sábado, 9 de junho de 2018


09 DE JUNHO DE 2018
LYA LUFT

O cotidiano pode ser sublime


Não lembro quando ouvi ou percebi pela primeira vez a palavra "sublime", mas acho que nasci apaixonada por palavras, primeiro o som, mais tarde o que chamo "a carinha", as franjas das palavras e as nuvens ou trovões que as recobrem. Lembro que achei uma palavra fina, magrinha, com aquele seu "i", e me espantei quando disseram que era algo mais do que maravilhoso, quase divino. Não devo ter entendido bem, mas descobri logo que não era palavra para se usar seguidamente. Perdia a força, a graça, o significado.

Lembro com gosto o que certa vez disse uma amiga querida, quando falei de algo sublime na natureza: "A natureza é bela e terrível. Sublime, só Mozart". Teremos, então, uns pequenos Mozarts no nosso cotidiano tantas vezes cansativo, chato, preocupante, desgastante e corrido? Sempre achei que sim, porque a quietude desde a infância me fascinou, simplérrima e difícil. "Menina preguiçosa, essa guria já nasceu cansada", dizia meu irmãozinho. Para mim, era felicidade: ficar quieta, ouvindo o mundo, sentindo o mundo, não entendendo o mundo. Possivelmente, toda criança tem isso em si, desde que lhe deem tempo - na sua agenda de pequena executiva, aulas disso, daquilo, deveres, festas - para esse silêncio dentro que é um tesouro de mil vozes.

Então vamos descobrir: andar pela calçada molhada, a chuva para, no céu uma nesga de claridade se abre, e quase para nossa respiração, se não formos obtusos. Lindo. Sublime? Na janela, o céu tranquilo de repente se cobre de nuvens negras, espessas, ameaçadoras como um tornado, querendo devorar a luz. Nesse instante, algo sublime nos toca. Por que não? Música inesperada, saindo da janela de um apartamento, ou da televisão, do computador. Outro dia, escutamos Eric Clapton tocando e cantando Layla e quase choramos: sublime. Não precisa, então, ser Mozart, mas pode até ser esse raiozinho de sol tocando as buganvílias bem humildes no meu vasinho de vidro azul, barrigudo, aqui ao lado.

Vamos deduzir que o sublime não precisam ser anjos com harpas, fanfarras de grandes tempestades, ou mesmo paixões humanas: pode ser simples, comum, mas, por alguma razão, abre aquilo que temos de melhor em nós - e a gente nem sabia.

Não precisamos ser cultos, refinados, maduros. Outro dia, num vídeo, apareceu um bebê de uns oito meses que pela primeira vez, de óculos, enxergou realmente o rosto da mãe. Do pai. O quarto. O seu pedacinho de mundo. Certamente, essa criança, com ar maravilhado, teve seu primeiro - espero que não último - sentimento de sublimidade.

Enfim, somos melhores do que pensamos. Muitas vezes, em aula na faculdade, eu disse a meus alunos: "Vocês são muito melhores, mais inteligentes e capazes, do que eu, a universidade, a família e a sociedade fazemos vocês pensar que são. Sintam isso, gente!".

Nada sublime nas minhas palavras, mas talvez um ou outro tenha descoberto dentro de si, naquele dia ou no futuro imprevisível, a capacidade de sentir, sonhar, compreender ou não compreender nada, como algo sublime: bom demais, divino, sobre-humano, ou simplesmente muito humano. A gente é que complica.

LYA LUFT


09 DE JUNHO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Ponha seu amor no sol

A história foi a seguinte. Ele tinha uns 27 anos e estava em Berlim pela primeira vez. Solteiro, livre, desbundado. Passava as noites dançando em casas noturnas onde encontrava alemãs góticas, estranhas, caladas. Até que se encantou por uma delas. Encontravam-se na balada todas as noites, depois ela o acompanhava até o muquifo onde ele estava hospedado e, de lá, saía sorrateiramente no meio da noite, pois trabalhava cedo na manhã seguinte. Meu amigo ficava estrebuchado na cama até o meio-dia, já pensando em trocar seu nome para Hans e estudar filosofia. Até que as férias terminaram, e ele voltou para o Brasil.

Com uma amiga se deu assim: ela era advogada de dia e tinha aulas de flamenco à noite, momento em que trocava a calça de linho por vestidos vermelhos e incendiava o salão com suas castanholas. Um belo dia, surgiu um projeto de espanhol no curso e não deu três dias para se tornarem o par mais caliente do tablado. Calça justa como a dos toureiros, camisa aberta no peito, pura testosterona em 1m87cm. Ela não resistiu: a dança evoluiu para os lençóis, mesmo sendo um caso proibido - ele dizia ser noivo.

A paixão adora a noite e seus mistérios. Até que o dia amanhece.

Não é que a alemoa inventou de conhecer o Brasil? Mandou uma carta para o meu amigo (perceba o tempo que faz isso), e ele na mesma hora se predispôs a hospedá-la. Ela desembarcou na tarde mais escaldante de fevereiro com seu capote preto, o mesmo que usava na balada berlinense, e com uma palidez de doente. Não se acostumou com a comida dos trópicos e logo seus olhos acinzentados saltaram de seu rosto esquelético. Meu amigo a levou para Garopaba, onde ela usou um biquíni que cobria o umbigo e um chapéu que mais parecia um ombrelone - mesmo assim, pegou uma insolação. Meu amigo fantasiou uma Nina Hagen e acordou com uma militante da Gestapo. Vida real, muito prazer.

Minha amiga advogada estava em casa num sábado de manhã esquentando a água para o chimarrão quando bateram à porta. Era o projeto de espanhol, só que agora de calça de moletom, camiseta do Grêmio e um bebê no colo. Um bebê!! O homem era pai de uma criança de sete meses. E não parecia nem um pouco espanhol, nem um pouco alto e nem um pouco esbelto - camiseta de time de futebol é sempre traiçoeira com as barrigas dos torcedores. Que fim levou o mistério, o charme, a pulsão erótica? Ele a convidou para uma caminhada no parque, e ela lembrou que tinha hora no dentista - sim, no sábado de manhã - e sua adoração pelo flamenco foi subitamente trocada pela capoeira, ela até já procura no Face quem tenha um berimbau pra vender.

Afora uns pequenos detalhes fictícios para dar sabor à trama (e livrar meus personagens da identificação), é tudo verdade. Do que se conclui: abram bem a janela, coloquem os travesseiros pra fora e tomem muitos cafés da manhã juntos antes de dizer um eu te amo no escuro.

MARTHA MEDEIROS


09 DE JUNHO DE 2018
PIANGERS

Coisa de menina


A gente estava colando figurinha no álbum da Copa quando a Aurora se deu conta de uma coisa. Pai, mulheres podem jogar futebol no campo?, perguntou. Me senti num episódio de Handmaids Tale. Ela não perguntou se mulheres jogam, ela perguntou se mulheres PODEM jogar. Como se existisse uma polícia, uma lei que proibisse meninas de jogarem bola.

Me dói o coração, especialmente, porque aqui em casa vivemos celebrando a capacidade feminina de fazer todas as coisas. Temos todos esses livros moderninhos, Coisa de Menino e Coisa de Menina, Malala em quadrinhos, Histórias de Ninar para Garotas Rebeldes (1 e 2!), todos eles e, mesmo assim, mesmo com todas as conversas, com toda a afirmação, com todos os exemplos que gostamos de sublinhar todos os dias (Olha essa astronauta, Aurora! Olha essa cirurgiã! Olha ali aquela mulher que trabalhou na Nasa e ajudou a colocar um foguete na Lua!), mesmo com todo o incentivo para que ela não seja limitada só porque é uma menina, mesmo assim, minha filha me perguntou se mulheres PODEM jogar futebol.

