sábado, 20 de abril de 2019


20 DE ABRIL DE 2019
EM FAMÍLIA

VOCÊ É VOCÊ, SEU AMIGO É SEU AMIGO

Pais e mães, em algum momento, serão confrontados com argumentos do tipo "Ah, mas na casa do Fulano pode!". Ao reivindicar suas vontades, crianças e adolescentes costumam apelar para os exemplos que os rodeiam, vigentes nas famílias dos colegas e amigos: horário para dormir ou para sair da festa, tempo para jogar videogame, permissão para comer doces ou tomar refrigerante. Para a psicóloga e psicoterapeuta Gisleine Verlang Lourenço, professora da Universidade La Salle, é fundamental que existam regras em cada núcleo familiar para que os filhos se sintam seguros. As normas quanto ao comportamento doméstico, social e escolar devem ser claras: o que pode e o que não pode?

- As regras não podem variar de acordo com o humor dos pais. É importante dizer que as regras são para proteger, para amparar, e não por raiva ou como castigo. Regra é uma riqueza afetiva da infância e da adolescência com amor, é um cuidado - afirma Gisleine.

Existem famílias que enfrentam grande dificuldade para impor limites, mas não se pode abrir mão deles. O limite, frisa Gisleine, ensina a diferença entre fantasia e realidade, ajudando na construção do "si mesmo" e na diferenciação entre o "si mesmo" e o outro.

- "Você é você, seu amigo é seu amigo. Isso é o melhor para você." Aí entram as crenças e os valores. A criança a quem tudo é negado vai ser tão infeliz quanto aquela a quem tudo é permitido. Os excessos não vão dar uma direção. A criança precisa de norte e precisa aprender a fazer escolhas. Não temos tudo o que queremos nunca. Não se pode fazer tudo na vida - continua a psicoterapeuta.

Durante a infância, a criança aprende muito por meio das brincadeiras. Erguer um simples castelo de areia na beira da praia pode se mostrar uma bela lição sobre como encarar frustrações. Se o castelo não ficou tão alto e exuberante quanto ela queria e acabou desmoronando muito antes do previsto, o que se pode tirar dessa singela experiência? Como aprender com os erros? Faltou molhar e compactar mais a areia? A construção precisava de uma base maior?

- Ela tem que aprender a lidar com o fazer de novo - assevera Gisleine.

Com adolescentes, ensina a psicóloga, é importante não estabelecer uma relação autoritária e impositiva. Prefira a conversa, para o bem de todas as partes. Gisleine também reforça a importância de um investimento continuado na educação. Há pais, atesta, que dão muita atenção em determinada fase da vida e depois não se mantêm nessa mesma linha.

- É importante o investimento na primeira infância. O adolescente depende da riqueza afetiva de ter tido uma infância amorosa. Na adolescência, a angústia é maior, vêm as ansiedades referentes às mudanças, eles estão em um momento de transformação no corpo e na mente, é uma fase de mistério e mais ansiedade - constata a professora.



20 DE ABRIL DE 2019
JJ CAMARGO

AS MELHORES JUSTIFICATIVAS PARA SE VIVER

Não resisto a pensar na solidão e na escassez de propósitos de quem envelheceu sem filhos e sem a doçura dos netos

Cada vez mais a sociedade ocidental tem abdicado das tarefas da paternidade, confessando que considera irresponsável ficar jogando criaturinhas no mundo, sem saber o que este mundo fará com elas. Muitos homens alegam não ter condições de criar filhos nas décadas recomendáveis e, adiante, ao alcançarem a estabilidade econômica, trocam o discurso e assumem que, depois de tanto esforço, parece justo que pretendam aproveitar a vida sem o peso de uma prole que demora, em média, três anos, só para aprender que comer e dormir têm hora certa.

A emancipação feminina, em muito estimulada pela competitividade no mercado de trabalho, transferiu a iniciativa da maternidade para a etapa final da fertilidade, e então por razões biológicas, emocionais ou de simples inércia, muitas mulheres renunciam ao instinto mais antigo, o da procriação.

Não cabe nenhum julgamento, até porque cada um sabe de si, mas não resisto a pensar na solidão e na escassez de propósitos de quem envelheceu sem prole. E mais ainda, que essa desistência não envolve só a geração dos filhos, ela vai mais além, eliminando a camada seguinte de descendentes, que é a mais doce e espontânea, e que por ser maravilhosamente descomprometida da ideia cansativa de educação, não reconhece outra moeda de barganha que não seja o afeto. Dá pena pensar em quantas pessoas que disso nunca saberão.

Foi só no que pensava voltando de Vacaria, onde, durante três dias, acompanhei a iminência da morte da minha mãe. No pior momento, quando pareceu que o coração pararia a qualquer instante, saí do hospital acompanhado do João Pedro, meu neto mais velho, e conversamos sobre o quanto é doloroso perder uma mãe, e ainda ter que suportar as pessoas que acham que consolam alegando que tendo vivido tanto e sido bem amada, ela é um modelo de vida bem vivida, o que portanto imporia a aceitação da morte. Expliquei a ele que essa racionalização é uma exclusividade dos que não estão emocionalmente comprometidos. A perda dos amados, independentemente da idade e circunstância, é sempre cruel, dolorosa e extemporânea. Meu gurizinho amoroso, vendo meu sofrimento, me abraçou e choramos juntos. Ele não chorava a proximidade da morte da bisavó, com quem pouco conviveu. Ele repartia, em lágrimas, a dor do avô. Um desses choros tão bons de chorar, que nos deixam a sensação de que seria uma enorme gentileza da vida se ela pudesse dar um reset e se permitisse recomeçar daquele ponto.

Três dias depois, a mãe iniciou uma melhora meio surpreendente e, depois que estabilizou, anunciei que voltaria para Porto Alegre, para operar dois casos graves, que me angustiava transferir. Foi então que o Zé Eduardo, meu neto menor, na inocência dos seus 10 anos, protestou:

- Mas então, o que adianta a gente torcer para a bisa melhorar, se daí o meu vô vai embora?

Estes presentes são a mais generosa compensação de quem arriscou espalhar genes pelo mundo e não teve medo de plantar incertezas, confiando que um dia, através deles, a vida justificaria termos existido.

JJ CAMARGO


20 DE ABRIL DE 2019
DAVID COIMBRA

A mais importante mensagem de um pai para um filho

Tem uma mensagem que, se conseguir passar para o meu filho, considero cumprida minha principal missão de pai. Esforço-me todos os dias para transmitir-lhe isso e o faço menos com palavras e mais com ações, porque o que ensina, de verdade, é o exemplo.

Você observa uma criança se desenvolvendo e aprende com ela também. Ela atravessa diversas etapas críticas durante o crescimento, e você precisa ter sensibilidade para lidar com cada uma.

Um dos momentos mais decisivos, o momento sobre o qual venho escrevendo toda a semana, é aquele em que a criança descobre que não é imortal.

É um choque.

Não existe idade certa em que essa descoberta é feita. Às vezes, isso só acontece na vida adulta, e aí sobrevém o trauma inevitável. Ontem, contei a respeito do repórter fotográfico que foi torturado pela milícia no Rio de Janeiro. Ele amava o perigo, só se sentia vivo quando enfrentava uma situação-limite. Mas, no dia em que o perigo se concretizou, ele percebeu o tamanho de sua fragilidade. E se deprimiu tanto, que agora diz estar meio morto. De fato, foi uma morte, porque ele compreendeu que não é imortal.

