sábado, 22 de setembro de 2018



22 DE SETEMBRO DE 2018
LEANDRO KARNAL - Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

VÁ COM DEUS

Jovem e ainda inseguro com os desafios críticos do amadurecimento, comecei a anunciar ao mundo que estava me tornando ateu. Naquela etapa, o ateísmo era muito mais o enfrentamento da tradição. Uns aderiam ao rock, outros faziam tatuagem, alguns fumavam maconha; eu, avesso aos deleites citados, estava virando ateu.

A insegurança é prima-irmã do discurso catequético. Minha piedosa avó recomendava: "Vá com Deus". E eu redarguia, arrogante: "Vou de Varig, vó". Hoje eu seria incapaz de responder assim. A pessoa que me desejou "fique com Deus", "vá com Deus" etc. está transmitindo um gesto de carinho dentro do seu código pessoal de crenças. Eu sorriria agradecido e pronto. Entendo que meu ateísmo é exclusivamente pessoal, fruto de experiências e leituras que só têm significado para mim e responde a questões limitadas ao meu universo. Jamais faria palestra em defesa do ateísmo, pois nunca compartilhei da ideia de que não crer em forças superiores, entidades criadoras, sentidos absolutos ou em um motor original do qual emanaria todo o movimento do universo seja algo absolutamente meu e não melhora ou piora o mundo.

Ateus e religiosos podem ser éticos ou canalhas, como encontrei muitos em todas as torcidas físicas e metafísicas. Sou contra a intolerância dos sistemas que querem impor fé a todos ou dos regimes que tornaram o ateísmo obrigatório e perseguiram religiosos como a URSS ou o México, especialmente após 1917. Gente autoritária é somente gente idiota, cheirando a incenso ou a razões de Estado. Gente autoritária não tem Deus ou não Deus, possui apenas um projeto de poder como meta. Acima de tudo, fundamentalistas da religião ou do ateísmo são chatos, muito chatos, insuportáveis na sua missão de levar a luz ao mundo, ou seja, mudar todos para que fiquem a sua imagem e semelhança. Se você segue o pastafarianismo, divertida crença contemporânea, nada altera sua obrigação de lutar contra o racismo ou a misoginia. Da mesma forma, se é um leitor devotado do Evangelho ou ateu, seu compromisso moral com a sociedade é o mesmo.

Há outro preconceito muito forte entre ateus e agnósticos. Pessoas céticas em vários graus costumam achar que descartar a hipótese fé é sinal de superioridade intelectual. A inteligência crítica confere autonomia a uma pessoa, como ensinava Kant ao definir o esclarecimento. Assim, religiosos inteligentes ganham autonomia na sua fé e ateus inteligentes ganham autonomia no seu ceticismo e passam a questionar fora de dogmas absolutos de ser ou não ser. 

Gente sábia não duvida para afirmar sua superioridade, mas entende que a disputa pelas almas e corpos existe entre governos oficialmente ateus e igrejas. Crer em Deus ou rejeitar a possibilidade teológica deveria sempre ser um gesto radical de entrega a uma liberdade: eu sozinho diante do Criador ou eu e minha consciência diante do mundo em si. Sou tão livre e tão preso como uma pessoa que vai diariamente à missa/culto ou que sente, genuinamente, que a récita do Pai-Nosso inunda sua vida de sentido e proteção. 

Certa feita, diante do espetáculo impactante de uma série de cataratas, uma amiga segredou-me que aqui via e sentia Deus. Eu via a prova empírica de Newton e pensava em Arquimedes, mas ambos estávamos felizes e conversando, pois éramos seres pequenos diante do volume de água, do som e do impacto extasiante da cena. Gosto muito de Newton exatamente porque era um homem de fé profunda e fez um sistema lógico-científico que serve a ateus e a religiosos.

Alain de Botton escreveu um livro para que os ateus recuperassem muitas coisas positivas das tradições religiosas (Religião para Ateus). Gosto do texto, até mais do que os livros de Christopher Hitchens e Richard Dawkins. Eu digo algo um pouco distinto. O religioso de verdade, aquele que carrega a ideia de um Deus criador, entende que, tendo o mesmo Pai, todos somos irmãos. Islâmicos, judeus e cristãos falam muito da regra de ouro: não fazer ao outro o que não desejo que seja feito a mim. Compartilho 100% da ideia de uma fraternidade universal, seja ela lógica, humanística ou teológica. 

Assim eu, ateu, me considero aliado incondicional de todo religioso, pois compartilho a mesma ideia que os devotos devem ter como guia máximo: compreensão, misericórdia, ajuda aos outros, proteção aos vulneráveis e defesa dos pobres. Há trechos a favor dos pobres na Torá, nos Evangelhos e no Corão. Eu e todos os religiosos temos o mesmo inimigo: o fundamentalista. 

O fundamentalista é aquele que, em nome de um suposto deus, usa seu projeto de poder para imprimir e matar. Ele é inimigo de Deus e da ciência, inimigo da lógica e da revelação, inimigo de todo ser vivo e de toda sociedade aberta. O fundamentalista (religioso, político, científico etc.) é um ser do ódio que, se tivesse filiação, seria exclusiva com a figura do demônio, nunca com Deus; com a burrice, jamais com a inteligência lógica.

Eu sou irmão dos religiosos e inimigo dos que odeiam. Em resumo, se minha avó fosse viva e hoje me dissesse "Vá com Deus", em vez de uma resposta irônica e limitada como outrora, eu reconheceria nosso vínculo e a abraçaria dizendo: "Eu também te amo, vó". Eu era ainda mais idiota quando era jovem. Graças a Deus ou à mitose e meiose das células, cresci um pouco. Que a semana de cada um de nós seja muito abençoada pelas luzes da Razão ou, se preferirem, pelo Deus que deu a Razão aos homens. O importante é a luz e sempre evitar a escuridão diabólica da vaidade e do poder. Urge crer na democracia. É preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL


22 DE SETEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

EXPECTATIVA DE VIDA

Dizem que Cristo teria morrido aos 33 anos. Tão moço, lamentam os crentes. Nem tanto, a média de expectativa de vida no Império Romano era de 30 anos.

Os que defendem com fervor religioso o emprego da medicina chinesa no tratamento dos males atuais, com o argumento de que se trata de uma tradição milenar, talvez não saibam que, até o século 19, o chinês médio vivia os míseros 30 anos dos romanos. Não era muito diferente o destino dos europeus até o século 18. Foi só no final dos anos 1900 que a expectativa de vida começou a aumentar nos países europeus que se industrializavam, embora se mantivesse nos mesmos patamares medíocres no resto do mundo. Na maior parte do século 20, a disparidade se manteve: expectativa de vida ascendente nos países industrializados, mortes precoces nos demais.

Nas últimas décadas, no entanto, a desigualdade diminuiu e a expectativa de vida mundial praticamente duplicou. Hoje, os países mais pobres têm expectativa média de vida semelhante às dos que eram considerados ricos nos anos 1900. Cem anos atrás, a expectativa de vida de quem nascia na Índia ou na Coreia era de apenas 23 anos. Atualmente, esse número quase triplicou na Índia e quase quadruplicou na Coreia do Sul. No Brasil, uma criança que completasse 10 anos em 1950 podia alimentar a esperança de viver mais 53 anos. As que chegaram aos 10 anos em 2015 devem viver mais 67 anos.

Esses aumentos de longevidade aconteceram graças à ciência, à tecnologia e aos avanços no conhecimento. O declínio da mortalidade foi resultado da aplicação de ideias novas no campo da saúde individual e coletiva e dos benefícios trazidos pelo aumento de produtividade que possibilitaram melhores condições de moradia, nutrição e saneamento básico, pela vacinação em massa e a descoberta dos antibióticos.

A divulgação das teorias que identificaram os germes como causadores de doenças a partir dos últimos anos do século 19 foi crucial na mudança do comportamento individual e na infraestrutura de saúde pública. O mesmo ocorreu com as medidas tomadas contra o fumo, na segunda metade do século 20.

No decorrer do século 21, será possível duplicar mais uma vez a expectativa de vida?