Rapaz, alguma coisa está errada. E eu acho que só os livros não são o suficientes. E não são suficientes esses grupos de Facebook nem os vídeos motivacionais que viralizam e celebram a representatividade feminina, e não são suficientes as manifestações, cheias de palavras de ordem e cartazes PODEMOS SER O QUE QUEREMOS. Simplesmente não é o suficiente, enquanto todos os meninos só puderem fazer futebol, e todas as meninas só puderem fazer balé. Garotos vivem este mesmo dilema: experimente colocar uma roupa rosa no seu filho pra ver o que ele vai sofrer.

Aqui em casa falamos todos os dias que as meninas podem ser o que quiserem, lemos, vemos vídeos, ouvimos histórias incríveis, mas mesmo assim minha filha percebe, olhando ao redor, que mulheres não PODEM fazer algumas coisas.

Podem, filha! Claro que podem!, respondi. E corremos para o Youtube para que ela conhecesse a Marta, um gol atrás do outro, um drible impressionante atrás do outro, um lance inacreditável atrás do outro. Ela tem uns passos, disse a Aurora. E depois de 10 minutos compenetrada na edição eletrizante ao som de uma música eletrônica bagaceira, como são todos os vídeos de compilação de gols no YouTube, a Aurora me falou baixinho: "Eu queria ser ela".

Quero colocá-la em uma escola de futebol. Vamos descobrir se ela pode.

PIANGERS

09 DE JUNHO DE 2018
CARTA DA EDITORA

O primeiro amor


Você se lembra do seu primeiro amor? Se eu pensar em amor de adolescência como aquele que te leva a escrever páginas e páginas no diário, ter palpitação em um encontro casual e achar que o dia mais feliz da vida foi aquele em que vocês finalmente ficaram juntos, o meu foi lá pela oitava série. Eu achava ele lindo, misterioso, do tipo que fala pouco e diz tudo. Ficamos juntos uma única vez (talvez duas, e esta falha de memória chocaria a Patrícia de 14 anos). Depois, vieram alguns encontros e desencontros e nos perdemos de vista.

Anos e dois namorados depois, avistei-o um dia em uma rua movimentada. Não senti frio na barriga. Ele não lembrava em nada aquela imagem que eu tinha guardado comigo. Era um cara comum. (E, se tivesse me visto, provavelmente também pensaria o mesmo de mim.) Assim termina grande parte dos primeiros amores: melhor seria se ficassem apenas na lembrança. Como diz Martha Medeiros na coluna desta edição, "a paixão adora a noite e seus mistérios. Até que o dia amanhece".

Mas há quem reencontre seu primeiro amor e sinta aquela mesma vertigem. Foram histórias assim que a repórter Thamires Tancredi garimpou na reportagem de capa mais apaixonada de que tenho lembrança: sabe aqueles relacionamentos que mais parecem enredo de comédia romântica? Apresentamos três casais que viveram um amor de adolescência e, anos depois, deram-se uma nova chance. Prepare-se para se emocionar - Thamis, nossa gótica suave, estava só sorrisos pela redação.

Boa leitura! E aproveite este Dia dos Namorados como se fosse o primeiro!

CARTA DA EDITORA


09 DE JUNHO DE 2018
COM A PALAVRA

HÁ UMA GRADAÇÃO INFINITA ENTRE UMA GROSSERIA E UM ASSÉDIO GRAVE.

Uma fissura no consenso, um alerta contra os exageros, uma crítica ao puritanismo e ao "denuncismo". Para a escritora Catherine Millet, que participou da redação do chamado "Manifesto das Mulheres Francesas", esses eram os objetivos principais do documento - que acabou atraindo quase tanta atenção (e ódio) quanto o próprio movimento que criticava. O manifesto foi publicado no jornal francês Le Monde em janeiro, apenas três dias depois da histórica cerimônia do Globo de Ouro em que artistas se vestiram de preto em apoio ao movimento Me Too, que combate o assédio e o abuso sexual. Curadora e crítica de arte - e agora inimiga pública número 1 de parte do movimento feminista -, Millet, aos 70 anos, está acostumada a polêmicas. Em 2001, tornou-se mundialmente conhecida ao lançar o livro A Vida Sexual de Catherine M., em que compartilhava histórias íntimas. Ela é a conferencista do Fronteiras do Pensamento no próximo dia 2.

Qual será o tema de sua conferência em Porto Alegre?

Os organizadores do Fronteiras do Pensamento me propuseram como ponto de partida uma reflexão sobre o modo como as atuais guerras culturais podem afetar a democracia. Evidentemente, há também um interesse grande pelas questões envolvendo o feminismo, uma vez que eu e algumas amigas minhas marcamos posição, aqui na França, em relação a esse debate. Então, minha participação deve abordar esse assunto.

Como nasceu a mobilização que resultou no chamado "Manifesto das Mulheres Francesas"?

A ideia inicial não foi minha. Na verdade, a ideia partiu de uma amiga, a psicanalista e escritora Sarah Chiche. Ela ouviu, de sua editora, que meu livro A Vida Sexual de Catherine M., lançado na França em 2001, jamais poderia ser publicado nos dias de hoje. Isso a chocou muito, e Sarah me ligou para dizer que era preciso reagir a esse puritanismo que invadiu a sociedade. E foi assim que surgiu a ideia de um manifesto. Algumas amigas com as quais comentamos o assunto, nos dias seguintes, pensavam como nós e se dispuseram a participar da redação do manifesto. Começamos então a fazer circular uma versão inicial do texto, e cada uma acrescentou ou corrigiu o que achava necessário.

Mulheres, todas elas, ligadas de alguma forma ao ambiente intelectual.

Exatamente. As redatoras do manifesto são todas elas mulheres que escrevem, principalmente romancistas. Todas nós repassamos o texto final para mulheres próximas - muitas do meio artístico, no meu caso. E houve, também, algumas mulheres que não são intelectuais ou artistas, mas que se ofereceram para assinar conosco o manifesto.

No restante do mundo, o nome da atriz Catherine Deneuve acabou recebendo um destaque talvez demasiado...

No caso de Catherine Deneuve especificamente, fui eu que entrei em contato com sua secretária. Enviei o texto, e muito rapidamente ela me respondeu, dizendo que Catherine gostaria de assinar o manifesto.

Cinco meses depois do lançamento do manifesto, qual a sua avaliação do episódio? A senhora mudaria alguma coisa no texto?

Não mudaria nada. Penso que esse texto provocou reflexão, o que era desde o início o nosso objetivo. A maioria das críticas contra o manifesto se deteve no uso de alguns termos, mas seus efeitos foram extremamente positivos. Pode-se perceber isso analisando a reação da mídia nos dias que se seguiram. Percebe-se que houve uma maior prudência ao falar de algumas acusações, destacando que muitas delas apresentavam nuanças que não deveriam ser desconsideradas. Acredito que nós criamos uma rachadura no muro, pelo menos. Durante algumas semanas, tivemos a impressão de que esse discurso que na França chamamos de Balance Ton Porc (versão francesa do Me Too, algo como "enquadre seu porco chauvinista"), uma expressão horrível, havia se tornado hegemônico, não havia voz contrária. A reação hostil ao nosso manifesto comprova isso.

