendam que não existe mais juventude e maturidade delimitadas, um antes e um depois. Temos idades diferentes, mas espíritos muito similares. Otimismo meu?

Sendo moças adultas, posso confiar no discernimento delas, mas aos 15, ah, aos 15 víamos nossos pais envoltos num tom sépia, cheirando a naftalina e tendo um comportamento totalmente sem noção. Se eles ousassem transparecer alguma jovialidade, eram tachados por nós de ridículos. Adolescentes adoram achar tudo ridículo.

Até que os adolescentes crescem, atingem a meia-idade que um dia seus pais tiveram e, ao olharem para fotos de uma época em que eles pareciam uns cacos, se dão conta: eles eram umas crianças. Demora até aceitarmos que fomos criados por pessoas tão jovens e aventureiras quanto nós.

martha.medeiros@terra.com.br


22 DE AGOSTO DE 2017
CARPINEJAR

Todo mundo tem um pouco

Com a atual evolução da medicina, não haveria super-heróis.

O incrível Hulk, antes de sua transformação verde, tomaria Rivotril e jamais perderia as suas roupas. Poderia até arrumar um trabalho irritante de teleoperador ou de segurança de boate e não mais se irritaria com nada. Batman seria medicado com antidepressivos para contornar o trauma de ter visto os seus pais assassinados em sua frente. Não iria se fantasiar de morcego nem morar em cavernas. Talvez se transformasse em corretor imobiliário. 

Wolverine, com alentadas sessões de hipnose e regressão, superaria seus antecedentes bastardos, já que foi fruto da infidelidade de sua mãe, Elizabeth Howletts, com Thomas Logan, o jardineiro da mansão. Representaria o Canadá na equipe de esgrima nas Olimpíadas. O Homem-Aranha, com aplicação de um forte antialérgico, estaria normalzinho e, no máximo, subiria em andaimes para pintar murais em prédios nova-iorquinos.

Todos têm em comum a sede de vingança. Todos apresentam um defeito hipertrofiado. Ninguém é herói por uma virtude. Mas por uma falha trabalhada ao extremo a ponto de virar uma arma.

Nenhum traz bons sentimentos. Recalques e transtornos é o que provoca os superpoderes. Conservam a humanidade de perdas e dores debaixo das capas e das fantasias invencíveis. Eles procuram a justiça porque sentiram na pele a falta dela.

E a maior parte dos ídolos da Marvel estaria catalogada com sintomas de esquizofrenia ou psicose ou histeria ou dupla personalidade ou borderline.

Com receitas médicas, a Liga da Justiça estaria extinta.

Numa sociedade que endeusa o equilíbrio, que os super-heróis nos devolvam a sanidade. É de se pensar que suportar um naco de sofrimento não é tão grave assim. Gera disciplina e obstinação. Produz entendimento e empatia com outro. Cria referenciais para a superação de adversidades.

Não devemos nos automedicar nem seguir tratamentos indicados por amigos, muito menos prosseguir com a intolerância máxima a qualquer mal-estar. É preciso aguentar um turno de enxaqueca ou cinco minutos de azia. É salutar não resolver tudo na hora com comprimidos. A dor não mata, mas a falta de dor com medicação excessiva é assassina, não ajudando a nos prevenir da dependência e nos tirando a força para nos defendermos, sozinhos e sóbrios, da vida.

Os remédios são um controle falso do corpo. E, se usados com frequência, não de modo especial e provisório, sem a devida orientação, escravizam e alteram o nosso temperamento.

A medicina serve para amparar a humanidade, não substituí-la. Não dá para curar cem por cento os problemas - que é neutralizar a espontaneidade.

De super-herói e louco, todo mundo sempre terá um pouco.

carpinejar@terra.com.br

sábado, 19 de agosto de 2017



19 DE AGOSTO DE 2017
LYA LUFT
Em casa na selva


Quem teve filhos, ou cuidou de bebês, deve ter observado que desde os primeiros momentos somos diferentes. Diversidade não tem só a ver com raça, cor, religião, ideologia, mas também se realiza entre os ditos "iguais", nas diferenças da mente, capacidades, conceitos e emoções que vão nos marcar.

Desde o começo, temos a criança solar, naturalmente animada e alegre, de sorriso fácil e olhar luminoso, e a outra, mais quieta, recolhida, assustadiça, desconfiada. Mal-humorada, até facilmente agressiva: sim, criança pode ter um gênio bem difícil, porque nasceu assim ou porque o convívio familiar, educação, experiências pessoais a vão distinguindo. Mas amadurecendo temos raciocínio claro, e força de vontade: pessoas agressivas podem se educar, e melhorar. Outras, mesmo de natureza mais afável, em ambiente hostil, violento, frio, podem se tornar hostis ou parecer antipáticas.