Em geral, as pessoas vão absorvendo essa verdade lentamente. As mulheres, mais rápido, porque as mulheres menstruam. Quer dizer: elas levam o ciclo da vida dentro delas. A cada mês, as mulheres são informadas de que tudo que vive cumpre idêntica sina: nasce, amadurece, definha e morre. Isso, claro, se o ser vivo obteve êxito em sua trajetória. Alguns morrem antes de definhar ou antes mesmo de amadurecer, um fracasso biológico.

Então, chega o tempo em que a pessoa conclui, ou simplesmente intui, que ela morrerá, o que significa que coisas ruins também podem lhe acontecer. Aí ela se vê só e desamparada. E pode se tornar vítima da depressão.

Se a pessoa é religiosa, ela tem um pequeno antídoto contra isso - ela acredita na vida eterna, na recompensa no Além. Ou seja: ela recupera a noção de imortalidade e se sente mais segura. Se ela não for religiosa, necessitará de outra ferramenta. A filosofia, talvez.

Sêneca dizia que, para perder o medo paralisante de que alguma coisa horrível pode acontecer com você, você tem de fazer o seguinte: tem de TER CERTEZA de que alguma coisa horrível irá acontecer com você. Uma vez que você tenha assimilado que a morte é inevitável, que, ao envelhecer, o corpo padece, que acidentes são possibilidades e que o ser humano não é confiável, uma vez que você tenha entendido que, no fim, estará sozinho, você relaxará e poderá viver com leveza os dias que lhe restam.

É o que tento mostrar sempre para o meu filho: que o futuro não importa; que nós devemos planejá-lo, mas não nos preocupar com ele; que um dia vivido com alegria, em que você tenha feito boas coisas, é um dia vitorioso. É o que tento mostrar. Tento mostrar que sei que os problemas virão, mas não é isso que interessa; o que interessa é como vamos reagir quando eles vierem. Tento mostrar que o fim de um ciclo não é um revés, é um sucesso, ainda que seja o fim do ciclo da existência. Tento mostrar, mais do que tudo, que a vida é boa. É essa a mensagem que quero lhe passar, que insisto e repito: a vida é boa. A vida é boa.

DAVID COIMBRA


20 DE ABRIL DE 2019
MÁRIO CORSO

O consumidor imortal

Estava em Erechim na primeira semana após o falecimento do meu pai. Ajudava minha mãe com as minúcias do novo cotidiano e com a dificuldade radical: como ela teria que inventar um outro modo de viver. Não existe verdadeira elaboração do luto. A perda deixa um vazio irremediável. O que conseguimos é aprender a contornar o buraco que se abriu. Muitas vezes readquirindo o gosto pela existência, mas nunca sem muito sofrimento.

Toca o telefone. Atendo e perguntam: poderia falar com o senhor Luiz Corso? Infelizmente não, respondo. Com a voz embargada, digo que sou o filho e que meu pai faleceu recentemente. Do outro lado volta a pergunta: e quem ficou responsável pela linha telefônica? Desliguei. Não fui educado, mas fiquei sem palavras.

Escrevo para me desculpar e explicar algo aos jovens que trabalham em serviços de telefonia. Talvez, pela juventude, eles ainda não saibam, e a companhia para a qual trabalham ainda não lhes ensinou: a morte é para sempre. Inclusive, é por isso que só se morre uma vez. E, por só se morrer uma vez, é um incidente grave, solene, dramático. E, quando este fato sucede, o mundo prático torna-se irrelevante. Portanto, a última coisa que alguém da família pensa é: quem ficará responsável pela linha telefônica.

Resumindo, dada a irreversibilidade do ato de morrer, os que ficaram estão tristíssimos, e aquele que partiu está sem possibilidade de aproveitar vossas maravilhosas ofertas de novos planos. Dado isso, o correto seria dizer: meus sentimentos, ou meus pêsames, ou, ainda, devem ser dias duros para vocês, falaremos em outra ocasião.

Um ano depois, visitando minha mãe, atendo ao telefone. A mesma conversa ressurge. Agora calmo, digo que não é polido ligar para os mortos. Explico que quem perdeu alguém é constantemente lembrado pelos objetos partilhados juntos, pelas memórias que voltam, da ausência do falecido. Portanto, o telefonema perguntando pelo finado é uma crueldade, um adicional de melancolia.

Comento o fato com minha mãe e ela responde que isso acontece a cada tanto. Ela me conta que já fez o que eles sugeriram para que parasse. Inclusive presencialmente, em uma loja da companhia, mas que nada surte efeito. Seguem ligando para o fixo oferecendo planos de celular ao meu pai.

Começo a ficar indignado, mas minha mãe me desarma com sua estratégia: "Como não acreditam em mim, depois de explicar mil vezes, resolvi dizer que ele está viajando e que não sei quando retorna". Ela ri enquanto fala, como se brincasse ao mentir para o telemarketing.

E neste pé estamos, quase 15 anos depois, minha mãe ainda recebe ofertas. A companhia talvez tenha criado o conceito de consumidor imortal e não nos avisou.

O que não consigo responder é quem ficou com a linha. Sei que fiquei com o silêncio de meu pai.

MÁRIO CORSO

20 DE ABRIL DE 2019
OPINIÃO DA RBS

OS DANOS DO POPULISMO


Intervencionismos na área econômica podem até gerar algum resultado imediatista, mas o custo costuma ser sempre elevado, quando não impagável
A decisão do presidente argentino, Mauricio Macri, de ignorar o discurso de defesa do livre mercado com o qual foi eleito e ressuscitar práticas danosas, como acordo de preços e congelamento, serve de alerta para os riscos do populismo que rondam países da América Latina. Independentemente de sua ideologia, governantes tendem a se achar no direito de recorrer a práticas intervencionistas quando se sentem enfraquecidos ou ameaçados. O objetivo é sempre alcançar resultados rápidos, sem levar em conta que o custo dessas medidas costuma ser elevado a médio e longo prazos.

Foi esse tipo de preocupação que levou o presidente Jair Bolsonaro a tentar interferir na política de preços da Petrobras. O temor de uma nova greve dos caminhoneiros, porém, acabou provocando, na prática, uma queda considerável no valor da empresa estatal, que precisa seguir regras do mercado. O presidente argentino também foi levado ao equívoco de ressuscitar práticas econômicas heterodoxas devido a preocupações semelhantes. O fato concreto, no caso, é a proximidade das eleições de outubro. O insucesso das políticas econômicas ameaça inclusive dar margem à volta do kirchnerismo, do qual o atual governo herdou uma inflação em descontrole que não conseguiu debelar.

A Argentina entrou no século 20 entre os países mais ricos do mundo. Hoje, é vítima de uma perversa combinação de inflação em alta, perdas salariais e desemprego devido justamente à ineficácia de medidas populistas, cujas consequências não conseguiram ser enfrentadas pelo programa de Mauricio Macri. O mesmo ocorreu com a Venezuela, vítima de receituários populistas no outro espectro ideológico. Mesmo sendo dono das maiores reservas de petróleo do mundo, o país se encontra às voltas com uma hiperinflação e falta de itens básicos de consumo, sem solução à vista. Como receitas demagógicas costumam sempre fracassar, a população acaba sendo a maior prejudicada, mas os efeitos vão além.

Parceiro comercial importante do Brasil, a Argentina já impõe prejuízos inclusive à economia gaúcha, que viu as suas receitas de exportações para o país vizinho despencarem. Intervencionismos na área econômica podem até gerar algum resultado imediatista, mas o custo costuma ser sempre elevado, quando não impagável. O Brasil é um triste exemplo, pois paga até hoje o preço de tentativas frustradas de alcançar um crescimento sustentado.

OPINIÃO DA RBS

20 DE ABRIL DE 2019
+ ECONOMIA

CRISE? QUE CRISE?