Vocês foram surpreendidas pela reação global imediata ao manifesto?

Completamente. Nós publicamos a carta no jornal Le Monde, imaginando que isso suscitaria alguma reação na França, mas jamais imaginamos que jornais do mundo inteiro iriam nos procurar. Foi uma loucura. No dia seguinte, havia pedidos de entrevista de jornais espanhóis, ingleses, brasileiros, chilenos, americanos. Foi inacreditável.

As signatárias do manifesto afirmam não se reconhecer no feminismo que, para além da denúncia do abuso de poder, assume as feições do ódio contra os homens e a sexualidade. A que a senhora atribuiria essa postura de parte das feministas?

Esse tipo de feminismo já existia nos anos 1960 e 1970. Havia, já naquela época, um feminismo que era bastante agressivo em relação aos homens. A ponto de, no início dos anos 2000, falarmos de um outro tipo de feminismo, que não fazia guerra aos homens. Havia mulheres, mais jovens do que eu e muito liberadas sexualmente, que defendiam um feminismo que não transformava os homens em inimigos. O que é muito lógico, porque, se você vive sua sexualidade intensamente, quer manter a relação com os homens. Falávamos então em feminismo pro sex. Sempre me interessei muito por essa vertente do feminismo. Agora, o que se passa hoje é que surgiu uma espécie de feminismo puritano. Eu ainda procuro uma explicação para isso. Acredito que provavelmente há várias explicações para esse fenômeno. Uma delas, penso, é que existe hoje na sociedade uma relação com o corpo que é mais narcisista do que era antes. Isso explica que uma jovem tocada por um homem em um metrô perceba esse gesto como uma ameaça tão grave a sua integridade. Para uma jovem criada de uma forma extremamente narcisista, que promove uma espécie de sacralização do corpo, esse contato é uma agressão terrível contra a sua pessoa. Para uma geração bem mais jovem do que eu, isso é terrível.

Qual seria, no seu ponto de vista, a diferença entre assédio (o manifesto fala em "liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual") e violência?

Há uma gradação quase infinita entre uma grosseria, um tipo de assédio menor, e um assédio realmente grave. Somos assediadas por um homem que nos faz propostas a cada vez que nos vê. Depois de receber alguns nãos, ele vai parar. Um homem que continua insistindo, apesar das negativas, está praticando uma violência moral, e pode ser o caso de prestar queixa na polícia. Isso eu compreendo e respeito. Por trás de tudo aquilo que chamamos de "assédio" há coisas bem diferentes, que vão da mera perturbação ao caso de polícia ou mesmo à violência física.

A senhora admite que movimentos como o Me Too apresentam pontos positivos - como, por exemplo, romper com o silêncio das mulheres diante de violências físicas ou morais cometidas pelos homens?

Não acho que o movimento seja de todo negativo. O que quisemos denunciar com nosso manifesto são os excessos do movimento, não o movimento em si. Penso que esse movimento é muito importante para as mulheres que, pelo tipo de contexto social em que estão inseridas, não têm acesso à palavra. É muito mais importante para a mulher que trabalha como balconista numa loja e que tem poucas possibilidades para se defender do que para uma atriz de Hollywood com educação e experiência de vida. Não é a mesma coisa para todas. Acho que as mulheres vivem em situações muito diferentes umas das outras.

A senhora acredita que mulheres de países desenvolvidos podem, de alguma forma, ajudar as mulheres de países como o Brasil, que registra índices chocantes de violência doméstica?

Uma das coisas que mais me chocaram no momento em que a repercussão ao manifesto era mais intensa é que vi jornais da França dando mais importância para as denúncias de cineastas, professoras universitárias, atrizes, estudantes do que para a utilização do estupro como arma de guerra na Síria, por exemplo. Lembro de ver muitas páginas de jornais em que o manifesto ganhou mais destaque do que as notícias sobre os estupros na Síria. Esse, para mim, é um grande risco: que problemas mais graves que acontecem no mundo com as mulheres sejam colocados em segundo plano. Eu falava de narcisismo. Penso que existe um tipo de narcisismo individual, na maneira como uma pessoa encara seu próprio corpo, e também um narcisismo cultural. O narcisismo que dá a entender que são mais importantes as coisas que acontecem a sua volta. É o narcisismo de uma sociedade que vive no conforto.

Para as mulheres francesas, qual seria a causa mais relevante atualmente?

A igualdade de salários, sem dúvida. Isso para mim é muito mais importante do que o fato de que alguns rapazes não se comportam bem com relação às moças (risos). É nisso que deveríamos concentrar a maior parte dos nossos esforços. A lei de igualdade salarial até existe na França, mas infelizmente não é respeitada.

A senhora tem criticado o crescente puritanismo da nossa época, mas, paradoxalmente, a cultura pop explora a sexualidade de forma ostensiva. De que maneira essas duas realidades se articulam?

Acredito que vivemos em uma época esquizofrênica. Por um lado, há uma exibição sexual permanente em todos os lugares, e o sexo é usado para vender todos os tipos de mercadoria. Ao mesmo tempo, vemos uma geração que sofre de uma certa inibição em relação ao sexo - talvez como reação à enorme pressão de ser obrigado a atender a determinado modelo imaginário de perfeição. A garota não se identifica com a beleza irretocável das modelos de revista. O garoto se pergunta se será tão performático quanto o ator que ele vê atuando nos filmes pornôs. Isso tudo acaba tendo efeito sobre os jovens mais suscetíveis e ingênuos.

Em 2018, estamos celebrando os 50 anos do Maio de 68. Qual o legado do movimento?

Eu tinha 20 anos em 1968 e já estava trabalhando, colaborando com revistas culturais. Infelizmente, não estava na universidade e não participei do movimento, mas morava no bairro de Paris onde aconteceram as manifestações. Acabei de escrever um artigo, encomendado pelo jornal Libération para uma edição sobre Maio de 68, em que falo sobre um episódio que aconteceu um ano antes, em março de 1967. Foi no campus de Nanterre - a universidade em que o movimento começaria, um ano depois. No campus de Nanterre, havia uma regra que proibia que as moças recebessem visitantes nos dormitórios. Os rapazes podiam receber as moças, mas não o contrário, o que é bizarro. E houve uma revolta enorme para mudar as regras. É engraçado lembrar que uma das motivações originais do Maio de 68 é que rapazes e moças queriam poder passar a noite juntos.

Maio de 68 teve um profundo impacto na forma como encaramos o sexo nos dias de hoje.

Para a minha geração, foi um momento de grande liberação em relação à educação que recebemos dos nossos pais. Houve uma verdadeira explosão. E, inclusive nos anos seguintes, pelo menos na França, houve desdobramentos, como o movimento de liberação feminina e os movimentos em favor dos direitos dos homossexuais. Maio de 68 deu início a uma tomada de consciência em relação à diversidade da sexualidade. Na França, por exemplo, o movimento Mariage Pour Tous (casamento para todos) para os homossexuais é consequência direta do Maio de 68.

Ainda assim, publicado mais de 30 anos depois, seu livro A Vida Sexual de Catherine M. provocou certa polêmica...

Não acho que houve polêmica. Houve, sim, alguns ataques ao livro, mas poucos, e não do grande público. Houve ataques de intelectuais como Jean Baudrillard (1929-2007), que na época era muito conhecido no Brasil. Baudrillard me ironizou e me chamou de "virgem louca". Mas tive muitos encontros com o público, nas livrarias, em vários países, e nunca sofri ataques do público. Mesmo sem terem vivido as mesmas experiências sexuais, as pessoas em geral aceitam que elas existam e sejam praticadas. Isso demonstra uma certa evolução da mentalidade.