Num trabalho publicado na revista Nature em 2016, Xiao Dong e colaboradores desmentiram essa hipótese. Ao analisar os dados demográficos em 40 países, os autores concluíram que aumentos da sobrevida tendem a declinar depois dos cem anos. A longevidade atingiria um teto ao redor dos 115 anos. Ninguém comemoraria o aniversário de 125 anos.

Um dos argumentos mais fortes dos autores é o de que, desde os anos 1990, a idade da pessoa mais velha do mundo não aumentou. O recorde continua pertencendo à francesa Jeanne Calment, que morreu em 1997 com 122 anos. Os autores concluíram: "Nossos resultados sugerem claramente que a duração máxima da vida é limitada por constrangimentos naturais".

Um estudo realizado entre centenários, por um grupo da Universidade Sapienza, na Itália, reacende esse debate. Elizabeth Barbi e Francesco Lagona acabam de publicar na revista Science um inquérito conduzido entre 3.836 italianos com 105 anos ou mais. Foram analisadas as certidões de nascimento e os atestados de óbito para confirmar as idades e evitar os exageros tão frequentes em pessoas com muita idade.

A conclusão do estudo foi a de que o risco de morrer (que aumenta à medida que envelhecemos) fica estável depois dos 105 anos, criando um "plateau de mortalidade". A partir dessa idade, a probabilidade de viver mais um ano seria de 50%. Se esse plateau realmente for confirmado, a mulher mais velha do mundo, Chiyo Miyako, atualmente com 117 anos, poderia ainda viver alguns anos ou décadas, pelo menos teoricamente.

O mundo abriga cerca de 500 mil pessoas centenárias, número que deverá duplicar de 10 em 10 anos. Se, depois dos 105 anos, o risco de morrer for de 50% a cada ano que passa, os demógrafos calculam que o recorde de longevidade em posse de Jeanne Calment deverá ser quebrado com a diferença de um ano a mais a cada década.

Os especialistas não consideram esse o estudo definitivo. O debate prosseguirá. Enquanto eles não chegam à conclusão, cabe a cada um de nós cuidar do corpo da melhor forma possível. Você, leitora, não vai querer chegar aos cem anos com a aparência de quem tem 200.

DRAUZIO VARELLA

22 DE SETEMBRO DE 2018

J.J. CAMARGO

UMA LINGUAGEM UNIVERSAL

Cada profissão tem um linguajar próprio e, dentro de algumas profissões, até há facções com termos tão peculiares que os não especialistas se atrapalham. Leiam um relatório psiquiátrico de encaminhamento de um paciente cirúrgico e descobrirão do que estou falando.

Um dia, atendendo a um velho e brilhante desembargador com um tumor avançado, ouvi dele a queixa de que nós, médicos, nos comunicamos com vocabulário exclusivo, como se pertencêssemos a uma casta tão especial que não se permite usar uma linguagem popular. 

Argumentei que todas as áreas técnicas têm seus termos específicos, mas que, obviamente, esse linguajar diferenciado não poderia ser usado nas relações com os pacientes porque, além de afetada, seria inútil como veículo de comunicação, e que eu me esforçava por me fazer entender e ficava sempre perscrutando o olho do paciente na busca de sinais objetivos de entendimento. Mais do que isto, eu ensino aos alunos e residentes que sempre que o paciente não entendeu o recado é culpa exclusiva do médico que não fora capaz de decodificar sua linguagem.

O que me pareceu injusto e merecia uma resposta foi o fato da queixa ter vindo de um advogado. Respondi que de qualquer outra profissão eu aceitaria a crítica com mais naturalidade, mas não dessa categoria de incomunicáveis que são capazes de frases inteiras usando palavras desconhecidas, ou pior, empregando palavras reconhecíveis, mas com significado diferente ou oposto.

Ele riu, debochado, coçou a barba branca com a serenidade dos sábios e disse: "Pois, meu doutor, vou lhe contar uma história que deve ficar como um segredo entre nós porque reforça sua opinião, mesmo que ela não precise de nenhum reforço, até porque a única frase que me encantaria ouvir, a de que a lesão era benigna, o senhor não foi capaz. Pois bem, quando jovem, trabalhei durante alguns anos numa cidade do Interior. 

Numa tarde da primeira semana, entrou no meu escritório uma agricultora humilde, com um envelope pardo embaixo do braço e, ao perguntar-lhe em que poderia ajudá-la, ela resumiu: "Meu marido é mental, aqui está a prova da mentalidade dele (e entregou-me o tal envelope), eu sou o homem da casa e eles querem tomar o meu fogão!". Com a facilidade de indignação que têm todos os jovens, assumi o caso e prometi que, no fim de semana, redigiria um arrazoado para levarmos ao juiz e que aquele absurdo seria revertido. 

No final do domingo, revisei orgulhoso o documento datilografado em 23 laudas caprichadas. Quando resolvi dar mais uma lida no processo, me dei conta de que aquela redação prolixa e afetada não acrescentara nada àquelas quatro frases: marido mental, aqui a prova da mentalidade dele, sou o homem da casa e eles querem tomar meu fogão. Curioso é que precisei da sua contestação para finalmente fazer uma catarse desse sentimento que, passados 48 anos, ainda guardava como um segredo meu. Agora que já me confessei, vê se aumenta a dose do analgésico porque senti uma dor excruciante na noite passada!".

Havia comiseração e algum remorso quando aumentei a prescrição de morfina. Nada mais constrangedor para a medicina moderna do que esta queixa num hospital, sendo a dor, como é, a linguagem universal mais atroz.

J.J. CAMARGO


22 DE SETEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

A casa da Praia Brava

Certa noite, na Praia Brava, uma linda jovem preparou uma refeição para nós vestindo biquíni de crochê. Branco. O biquíni era branco. Lembro bem daquela cena. Não lembro da comida, mas da forma como foi feita jamais esquecerei. Como poderia? Foram verões históricos. Durante nove deles, em sequência, nós alugamos uma casa na Brava, e o Senhor viu que era bom.

Conto isso porque o Diogo Olivier carregou essa doce lembrança para o Sala de Redação, esses dias. Falávamos de tradições gaudérias, a propósito do 20 de Setembro, e logo alguém mencionou o arroz de carreteiro, e o Pedro Ernesto, pândego que é, desdenhou de mim, dizendo que eu não sabia nada acerca de cozinhar um ótimo carreteiro. Pois o Diogo fez justiça. Testemunhou:

- Lá na Praia Brava, o David cometia excelentes carreteiros com sobras de churrasco. É verdade. Para provar, recitei a receita rapidamente. Alguns ouvintes gostaram, pediram que a repetisse, e o farei a seguir.

O ideal, claro, seria conceber o carreteiro em um ambiente tão inspirador quanto era aquele nosso. Tínhamos um núcleo duro de amigos que alugava a casa por um conjunto alentado de dias. Os outros iam chegando. Um ficava dois dias, outros três, havia quem se encostasse por uma semana. O rodízio era intenso.

O Professor Juninho e o Degô tinham uma particularidade: eles dormiam até as quatro da tarde. Então, acordavam e iam fazer o desjejum, composto por cerveja e churrasco. Aquele churrasco se iniciava por volta das cinco, cinco e meia da tarde e se prolongava noite adentro. Enquanto isso, as coisas iam acontecendo. Pessoas chegavam e saíam da casa, casais novos se formavam, casais antigos se desfaziam, alguém desaparecia e reaparecia horas depois, uns jogavam carta, outros jogavam bola, todo mundo jogava conversa fora. O som rolava alto. Eu colocava um CD do Clapton com o BB King, faixa 6: "Help the poor... Won?t you help poor me?".

Chegava uma hora em que o churrasco acabava e as cinzas esfriavam, mas não a disposição do pessoal. Resultado: em alguma esquina da madrugada, a fome voltava com a fúria das ondas da segunda rebentação. Então, o degas aqui era convocado.

A essa altura, o Juninho já havia apelado para o Lulu Santos:

"Quando um certo alguéééém cruzou o seu caminho e mudou a direção?".

Dizia, o Juninho, que o Lulu Santos faz as mulheres dançarem com os bracinhos levantados, e isso é um ponto alto de qualquer festa.