Em um ano, o Kit Inéditos da TAG - Experiências Literárias é enviado a 22 mil assinantes e representa 35% do faturamento do clube de livros, que fechou 2018 em R$ 26 milhões. Com best-sellers internacionais inéditos no Brasil, a categoria chegou a 10 assinantes em um mês, marca que o primeiro produto da TAG levou dois anos para alcançar.

A Leffa Estofados constrói unidade fabril que será anexada à existente no bairro Cristo Redentor, em Porto Alegre, ainda neste ano. O projeto, de R$ 200 mil, prevê ampliação de 50% da marcenaria, o que permitirá ampliação em 30% da demanda atendida. A estimativa é de que serão gerados 15 empregos diretos.

Porto Alegre voltará a ser sede do Congresso Brasileiro da Indústria Gráfica depois de 23 anos. Com o mote "Pensar e fazer diferente", a oportunidade de aprendizado e desenvolvimento técnico será no dia 18 de maio, no Teatro do Sesi.

A SEMANA QUE EU VI

Água gelada

O Indicador de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br) de fevereiro (-0,73%) foi um banho de água gelada. O negativo era esperado, mas veio quase duas vezes pior do que as projeções.

Na banguela

Na tentativa de frear ameaças de greve de caminhoneiros, o governo anunciou crédito de R$ 30 mil no BNDES e obras em estradas. Foi acusado pelos motoristas de dar "esmola", e causou irritação.

Doa a quem doer

Uma semana depois de segurar alta média de 5,74% no diesel, a Petrobras confirmou reajuste de 4,8%. Ganharam a estatal e a imagem do Brasil, aumentou o suspense nas estradas.

Mega para gigas

O governo anunciou leilão de áreas para exploração de petróleo com previsão de arrecadar R$ 106 bilhões em bônus de assinatura. Será só para as gigantes do petróleo - Exxon, Shell, BP. Um dos lotes é de R$ 65 bi.

MARTA SFREDO


20 DE ABRIL DE 2019
RBS BRASÍLIA

O LADO BOM DO ERRO BRUTAL DE DIAS TOFFOLI

A crise que toma conta do Supremo Tribunal Federal (STF), provocada pelo erro brutal do presidente Dias Toffoli e do ministro Alexandre de Moraes, pode até ter um lado bom, por mais difícil que isso possa parecer. A censura à divulgação de reportagem pela revista Crusoé, que traz delações da Odebrecht e cita o nome de Toffoli, foi derrubada diante de intensa pressão nacional, inclusive dos próprios ministros do Supremo. Ninguém, em sã consciência, pode suportar ou aceitar a volta de censura. E não há como negar a importância da imprensa livre para a manutenção da democracia. Essa foi a frase mais ouvida no país nos últimos dias, inclusive apropriada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, que tem longo histórico de desavenças com a imprensa.

- A sociedade mais consciente e mais exigente consegue vocalizar seus sentimentos e as instituições devem saber interpretar isso - comentou o ministro Luís Roberto Barroso sobre o recuo de seus colegas.

É claro que não há espaço para ingenuidade neste cenário. A revolta contra os ministros do STF ocorre em um momento em que a Suprema Corte já está sendo questionada. Senadores defendem a abertura de uma CPI do Judiciário e de processos de impeachment contra ministros. Há parlamentares participando desses movimentos por convicção. Mas há políticos e grupos organizados nas redes sociais que querem mais é ver o circo pegar fogo. A fragilidade do STF interessa a quem não tem apreço pela democracia. Consciente disso, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), trata o assunto da CPI com parcimônia. Se depender somente dele, a comissão jamais será instalada.

Se houver coerência, portanto, a mesma voz que reclamou da censura à reportagem contra Dias Toffoli precisa aplaudir a decisão de permitir que um jornal possa entrevistar o ex-presidente Lula. Você pode não concordar com o entrevistado, com as respostas, com as perguntas, mas a liberdade de publicação não pode ser cerceada. Os novos tempos não suportam esse tipo de tirania, comum nas ditaduras. O que era uma informação restrita a assinantes de uma revista eletrônica, caiu nas redes. A tecnologia rompeu a mordaça. Que sirva de lição para os déspotas modernos.

A Suprema Corte voltará do longo feriado de Páscoa com a missão de juntar os caquinhos e com um presidente desmoralizado.

CHOQUE DE REALIDADE

A bancada ruralista quer que o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo (à esquerda na foto), deixe de lado delírios contra o chamado "globalismo" e passe a trabalhar em sintonia com os interesses do agronegócio, sem atrapalhar a manutenção de mercados estratégicos como a China ou os países árabes.

Impossível? O presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio, Alceu Moreira (MDB-RS), acha que não. No próximo mês, o Itamaraty deve abrir os salões para uma reunião de trabalho com setores organizados do agronegócio.

- O Itamaraty sempre foi distante. A aproximação gera cumplicidade - explica o deputado.

Alceu levou a proposta ao ministro em uma reunião prévia. À coluna, o deputado afirmou que a ideia foi muito bem recebida. Com acesso a todas informações, o ministro não poderá alegar desconhecimento ao se posicionar com relação aos mercados. Representantes do agronegócio não negam a preocupação com algumas atitudes que podem gerar milhões de prejuízos com as exportações, como a ideia de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. A ministra Tereza Cristina (Agricultura) também vem acompanhando essas movimentações de perto.

COMEÇA UMA CORRIDA ENTRE LÍDERES NO CONGRESSO INTERESSADOS EM ATRAIR O GENERAL HAMILTON MOURÃO PARA OS SEUS PARTIDOS. OFICIALMENTE, O VICE-PRESIDENTE NÃO CONFIRMA, MAS ELE ESTARIA INSATISFEITO COM O PRTB E DISPOSTO A INGRESSAR EM UMA LEGENDA COM MAIOR CAPILARIDADE. ALGUNS PARTIDOS SONHAM COM O NOME DE MOURÃO PARA AS ELEIÇÕES DE 2022.

CAROLINA BAHIA


20 DE ABRIL DE 2019
INFRAESTRUTURA

OS PRÓS E CONTRAS DE UM PORTO NO LITORAL NORTE

MARINHA REALIZOU ESTUDO entre Torres e Arroio do Sal a pedido do senador Luis Carlos Heinze, mas projeto já recebe críticas
Entre 7 e 12 de abril, o navio oceanográfico Antares, da Marinha do Brasil, palmilhou a costa do Rio Grande do Sul medindo, em detalhes, a profundidade da plataforma continental (batimetria), enquanto marinheiros em terra instalaram, entre os rios Mampituba e Tramandaí, equipamentos para mensurar marés durante um ciclo lunar. A operação, executada enquanto a embarcação estava a caminho de Buenos Aires, foi uma encomenda do senador gaúcho Luis Carlos Heinze (PP-RS). Trata-se de tentativa do parlamentar de embasar um estudo técnico para confirmar um dado fundamental para sustentar uma ideia abraçada por ele ainda em 2018: construir um porto marítimo privado entre Torres e Arroio do Sal para facilitar o escoamento da produção da metade norte do Rio Grande do Sul.

O estudo da Marinha é uma das primeiras ações concretas para viabilizar a construção de um Terminal de Uso Privado (TUP) no Estado. Hoje, o Rio Grande do Sul, que tem uma costa de cerca de 620 quilômetros de extensão, conta com um porto, em Rio Grande.

CUSTO DE FRETE SERIA UMA DAS MOTIVAÇÕES

Defensores da ideia afirmam que o terminal no Litoral Norte baratearia custos com frete. Hoje, empresários da serra gaúcha estimam que o deslocamento de uma carga de aço de Caxias do Sul custa, em média, entre R$ 4 mil a R$ 5 mil até Rio Grande. Em direção a portos de Santa Catarina, o frete sairia por entre R$ 3 mil a R$ 4 mil. Até Torres, segundo levantamento, custaria cerca de R$ 1,5 mil.