Por que escrevo isso? Porque me espanta - a gente sempre acha que a certa altura da vida nada nos espanta, mas é mentirinha - essa nossa agressividade à flor da pele. Não recordo tempos tão intolerantes. Branco e preto. Politicamente correto (detestável) ou incorreto. Azul ou vermelho. Direita ou esquerda, e outras noções já bem ultrapassadas.

Andamos pouco civilizados, por qualquer coisa atropelamos, batemos, xingamos, afastamos, deletamos alguém: por que tanto assim, por que com tamanha frequência, por que essa dificuldade em entender, aceitar (nada a ver com se acovardar), desculpar, e - se queremos afastar de nós - em nos distanciarmos sem ferir?

Possivelmente porque, neste mundo conturbado, neste ambiente político bizarro, nesse espetáculo de violências variadas mundo afora ou aqui na esquina, estamos realmente com os nervos expostos: medo, insegurança, o assombro moral, nos deixam em alerta.

Arreganhamos os dentes, esticamos a cauda, e lá vamos nós, agredindo muitas vezes por receio infundado, sem motivo concreto. Em alguns lugares, ir a um jogo de futebol pode ser arriscar até a vida. Ninguém com bom senso conversa no carro diante da porta da namorada. Ninguém circula tranquilo nas ruas escuras, e descemos do carro, ou tocamos a campainha, olhando para os lados como se estivéssemos na selva.

Estamos na selva: nós a criamos. Ou permitimos que se formasse, e até participamos dela. Isso tem remédio, receita, tem jeito? De momento, ando cética quanto a comissões, grupos, discursos. Eu, aqui, comigo, devo tentar ver todos como pessoas: com rosto, emoção, vida, mesmo que eu não lhes saiba o nome.

Vou ao jogo para torcer, para ver meu time ganhando, mas perder não deve ser o fim da minha decência. Discutir opiniões é normal, mas não preciso dar porrada física ou verbal se minhas ideias não forem aceitas. O trânsito está um horror, mas não tenho de atropelar alguém ou sair gritando insultos. Se o trabalho foi duro, o dinheiro é pouco, se alguém me irritou, não posso chegar em casa me portando da mesma forma.

Somos todos inocentes. Ou somos uns pobres diabos assustados. Se a gente não começar em si mesmo, feito formiguinha, a coisa só vai piorar: logo até dentro de casa vamos acordar rosnando como numa selva ameaçadora.

lya.luft@zerohora.com.br


19 DE AGOSTO DE 2017
MARTHA MEDEIROS

Problemas matemáticos


A matemática e eu nunca fomos íntimas. Isso explica eu ter tirado, no colégio, tantos NS (não satisfatório) e NA (não atingido), notas que equivaliam ao indesejado zero. Eu até que simpatizava com os problemas apresentados, mas me perdia na abstração. Maria tem 42 abacates, 75 bananas e 17 melancias: quantas frutas tem Maria? Não era complicado somar, complicado era entender por que raios Maria precisava de 42 abacates. E de 75 bananas. Quantas crianças ela tinha pra alimentar? Morava em algum sítio? Conseguiria consumir tanto abacate, banana e melancia antes de as frutas apodrecerem? Eu achava que o problema a ser solucionado era o exagero de Maria.

Uma escola tem 1.750 alunos e faltam 357 no primeiro dia de aula: quantos alunos compareceram? Eu não podia acreditar que apenas o resultado da subtração interessasse aos professores. A questão principal não era quantos, e sim por que tantos se ausentaram. Epidemia de mononucleose? Ônibus em greve? Despertadores em greve? O primeiro dia de aula era excitante, bastava de férias, a saudade dos colegas e a vontade de estrear caderno novo eram motivos suficientes para estar lá na segunda-feira. Onde haviam se metido os 357? Ou vai dizer que eram problemas inventados?

Imagino que hoje eles sejam mais realistas.

Um presidente precisa comprar 172 deputados a R$ 5 milhões cada um: quanto ele terá que desviar do orçamento para cumprir sua meta?

Se um jogador de futebol ganha R$ 100 milhões por ano e gasta R$ 8 milhões por mês, ao fim de 12 meses quantos milhões ainda sobrarão do seu salário?