Já eu estava concentrado no refogado. Sim, rapaz, tudo começa com o refogado. Havia picado gentilmente pelo menos quatro dentes de alho e uma cebola do tamanho de uma bola de tênis. No fogão, a panela de ferro já se acomodava sobre as chamas, esquentando o azeite de oliva. Assim que o azeite fervesse, despejava a cebola e o alho, mexia com brevidade, porém segurança, e abaixava o fogo drasticamente.

É claro que você sabe que, antes disso, eu já recolhera da churrasqueira toda a carne aproveitável. Raspara as costelas de gado e de porco, deixando só o osso liso. Cortara em pequeníssimos cubos a picanha, o vazio, o entrecot e até os salsichões sobreviventes. Toda essa carne variada eu juntaria ao refogado, aumentando o fogo outra vez.

Nesse momento, o cozinheiro chega a uma encruzilhada: você prefere o carreteiro vermelho, com molho de tomates, ou tão somente com o sumo da carne? O Pedro Ernesto prefere com tomates. Então, foi a receita que apresentei. E mesmo lá, na Brava, às vezes eu fazia com tomates, mas havia de ser tomate mesmo, o fruto vermelho e maduro, não os que vêm em alguma lata vulgar.

Retalhava, portanto, os tomates, como se eles fossem meus inimigos, e os deitava no refogado misturado à carne. E mexia com paciência e denodo. O molho tornava-se denso e oloroso. As pessoas já não dançavam mais. Passavam por mim e comentavam:

- Cheiro bom?

Você precisa trabalhar com a fome dos comensais, isso é muito importante.

Mas voltemos à panela sobre o fogão: gosto de temperar com um pouco de mostarda e ketchup e, não raro, metade de um cubinho de caldo de galinha. Acrescento água, também, mas com parcimônia. Infinita parcimônia. E sigo mexendo, salgando de leve, experimentando o sabor de quando em quando.

E o molho ia crescendo, ia se transformando em uma pasta vermelha borbulhante. Era aí que acrescentava o arroz. Mexia mais uma vez para fazer de tudo um único bolo. Tampava a panela. Reduzia o fogo. Agora era só esperar.

Foram madrugadas gloriosas aquelas na casa da Praia Brava. A moça de biquíni de crochê, aliás, aprovou meu carreteiro. Foi um ponto a meu favor. Mas essa história fica para depois.

DAVID COIMBRA

22 DE SETEMBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

A INSPIRAÇÃO QUE VEM DA CULTURA

Chega ao fim neste domingo o Porto Alegre em Cena, iniciativa que consolidou o Rio Grande do Sul na rota dos grandes festivais de teatro do continente. O sucesso de mais esta edição, a 25ª, comprova a vocação gaúcha para a cultura, mesmo em tempos de alegada crise. Especialmente neste momento de tensionamento político e econômico, o teatro e a dança se afirmam como espaços de reflexão e de crítica, mesmo que não diretamente relacionados às questões pontuais da política.

A cultura inspira o saudável exercício do aplauso ao talento, um contraponto à intolerância dominante nas redes sociais e nos debates eleitorais. Num momento em que o país se polariza entre extremos, a criação artística acena com a possibilidade de múltiplas perspectivas, permitindo uma ampliação dos horizontes do debate. No caso do Porto Alegre em Cena, realização do Ministério da Cultura e da prefeitura de Porto Alegre, essa contribuição se concretiza sob a forma de dezenas de espetáculos a preços reduzidos, o que acaba atraindo milhares de espectadores para casas teatrais e até para apresentações de rua. Foi esse tipo de opção que ajudou a consolidar polos culturais internacionalmente conhecidos, como Montevidéu e Buenos Aires.

Nesse ambiente, não sur- preende a perenidade de eventos como o Fronteiras do Pensamento, o Porto Verão Alegre, a Feira do Livro, a Bienal do Mercosul, o próprio Em Cena e outros tantos empreendimentos da área do saber e da cultura espalhados por todo o Estado. Esses são sinais de luz em tempos de bolhas digitais.

O sucesso de público e a repercussão de iniciativas como o Porto Alegre em Cena reforçam a vocação da Capital como centro cultural, com benefícios que se estendem também à área econômica. Atividades artísticas tendem a impactar positivamente outras áreas, como o turismo, favorecendo oportunidades de trabalho e mobilizando uma cadeia de fornecedores.

Encontrar formas de financiamento para a cultura é um exercício de toda a sociedade, não apenas de governos. Entre os responsáveis pela consolidação dessas iniciativas está o apoio de empresas compromissadas com investimentos em cultura no Rio Grande do Sul. Atitudes desse tipo tornam-se ainda mais imprescindíveis em momentos de crise como o que o Estado e o país enfrentam hoje.

OPINIÃO DA RBS

sábado, 15 de setembro de 2018


15 DE SETEMBRO DE 2018
LYA LUFT

Os oitenta



Tempos atrás, crianças da casa falavam entre si, com orgulho, de quantos anos fariam em dois anos, ou três: 15, 19. Comentei com a maior naturalidade que em três anos eu faria 80. Silêncio meio penoso, depois: "Pô, vó, 80 é pesado!". Ri muito: a ideia não tinha me ocorrido, acho que a passagem do tempo é apenas natural, ser criança, jovem, maduro, velho - apesar dos preconceitos, que dependem muito mais do sentimento que se tem. Eu, confesso, acho esse número no mínimo engraçado. "O que tem de graça em fazer 80 anos?", me pergunta uma amiga meio irritada.

Mas é natural mesmo, respondo. A graça, para mim, está em eu, esta aqui, ter tantas décadas de vida e ainda ser, por dentro, a mesma de antigamente, assombrada com tudo, querendo entender o mundo - apenas agora sabendo que ele não é para ser entendido. É para ser vivido, sofrido, apreciado, contemplado. 

Pois é prodigioso em tudo, mesmo na miséria, na pobreza, na violência, na lua cheia, no mar resmungão, no calor dos tantos afetos que sustentam a gente ainda ferozmente em pé apesar de mais lenta no andar, e da bengala amiga. Das perdas trágicas que sofremos. Ou alguém quereria ficar cristalizado nos 20, sem mais experiências de vida, novas e ruins, uma existência estagnada?

Enfim, eu acho, sim, certa graça: neste sábado, meus leitores, a autora desta coluna completa 80 anos de idade. Talvez devido à imagem que em geral se tem dessa altura da vida: encarquilhados, tortinhos, indefesos, dentes postiços, quase alimentados com colher e mingau. Mas: muitos jovens ficam entrevados, doentes, sofridos, deprimidos - muitos velhos participam da vida, nada alienados diante das belezas e dos horrores em torno. Não precisamos ser lindos ou atléticos, o que decididamente nunca fui, mas gostar de viver.

Mesmo quando a sombra da morte nos derrubou com força, de repente, aqui e ali, um galhinho verde muito claro desabrocha na galharia maltratada. Saímos dessa UTI em que a dor nos coloca, espiamos o corredor, olhamos pelas janelas para as árvores lá fora: o sol, e as pessoas, os carros, o vento, uma aconchegante chuva, a vida ainda existe. E, se estou nela, não quero me arrastar, mas caminhar.

Começo a recuperar a capacidade de rir, sobretudo das minhas próprias bobagens, ou da graça e dos encantos dessa juventude animada que aparece aqui, sangue do meu sangue (expressão esquisita), filhos, netos, netas. E as amizades de tanto tempo. 

O parceiro com sua parceria. Os livros que escrevi, estou escrevendo, e os que leio sem parar porque não perdi a curiosidade pelas tramas e pelos dramas que envolvem o ser humano, comovente ou assustador. Sem esquecer os leitores amados, alguns me seguindo há mais tempo do que eu teria imaginado.

Depois de reunir na noite de sexta um grupo de amigas que se intitulam Gurias da Lya - e nem preciso convidar, porque se aprumam e me enchem de afeto -, neste sábado, almoço da família aqui em casa, com mais alegria porque estamos todos juntos. Pois quem se foi ainda vive, onde quer que esteja, e continua em nós, que resistimos, abraçados.

LYA LUFT


15 DE SETEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

A importância do desconforto

Voltei de férias recentemente e nas minhas andanças incluí Berlim no roteiro, cidade que havia visitado uma única vez, em outubro de 1989, dias antes de o famigerado muro vir abaixo. Em vez de uma cidade dividida, desta vez encontrei uma cidade integrada, pulsante e majestosa em suas edificações e largas avenidas, e com arte por todo canto. Berlim hoje é uma metrópole jovem e arejada, mas não permite que nenhum de seus cidadãos esqueça que ela já foi sombria, sisuda e criminosa. Alienação, nem pensar. Sua história está não apenas dentro de museus, mas escancarada nas ruas.