A ideia de um porto no Litoral Norte remonta ao tempo do Império Brasileiro. À época, dom Pedro II encomendou a engenheiros ingleses um estudo sobre a viabilidade. Impressionados com a profundidade do mar gaúcho, pesquisadores teriam orientado a construção de um terminal na altura de onde hoje fica Torres. Entretanto, o porto acabou sendo construído em Rio Grande. Cartas náuticas eletrônicas como Navionics, utilizadas por navegadores atuais, apontam que, na altura do Litoral Norte, a profundidade da plataforma continental atinge até 22 metros a 1,8 quilômetro da praia. O que possibilitaria a entrada de navios gigantescos sem a necessidade de construção de estrutura mais adiante da areia. Em Rio Grande, essa profundidade só seria alcançada, segundo pesquisadores, a cerca de 6 quilômetros da praia.

Com calado atual de 12,8 metros, o porto do sul do Estado sofre com assoreamento. O processo de dragagem em andamento no complexo, que deve ser concluído em três meses, permitirá se chegar a profundidade de 15 a 16 metros, aumentando a competitividade.

- Nada contra Rio Grande, mas o transporte no Rio Grande do Sul é dos mais caros do Brasil. Um empreendedor tem 18% de custo logístico. Imagina trazer aço de Minas Gerais para Caxias. Posso trazer para Torres e largar ali, a 200 quilômetros da cidade (detalhes no infográfico ao lado) - explica Heinze.

Um dos idealizadores do projeto é o engenheiro Fernando Carrion, ex-prefeito de Passo Fundo e ex-deputado federal. Ele apresentou a ideia a Heinze em 2017, na época em que o hoje senador postulava concorrer ao cargo de governador. Carrion defende que a profundidade da plataforma continental em Torres é favorecida pela geografia da região, em efeito contrário aos Aparados da Serra, que projetariam no mar uma fundura maior. Ele compara o litoral local a áreas de portos internacionais como Valparaíso, no Chile, e Callao, no Peru. E mexe com os brios dos gaúchos, ao afirmar que, enquanto o RS tem apenas um porto, Santa Cataria, dispõe de cinco terminais.

- Nós, com 620 quilômetros de costa, 50% a mais do que Santa Catarina, vamos ficar com um porto? - provoca.

Dados do estudo da Marinha feito no Estado devem ser publicados em meados de maio.

RODRIGO LOPES


20 DE ABRIL DE 2019
ECONOMIA

Um olho na Previdência e outro nos caminhoneiros

A paralisia da economia aumenta a atenção de economistas para dois assuntos. O primeiro, considerado essencial para começar o reequilíbrio fiscal do país no longo prazo, é a reforma da Previdência. O segundo é a ameaça de nova paralisação dos caminhoneiros.

Mesmo tendo seus efeitos práticos sentidos apenas nos próximos anos, a mudança das regras das aposentadorias é considerada um gatilho para a retomada da confiança e a liberação dos investimentos.

- A estabilidade macroeconômica do país depende da reforma da Previdência. É necessária para termos crescimento neste ano e nos próximos. Em 2019, seria mais pelo impacto na confiança e pelo destravamento de investimentos - afirma Luana Miranda, pesquisadora da área de economia aplicada do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Economista-chefe da Tendências Consultoria, Alessandra Ribeiro observa que, apesar de a Previdência ser a prioridade, o governo também deveria encaminhar outras pautas de forma paralela, como uma reforma tributária e avanços nas concessões.

- Mas, sem a reforma da Previdência, não se garante uma coisa básica, que é o pilar fiscal. Então, não adianta ter uma agenda microeconômica um pouco melhor sem mudar a Previdência - destaca Alessandra.

O governo federal encerrou 2018 com déficit primário (sem contar os juros) de R$ 120,2 bilhões. Foi o quinto ano consecutivo de resultado negativo. Apenas a Previdência teve rombo R$ 195,2 bilhões. O parecer da reforma seria votado na semana passada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, mas a sessão teve de ser encerrada devido ao tumulto e à falta de acordo na sessão, em mais um episódio considerado uma derrota do Planalto no parlamento.

UMA NOVA GREVE JOGARIA TUDO FORA

Em meio à espera por melhor articulação do governo para tentar aprovar a reforma, uma preocupação de mais curto prazo voltou a assombrar: a possibilidade de nova paralisação dos caminhoneiros. A greve, em maio de 2018, foi considerada fator essencial para abortar o início de recuperação da economia observada nos primeiros meses daquele ano. No mês, a atividade teve retração de 3,34%, de acordo com o IBC-Br, espécie de prévia do PIB, apurado pelo Banco Central.

- Uma nova greve dos caminhoneiros jogaria tudo fora - diz o economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Fabio Bentes, referindo-se às expectativas ainda existentes de expansão do PIB mais forte do que o ano passado, de 1,1%.

Para Alessandra, da Tendências, apesar de a principal razão da insatisfação dos caminhoneiros ser o preço do diesel, a causa do desequilíbrio é mais profunda.

- O pano de fundo é um excesso de oferta, muitos caminhoneiros, e de outro lado a demanda fraca. Isso joga o preço (do frete). E eles têm pouca margem para absorver o aumento do diesel. Soluções artificiais não adiantam. As empresas acabam internalizando esta função também - resume a economista, aludindo à busca das companhias por formar uma frota própria para driblar exigências como preços mínimos do frete.

"A questão é que agora as pessoas estão com dúvidas sobre a capacidade de articulação do governo para aprovar as reformas e ter uma agenda mais liberal da economia, prometida no período eleitoral."

Luana Miranda, Pesquisadora da área de economia aplicada do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV

"O mercado de trabalho está muito lento, fraco, com níveis recorde de subutilização da mão de obra e desalento. Isso afeta setores que precisam do consumo para se recuperar."

Fabio Bentes, Economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC)

"O contexto da atividade econômica global não é favorável, mas olhando para a nossa realidade, acho que há frustração com o início do governo."

Alessandra Ribeiro, Economista-chefe da Tendências Consultoria

Fontes: IBGE, BC e FGV

sexta-feira, 19 de abril de 2019



19 DE ABRIL DE 2019
DAVID COIMBRA

O homem torturado pela milícia

Fiquei tão impressionado, que sonhei a noite inteira com uma entrevista que o Pedro Bial fez na terça passada. Ele conversou com Nilton Claudino, ex-repórter fotográfico do jornal O Dia, do Rio. Em 2008, Claudino foi torturado pelas milícias cariocas, e isso mudou-lhe a vida para sempre. Claudino diz que, depois da tortura, tornou-se um morto-vivo. Não é exagero, e já conto por quê.

A desventura de Claudino começou quando ele decidiu fazer uma reportagem investigativa em uma das regiões dominadas pela milícia. Ele escolheu a repórter que o acompanharia e os dois se infiltraram na favela dizendo que eram casados e que vinham de fora do Estado. Passaram duas semanas em uma casinha alugada, convivendo com a comunidade, até que foram descobertos. Então, policiais fardados e à paisana os levaram para o que Claudino chamou de "casa da tortura". Lá, eles foram seviciados brutalmente durante sete horas e meia.

Claudino contou que, durante a tortura, seus algozes repetiam que ele nunca mais seria o mesmo.

- E era verdade - reconheceu.

Foi precisamente isso que me espantou. Vi, na entrevista com o Bial, um homem de espírito fraturado. Claudino hoje é um farrapo emocional. Ele chorou várias vezes em meio à conversa e, a certa altura, admitiu que todos os dias pensa em cometer suicídio. Só não o faz por causa dos filhos.