No Brasil, temos assistido a uma certa associação entre a direita política e o conservadorismo dos costumes.

Na França, é diferente. A direita intervém pouco no campo dos costumes. A direita se preocupa com a imigração. Critica a União Europeia e se preocupa com a identidade cultural e nacional da França, mas não com as questões do corpo. O novo grupo que tem demandado censura é a esquerda, são as feministas. Se um filme representa a mulher de uma forma que não lhe convém, pede que o filme seja censurado ou que o quadro no museu não seja exibido porque a mulher é representada de determinada forma considerada degradante. São mulheres de esquerda que estão pedindo censura.

Qual a situação da esquerda atualmente em seu país?

Na França, a esquerda é praticamente inexistente neste momento. O Partido Socialista está derrotado, não há líder. O movimento La France Insoumise (França Insubmissa), de Jean-Luc Mélenchon, pertence a uma esquerda populista e demagógica da qual os intelectuais de esquerda desconfiam bastante. Há momentos em que Mélenchon e Marine Le Pen dizem as mesmas coisas sobre a Europa, defendendo o mesmo approach nacionalista. Muitos comentaristas políticos têm dito que, neste momento, os extremos estão se unindo.

Qual a sua opinião sobre o presidente Emmanuel Macron?

Estava bastante desconfiada no início do governo. Ele é um jovem muito ambicioso, e me perguntava se ele queria apenas satisfazer sua ambição ou se realmente tinha projetos. Neste momento, acredito que ele evoluiu. A França é um país esclerosado, paralisado em diferentes aspectos. E Macron chegou com sua juventude, sua impetuosidade, e começou a fazer as coisas se mexerem.

Como escritora, a senhora acredita que exista alguma particularidade na literatura feita por mulheres?

Eu me coloco muito essa questão. A única resposta que encontrei até agora é que me parece que as mulheres procuram muito a verdade quando escrevem. Falo por mim, mas não apenas. Para mim, o que caracteriza a literatura feita por mulheres hoje, na França - e há muitas escritoras excelentes na França -, é o esforço para descrever as coisas como elas realmente são, sem maquiar a realidade. Como se dissessem: "Bom, não desempenhamos um papel muito importante na literatura durante muito tempo e, agora que começamos, queremos mostrar o que pensamos sobre as coisas e como vemos a realidade".

CLÁUDIA LAITANO


09 DE JUNHO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

A INTUIÇÃO DE MINHA AVÓ

Se tivéssemos que pensar em cada ato para decidir se valeria a pena executá-lo, passaríamos a vida sem fazer nada. Por sorte, existem mecanismos adaptativos inconscientes que nos permitem tomar decisões rápidas, enquanto nosso cérebro está entretido no exercício de funções mais nobres.

Parte significativa da mente humana opera em modo automático, fora do alcance da percepção. Sem essa atividade silenciosa, teria sido impossível a sobrevivência de nossos ancestrais, obrigados a tomar decisões rápidas para obter alimentos, defender-se das feras, proteger as crianças e livrar-se de inimigos agressivos.

Como consequência desse longo processo evolutivo, tantas vezes encontramos dificuldade para explicar por que agimos daquela maneira. A incapacidade de observar nossa mente, enquanto executa suas mil e uma atividades, nos torna estranhos diante de nós mesmos.

Na verdade, somos inconscientes de nossa própria inconsciência.

Por isso, quando convidados a explicar nossas reações, quase nunca respondemos: "Não tenho a menor ideia". Ao contrário, vamos atrás de argumentos que façam sentido para justificá-las.

Num estudo publicado em 2005, pesquisadores suecos mostraram fotografias de duas mulheres para um grupo de homens. Cada um devia escolher a que mais o atraía. Num segundo tempo, exibiram novamente as fotos e pediram que eles explicassem a razão da preferência. Para alguns, foi exibida a foto da mulher realmente selecionada; para outros, a da que haviam considerado menos atraente.

Para surpresa geral, apenas um em cada quatro participantes percebeu estar diante da foto errada. Os demais, sem notar a troca, justificaram com argumentos lógicos a razão da escolha. Os pesquisadores não encontraram diferenças significativas entre os motivos apresentados pelos que analisaram a foto certa e os daqueles que avaliaram a falsa.

A psicologia clássica considera que, em qualquer tomada de decisão, as informações disponíveis seriam processadas numa fase de deliberação, com a finalidade de selecionar a opção mais sensata. Psicólogos da Universidade de Pádua, na Itália, acabam de publicar na revista Science um estudo que contesta essa hipótese.

Para avaliar os mecanismos envolvidos nas tomadas de decisão, os autores estudaram as diferenças existentes entre as associações mentais automáticas e os conceitos elaborados de forma consciente diante de um mesmo fato: estar a favor ou contra a controversa ampliação de uma base militar americana na cidade de Vicenza.

Associações mentais automáticas foram definidas como aquelas que vêm à mente sem haver intenção, difíceis de controlar, e que podem ocorrer sem que tenhamos consciência delas.

Com a ajuda da informática, os autores avaliaram as diferenças entre as atitudes associadas ao automatismo e aquelas tomadas como fruto do pensamento racional, elaborado nos domínios do consciente.

Os resultados revelaram existir divergências entre os indivíduos que, de início, se declararam a favor ou contra a ampliação, e os outros, indecisos.

A aplicação dos testes de associações mentais automáticas entre os indecisos deixou claro ser possível antecipar a decisão que tomariam no final. O indeciso já sabe o que fará, mesmo que se considere conscientemente confuso e incapaz de decidir.

Imagine, leitor, uma eleição que ocorrerá dentro de dois meses, na qual você não saiba em quem votar: A ou B. Você ficará atento a tudo que for dito e escrito a respeito de cada um. Depois de dois meses de análise crítica, você chegará à conclusão de que o candidato B merece seu voto.

Você concluirá que a opção foi mediada por mecanismos racionais, conscientes. Errado, dizem os novos estudos. Se você tivesse sido submetido a testes de associação automática dois meses antes, já seria possível prever que seu voto iria para B.

E o que dizer dos argumentos a favor ou contra cada candidato avaliados com tanto rigor? Só serviram para justificar de forma lógica uma preferência já definida por processos mentais automáticos, dependentes do repertório de suas vivências anteriores.

Associações mentais automáticas têm o poder de distorcer as informações novas, de modo que elas se adaptem à escolha já realizada, sem que tenhamos consciência delas.

Não seria isso que minha avó chamava de intuição?

drauziovarella.com.br - DRAUZIO VARELLA



09 DE JUNHO DE 2018
J.J. CAMARGO

COMPAIXÃO NÃO TEM CHIP

Vivemos tempos complicados em pedagogia, pois as práticas tradicionais de ensino se tornaram tão rapidamente obsoletas que um número significativo de alunos considera, com justiça, que muitos conteúdos, tímidos se comparados com a internet, funcionam mesmo é como soníferos.

Muitos professores lamentam a crescente falta de interesse dos alunos e insistem em formas de ensino ultrapassadas, do tempo em que o conhecimento era entregue de bandeja, ignorando que se a informação não for energizada pela busca do entendimento, ela será varrida da memória com uma velocidade deprimente, mesmo que o cérebro receptor seja brilhante e a aula tenha sido preparada com dedicação.