Três exemplos.

Desde o início do verão europeu (até 03/10), ao lado do Parlamento e à beira do rio Spree, é possível sentar à noite nos degraus de uma escadaria ao ar livre para assistir, por 30 minutos, à projeção de um gigantesco vídeo que destaca os fatos políticos desde o fim do século 19, passando pela República de Weimar, o período nazista, a II Guerra Mundial e a divisão da Alemanha, até chegar à reunificação. Tudo com muita música, luzes e tradução simultânea em 10 idiomas, via aplicativo. Turistas e moradores formam uma mesma plateia: informal e interessada em olhar para trás para continuar avançando.

Na Bernauerstrasse (rua Bernauer), um bom pedaço do muro continua erguido junto a fotos de todos os que morreram tentando atravessá-lo, e a poucos metros está o Centro de Informações com filmes e depoimentos de quem vivenciou a divisão dos lados (oriental e ocidental) e de como isso impactou o cotidiano da cidade. Nas fachadas dos prédios do bairro, painéis impressionantes registram a incredulidade de quem acordou na manhã de 13 de agosto de 1961 separado de seus familiares e amigos.

E o Memorial dos Judeus Assassinados na Europa também está a céu aberto: são mais de dois mil monolitos de concreto numa grande área ao lado do Portão de Bradenburgo, como se fosse um cemitério, porém sem que haja nome ou foto das vítimas: o que desconcerta é o solo desnivelado, que faz com que a gente se sinta meio tonto ao percorrer os estreitos corredores entre os blocos. A sensação de desconforto é proposital, planejada pelos arquitetos.

Do que se conclui: o chão em que pisamos, não apenas nesse Memorial em Berlim, mas no planeta inteiro e especialmente no Brasil, está cada vez mais instável, fazendo com que a gente caminhe meio grogue. A vertigem só aumenta. Onde foi parar a segurança de um mundo mais tolerante, mais unido pelas causas sociais e menos violento? Que fim levou a solidez da justiça e do bom senso? Estamos regredindo ao tempo das cavernas, grunhindo uns para os outros e abrindo um espaço enorme para a ignorância se instalar. Entre outros motivos, por total desprezo ao passado e por falta de memória.

MARTHA MEDEIROS

15 DE SETEMBRO DE 2018
CLAUDIA TAJES

Fora, tédio



De uma coisa ninguém pode se queixar no Brasil: de tédio. Por aqui é muito difícil um dia ser igual ao outro, seja por qual motivo for - ruim, no mais das vezes, o que é sempre ótimo para movimentar os meios e as redes. Na política, o que é pode não ser, o que não se quer pode ser e é possível que tudo já tenha mudado até o final dessa frase. Um time consege ser o melhor do país e o pior do mundo de um jogo para o outro. A cotação do dólar é uma surpresa a cada manhã. A única rotina é que é sempre para cima.

Outro que não pode ser acusado de causar tédio é o clima. Agora que parou de chover (toc-toc-toc), acontece de tudo em 24 horas. Tem que levar casaco ao sair de manhã, mas o que fazer com ele no sol do meio-dia? Blusão no calor sempre me traz o cheiro de uma sala de aula na volta do recreio, a criançada suando sem se desfazer da lã, que as mães mandaram não tirar de jeito nenhum. Um cheiro que todo mundo já sentiu na própria pele e que depois vai sentir ao beijar o filho na volta do colégio. Como é bom receber um pequeninho suado e feliz nos braços. Filho, aliás, é um fator antimonotonia pura na vida.

O que pode ser tedioso, muitas vezes, é o trabalho. Ah, como pode. Quando eu trabalhava em propaganda, tremia ao ver a coordenadora com a pilha de textos de rádio para distribuir. Talvez porque ninguém gostasse deles, e porque eu fazia rápido justamente para me livrar da tarefa, eles sempre vinham para mim. O texto de rádio é aquela breve mensagem lida pelos locutores que, sejamos francos, é uma chatice também para quem ouve. 

A notícia mais quente é interrompida para se apregar as delícias de um salsichão. Às vezes eu passava dias inteiros escrevendo textos de rádio, vários formatos, diferentes mensagens, para a rádio X de um jeito, para a rádio Y de outro. Aos jovens publicitários que, por desventura, estejam sobrecarregados de textos de rádio, a dica de uma velha ex-colega: façam com carinho, porque o público não merece mais ouvir "no aniversário da nossa loja, quem ganha o presente é você". É muito tédio.

Tédio é o "sentimento de aborrecimento, nojo, desgosto: o tédio dos longos dias de isolamento. Sentimento enfadado provocado pela demora no desenvolvimento de alguma coisa. Sentimento de aversão, de desgosto sem causas aparentes". Tirando a parte da aversão e do desgosto, as outras acho que dá para enganar. Por exemplo: lendo nessas horas mortas que parecem não fazer sentido. Uma clássica de Mario Quintana: "O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado". 

Contra a chatice das esperas ou dos finais de semana parados - contanto, é claro, que a gente não tenha 15 anos e os hormônios desesperados para sair -, sempre teremos os livros. Aliás, a temporada das Feiras do Livro agora começa para valer. Mesmo com pouco apoio e poucos recursos, elas são muitas pelo interior. Um alô para a turma de Venâncio Aires, onde estive na semana passada, e um viva para todas as outras Feiras que insistem. E resistem.

O tédio também sai de cena com o 25º Porto Alegre em Cena. Entre as atrações internacionais deste ano, companhias do Chile, França e Alemanha em sessões legendadas. Imperdível é a montagem de Grande Sertão: Veredas, neste sábado e domingo. Mais: Preto, da Companhia Brasileira de Teatro do Paraná, e Pontilhados, de Pernambuco, um passeio a pé por lugares de Porto Alegre onde a vida se entrelaça aos espaços. 

O Nordeste ainda traz Breguetu e Zambo, também de Pernambuco, e Nossos Mortos, do Ceará. Vai ter Filipe Catto, a Companhia Municipal de Dança de Porto Alegre, a volta de Pequeno Trabalho para Velhos Palhaços, palestras e shows na programação paralela e as Sessões Malditas, sempre à meia-noite - tomara que ainda tenha ingresso para tanta coisa boa. Tudo aqui em portoalegreemcena.com.

Tédio é para quem quer e teatro é para todos. Nos vemos no Porto Alegre em Cena.

CLAUDIA TAJES

15 DE SETEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

O anjo necessário



Não é saudável represar as emoções. Elas confundem o raciocínio e você se precipita porque não aguenta mais acumular nenhum sentimento. Não há mais espaço para respirar no próprio quarto das ideias. Perde a paciência de se explicar e briga para acabar com o assunto.

Laços são cortados de modo inconsequente, estabilidade é destruída precocemente, relacionamentos quebram de vez pela falta da catarse. Você não é mais capaz de conversar pois há muito tempo não conversa sobre aquilo que está lhe incomodando. Desaprendeu a falar de tanto que se guardou e esperou o melhor momento.

As amizades são os anjos da guarda do amor. Sem um bom confidente, não há romance que fique de pé. Depende mesmo de alguém de fora, com uma perspectiva não viciada nos seus problemas, para entender o que vem acontecendo de errado e mudar as suas atitudes.

Só o amigo pode convencê-lo de que vem agindo torto. Ninguém mais. No calor do casamento ou do namoro, fará uma injustiça e ofenderá à toa.

Sem um amigo, a paixão não vinga. Distorcerá a realidade e será leviano com as suas impressões. De repente estará cobrando o que não é verdade, de repente o ciúme é a invenção de sua carência e insegurança, de repente transfere traumas e recalques antigos para situações inéditas, de repente não está conseguindo comunicar o que é importante, de repente o fim é orgulho bobo, de repente a tragédia é ressentimento inútil.

Desabafar é colocar tudo para fora das gavetas para reorganizar um por um dos pensamentos, para depois dobrar lentamente as roupas de suas convicções e arrumar o armário.