A tortura ocorreu há 11 anos, fisicamente Claudino parece recuperado e é improvável que seus verdugos o capturem outra vez, até porque ele abandonou a profissão, não representa mais uma ameaça. O que leva à questão: por que Claudino não conseguiu reintegrar a alma? Por que os torturadores estavam certos quando previram que ele nunca mais seria o mesmo?

Respondo: porque, agora, Claudino sente medo. Agora, ele sabe que coisas horríveis podem acontecer.

Ele próprio relatou que, antes, adorava fazer matérias de risco por ser "viciado no perigo". Não é o único. Mas quem é viciado no perigo obviamente só o é porque o perigo não se realiza. Ou seja: a pessoa passa pelo perigo e sai intacta, como se estivesse numa montanha-russa ou num trem-fantasma. Desta forma, o perigo produz sensação oposta à ameaça que representa: produz sensação de fortaleza, de imortalidade. A pessoa se sente mais confiante. Foi essa confiança que Claudino perdeu para sempre. A sensação de desamparo é o que o desespera e o faz se sentir meio morto.

A experiência de Claudino foi traumática, abalaria qualquer um. Mas não é preciso tanto para acionar a chave que dá o sinal de alerta na cabeça das pessoas. Pode ser algo de aparência trivial: um chefe que persegue o funcionário, uma separação, uma perda de emprego, um acidente, uma desilusão. É algo que leva a pessoa a concluir que nem a fama nem o dinheiro nem a beleza e nem uma vida correta são capazes de proteger quem quer que seja dos males da existência ou da maldade humana.

O mundo de hoje tem ainda outra característica que aumenta essa terrível impressão de abandono: no mundo de hoje, falta Deus. Não estou falando do aspecto transcendental, estou falando do aspecto psicológico. A religião, que Freud dizia ser uma ilusão, por envolver fé e desejo, a religião dá consolo ao crente. O homem religioso tem certeza de que o Bem vencerá o Mal, nem que seja depois da morte. Hoje, porém, as pessoas são mais céticas. Em nome da razão, muitos não acreditam em Deus. E a vida sem Deus é solitária.

O espaço se foi e ainda não cheguei ao ponto que queria. Ainda vou dizer o que é importante: que há saída. Não desanime, crente ou ateu. Há saída.

DAVID COIMBRA

sábado, 13 de abril de 2019


DEPRESSÃO E SUICÍDIO

Sabe-se que a luz solar ativa a produção de serotonina e dopamina, neurotransmissores relacionados à felicidade e ao bem-estar. Dias escuros, assim como chuvosos, não acionam esse mecanismo. Há até mesmo problemas mentais que surgem em função das estações: o transtorno afetivo sazonal, por exemplo, é um quadro que apresenta sintomas de depressão no inverno e melhoras no verão. No entanto, mais uma vez, o clima não bate o martelo: em um livro clássico sobre suicídio, o sociólogo francês Émile Durkheim, ao analisar as taxas de mortes autoinduzidas em países da Europa do século 19, descobriu que os casos costumam ocorrer no verão, e não no inverno.

Estatisticamente, não é na Europa nem na América do Norte que estão concentrados o maior número de casos de suicídio: segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 79% deles ocorrem em países de baixa e média renda - o Brasil está em oitavo lugar. Os mais afetados são populações vulneráveis, como imigrantes, LGBT+, indígenas e presos, o que confirma que, sozinho, o inverno não é responsável pela depressão. A doença mental da modernidade, ao lado da ansiedade, é uma mistura de fatores genéticos, traumas do passado e outras causas.

O sul do Brasil registrou 23% de todos os casos de suicídio de 2017 no país, apesar de concentrar 14% da população brasileira, segundo boletim do Ministério da Saúde. E o Rio Grande do Sul tem as maiores taxas entre os Estados: 10,3 mortes por suicídio a cada 100 mil habitantes, quase duas vezes maior do que a taxa nacional, de 5,5. A Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul (SES) trata o tema como problema de saúde pública. A zona de maior risco é o Vale do Rio Pardo, região de plantio de fumo. Há estudos apontando que agricultores responsáveis por essa atividade têm maiores taxas de suicídio - os riscos seriam desde o uso do agrotóxico, aplicado de forma manual, até uma autoestima mais baixa, afetada pelos maus olhos que grande parte da sociedade destina a quem trabalha na cadeia do cigarro.

- São vários os fatores que influenciam o ser humano. Países escandinavos, com clima predominantemente frio e noites prolongadas, têm grandes taxas de depressão e de suicídio. O Rio Grande do Sul, onde o inverno é acentuado em comparação ao resto do Brasil, tem as maiores taxas de suicídio do Brasil - ressalta Cláudio Meneghello Martins, diretor da Sociedade Brasileira de Psiquiatria (SBP). - O frio proporciona um isolamento social maior, mas entram também a predisposição genética e o estresse ambiental, como violência urbana, pobreza ou maus-tratos emocionais - salienta o psiquiatra.

Ainda que o escuro seja naturalmente associado ao perigo e ao que não é visível, o psiquiatra Luiz Carlos Mabilde, da Sociedade de Psicanálise de Porto Alegre (SPPA), destaca que nenhum clima é essencialmente melancólico ou inspirador: o indivíduo é responsável por conceber significados a eventos. Se para um morador da cidade a chuva pode suscitar tristeza, para um fazendeiro pode ser sinal de alegria e de prosperidade na plantação.

- O dia ensolarado é um dia como qualquer outro. E o dia cinzento também. Projetamos no sol e no cinza questões que já existem dentro de nós. Se estamos bem, não é o dia acinzentado que vai nos deprimir, nem o sol irá nos deixar eufóricos - reflete Mabilde.



13 DE ABRIL DE 2019
LEANDRO KARNAL

Pensamento cetáceo

Convivendo muito com minha orientadora de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), criei a expressão pensamento cetáceo. Se a querida leitora e o estimado leitor tiverem um pouco de paciência, creio ter identificado uma tribo específica da espécie humana que pode conter gente da sua família em seu seio.

Eu falava da professora titular Janice Theodoro. Ela pensa muito, discute ideias com habilidade e colaborou imensamente para questionar minhas zonas de conforto. O rico universo interior (somado à tradição psicanalítica) fazia com que ela debatesse um tema denso com maestria e leveza em um jantar. Com o andar da carruagem gastronômica, íamos vendo diversos tópicos. Havia em Janice um universo interior distinto: ela continuava pensando na conversa que a movera naquele dia, mesmo horas depois do assunto, aparentemente, ter se extinguido.

Exemplo prático: falávamos no conceito de barroco colonial mexicano, chegávamos à obra de Heinrich Wölfflin e à desconstrução de alguns pressupostos de Jacob Burckhardt e, com alguma probabilidade, terminaríamos pensando no vinho a nossa frente. Porém, pasmem queridas leitoras e estimados leitores: Janice prosseguia internamente no conceito de barroco enquanto o assunto já se transformara em vinho, comida ou outra amenidade. Em alguma sala do Palácio da Memória, o conceito ainda pulsava, fluía e, sem aviso prévio, voltava como um gêiser inesperado. Eu estava pegando o carro e ela soltava frase forte e com ênfase gestual: "A Capela do Rosário em Puebla!". 

O que a belíssima peça do barroco colonial mexicano poderia iluminar o momento com o manobrista? Nada, aparentemente, se eu pensasse na minha tradição linear cartesiana e na minha noção agostiniana de tempo Porém, o primeiro debate da noite tinha voltado à tona de forma abrupta, como uma baleia que, após longo mergulho, ergue-se imperial em busca de ar, alçando seu corpanzil ao sol, acima das águas, para, em seguida, cair estrondosa na água cristalina. Eis a descrição do meu conceito: "Pensamento cetáceo".