A insistência com os métodos arcaicos abriu caminho para o ensino a distância, porque, afinal, se a escola se omite de ensinar o aluno a pensar e joga informações a esmo, o computador pode fazer o mesmo com menor custo e desgaste.

As escolas médicas, porque trabalham com conteúdos técnicos (que estão nos livros com uma abundância que o professor não consegue competir), precisam acordar para uma realidade: o estudante formado assim, com preocupação exclusiva em diagnóstico e tratamento, mas desprovido de qualificação humanística, será mais adiante um joguete desqualificado no mercado competitivo da medicina moderna.

E é exatamente aí que a doutrina presencial do professor deve fazer a diferença, ao transmitir vivências e lições que nenhum editor conseguiria incluir no texto técnico.

Naquela tarde, a aula era sobre tumores da traqueia, quando percebi que esse assunto, que me encanta, é de uma aridez insuportável para quem não é, nem nunca será, especialista para se interessar por uma neoplasia que é menos de 1% dos tumores do aparelho respiratório.

Então, tive uma ideia: ao apresentar o caso seguinte, disse que paciente tinha sido operado pelo... pelo... Robson, um aluno sonolento da primeira fila, que acordou imediatamente, e era pai do... do... William, que cochilava na outra ponta e acordou com a notícia.

Com todos despertados pelo improviso insólito, pedi que o Robson contasse ao William que o pai dele tinha morrido na cirurgia. A primeira atitude dos dois demonstrou que ambos tinham entrado na história: puseram-se em pé, porque coisas importantes não podem ser anunciadas sem a solenidade de uma postura respeitosa. No final, depois do sofrimento inútil de tentar encontrar um jeito doce de dar a notícia mais amarga, se abraçaram. E, neste momento, não era possível distinguir quem era o "doutor". Eles tinham sido nivelados pelo sofrimento da perda e estavam despertando para o significado de ser médico.

Como se pode presumir, a comunicação da morte, por tudo o que encerra de expectativa e sepulta de esperanças, é uma das tarefas mais difíceis que o médico, vencido na sua pretensão máxima de preservar a vida, deve enfrentar com a noção clara que a sua atitude será arquivada no sentimento daquela família como um modelo de compaixão ou de crueldade.

Vale lembrar que, muitas vezes, todas as palavras podem ser substituídas pela solidariedade de um abraço. E isto, que não cabe num programa de computador, precisa ser ensinado por quem já chorou e abraçou muitas vezes. E sofreu em todas elas, como se cada uma fosse a primeira.

jjcamargo.vida@gmail.com



09 DE JUNHO DE 2018

DAVID COIMBRA



O príncipe manda o número da conta bancária


Fernando Henrique Cardoso era chamado de "o príncipe dos sociólogos". O Brasil tem afeição por títulos nobiliárquicos, gosto adquirido no nosso longo período monarquista. Se você é poderoso, você é um barão; se é o melhor, como Pelé, é o rei; se tem elegância, é um príncipe.

Nelson Rodrigues chamava o meia Didi, do Botafogo, de Príncipe Etíope, porque Didi era dono de um futebol clássico, jogava de cabeça erguida e se orgulhava de jamais ter pisado em cima da bola.

FHC seria, assim, um príncipe na sociologia e na política. E, de fato, ele se comporta principescamente - tem fala mansa, deu aula na Sorbonne, escreve livros acadêmicos, faz pose de analista das nossas mazelas mundanas.

As investigações da Lava-Jato, agora, revelaram um pequeno pedaço da intimidade do príncipe. É um pedaço nada nobre. Na verdade, Fernando Henrique achaca empresários. Os textos dos e-mails que ele enviou para Marcelo Odebrecht são do nível do escroque vulgar, do apontador de jogo do bicho. Uma das correspondências Fernando Henrique encerra observando, com a maior desfaçatez: "Envio abaixo os dados bancários". Poderia ter enviado um boleto, que não seria mais direto. Em outro e-mail, no qual ele também pratica essa espécie de extorsão camarada, o título é: "O de sempre". Quer dizer: Fernando Henrique estava "sempre" mendigando a Marcelo Odebrecht.

Fiquei imaginando o que Marcelo Odebrecht devia dizer para seus assessores quando via piscar em sua caixa postal mais um e-mail do príncipe Fernando Henrique Cardoso:

- Aí vem esse cara outra vez pedir o meu dinheiro...

Se o PSDB tivesse defensores, além do Gilmar Mendes, alguém poderia alegar que isso não é ilegal, até porque Fernando Henrique foi esbulhar Marcelo Odebrecht depois de ter saído do governo.

Não é ilegal?

Deveria ser.

Afinal, por que Marcelo Odebrecht daria dinheiro a Fernando Henrique? Por simpatia ideológica? Se fosse isso, tudo bem, mas não é. Ao contrário, Marcelo Odebrecht deu ainda mais dinheiro ao PT, que é adversário do partido de Fernando Henrique.

Ora, você sabe, eu sei, o Brasil inteiro sabe que Marcelo Odebrecht e outros tantos empresários financiam políticos por aquilo que Brizola e seus bajuladores chamam de "interésses". É uma troca de favores. O empresário compra o político com dinheiro privado e recebe a contrapartida em dinheiro público, geralmente fazendo obras que custam muito mais do que deveriam custar. Em miúdos: o dinheiro que Odebrecht repassou para o príncipe certamente saiu da sua carteira, espoliado leitor.

Algum gaiato perguntará: "E isso tudo te surpreende?".

Respondo: claro que não. Nós todos sabemos, há muito tempo, como funcionam as relações de poder no Brasil. O que não tínhamos ideia era do quanto é escancarada essa promiscuidade entre políticos e empreiteiros, a ponto de um ex-presidente da República mandar por e-mail o número da conta bancária para o empresário fazer a sua "doação". E isso que se trata do professor da Sorbonne, do intelectual, do escritor de livros, do sociólogo. Do príncipe. Francamente, nós não somos mais plebeus. Somos os bobos da corte.

DAVID COIMBRA


09 DE JUNHO DE 2018

FEIRA DO LIVRO

Prefeitura admite erro em boleto e altera sistema


DOCUMENTO ENVIADO À ORGANIZAÇÃO DO EVENTO cobrava quase R$ 180 mil por uso de praça em Porto Alegre. Executivo afirma que não tinha intenção de exigir esse valor


Como resultado da crise de relações públicas instalada desde quarta-feira, quando foi tornado público um boleto emitido pela prefeitura da Capital cobrando quase R$ 180 mil da organização da Feira do Livro de Porto Alegre para a realização do evento, um dos mais tradicionais do Estado, o órgão responsável pela emissão da cobrança decidiu alterar o próprio sistema para evitar a repetição de episódio semelhante.

- Estamos revisando o processo. Não era adequada, de fato, a forma como vínhamos fazendo - reconhece o coordenador do Escritório de Eventos de Porto Alegre, Antônio Gornatti.

A prefeitura, por meio do Escritório de Eventos, um órgão ligado à Secretaria Municipal de Direito Econômico (SMDE), havia emitido um boleto cobrando antecipadamente da Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL) o valor de R$ 179.849,60, a serem pagos até 28 de setembro, pelo uso da Praça da Alfândega para a realização da Feira deste ano. A própria CRL foi pega de surpresa pelo recebimento do boleto.

Gornatti afirma, no entanto, que a prefeitura não tinha a intenção de cobrar todo esse valor da CRL, e que a soma final deve ficar perto dos R$ 5 mil - parecido com taxas que a Câmara já pagou em outras ocasiões.