Não deve se descuidar da higiene emocional.

Quem nunca desabafa, desaba. Quem nunca se abre, fecha-se para sempre. Quem nunca se mostra, comete desatinos. Quem nunca partilha as dúvidas, explode com as certezas.

Não chegue para expor os seus tormentos de sangue quente na relação. Telefone para um colega leal e despeje os demônios. Encontre-se com ele num bar, chore como uma criança, beba como um adulto, em seguida chore o copo e beba as suas lágrimas, grite até acabar a voz e reaprender a ouvir de novo.

O amigo é o moderador das crises pessoais, o rascunho do casamento.

CARPINEJAR

15 DE SETEMBRO DE 2018

COM A PALAVRA

COM A PALAVRA


Em meio à radicalização do debate público no Brasil, Rosana Pinheiro-Machado é uma observadora dedicada a revelar a complexidade por trás da lógica simplista dos estereótipos. O apuro de seu pensamento não é só baseado em teorias, mas em vivências do dia a dia. Junto com a também antropóloga Lucia Scalco, ela pesquisou a população do Morro da Cruz, em Porto Alegre, e, na greve dos caminhoneiros, foi a campo entrevistar manifestantes. Assim, tornou-se uma intérprete em tempo real das mudanças na sociedade.


Professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e fundadora da Escola Comum, instituição voltada para jovens da periferia de São Paulo, ela foi professora da Universidade Oxford e realizou pós-doutorado em Harvard. Hoje, finaliza o livro From Hope to Hate ("da esperança ao ódio"), em que ela e Lucia registram nove anos de pesquisa sobre a relação entre consumo, juventude e política nas camadas populares. Nesta entrevista, fala sobre a crise enfrentada pelo país e demonstra esperança em uma mudança de mentalidade nos jovens brasileiros.

É POSSÍVEL IDENTIFICAR UMA PROFUNDA FRUSTRAÇÃO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA COM A POLÍTICA INSTITUCIONAL, COMO SE O PAÍS NÃO TIVESSE MAIS JEITO. POR QUE O BRASILEIRO ESTÁ DESCRENTE?

A questão mais evidente é a falta de tradição democrática da sociedade brasileira. Tivemos regimes militares, mandatos interrompidos, um processo eleitoral ainda muito baseado em uma república jovem e fragmentada. E, junto a isso, uma cultura clientelista que predomina especialmente nas camadas populares - a maior parte da população. O Morro da Cruz, onde eu e a (antropóloga) Lucia Scalco fazemos pesquisa, é dominado pela compra de votos.

O Brasil construiu bens públicos, como a universidade e o SUS, mas são serviços ainda deteriorados e que nunca atenderam plenamente a população. Para a grande maioria, a vida é deteriorada, com dificuldade de acesso aos bens públicos. Isso (o acesso a bens públicos) é uma forma de democracia também. A democracia se define de várias maneiras. Há a democracia representativa. E há a democracia da cidadania. Nessa última, o Brasil falha completamente. As elites são predominantemente oligárquicas, com as mesmas famílias no poder. O status quo muda muito pouco.

E, na base da população, serviços precários. Tivemos momentos de melhora, mas agora estamos enfrentando uma nova crise. As camadas populares sempre souberam que o dinheiro não chegava, sempre sentiram que os bens públicos não serviam a todos. Nunca viveram um processo democrático. Ao mesmo tempo, as elites podem comprar seu plano de saúde e uma boa educação. Nunca fui perseguida ao ir ao supermercado, mas quando meus colegas negros entram no supermercado comigo, aparecem dois seguranças. Essas pessoas são perseguidas, são mortas pela polícia. Dos meninos que pesquisamos no Morro da Cruz, 50% estão mortos. Foram mortos pelo tráfico e pela polícia.

PARECE HAVER DESCRENÇA NA PRÓPRIA DEMOCRACIA. ISSO OCORRE PORQUE O BRASILEIRO EXPERIMENTOU SÓ ESSA DEMOCRACIA FALHA OU HÁ PESSOAS QUE NÃO TÊM CLAREZA SOBRE O CONCEITO DE DEMOCRACIA, UMA VEZ QUE SEU CONTRÁRIO É A DITADURA?

A tendência é responder concordando com a hipótese de que as pessoas conhecem esse modelo, vivem esse modelo de democracia deteriorada. Algumas pessoas tendem a dizer que o brasileiro é autoritário, mas afirmar isso é praticar um culturalismo barato. Não acredito que sejamos uma sociedade autoritária por essência. O que temos é uma sociedade em que faltam muitas coisas, e as pessoas começam a querer ordem na casa, como dizem. Isso começa a se identificar, em determinado momento, com um pedido por intervenção militar, eventualmente por uma ditadura. Mas não acho que o brasileiro, de modo geral, tenha uma pulsão autoritária.

O que falta é a presença do Estado atuando. Por outro lado, também percebo que o Brasil pós-Junho de 2013 mudou completamente. Há hoje, nas escolas públicas, principalmente nos movimentos secundaristas, uma nova geração que pensa a democracia de forma radical. Digo radical no sentido de uma democracia do povo. Querem decidir os mecanismos de escolha, os próprios rumos da escola. Essa geração nova, de 16 ou 17 anos, rejeita a política institucional: faz política no dia a dia, luta pela sua escola, luta por questões identitárias, direitos humanos. O Brasil vai ter outra sociedade daqui a 10 anos, e vai ser uma sociedade muito melhor. Isso perpassa todas as classes sociais. Essa nova geração consegue dialogar, em um processo democrático mais horizontal, menos centralizado.

Retomando o outro ponto, do aspecto mais formal da democracia: assim como aconteceu nos EUA e na Inglaterra, quando vem a crise no Brasil, a primeira coisa que a pessoa culpa é a democracia. Dizem: "Esse sistema não funcionou". Mas o nosso problema não é a democracia; é esse tipo de democracia que temos e que serve a poucos. É uma democracia na qual o Estado dá dinheiro para as grandes empresas e não repassa para o povo. Isso é democracia só no nome.

SERÁ QUE ESSA GERAÇÃO NÃO VAI ENCONTRAR UM STATUS QUO MUITO PODEROSO E RESISTENTE A MUDANÇAS?

Sim, vai encontrar, e esse é o grande desafio do Brasil hoje. As pessoas não olham para a juventude, só olham para o caos que está o Brasil. Poucas pessoas estão olhando para os adolescentes. Os adolescentes de hoje no país são uma geração fantástica. Lido com vários grupos em São Paulo e Porto Alegre e também observo o trabalho de outras pessoas. Essa nova juventude não se adequa à política institucional masculina, dura, embrutecida, viciada.

O grande desafio do Brasil hoje é como essa geração vai se institucionalizar - ou vai mudar a política. Porque ela precisa se institucionalizar, não pode ser totalmente autonomista. Senão, o poder vai ficar sempre na mão dos mesmos. O que vemos hoje nas candidaturas coletivas de pessoas que têm um pouco esse espírito de Junho de 2013 é que estão tentando entrar na política institucional. Só que essas pessoas precisam vencer as eleições. Aí entra a máquina, o sistema político, o repasse da verba para os mesmos candidatos. É difícil. Não vai acontecer uma revolução. O que acredito que vai acontecer é essa geração ir empurrando o sistema aos poucos.

FALE UM POUCO SOBRE ESSA IDEIA DE CANDIDATURA COLETIVA, POR FAVOR.

À direta e à esquerda estão aparecendo novos modelos de candidatura, que vêm de movimentos. É o caso do Renova e do Agora. Esses movimentos procuram renovar a política, fornecendo apoio técnico a candidatos qualificados ou via movimentos sociais, formando outras lideranças, geralmente com pessoas que nunca estiveram no sistema político. Isso é uma coisa: novos movimentos, transversais a partidos, que têm uma proposta.

Outra coisa são as candidaturas coletivas propriamente ditas. Há mais delas no centro e na esquerda, embora seja difícil dizer o que é centro hoje. São candidaturas em que há um único número, representativo de um grupo - por exemplo, no caso da Bancada Ativista (de São Paulo), formada por nove pessoas. Todos declaram publicamente que você está votando nos nove. Os candidatos tradicionais sempre trabalharam em equipe, mas a partir da troca de cargo: o colaborador trabalhava na campanha e depois ganhava um cargo no gabinete. Agora, é um conjunto com outra lógica.