As baleias são mamíferos que podem mergulhar a profundidades abissais. Porém, o apelo da respiração acaba chegando. Como os golfinhos, podem morrer afogadas nas águas em que nasceram. Boas nadadoras e exímias mergulhadoras, no entanto, continuam mamíferas e dependentes dos pulmões. Na superfície, só as vemos quando respiram. 

A superfície é a conversa audível. Ali, estamos nos vendo, baleias, golfinhos, navegadores e flutuadores em geral. O tema submerge na vastidão dos oceanos. Em graciosos movimentos ondulatórios, o tópico volta mais adiante, quando, para quem está na superfície, ninguém mais pensa nele. Efeito cetáceo seria o costume de voltar a um foco já largado em oceano passado e sem nenhuma introdução.

Defendo o grupo de animais marinhos que englobei no título da crônica. Vivem, como Janice, imersos em solilóquios. Os cetáceos costumam pertencer a uma família expressiva marcada pela inteligência e um diálogo consigo muito forte. Não se confundem com os meros distraídos ou com os indivíduos fechados em sua casmurrice. 

O cetáceo clássico é dotado de uma imensa lógica narrativa. Ele pode ser uma dificuldade para o resto do mundo porque não exibe todo o fio narrativo e apenas surge, quase uma epifania, com uma nova conclusão e, depois, volta ao mundo hídrico invisível.

O pensamento cetáceo parece indicar uma capacidade de autocentramento muito sólida. Seriam partes soltas de uma corrente: algo pode ser engatado ali, mas não é da natureza do elo estar associado. Imagino que a sociabilidade mais vaga ou superficial seja um sofrimento.

Aprendi muito com Janice e declaro, com plena consciência de verdade, ser um devedor intelectual eterno. Nem sempre consegui seguir o canto profundo quando o corpo desaparecia das marolas oxigenadas da casca do mundo. 

Percebendo apenas os espasmos espaçados e recortados do mundo dos vivos não aquáticos, não identificava a linearidade humanística de tudo que era enunciado. Talvez seja o erro de comunicação mais comum: eu interpreto que o total do dito coincide com o total do pensado e que a palavra enunciada seja o único e derradeiro significado do significante.

Viver tende a diminuir nosso olhar duro e vaidoso. Quando encontrei pela primeira vez minha futura orientadora, em 1987, eu era mais preocupado com o rigor da tradução de um termo teológico do que capaz de admirar a sutileza cetácea. Aprendi tanto, especialmente sobre comunicação e a diferença entre saber dados e interpretar culturas. A passagem da erudição ao conhecimento necessita de um passaporte especial. 

O papel de formador é mais sofisticado do que o de informador. Há uma boa tradição acadêmica de conversas, debates, de ouvir e de falar que constitui uma riqueza insubstituível. Janice, até hoje, reclama do declínio do que ela, com razão, chama de filia acadêmica. Tive esse privilégio em salas da USP, na casa dela, em pizzarias e em viagens. Crescia, inclusive, quando tocávamos Summertime, de Gershwin, eu ao piano e ela ao contrabaixo, em memoráveis noites na Rua Joaquim Antunes. Minha formação clássica esbarrava na "blue note" do balanço do jazz. 

Trinta anos depois, tropeço ainda, mas agora sei que Bach é uma pedra na estrada da vida e não o universo. Talvez seja isso que uma boa pós-graduação possa nos trazer: amplitude, diversidade, questionamento e descoberta de outras alvenarias. Agradeço sempre aos cetáceos em geral e à Janice em particular. É preciso ter esperança. 

LEANDRO KARNAL


13 DE ABRIL DE 2019
JJ CAMARGO

O ORGULHO DO PIETRO

Parabéns, Beto, pela capacidade de sublimar o peso avassalador da tragédia de perder um filho

Entre os muitos eventos essenciais positivos na vida de uma pessoa, nada supera em intensidade a de se ter um filho. Pela mesma razão, nada é mais devastador do que perdê-lo, não só pela incompreensível inversão da ordem natural da vida, mas pela extinção aguda e definitiva, dessa usina propulsora de toda a energia que nos move e nos impulsiona a partir do momento em que cheiramos o pescoço das nossas crias pela primeira vez, e iniciamos a obstinada missão de dar a elas, uma vida melhor do que a nossa.

José Saramago, magistral como sempre, definiu filho como "um ser que nos foi emprestado para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem". Ainda que ele conclua que, como emprestados, não poderemos perdê-los, na verdade sentimo-nos, o tempo todo, não como locatários, mas como os legítimos posseiros de suas vidas, sonhos e destinos. E da morte deles nunca nos recuperaremos, passe o tempo que passar.

A atitude diante da perda é que pode ser diferente. Ainda que a maioria transporte a dor da ausência para a tristeza amarga da solidão, e envelheça inconsolável, alguns conseguem arregimentar forças para a preservação da memória viva, através da prevenção de novas tragédias.

Quando o normal seria afogar as mágoas na aspereza da revolta e na aridez da incompreensão, alguns tipos emergem da catástrofe com a clara determinação de impedir que outras famílias sejam atingidas pela mesma dor que as mutilou.

De onde retiram essa energia? Não tenho ideia, mas sei que eles são especiais.

Ouçam o Beto Albuquerque contando da sua batalha para multiplicar por mil o Banco de Medula Óssea através da lei que recebeu o nome do seu filho, para evitar que morram outros Pietros, como o seu amado, que ele não conseguiu salvar.

Quando depararem com a energia que ele tem no olhar, saberão porque ele é um ser superior. E entenderão a comoção que marcou o lançamento do Instituto Pietro, em homenagem àquele garoto de cara linda que sorria no painel, justo no dia em completaria 30 anos.

Parabéns, Beto, pela capacidade de sublimar o peso avassalador da tragédia, para evitar que famílias desconhecidas sofram dessa dor que basta ser pai para saber que continuará latejando no peito para sempre.

Tenha certeza de que enquanto viver uma só pessoa salva pelo transplante de medula teu empenho, coragem, resiliência e determinação serão reverenciados, e enquanto viveres serás a imagem irretocável da gratidão, sempre o melhor antídoto do esquecimento.

Obrigado, amigo, e eu te garanto que o Pietro está muito orgulhoso do pai que ele amava tanto e que deixou para trás com a incumbência de representá-lo.

JJ CAMARGO


13 DE ABRIL DE 2019
LYA LUFT

Nós nos voltamos para trás

Parafraseio meu querido velho amigo Mario Quintana, que morreu mas - como os artistas em geral - permanece vivo, falando de tia Tula: "E ela nem se voltou pra trás".

Assim, me parece às vezes, embora não generalizando, que acontecem as relações familiares ou entre amigos, quando não entre amantes, casais. O tempo das separações extremamente dramáticas, e raras devido aos preconceitos, pode estar passando. Casais jovens juntam e separam com aparente facilidade. Um dia ou dois de lágrimas, cama, músicas que lembrem o outro, e depois, a linda resposta de uma filha de Fernando Sabino quando ele perguntou como a menina estava depois de um namoro desmanchado, vendo-a sair do quarto mais animada: "Eu vou me vingar sendo feliz".

Sempre achei isso genial, e recomendei, incluso para mim mesma, algumas vezes nesta vida. Falar é fácil, isso todos sabemos. Mas, talvez devido à fluidez geral das coisas e emoções, a coisa parece mais fácil.

Perdemos o emprego, arrumamos outro, ou ficamos com os pais, ou temos algum tipo de auxílio, bico, recurso qualquer (fora os casos dramáticos de pais ou mães desempregados com filhos na escola, na mesa, na vida). O namorado ou namorada foi apanhado em flagrante, ou confessa que tudo acabou? Nada que umas boas risadas na turma de amigos não melhore, e de preferência arruma-se logo outra parceria.