- O que sempre foi cobrado pela prefeitura foi uma taxa de recolhimento da Smic (antiga Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio). É um valor simbólico, similar ao cobrado aos ambulantes. Como vendemos livros na Feira, é cobrada essa taxa de arrecadação municipal, que tem amparo legal. Sempre pagamos, mas o valor era baixo - conta o presidente da CRL, Isatir Bottin Filho.

Conforme Gornatti, o centro do equívoco está no Sistema Eletrônico de Informações, ferramenta que dispara e-mails para todos os envolvidos sempre que ocorre uma nova movimentação no processo. No caso dos R$ 180 mil, o Escritório de Eventos apenas reunia, segundo ele, as primeiras informações de orçamento. Tratava-se de um valor que ele chama de "cru":

- Estavam incluídos 67 dias de evento, embora a Feira do Livro só dure 18. Tem outros 25 para montar e mais 25 para desmontar. Também estavam considerados 621 metros quadrados, que será a área total ocupada pela feira, mas, no final, a gente não cobra pela área total, e sim pela área que cada barraquinha ocupa, bem mais barato.

O equívoco estava na comunicação com os produtores de eventos. Esse primeiro orçamento, no sistema do Escritório de Eventos, vem sendo enviado para todos na forma de um boleto - com logotipo da prefeitura, código de barras e data para pagamento.

- Já licenciamos eventos, aqui no escritório, que chegaram a gerar 15 ou 20 boletos. Porque, conforme o orçamento tramitava pelos setores da prefeitura, passando por diversas revisões de valores, um novo documento era emitido - conta Antônio Gornatti.

CÂMARA DO LIVRO QUER AUDIÊNCIA COM O PREFEITO

A CRL entrou com o pedido de uso da praça, e o processo seguiu as etapas de praxe, mas sem que a Câmara fosse chamada para discutir. Bottin Filho afirma que nem ele nem a CRL foram informados dos meandros desse processo, e o caráter oficial de um documento com essas características, além do valor extremamente alto, despertou dúvidas e consternação.

- Não temos nem como contabilizar isso jurídica e contabilmente, não está previsto no projeto. Teria que fazer uma vaquinha, não sei de que forma. Conversei com o prefeito, e ele me disse que tinha sido um engano, um erro do gabinete fazer esse boleto. Um boleto, ao meu ver, deveria ser a última coisa do processo.

Devido à magnitude da confusão e à ampla reação de nomes ligados à cultura, o sistema vai mudar, e não se usará mais boleto para apresentar orçamento. O sistema será reprogramado para emitir uma planilha.

Bottin Filho diz que pretende solicitar uma audiência com o prefeito e com o Escritório de Eventos nos próximos dias para discutir o caso.

sexta-feira, 8 de junho de 2018


Balé em cena: Festival Internacional de Dança de Porto Alegre começa nesta terça-feira 

Evento terá mais de mil bailarinos de diferentes nacionalidades participando da Mostra Competitiva DANIEL MARTINS/DIVULGAÇÃO/JC Frederico Engel A capital gaúcha ganha mais um evento para a sua agenda cultural. Realizado pelo Ballet Vera Bublitz, o 1º Festival Internacional de Dança de Porto Alegre (Fidpoa) abre um novo espaço para os apreciadores da dança assistirem belas performances enquanto profissionais se apresentarem no histórico e célebre palco do Theatro São Pedro (Praça Mal. 

Deodoro, s/nº). Idealizado por Vera Bublitz, diretora-geral, e Carlla Bublitz, diretora artística, o festival contará com mais de mil bailarinos de diferentes nacionalidades que dançam a partir de quarta-feira (6), até domingo (10), na Mostra Competitiva, para um corpo de jurados de seis países: Alemanha, Brasil, Estados Unidos, Itália, Suíça e Uruguai. "É importante termos profissionais de fora do País para avaliação, ainda mais pela experiência e oportunidades que eles podem oferecer, como bolsas de estudo para dançar fora do Brasil", destaca Carlla. Ela acrescenta que a participação de jurados brasileiros também é fundamental. 

O Fidpoa contará com uma participação especial da bailarina Ana Botafogo, que estará apenas nesta terça-feira (5) autografando o livro Ana Botafogo: Na magia do palco, da bailarina e crítica de dança Suzana Braga, falecida em setembro de 2014. A publicação é uma reedição especial atualizada da obra, com a sessão de autógrafos ocorrendo simultaneamente à exposição Orbitações, do jornalista e fotógrafo Joel Gehlen, que permanece em cartaz até domingo. "Ela deixou um legado, se trata de uma pessoa imortal. 

A Suzana escreveu a nossa história, ela não deixou a história morrer", comenta a diretora artística. A abertura do festival fica a cargo do Ballet Gisele, de Adolph Adam, às 20h30min, apresentando uma obra clássica que caracteriza a era romântica. Dançando os primeiros papéis estão os bailarinos convidados do Ballet Nacional Sodre/BNS, do Uruguai: Marta Bayona - ex-aluna do Ballet Vera Bublitz, que já desempenhou papéis principais e de solista - e Gustavo Carvalho, primeiro bailarino do BNS. O corpo de baile será formado pelos alunos do Ballet Vera Bublitz. 

A Mostra Competitiva terá início amanhã, às 15h, com duas sessões separadas por um intervalo. Antes, a partir das 9h, os bailarinos têm a oportunidade de ensaiar e se ambientar mais com o palco do teatro. Além das apresentações, os jurados têm outras tarefas que fazem parte do Fidpoa, como as oficinas que acontecem na Casa de Cultura Mario Quintana, das 9h às 18h. "Haverá uma aula de história da dança, com a bailarina, professora e pesquisadora Eliana Caminada. 

Também estará presente a representante do Youth America Grand Prix em Porto Alegre", explica Carlla. Como o Ballet Vera Bublitz é parceiro do YAGP, poderá haver selecionados diretamente para o concurso e que disputariam a final em Nova Iorque. 


Carlla Bublitz é a diretora artística do evento. Foto: Luiza Prado/JC E não será apenas nos espaços de arte que o festival estará presente. Em parceria com o Rua da Praia Shopping, haverá uma Feira Fidpoa que oferecerá diferentes produtos relacionados ao balé. 

"A economia da cidade e especialmente a do Centro estará movimentada, já que além da feira, a maioria dos participantes ficará hospedada nos hotéis da rede Master e Cosmopolitan", aponta. Carlla enfrentou dificuldades com a realização da atração. Com uma vasta experiência de participar em outros eventos de dança, este é o primeiro em que ela é a principal coordenadora. "Comecei o planejamento há dois anos, junto à minha mãe, mas tenho apanhado um pouco. É bem diferente fazer parte de um festival em comparação com organizar um", afirma. 

Ela reforça algumas características que o 1º Fidpoa busca assumir: "Valorizamos o balé clássico livre e de repertório, o jazz e a dança contemporânea, técnicas necessárias para a entrada do bailarino em qualquer grande companhia do mundo. Queremos elevar o nível de competitividade e oferecer um evento de alto nível para o público e para os participantes, para que todos saiam de lá mais qualificados". Para 2019, será celebrado junto à segunda edição do Fidpoa os 40 anos do Ballet Vera Bublitz. 

O balé La Bayadere já está confirmado, com a apresentação mudando para o Teatro do Sesi, devido ao maior espaço do palco que comporta melhor os três atos e cinco cenas da apresentação. Restam poucos ingressos à venda, com valores entre R$ 60,00 e R$ 120,00 para a abertura, R$ 20,00 na Mostra Competitiva e R$ 60,00 no encerramento. 