UMA PESQUISA DE 2017 DA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, VINCULADA AO PT, CONSTATOU A PRESENÇA DE VALORES QUE PODERIAM SER CONSIDERADOS DE DIREITA OU LIBERAIS NA PERIFERIA DE SÃO PAULO. MOSTROU, POR EXEMPLO, QUE A POPULAÇÃO DESSA ÁREA ADMIRA FIGURAS DIFERENTES COMO LULA, SILVIO SANTOS E JOÃO DORIA POR SEREM PESSOAS QUE CRESCERAM POR MÉRITO PRÓPRIO. VOCÊ CONSTATA ISSO NO SEU TRABALHO?

Fui muito crítica a essa pesquisa na época. Acho complicado olhar para uma realidade complexa como a brasileira e dizer que tem valores liberais. Claro que a questão da meritocracia é importante, principalmente nas periferias, onde as pessoas se constroem, pois não têm emprego. Então, tem toda uma cultura de se virar mesmo, de ser camelô, fazer biscate. É outra lógica de trabalho. Por outro lado, as periferias têm valores coletivistas mais fortes do que nas camadas médias. Jamais diria que a periferia tem uma tendência liberal. Tem traços que poderíamos associar ao liberalismo, assim como tem traços que poderíamos associar ao comunismo, como o compartilhamento das coisas. As periferias apresentam valores conservadores, por causa da Igreja, coletivistas e liberais. É uma combinação disso tudo.

QUAL É A REAL DIMENSÃO DA POLARIZAÇÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA ATUAL?

Há um movimento de polarização, mas a maioria da população está fora disso. A polarização não reflete a vida real das pessoas. A Lucia (Scalco) e eu conversamos com muitas pessoas que vão votar no Bolsonaro, mas, se o Lula concorresse, votariam nele. Isso sem falar na quantidade de pessoas que estão fora do jogo político, aquelas que estão na pobreza mesmo, que não usam internet.

Isso é importante: quem está integrado à polarização compra o pacote de que o outro é o demônio, mas as pessoas em geral não são esse conjunto demoníaco. Tem gente contra o Bolsonaro e, ao mesmo tempo, contra a imigração de refugiados. As pessoas vivem em contradições. Porque são complexas. Têm a sua trajetória de vida: se é vinculada à Igreja, se recebeu Bolsa Família... São muitos fatores que constituem as pessoas. Temos múltiplos pertencimentos, que a lógica da polarização não nos deixa perceber.

A CORRUPÇÃO É UM DOS MAIORES PROBLEMAS DO BRASIL NA PERCEPÇÃO DA POPULAÇÃO, O QUE É VERIFICADO EM PESQUISAS. A CORRUPÇÃO TEM SOLUÇÃO?

Sou esperançosa. Até porque esse modo de fazer política, que é essencialmente corrupto desde a militância juvenil, mudou. A militância que está vindo tem outras práticas, mais democráticas e menos de aparelhamento - do grêmio estudantil, do sindicato. Então, acho que a corrupção tem solução. Não sei se há como eliminá-la, mas há como amenizá-la.

O bem público é para ser público e do povo. Não é para ser nem da empresa, nem do político. Porque a corrupção no Brasil não é só pública, é privada também. É do Estado com as corporações. Tudo vai depender de como essas novas gerações, que estão entrando na política com outra mentalidade, vão se apropriar da política: se vão entrar no sistema ou se vão continuar resistindo. Às vezes, as pessoas ficam mais velhas e perdem aquela pulsão juvenil, adequando-se ao sistema. Mas são as novas gerações que revolucionam o processo.

PARA MUITOS, A CORRUPÇÃO NA POLÍTICA É UM REFLEXO DA CORRUPÇÃO NO DIA A DIA DA SOCIEDADE. VOCÊ CONCORDA?

Não. Acho injusto sugerir esse salto do jeitinho para um grande esquema de corrupção. O problema da corrupção é estrutural. É o Estado, enfraquecido, sendo mais um gestor do que algo que está aí para garantir o bem público. Um Estado administrador, e não político. Aí a privatização toma várias áreas da vida: você vai permitir grandes esquemas, que passam por uma relação que é macroestrutural, do funcionamento do capitalismo. Não tenho evidência empírica de que o brasileiro é corrupto. Tenho evidência de que existe clientelismo, que é promovido pelo dinheiro do mais forte contra o mais fraco.

Qual é a evidência que tenho do povo brasileiro? Trata-se de um povo criativo. Eu realmente deixo meu celular em qualquer lugar. Mas ser assaltada é outra coisa. É crime organizado. Se eu estiver em qualquer lugar e perder meu celular, eu confio nas pessoas para ajudar a encontrá-lo. Então, que evidência empírica temos de que o povo brasileiro é corrupto? É porque um cara furou a fila? Temos uma educação ruim, que tem de melhorar. Isso sim. Mas esse salto (entender a corrupção na política como reflexo da corrupção na sociedade) só serve para culpar o povo em vez de culpar quem tem de ser culpado.

DURANTE A GREVE DOS CAMINHONEIROS, VOCÊ E LUCIA FORAM A CAMPO ENTREVISTAR GREVISTAS. O QUE LHE CHAMOU A ATENÇÃO?

O que percebemos é que o Brasil entrou num limbo histórico nos últimos cinco anos. A maior demanda, na verdade, era por uma certa ordem, um estado de normalidade. Não era uma ordem necessariamente autoritária. Apesar de alguns pedirem intervenção militar, vejo muito mais um sentido de retorno à normalidade. Havia diversas demandas, como em todos os movimentos complexos - Junho de 2013 é outro exemplo.

Apareceu a questão do aumento do custo de vida no Brasil após a crise. As pessoas não vivem mais, não têm lazer. Nos diziam que tinham duas folgas por semana e não tinham dinheiro para comer uma fatia de pizza. De modo geral, a vida ficou embrutecida. A pessoa passa o tempo todo no caminhão. Sem lazer, fica raivosa. Aí vem essa questão da corrupção, para onde se canaliza a energia. As pessoas veem o posto de saúde cheio, com gente na fila e bebês chorando, e interpretam que o dinheiro não chegou. Elas não são burras. Algo não funciona.

JOVENS DE CLASSE MÉDIA TAMBÉM SÃO AFETADOS PELO AUMENTO DO CUSTO DE VIDA, MAS O IMPACTO É AMORTECIDO PELA AJUDA DOIS PAIS, QUE TÊM PATRIMÔNIO ACUMULADO?

Todos sentem a crise. O ponto é a capacidade de sonhar. Um dos aspectos que medem a mobilidade social é a capacidade de aspirar. Nas camadas médias, muitos filhos de 30 anos não terão o que os pais conseguiram. A desesperança atinge todo mundo. Mesmo que as camadas médias tenham patrimônio e sejam privilegiadas, e são, também sentem o impacto. Nas camadas populares, o impacto é maior. É por isso que o título do nosso livro será From Hope to Hate ("da esperança ao ódio"): houve um momento de esperança, via consumo, e agora há a sensação de cair, que derruba o sonho.

QUAL O CONTEXTO ESTUDADO NO LIVRO?

Vamos tentar publicar no Exterior e no Brasil. Essa pesquisa sobre o consumo como política começou em 2009. As pessoas consumiam para se incluir no sistema. É uma maneira que a gente avalia como insustentável. Tinha uma ideia de que o consumo trazia um brilho. "Me acho maravilhosa com meus óculos novos." Era esse tipo de narrativa de que se falava. E era a narrativa oficial do governo. As pessoas sonhavam que podiam sair da subalternidade, da humildade do pobre para alguém com mais valor. Mas também havia ódio na esperança, assim como hoje há esperança no ódio.

Ao mesmo tempo em que havia essa inclusão pelo consumo, a pessoa chegava no shopping, e o guarda a perseguia. E as pessoas continuavam morrendo. Era um processo contraditório. Era um tipo de inclusão que não veio amparada de um processo político democrático, pensando no coletivo. Foi um processo focado no indivíduo, no consumo, sem que outras coisas viessem junto. Quando vinham junto, como o Fies, eram mercantilizadas. Com a crise, até o brilho foi por água abaixo.