Estou exagerando, eu sei. Estou sendo pessimista ou irônica, eu sei. Mas de verdade vivemos com menos drama e tragédia no cotidiano. Quando eu era menina de escola, havia uma só de minhas coleguinhas cujos pais não eram "casados" de verdade.

Casaram no Uruguai, comentavam as maledicentes, mas aqui no Brasil não vale. Lembro de uma infinita compaixão pela amiguinha, e da ordem severa de minha mãe para nunca comentar isso com ninguém - eu, sempre enfiada entre os adultos, tinha ouvido sem que eles soubessem. De um tempo em que não havia antibióticos, geladeira elétrica, telefones fáceis e celulares nem como um distante mito, acho que a gente melhorou.

Morrem menos parturientes e bebês, mais crianças se criam saudáveis, as pessoas se comunicam como nunca antes, várias doenças fatais hoje têm cura. Estamos mais violentos? Mesmo em cidades pequenas não se deixa janela sem grade, casa sem cerca. Lembro da primeira vez em que, falando a universitários nos Estados Unidos, passei uns dias em casa de minha querida tradutora e amiga. Uma casa boa, dois andares, num daqueles bairros com bosquezinhos, até um riacho atrás.

À tardinha, quando começava a escurecer, admito meu medo absurdo sozinha em casa, pois ali nem cercas nem grades me protegiam. Quando comentei isso na hora do jantar, uma das filhas da casa, adolescente, se espantou: "Mas para que grades na janela? Eu morreria de medo, imaginando do que estava precisando me proteger".

Ao contrário da tia Tula de Quintana, a gente se vira para trás, ao andar numa rua mais deserta; ao sair do portão da garagem ou da porta do edifício; ao abrir a porta do carro; ou, simplesmente, ao dar um passo a mais neste nosso mundo onde estamos lançados.

LYA LUFT

13 DE ABRIL DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Autorretrato


Xuxa, uma das artistas mais celebradas do país, já levou muito esculacho. Houve quem a acusasse de ser grosseira com as crianças e quem espalhasse boatos de que ela teria um caso com sua ex-empresária - se tivesse, e daí? Vinha chumbo de tudo que era lado. Eu mesma impliquei quando o nascimento de sua filha mereceu matéria de infinitos minutos no Jornal Nacional, achei que aquela exploração midiática não combinava com um fato tão íntimo e comentei a respeito, condenando.

O que eu tenho a ver com o que a Xuxa faz da sua vida? Pois é: nada. Uns oito anos atrás, estive em seu programa, a convite da produção, pois haveria uma homenagem a Cissa Guimarães e, devido à amizade que tenho com Cissa por causa da peça Doidas e Santas, eu seria uma espécie de convidada surpresa da gravação. 

Durante todo o programa, Xuxa foi educada comigo, mas me pareceu que ela não ia muito com minhas fuças, e teria razão pra isso. Ainda que eu tenha total liberdade de dar opinião em minhas colunas, quem é que gosta quando pisam em seu calo? Pode também ter sido apenas impressão minha e Xuxa jamais ter lido nada que eu tenha escrito, e nesse caso minha neura foi apenas um sintoma da minha culpa.

Todo esse preâmbulo é para voltar a falar dela. Poucos meses atrás, Xuxa postou nas redes uma selfie sem maquiagem, onde aparece com uma expressão envelhecida. Foi o que bastou para receber comentários maldosos, principalmente de mulheres que não se conformaram com sua ausência de vaidade. Mas quem decide onde devemos colocar nossa vaidade? Algumas mulheres a colocam no pescoço, outras na conta bancária, outras no cérebro, outras nos filhos, outras no trabalho, outras no conjunto da obra: cada uma se envaidece do que quiser.

Xuxa, agora com o cabelo raspado (e mais linda do que nunca), deu entrevista recente dizendo que as pessoas ainda desejam vê-la de chuquinha, como se o tempo não tivesse passado. Só que passou. E essa talvez seja a explicação para o bombardeio de críticas: ao assumir a passagem do tempo, Xuxa nos obriga a aceitar que passou para nós também. Sem querer, ela acaba "traindo" toda mulher que gasta fortunas em procedimentos estéticos a fim de parecer mais jovem. Ao abrir mão de ser um padrão juvenil de beleza, Xuxa dá uma situada no mulherio: a era do "ilarilarilariê" acabou. A vaidade agora está em ser madura e livre.

Continuo não tendo nada a ver com a vida da Xuxa, mas não quis perder esta oportunidade de, enfim, fazer-lhe justiça. Envelhecer não é fácil pra ninguém, e imagino que menos ainda pra quem sempre foi uma deusa, por isso é tão importante alguém como ela vir a público dizer que investir em autenticidade e na vida emocional traz resultados mais efetivos do que tentar agradar à plateia. Se ela continuar desagradando, azar da plateia. Amadurecer tem um custo, porém o retorno é sempre mais valioso.

MARTHA MEDEIROS

13 DE ABRIL DE 2019
PIANGERS

Com quem será?

Minha irmã se casa hoje, se você estiver lendo isto no sábado. Se estiver lendo o jornal no domingo, devo estar de ressaca agora. O fato é que este é um final de semana especial. A Débora descobriu, no final de 2017, um câncer de mama. Depois disso, teve alguns momentos difíceis durante o tratamento e ficamos todos muito preocupados. Mas, durante o processo, aconteceram coisas boas também. A família ficou mais unida. Ela fez uma viagem que sempre quis fazer. O namorado a pediu em casamento. E aqui estamos nós.

Minha irmã me falou uma frase que me marcou para sempre: "Tudo o que o câncer trouxe de ruim vai passar, mas tudo o que trouxe de bom vai ficar". Ver até mesmo os momentos difíceis com positividade, acredito, foi fundamental para que hoje ela estivesse curada do câncer. Olhar a vida com essa lente que mostra que tudo de ruim pode trazer algo bom não é sinal de ingenuidade, é sinal de coragem.

Gosto daquela parábola do homem em uma aldeia antiga que perdeu um lindo cavalo na floresta. Todos os amigos disseram: "Que azar! Você deve estar muito triste!". O homem respondeu: "Vamos ver o que acontece". Dias depois, o cavalo daquele homem voltou da floresta, trazendo também outros cinco cavalos. O homem se tornou dono de todos os cavalos e seus amigos comentaram: "Como você é sortudo! Agora está mais rico do que antes!". E ele respondeu: "É o que veremos".

Então o filho do homem começou a treinar montaria nos cavalos e, em um lance de azar, caiu e quebrou as duas pernas. Todos disseram: "Como você é azarado! Se não tivesse recuperado o cavalo, nada disso teria acontecido". O homem respondeu: "É o que veremos". Veio uma grande guerra e todos os jovens da aldeia foram chamados a lutar, menos o filho daquele homem, que por causa do acidente com o cavalo não podia se mover. Os amigos do homem vieram comentar: "Como você é sortudo! É o único de nós que ainda tem o filho em segurança!". O homem apenas respondeu: "É o que veremos".

Vejo muitas pessoas que, em momento de sofrimento, gritam pro céu: "Por que eu?". Mas também vejo os que dizem: "Vou passar por isso e lá do outro lado vou estar melhor do que estou hoje". Os momentos difíceis têm esse poder de dar um chacoalhão nas coisas. Uma doença grave, a perda de uma pessoa querida, um divórcio. Esses acontecimentos podem nos transformar para algo melhor, trazer reflexões que não viriam de outra forma. Podem nos fazer evoluir. Podem apresentar um futuro diferente. São a parte boa das coisas ruins. Por isso, sempre que você estiver em um momento difícil, lembre-se disso. Daqui a um ano e meio, você poderá estar fazendo uma festa de casamento.