Um servidor público tinha R$ 7 mil a receber de seu décimo terceiro do ano passado. Já recebeu seis parcelas e ainda lhe devem R$ 320. Qual o valor da sua paciência?

Um hospital tem 45 leitos e há 92 pessoas aguardando atendimento. Os corredores abrigarão quantos excedentes?

Um deputado federal ganha R$ 33.763, mais auxílio-moradia, verba de gabinete, ajuda de custo, passagens, carro com motorista e outros benefícios. Ele deveria defender os interesses de meia dúzia ou de milhões de brasileiros?

Um traficante disparou 37 tiros em duas horas. Um policial disparou 24 tiros num fim de semana. Duas crianças foram alvos de bala perdida no meio da tarde. Quantos tiros foram dados e quantos faltam para atingirmos a estatística de uma guerra civil?

Um fazendeiro tinha 85 bois numa sexta-feira à noite em que fazia 13 graus. No sábado de manhã, fazia 7 graus e ele contou 64. De quanto foi a variação de temperatura que surpreendeu os assaltantes durante a madrugada?

E um último probleminha: como serão as aulas de matemática do nosso futuro? Nem calculo.

Um deputado federal ganha R$ 33.763, mais auxílio-moradia, verba de gabinete, ajuda de custo, passagens, carro com motorista e outros benefícios. Ele deveria defender os interesses de meia dúzia ou de milhões de brasileiros?

MARTHA MEDEIROS



19 DE AGOSTO DE 2017
CARPINEJAR

Malandragem familiar

Quando alguém de casa me pergunta se eu vi determinada coisa, não está, na verdade, me questionando, está me culpando e me pondo a trabalhar para achar.

A incriminação é falsa, um oportuno artifício para ganhar a atenção. Pois tenho que provar a inocência de uma hora para outra. Sou obrigado a cessar as minhas preocupações, por mais importantes que sejam, para investigar onde a pessoa deixou o objeto. Azar dos textos encomendados, das leituras em aberto, dos contatos a responder na caixa de mensagens.

O interesse de quem perdeu é criar pânico, mobilizar a casa para resolver o desaparecimento. É parar tudo e todos em nome de uma causa pessoal. E aquele que perde sempre está atrasado, prestes a sair, com a mão na maçaneta, o que agrava a urgência.

A acusação é absurda. Não toquei naquele pertence nos últimos dias. Mas, por ser descabida, fico com vontade de esfregar na cara que não fui eu.

Não percebia antes a moral da cilada. O propósito é mesmo sortear a responsabilidade para desfrutar de investigadores de graça. O babaca aqui, disposto a provar algo que não fez, dedica os seus melhores esforços na procura.

Já quem esqueceu o paradeiro do objeto costuma se tranquilizar com a movimentação frenética das equipes de busca e permanece parado, apenas coordenando de longe a gincana. Ele cria uma história de que é vítima de um enxerido, da arrumação alheia, e não se mexe.

É a maior malandragem da vida familiar. Quando a coisa sumida reaparece é num lugar engraçado, deixado por nada menos do que o seu próprio dono. Ele, aliviado, enterra o assunto e a difamação dos próximos. Nem pede desculpa aos suspeitos.

Acabo sempre recrutado para caça ao tesouro. Os filhos e esposa se aproveitam da minha ansiedade. Reencontrei brinquedos escondidos nas estantes, celulares no estofo do sofá, brincos no tapete fofo da sala. Sou um Google Maps dos extravios.

Da próxima vez, não sofrerei à toa, chamarei de pronto o meu advogado.



19 DE AGOSTO DE 2017
PIANGERS

Esse vai ser pegador

O Gabriel é um amigo da minha filha de cinco anos que adora usar vestido de menina. Você está pensando o mesmo que eu, quando conheci o garoto: o Gabriel é gay. Mas, lembre-se, o Gabriel tem só cinco anos de idade. Ele não sabe o que é uma orientação homoafetiva, não sabe o que é sexo, não tem a consciência da malícia do nosso pensamento (meu e seu). Quando perguntei por que ele gostava de colocar aquela roupa, ele me disse: "É bom de correr". E saiu em disparada, de vestido, atrás de uma bola de futebol.

É uma imagem desconcertante, um menino de vestido correndo atrás de uma bola. O Gabriel não tem nenhuma indicação de delicadeza, ele entra nas jogadas com força, discute com outros meninos com valentia. Quero dizer, está mais para Felipe Melo do que pra Kaká, não fosse pelo vestido não teríamos nenhum sinal de raios desmasculinizantes. Mas o Gabriel gosta de correr de vestido, acha mais confortável. E o pai dele de canto não sabe se fica puto da cara ou se aplaude as jogadas do filho.