DEPOIS DE JUNHO DE 2013 E DAS MANIFESTAÇÕES DOS CAMISAS VERDE E AMARELA E DOS CAMISAS VERMELHA, AS GRANDES MOBILIZAÇÕES DIMINUÍRAM. SERIA UM SINAL DE DESESPERANÇA?

Muitos fatores servem de faísca para a movimentação de massa. São as janelas de oportunidades políticas. É difícil dizer que o brasileiro não está na rua porque está com desesperança. Pode ser porque está com esperança. Houve grandes mobilizações na história quando a sociedade estava bem, quando estava mal, quando estava em crise. Isso não é um indicador de desesperança. Acho que a sociedade brasileira está cansada. Passou por um ciclo grande de protestos. Acredito que virão outras formas de mobilização, menores. O ciclo dos grandes protestos se estendeu a outras formas. Ficou mais setorial - com os casos dos estudantes secundaristas e dos caminhoneiros, por exemplo.

NOS EUA E NO BRASIL, MAS POSSIVELMENTE TAMBÉM EM OUTROS LUGARES, MUITA GENTE SE IDENTIFICA COM POLÍTICOS QUE DIZEM O QUE PENSAM, COMO SE TIVESSEM UMA AUTENTICIDADE QUE FALTA AOS POLÍTICOS TRADICIONAIS. COMO EXPLICAR ESSE FENÔMENO?

O mundo todo, a partir de 2011, com as Primaveras e o Occupy (Wall Street), demonstrou uma revolta antissistêmica. Mas quem capitalizou isso foi a direita, e não a esquerda. Então, não são só candidatos que falam o que querem. Essa é só uma característica deles. São candidatos antissistema. Falam mal da mídia, por exemplo.

Essa onda entendeu que o sistema democrático, de alguma maneira, faliu. Mas era justamente o que a esquerda estava denunciando: faliu o sistema segundo o qual é tudo para as empresas e nada para o povo. A direita conseguiu capitalizar essa frustração. Disse que "o sistema é comunista", que "as pessoas no poder são da geração de 1968, "a geração que ferrou sua vida, porque só se preocupou com pautas identitárias, e não com o trabalhador".

Então, é, sim, uma identificação com a ideia de falar tudo o que pensa, mas, em última instância, uma identificação antissistêmica. "Foi tudo para o pobre e para a mulher" e "não foi nada para o trabalhador". Como se a vida das mulheres e dos negros tivesse melhorado. É uma apropriação de um momento para emplacar um discurso, aproveitando o que a esquerda não soube aproveitar. E, no fundo, a culpa é do sistema neoliberal, que começou nos anos 1990 e levou à crise econômica na qual o Estado pode fazer muito pouco porque está comprometido com as grandes corporações.

FÁBIO PRIKLADNICKI


15 DE SETEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

TESTOSTERONA: REPOR OU NÃO REPOR, ESSA É A QUESTÃO

Em um dos números do The New England Journal of Medicine, foi apresentado o caso de um paciente interessado na reposição de testosterona. Era um homem de 60 anos, saudável, mas com peso na faixa de obesidade (IMC = 31,5), que se queixava de falta de energia, disposição diminuída para a prática de esportes, redução do prazer sexual e da função erétil.

Os exames laboratoriais de rotina foram normais. Duas dosagens de testosterona medidas em dias diferentes, antes das 10h - conforme as recomendações atuais -, mostraram valores de 275 e 285 ng/dL, respectivamente (valores normais: de 300 a 950 ng/dL). A revista ouviu dois especialistas. Os argumentos do que opinou a favor da indicação foram os seguintes:

1) A primeira medida seria recomendar redução do peso; a obesidade reduz os níveis de testosterona.

2) Dosar os níveis de hormônio luteinizante e de folículo estimulante para definir se o hipogonadismo é primário ou causado por outros problemas hormonais.

3) Facilidade para acumular gordura, diminuição da libido, da densidade mineral óssea, da massa muscular e da vitalidade, aumento do risco de diabetes e de doenças cardiovasculares estão associados a níveis mais baixos de testosterona, mas não são específicos do hipogonadismo.

4) A reposição pode provocar aumentos do PSA que levam a biópsias desnecessárias.

5) Se mudanças no estilo de vida não conseguirem provocar perda de peso e melhora dos sintomas, estaria indicado o uso de adesivos de testosterona com o objetivo de elevar os níveis para valores acima de 500 ng/dL.

6) O tratamento exige acompanhamento laboratorial e reavaliação em seis meses. Se não houver resposta, deve ser interrompido.

A seguir, os argumentos do especialista que contraindicou a reposição:

1) O sintoma mais específico do hipogonadismo é a diminuição da libido. Fraqueza, redução da massa muscular e da vitalidade ocorrem quando os níveis de testosterona caem abaixo de 150 a 200. Não é o caso desse paciente.

2) A função erétil costuma ficar preservada até que as concentrações caiam para valores muito baixos.

3) A obesidade é causa importante da diminuição dos níveis de testosterona.

4) Embora sejam inegáveis as vantagens da reposição no hipogonadismo, elas são diretamente relacionadas com o grau de deficiência. No caso apresentado, em que os níveis estão pouco diminuídos, levá-los à faixa da normalidade dificilmente trará benefícios.

5) Apesar de ainda existir alguma controvérsia, os dados parecem mostrar que a reposição não aumenta o risco de câncer de próstata.

6) Para esse paciente, a redução do peso corpóreo seria suficiente para elevar os níveis de testosterona, sem os custos do tratamento e dos exames laboratoriais de controle.

Essa discussão deixa claro que o tema é controverso e que perder peso e aumentar a atividade física podem ser suficientes para normalizar os níveis de testosterona na maioria dos casos. Fica claro, ainda, que a reposição por seis meses parece ser segura.

DRAUZIO VARELLA


15 DE SETEMBRO DE 2018
DAVID COIMBRA

Bruna Marquezine ficou loira

Não é verdade que todas as mulheres gostariam de ser loiras. Não é. Fiquei pensando nisso ao ver as fotos da nova Bruna Marquezine. Ela pintou o cabelo de loiro-sueco. Ficou bem, embora seja preciso ressaltar que, no caso de Marquezine, se ela se vestir com uma sacola do Zaffari, também ficará bem.

Depois de tingir o cabelo de amarelo, Marquezine meteu-se em um vestido preto, tirou fotos e as postou no Instagram. Em uma delas, surge com um colar de algum metal branco. Prata, suponho. O cordão lhe enlaça delicadamente o pescoço comprido de garça e despeja uma península colo abaixo, apontando para o entresseios. Eles, os próprios, estão contidos pelo tecido do vestido e, devido à pressão, parecem tentar saltar para a liberdade, para a vida, para o mundo, para o povo. 

Marquezine aparece com a cabeça suavemente virada para a esquerda, como se estivesse em dúvida. Seu rosto está ruborizado, sugerindo maliciosa pudicícia. Seus lábios, da cor do morango maduro, estão entreabertos, sugerindo maliciosa malícia. No fim da manhã de sexta-feira, essa imagem havia sido curtida por 2,7 milhões de pessoas. Dois milhões e setecentas mil. Duas Porto Alegres admiraram a foto de Marquezine loira como uma Xuxa, e a reverenciaram.

Mas, repito, não é verdade que todas as mulheres queiram ser loiras.

Também não é verdade o que aquele clássico da Marilyn Monroe apregoava: Os Homens Preferem as Loiras.

Não, não é. Mas escrevi, certa feita, um conto curto que começava assim: "Ela se virou de lado. Assentou a orelha no travesseiro. E miou, sorridente: - Amanhã é seu aniversário...

Ele apenas sorriu de volta, modesto: era. Ela continuou, rouca: - Pode pedir o que quiser...

Ele arregalou os olhos. - O que eu quiser? Ela, lambendo os lábios, a malícia faiscando nas bordas das pupilas: - Arran...

Ele sentou na cama, apoiando-se nos cotovelos:

- Tudo mesmo? - Tudo. Tudinho... - disse: tudjinho, com dê e jota.

Ele olhou para o gesso do teto, sonhador:

- Quero que você seja loira!".