Jornal do Comércio (http://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2018/06/cultura/630740-bale-em-cena-festival-internacional-de-danca-de-porto-alegre-comeca-nesta-terca-feira.html)



Prefeitura de Porto Alegre cobra R$ 180 mil para realização da Feira do Livro 


Para a feira deste ano, a Câmara Rio-Grandense do Livro conta com R$ 1,2 milhão MARCO QUINTANA/JC Cristiano Vieira e Ricardo Gruner Um boleto no valor de R$ 179.849,60 provocou, nesta quinta-feira (7), um susto na comunidade literária gaúcha. O valor, emitido pelo Escritório de Eventos de Porto Alegre em nome da Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL), é referente à utilização da Praça da Alfândega para a realização da próxima Feira do Livro, de 1 a 18 de novembro deste ano. 

O presidente da CRL, Isatir Bottin Filho, demonstrou surpresa: "Sabíamos que seria cobrada alguma taxa, mas nunca imaginamos um valor tão alto. Nem temos previsão no nosso orçamento", comentou ele. Para a feira deste ano, a CRL conta com R$ 1,2 milhão (via Lei Rouanet) e R$ 600 mil (Lei Estadual de Incentivo à Cultura). De acordo com Bottin Filho, a intenção é marcar uma reunião com o prefeito Nelson Marchezan Jr. para discutir a questão. 

"Não para dizer que não vai haver feira, mas precisamos achar uma saída", destacou ele. Sobre a Feira do Livro ocorrer em outro lugar que não a Praça da Alfândega, onde acontece desde 1955, Bottin Filho diz que é cedo para pensar nisto e seria uma medida radical. "A feira é um patrimônio da cidade, movimenta a economia, a cultura, o turismo. Esperamos sempre apoio do poder municipal", esclarece. Desde 2016, com um último repasse de R$ 100 mil, a prefeitura deixou de apoiar financeiramente o evento. 

Em nota liberada no fim da tarde, o município afirmou que o processo seguiu o rito normal para utilizar espaços públicos, que o valor emitido é parte do processo e que ainda não é uma taxa definitiva. Conforme a prefeitura, a cobrança por utilização de espaços públicos decorre do Decreto Municipal 17.986/2012. 

Ainda segundo o texto, "eventos como Acampamento Farroupilha, Carnaval de Blocos e Bienal do Mercosul também se adequam à legislação". 
Jornal do Comércio http://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/cultura/2018/06/631799-prefeitura-de-porto-alegre-cobra-r-180-mil-para-realizacao-da-feira-do-livro.html)

08 DE JUNHO DE 2018
DAVID COIMBRA


Grêmio pode perder a chance de fazer história

Admiro os homens que acreditam na boa sorte. Isso faz com que se sintam especiais. É o que lhes dá confiança. Que lhes dá solidez. Que, muitas vezes, torna-os grandes.

Os grandes homens têm esse predicado. Um dos maiores de todos os tempos, Júlio César, cevava a certeza absoluta de que era abençoado pelos deuses. Certa vez, precisava atravessar um mar escuro e tempestuoso dentro de um pequeno bote. No meio do trajeto, os remadores olharam apavorados para as ondas gigantescas e ele, sorrindo, os tranquilizou:

- Não tenham medo: vocês estão conduzindo César e a sua fortuna.

Fortuna, no caso, não no sentido da riqueza, mas no da sorte.

Os remadores ficaram encantados com toda aquela segurança e isso lhes infundiu força nos braços. Mas o bote acabou se espatifando de encontro aos recifes e César teve de adiar a viagem.

Mesmo assim, ele jamais deixou de apostar alto na sorte, tanto que uma de suas frases mais famosas é, exatamente, "Alea jacta est". Ou: "A sorte está lançada".

Renato é dotado dessa qualidade. Ele acredita ser um predestinado, bate no peito e enfrenta de queixo alto os desafios. Isso é ótimo, a não ser que a crença se sobreponha à razão.

Por exemplo: Renato acredita, e levou todo o Grêmio a acreditar também, que ele tem a capacidade de recuperar jogadores. E é verdade, mas nem sempre. Há quem seja irrecuperável porque não pode e há quem seja irrecuperável porque não quer. Consumir uma dúzia de jogos em uma esperança de recuperação é punir o time durante esse tempo, porque, se já é difícil ganhar com 11 jogadores em campo, imagina com 10. Melhor que a recuperação seja feita à sombra.

Outro mito que se formou no Grêmio, graças à inquestionável sintonia de Renato com os jogadores, é de que ele é uma espécie de jardineiro encantado: o jogador em botão, uma vez tocado pela mão santa de Renato, desabrocha gloriosamente. Talvez tenha sido por isso que o Grêmio se contentou em contratar apenas jogadores medianos neste ano. Resultado: reservas medianos.

São erros. Mesmo os grandes erram. Mas os grandes, se são realmente grandes, corrigem-se. E melhoram.

O Grêmio contou com a grandeza de Renato e de Bolzan para montar um time que entrará para a história do futebol brasileiro. Mais da metade desse time é do quilate de seleção. Mas é só um time, não um grupo. Quando perde um único jogador, essa equipe tão ajustada fica desasada, perde um pouco da graça, caminha torta para um lado.

Escrevo a respeito porque temo que o Grêmio desperdice a chance de fazer algo mais do que grandioso neste ano, por confiar em demasia na mercê do imponderável. Está na hora do lance de ousadia. Está na hora do investimento. Às vezes, até a sorte precisa de um pouco de ajuda.

DAVID COIMBRA


08 DE JUNHO DE 2018
EDUCAÇÃO

Rafael conquistou mais de 20 universidades do Exterior

ALUNO GAÚCHO DE ESCOLA PÚBLICA conta como trocou o futebol pelos estudos para ser diplomata
Se perguntarem a um menino o que quer ser quando crescer, a resposta provavelmente será "jogador de futebol". Aos 18 anos, Rafael Zimmer já tinha meio caminho andado quando trocou a bola pelos livros em nome do sonho de ser diplomata. Estava no time sub-20 do Clube Esportivo Aimoré, de São Leopoldo. Três anos e incontáveis horas de estudo depois, o estudante de escola pública foi aprovado em mais de 20 universidades fora do Brasil. Agora, quer fazer um canal no YouTube para mostrar a todos que é possível.

Natural de Bom Princípio, a 76 quilômetros de Porto Alegre, o jovem tinha ambições que extrapolavam os limites do município de 14 mil habitantes. Depois de Rafael terminar o Ensino Médio, resolveu estudar inglês em casa, sozinho, na internet. Fez 94 pontos no Toefl - exame reconhecido internacionalmente que atesta o conhecimento da língua. A nota é considerada alta até mesmo para quem tem aulas regulares do idioma desde criança.

Vencida a primeira etapa, dedicou-se aos processos de admissão das universidades. A rotina de estudos durava, em média, oito horas diárias. Dentre as instituições que o aceitaram, escolheu a americana Georgetown, considerada uma das melhores do mundo no setor. Vai cursar Relações Internacionais no campus de Doha, no Catar, com bolsa integral. Rafael diz que não tem a receita para o sucesso, mas sabe qual é o ingrediente principal:

- Foco. Você tem que saber onde quer chegar, ter um objetivo e focar nele. Eu sempre dou o meu melhor em tudo o que eu faço. Não acho que eu tenho uma inteligência fora do comum, mas corro atrás do que quero.