Lembro da minha infância. Existia um patrulhamento antigay constante. Pais não permitiam filhos usando rosa, brincando de bonecas, brincando de maquiagem, fazendo balé. Esse terror dos pais passava pras crianças, e estávamos o tempo todo avaliando os amigos, fazendo piadas de duplo sentido, sugerindo a homossexualidade dos outros, como se houvesse algo de errado com isso. Deus nos livre alguém nos confundir com gays! Alguém supor que somos sensíveis!

Alguns de nós, certamente, se descobriram gays, apesar de toda a pressão inversa. Outros, imagino, incorporaram o ódio e se tornaram homofóbicos.

Quem sexualiza nossas crianças somos nós, conhecedores do bem e do mal. Batemos nas costas de meninos de dois anos, às vezes mais novos ainda, e dizemos: "Esse vai ser pegador! Esse vai ser garanhão!". E não entendemos quando nossos jovens têm filho cedo demais. Não entendemos quando nossos garotos são violentos com as meninas, querem pegar à força as garotas nas festas. Não entendemos quando maridos traem as esposas. "Esse vai ser pegador!" Uma espécie de deseducação que jogamos em nossos meninos desde cedo.

Ninguém diz para o filho: "Esse vai ser um pai de família". Esse vai ser honesto. Esse vai ser gentil. Esse vai tratar bem as mulheres, esse vai ajudar o próximo. Acredito que faria toda diferença. Incentivar a sexualização da criança é roubar um pouco de sua infância. Nossos filhos não vão ser menos homens se não pegarem beijos à força das meninas da creche. Nossos filhos não serão gays se usarem vestidos. Nossos filhos não serão afeminados se brincarem de boneca ou casinha. Nossos filhos serão crianças. E, quem sabe um dia, adultos melhores que nós.

sábado, 12 de agosto de 2017



12 DE AGOSTO DE 2017
PIANGERS

Desculpe por não ser Marcos Piangers

Nesta semana de Dia dos Pais, dei palestras sobre paternidade para grandes empresas nacionais; estou na capa da maior revista de família do Brasil, a Pais&Filhos; fiz campanhas publicitárias falando da importância do homem na criação dos filhos; dei minha terceira palestra no TEDx, desta vez em São Paulo, na maior conferência da América Latina, no estádio do Palmeiras; dei entrevista pra diversos jornais, revistas, rádios e televisões, entre elas a Globo, no programa do Pedro Bial, ao lado do Cauã Reymond.

Isso faz de mim um pai perfeito. Evidente que não. O que me faz pai é o tempo que gasto na educação das minhas filhas. E essa semana de Dia dos Pais passei longe delas, por causa de tudo isso que citei aí no parágrafo de cima. Foram cinco dias longe das minhas meninas. Sou um poço de culpa. Sou um pai inacabado, um marido inexperiente, um homem em reconstrução.

Minha filha mais velha fica triste porque acha que sou muito duro com ela e muito mole com a mais nova. Pra minha esposa, dou respostas ríspidas, muitas vezes não sou atencioso ou paciente. Elas adorariam que eu fosse esse Marcos Piangers que as pessoas idealizam, mas não sou. Minha esposa está fascinada por um outro rapaz da internet que fala sobre feminismo. Diz pra eu assistir seus vídeos pra ver se eu melhoro. Lembra alguém?

Toda família é igual. Toda esposa está tentando tornar seu marido em um cara melhor. Todo homem acha que já faz o suficiente e que a mulher reclama de barriga cheia. Todo pai se sente culpado. Estamos todos no mesmo barco, amontoados de inseguranças e traumas, guardando pra nós mesmos nossas dores. Achando que existe alguém perfeito no mundo.

O melhor homem possível está aí do seu lado, com todos os problemas e defeitos. O melhor pai possível está aí, precisando de ajustes e puxões de orelha, mas pronto para ser melhorado. A melhor família é essa aí que você tem. A melhor viagem é esta que você fez, com chuva e malas extraviadas. O dia mais feliz da sua vida não foi sua formatura, seu casamento, o dia que seu filho nasceu. O dia mais feliz da sua vida é hoje.

Neste domingo, dia 13, vou estar com minhas garotas, finalmente. Teremos que nos reconhecer, nos reconquistar. Espero ser mais Marcos Piangers semana que vem. Depois um pouco mais. Depois mais. Quem sabe um dia. Quem sabe.

PIANGERS