Um pedido desses, feito para uma morena convicta, uma morena raiz, é quase ofensivo. Conheço morenas que sentem infinito orgulho da sobriedade de seus cabelos. A loira entra em algum lugar debaixo de sua cabeleira fosforescente e de imediato chama a atenção de todos. A morena, não. A morena, a beleza dela é sorvida devagar, como um licor. É disso que muitas morenas se gabam, como se levantassem o queixo e desdenhassem: "Sou difícil".

A Marcinha, minha ilustríssima, é morena. Mas posso ver beleza em loiras, morenas, negras, ruivas, japonesas, altas ou baixas, com cabelos curtos ou longos, só não gosto de coque. Mesmo assim, intriga-me a origem dessa questão. Sim, porque existe uma questão. A Bruna Marquezine, inclusive, brincou: "Dizem que as loiras se divertem mais. Vou ver se é verdade".

Por que se divertiriam mais? Será que é porque as loiras parecem menos circunspectas? Seriam, por isso, mais extrovertidas e, sendo mais extrovertidas, mais se divertiriam?

Injustiça. Uma das mais belas loiras da história, Catherine Deneuve, é discretíssima, é a própria elegância. E, além disso, é dotada de inteligência afiada. Um dia, um repórter perguntou-lhe se havia alguma parte de seu corpo da qual ela não gostava. A resposta da Deneuve:

- Há, sim: minha orelha direita. Toma! Messalina era loira.

Cleópatra, apesar da tradição do cinema, não há certeza de que fosse morena. Afinal, Cleópatra era descendente dos Ptolomeus, mais grega do que egípcia, etnicamente falando. Podia ser loira e branca de leite.

A inglesa que enfrentou as legiões romanas e as humilhou, a rainha Boadicea, era ruiva, com uma cascata de cabelos vermelhos que lhe desciam até os joelhos, segundo o historiador Dião Cássio.

E a nossa espetacular Chica da Silva era negra como a noite que não tem luar.

Na verdade, você sabe que a cor dos cabelos só tem importância estética. A dúvida é: será que a morena transformada em loira também pensa assim? Como realmente se sente uma nova loira? O que aquilo que está acima de sua cabeça muda no que vem abaixo?

É algo que só Bruna Marquezine poderá responder.

DAVID COIMBRA

15 DE SETEMBRO DE 2018
J.J. CAMARGO

OS AMADORES FAZENDO MARKETING


Os tipos que investem na política sabem de seus defeitos ou suas características que serão malvistos pelo eleitorado. E, então, espontaneamente ou bem aconselhados, ensaiam posturas que despudoradamente contrariam o que se sabia deles.

Nos tempos remotos em que a memória, com a idade, se tornava cada vez menos confiável, se podia pretender que o nosso jeito desastrado pudesse ser esquecido pelos correligionários generosos. E aí chegou a internet e, com ela, todos os instrumentos de preservação das coisas que festejamos lembrar e dolorosamente daquelas que faríamos qualquer coisa para esquecer. A memória virtual eterna do que fizemos ou dissemos acabou com um dos instrumentos mais utilizados pelos politiqueiros oportunistas: o desmentido.

Se algum distraído não resistiu ao impulso de simplesmente negar com a cara mais inocente, pode contar que, no dia seguinte, alguém vai recuperar na rede aquele discurso, agressão ou chilique sempre revelador de que, na essência, não mudamos. Nos últimos tempos, a patrulha se tornou ainda mais implacável com a observação por olhos experientes de gestos e contraturas faciais capazes de flagrar a simulação lá no nascedouro. E tudo documentado com imagens ampliadas e em câmera lenta. Em resumo, nos encaminhamos para enterro da mentira, talvez com uma passagem rápida pelo corredor da morte.

Desses flagrantes delatores, servem-se os chefes de campanha na caça aos seus concorrentes e os humoristas, esses habilidosos garimpeiros das fragilidades humanas sempre mais evidentes quando se pretende fazer parecer que somos melhores do que supuseram que fôssemos.

A série de imitações dos principais candidatos à Presidência da República criada por Marcelo Adnet, disponível no YouTube, mostra todo o talento desse jovem humorista em captar os pontos mais vulneráveis de cada candidato, sempre expostos pelo contraditório. A fala mansa e surpreendentemente cordata de tipos beligerantes históricos é seguida de uma explosão de fúria e, logo, como por encanto, baixa novamente o espírito pacificador, porque, afinal, o chefe de marketing da campanha determinou que truculência gratuita não combina com a imagem de um futuro presidente.

Depois de poucas semanas de campanha, ficou evidente o esforço de vários candidatos respondendo a todas as perguntas não com o que eles pensam, mas com o que acreditam que os eleitores gostariam que eles pensassem. Como a maior distância do mundo é entre a realidade e o que se fantasia dela, todas as pessoas com os neurônicos livres da coação ideológica perceberam que, neste cenário de posturas robotizadas, todos os outros candidatos não se dão conta que estão fazendo campanha para o único concorrente que, de um jeito meio tosco, diz o que pensa, e o que pensa parece ser dele mesmo. Além disso, quando não sabe, ele não mostra constrangimento de dizer que não sabe, sem dissimulações. Neste contexto de convicções escassas, temos que admitir que a agressão física, além de primitiva, foi um exagero de generosidade marqueteira.

J.J. CAMARGO

15 DE SETEMBRO DE 2018
MÁRIO CORSO

O perigo das vassouras


Esses dias, o Eduardo Bueno reclamou injustamente do soprador de folhas. Classificou-o entre os inventos do medonho por produzir um barulho dos infernos.

O colunista esquece que o aparelho pertence ao universo do cortador de grama. Aquele que o pessoal da praia usa para quebrar o estresse de ficar longe da cidade. Soam o clarim do dever para romper a monotonia do silêncio e despertar-nos da modorra das férias.

Afinal, a praia amolece o espírito. Se não é uma roçadeira zunindo, a preguiça toma conta. Dá vontade de sestear, de ir para a rede. O pessoal até pensa em pegar um livro.

Mas não estou aqui para elogiar as trombetas de jardinagem e seu proselitismo laboral, mesmo aos domingos e feriados. Voltando ao difamado soprador. Na verdade, trata-se de um artefato utilíssimo, além do barulho, protege os homens de seu maior perigo: a vassoura.

Como vocês sabem, a vassoura feminiza o homem. Por isso os sopradores, por isso homem varre com mangueira mesmo durante época de seca. Torra litros de água para evitar ser flagrado com a vassoura na mão.

Sim, existem homens que varrem. São raros, uma casta superior da masculinidade, uma tropa de elite que não teme ser confundida com mulher. Por razões desconhecidas, talvez muito treinamento, eles são imunes ao contato deletério com o vil instrumento que empurra a sujeira e emascula os homens. Se você vir um homem varrendo, esse é macho mesmo.

Empunhar arma qualquer homem faz. Ficar dando tirinho de mentira para provar que é macho é o que as crianças fazem. Agora, pegar na vassoura é que são elas.

Mas, você que quer ser mais macho, como chegar a usar uma vassoura? Como perder o medo? Terapeutas recomendam aproximação por etapas. Use instrumentos menos perigosos no início. Para dessensibilizar, comece com o pano de prato e uma secada de louça. Depois, vá para a pia e tente esponja e detergente. Aos poucos, sem choques, descubra os mistérios da alquimia da espuma.

Domine a angústia e verá que você pode. O membro não encolhe, a voz não afina, a barba não cai, as mãos seguem bem comportadas. É uma experiência e tanto.

Quando passar dessa etapa, enfrente a vassoura. No primeiro dia, só segure. Sinta o peso, o ponto de equilíbrio, a ginga necessária. É quase como uma dança, você a conduz. No segundo dia, arrisque uma ciscada aqui e acolá. Sem exagero. Depois, vá paulatinamente aumentando a área. Por fim, use no pátio, que é notadamente mais difícil. Em algumas semanas, você terá domado a vassoura.

Não existem mais as amea- çadoras vassouras das bruxas. Tudo não passa de um antigo tabu de contágio, superstição, crenças arcaicas sobre medo de perder o pinto. Triunfando sobre a vassoura, você já não precisará mais portar instrumentos que jorrem, soprem ou atirem para afirmar metaforicamente seu gênero.

MÁRIO CORSO