Para entrar em uma universidade dos EUA, além de fazer uma prova, é preciso apresentar projetos extracurriculares, fazer uma entrevista na língua local e ter uma boa carta de recomendação. A avaliação americana equivalente ao Enem é chamada de SAT, que em livre tradução significa Teste de Aptidão Escolar. Rafael conseguiu pontuar 1.230, uma nota considerada acima da média. Foram três anos de dedicação exclusiva ao sonho.

Além de bom aluno, Rafael também é atleta. Antes de jogar no Aimoré, passou pelas categorias de base dos times E.C Novo Hamburgo, S.C Americano e 15 de Novembro. A habilidade contou pontos para as aprovações. Foi no campo que aprendeu a ter disciplina. O estudante defende que o esporte não precisa ser inimigo das boas notas:

- O futebol me deu uma base. Eu aprendi com ele a ser competitivo, não com os outros, mas comigo mesmo. Até quando jogava, sempre tentei gabaritar as provas na escola.

AS CRÍTICAS E O PREÇO DO EMPENHO

Mas a ideia de estudar fora não foi aceita com tranquilidade na cidade interiorana. O padrão é que estudantes com boas notas prestem vestibular ao fim do Ensino Médio para logo entrarem em uma faculdade - de preferência, perto de casa. A mãe, Marli, lembra que ouviu muitas críticas por permitir que o filho se dedicasse a um projeto com resultados incertos. Tudo isso foi apenas um incentivo a mais.

- As pessoas diziam que eu era louca, mas eu sempre acreditei nele. Acho que a gente tem que deixar os filhos fazerem o próprio caminho, e não o que a gente quer - conta Marli.

Tamanho empenho também teve seu preço. Como os treinos esportivos tiveram de ser trocados por dias e noites debruçado sobre cadernos, Rafael perdeu massa muscular. Mais magro, não sentia vontade de ver os amigos. Nos períodos de maior estresse, chegou até a perder cabelo. Com as cartas de aprovação em mãos, afirma, sem hesitar:

- Valeu a pena.

A ideia do estudante agora é criar um canal no YouTube para democratizar as informações e ajudar alunos de baixa renda a obterem bolsas sem o intermédio de agências, que cobram valores altos pelo serviço. Já conseguiu convencer os futuros professores. A frase final da redação que Rafael apresentou à Georgetown University mostra que seu futuro promete: "Não vou deixar o meu país em silêncio".

sábado, 19 de maio de 2018


19 DE MAIO DE 2018
PIANGERS
Emoções


Eu estava sentado ao lado da minha filha de 11 anos na sala do cinema pra assistir à estreia de Divertidamente, aquele filme da Pixar que se passa dentro de uma menina de 11 anos, morena de olhos grandes, igualzinha à minha filha. No filme, a menina passa pelo furacão que é a pré-adolescência: tristeza por ter mudado de cidade, raiva dos pais, medo do ridículo, nojo da casa nova. As emoções que governam essa mesa de comando dentro do nosso corpo. 


Mais a alegria, que passa o filme todo tentando salvar memórias boas da menina. Minha filha gostou do filme, mas posso garantir que teria gostado muito mais se não tivesse que passar a sessão inteira me pedindo para parar de chorar. Pai, por que você está chorando tanto com esse filme?, ela me perguntava. Não sei!, eu respondia. Mas é claro que eu sabia. 


  
Eu estava chorando porque estava vendo na tela minha filha com tristezas diversas, raivas secretas, medo do mundo. Eu estava vendo minha filha como um ser humano, não mais como aquela menininha que a gente cuidou até então. A gente cuida do nosso filho por um tempo e por um tempo ele é uma mistura do pai e da mãe, alguma coisa de avó. Mas chega uma hora em que vai aparecendo outra coisa. Vai aparecendo ele mesmo. Aquele ali é nosso filho virando gente. Nosso filho virando gente grande. E dá medo porque eu conheço um monte de crianças legais, mas gente grande legal conheço só uma dúzia. 


  
Porque gente grande tem todos esses sentimentos escondidos. A gente aprendeu a ser fingido: guardar raiva, nojo, tristeza e medo. Expressar alegria apenas de vez em quando. Que se não descobrem que a gente está feliz demais. E isso pode ser usado contra a gente. E ser vulnerável é ser fraco. Eu sou forte. Eu não sinto nada. 


  
Como a gente quer que nossos filhos se expressem com clareza se a gente mesmo não se expressa? Se a gente mesmo não sabe o que sente? Ao longo da vida somos levados a esconder os nossos sentimentos, e de tanto esconder vamos esquecendo o que sentimos. Isso é raiva ou frustração? Isso é impaciência ou infelicidade? Isso é euforia ou alegria? Isso é amor por outra pessoa ou só por mim mesmo? 


  
Acho que é por isso que eu chorava no escuro do cinema. Porque via minha filha crescendo, aquela menininha que expressa todos os sentimentos, meio sem filtro, logo vai estar guardando as emoções, misturando os sentimentos, confundindo tudo. Como o pai, vai precisar de muita terapia. E de alguns filmes da Pixar, pra chorar escondida no cinema.
PIANGERS

19 DE MAIO DE 2018

CARPINEJAR

Amar é também ser um fantasma

Gentileza no amor é também não chamar atenção.

Você pode provar que ama trazendo café na cama ou acordando a sua esposa com um ataque de beijos. Mas a maior demonstração é permitir que a sua companhia durma no final de semana. Ter consciência de que ela só pode esticar os horários no sábado e no domingo, quando não é obrigada a bater o cartão e despertar cedo para o trabalho. Preservar o sono da mulher lhe trará recompensas da cumplicidade e do bom humor. Não incomodar é o primeiro passo para o altar. 


  
Se não sabe fazer massagem, pelo menos deixe a mulher relaxar sozinha nas cobertas e o tempo amansar as suas costas. 


  
Relacionamentos terminam justamente porque não há respeito ao descanso sagrado. Parece bobagem, mas não poder dormir quando se quer cria uma antipatia fatal. Sempre haverá no par amoroso o que acorda cedo nas folgas e o que acorda tarde. Impor o seu ritmo e realizar bagunça para aproveitar o dia cedo como casal vai gerando a inimizade dos travesseiros.
Casamento é aprender a ser fantasma de manhã: andar na ponta dos pés para não acordar o outro e pegar as roupas sem fazer barulho. 


  
Estou virando craque em sumir. Educação é não aparecer. Não uso a lanterna do celular, organizo as mudas dos trajes na cadeira e encontro um jeito de cofre para driblar a ferrugem das dobradiças da porta. Qualquer baque ou barulho, ela acordará. Seu sono é leve. Empreendo uma espécie de missão secreta e uso o banheiro da visita para evitar o alarme da descarga. 


  
Eu me treinei para estar presente quando a esposa está de olhos abertos e a evaporar quando está de olhos fechados. No amor, para não enjoar, é fundamental experimentar todos os estados da vigília: sólida, líquida e gasosa. 


  
Porque é emocionante ser procurado pela casa assim que ela acorda. Eu me sinto um morto ressuscitado. Ela grita o meu nome pelos corredores. Como se eu tivesse fugido da relação. Passo a ser caçado pelos aposentos. Nem respondo de imediato para aumentar o suspense. Quando ela me acha, vejo a sua gratidão no abraço apertado de pijama e no seu beijo absolutamente tranquilo.

E o mais prazeroso, além de sua disposição alegre, é não precisar arrumar a cama. O último que acorda é o que sempre deve ajeitar o quarto.
CARPINEJAR