PIANGERS


13 DE ABRIL DE 2019

CARPINEJAR

Sem noção

Todo marido tem o dom de optar pela foto errada da esposa para postar. É uma vocação pelo pior. Justamente aquela imagem que ela nunca publicaria, o marido vai lá e torna pública. Talvez porque ele não seja capaz de reparar no melhor ângulo, não estuda a composição, não tem sensibilidade social para se demorar nos detalhes. Para ele, é tudo igual. Basta não estar desfocada que pensa que é válida.

O Instagram ou o Facebook do marido é sempre a conta fake de sua esposa, onde surgem as poses mais medonhas do cotidiano: a mulher de boca aberta comendo ou bocejando ou piscando ou vesga de bebida ou desequilibrada ou com pijama tomando café da manhã, sem maquiagem e remelenta.

Os seguidores devem aproveitar para printar rapidamente o feed, é certo que o instantâneo do terror será excluído por força maior (leia-se alguém ao lado fazendo chantagens e ameaças).

Ele não ajuda a divulgar a beleza de sua companhia. Nem é ciúme ou possessividade, receio de que os outros possam se apaixonar, é talento para o constrangimento.

Usa o mesmo bom senso para ela que aplica para si. O equivalente a coisa nenhuma.

Demonstra infindável competência para destruir o casamento, sem sombra de dúvida. É o antifotógrafo por excelência. Não respeita nem as regras básicas de preservação pessoal. Tira foto de baixo para cima, criando papadas e queixos proeminentes. Tira foto do braço dela em primeiro plano, deformando o bíceps dela em corcovas de halterofilista. Tira foto de frente, chapada, como se ela fosse uma baiana em escola de samba, dando mais cinco quilos de presente. Tira close dos pés - que alma feminina retrata os seus pés? Tira selfie com a sua esposa lá embaixo, como uma gabiru manca. Tira retratos em que ela aparece quase rindo, quase Dercy Gonçalves, na maior careta.

Mesmo com a fiscalização e a aprovação dela, ele não acertaria.

Até porque a mulher tem um Facetune baixado em seu cérebro, sempre muda de ideia quando a cena é postada. Coloca o zoom, analisa os cantinhos e encontra algum defeito letal.

Amor feliz é galeria vazia. Fotos autorizadas só o do casamento. E olhe lá.

CARPINEJAR


13 DE ABRIL DE 2019
COM A PALAVRA

"A EUROPA FECHOU BRUTALMENTE AS FRONTEIRAS"

Quando a guerra chega ao fim e a maioria dos jornalistas volta para casa, a francesa Anne Poiret faz as malas e ruma para o front. Ela não cobre o auge do conflito, prefere o depois, as feridas que as batalhas deixaram naqueles que mais sofrem: os civis. Vencedora do Prix Albert Londres, o principal prêmio do jornalismo francês, Anne é uma globetrotter. Perambula por alguns dos mais ensanguentados territórios do planeta para mostrar a vida de quem fugiu do horror. 

Esteve em Mossul, a última cidade a ser libertada do jugo do grupo terrorista Estado Islâmico no Iraque, visitou a Líbia e perambulou pelos maiores campos de refugiados do mundo para rodar um de seus mais novos documentários, exibido e debatido em Porto Alegre no dia 5 - ocasião em que conversou com ZH. O filme revela o modo como as Nações Unidas administram campos que abrigam milhões de refugiados em todo mundo, criando um país virtual do tamanho da Holanda.

BIENVENUE AU RÉFUGISTAN (BEM-VINDO À TERRA DOS REFUGIADOS, EM UMA TRADUÇÃO LIVRE) É UM DOCUMENTÁRIO RODADO EM VÁRIOS CAMPOS DE REFUGIADOS PELO MUNDO, NO QUÊNIA, NA TANZÂNIA, NA JORDÂNIA E NA FRONTEIRA DA GRÉCIA COM A MACEDÔNIA. QUE DIFERENÇAS VOCÊ ENCONTROU NESSES LUGARES NO TRATAMENTO ÀS PESSOAS QUE RECEBEM?

O objetivo era justamente mostrar a situação dos campos em países diferentes, alguns deles novos, outros já estabelecidos há mais tempo. No caso da Tanzânia, filmamos em um campo mais antigo. Mesmo assim, conseguimos registrar a chegada de refugiados vindos do Burundi (pequeno país africano que vive, desde 2015, uma crise humanitária em razão de problemas políticos, econômicos, fome e epidemia de malária). Foi um momento importante porque conseguimos observar o instante em que essas pessoas eram recebidas no campo. Por isso, filmamos na Tanzânia. Mas cada país tem uma história e graus diferentes de evolução desses territórios. 

A ideia era apresentar também imagens de outros campos nos quais as pessoas permanecem por longo tempo. São locais que se transformam e passam a não ter mais a função para a qual eles haviam sido criados. Por exemplo, Dadaab, que é conhecido como "Monstro", o maior de todos os campos de refugiados, na fronteira entre Quênia e Somália. Queríamos mostrar como esse território gigantesco se transformou em algo completamente diferente em um período de um ano (a intenção original era de que Dadaab abrigasse até 90 mil pessoas, mas atualmente vivem no complexo mais de 463 mil refugiados, incluindo cerca de 10 mil pessoas nascidas no local).

O FILME MOSTRA QUE ESSES LOCAIS NÃO SÃO NEM CIDADES, NEM PRISÕES. PARECE QUE O TEMPO PARA PARA ESSAS PESSOAS. COMO É A VIDA EM DADAAB? O MONSTRO É REALMENTE IMPRESSIONANTE?

O campo foi criado em 1991. O governo do Quênia tem dito que vai acabar com o local e que os refugiados poderão voltar para a Somália. Por isso, não há autorização para construir prédios de alvenaria. As únicas edificações assim são os postos policiais e das Nações Unidas. Os refugiados não podem construir, embora o campo tenha quase 20 anos. O que mais me impressionou foi o ambiente em geral. Porque há escolta da polícia queniana o tempo inteiro. 

E isso é meio assustador, aumenta o grau de violência possível. Eu estava mais impressionada com esse acompanhamento do que com o campo em si. Violência dentro do campo existe, pessoas foram raptadas, entre outros registros de criminalidade, mas o mais impressionante é a polícia do Quênia. É um negócio para eles. Eles precisam assustar. Você não consegue fazer o seu trabalho como documentarista porque, a cada dois minutos, alguém diz: "Não podemos ficar aqui, é muito perigoso!". Essa atitude deles aumenta e muito a sensação de insegurança.

LIDAR COM AS NECESSIDADES URGENTES DE MILHARES DE REFUGIADOS É UM DESAFIO PARA GOVERNOS, ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS E TAMBÉM PARA AS NAÇÕES UNIDAS. APESAR DAS DIFERENTES REALIDADES, HÁ UM SISTEMA PADRÃO NO QUE DIZ RESPEITO A LOGÍSTICA, MANUTENÇÃO E COMIDA NOS CAMPOS AO REDOR DO MUNDO?

Sim. Todos os campos são diferentes, mas têm como denominador comum a presença do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). A ideia de ter esse padrão também aparece no documentário desde a concepção da ideia, junto ao canal de TV Arte (da França, que exibe esse e outros documentários de Anne). Foi a emissora que pediu que fossem retratados sete campos diferentes.

VOCÊ TESTEMUNHOU EPISÓDIOS DE VIOLÊNCIA NOS CAMPOS?

Todos os campos têm violência sexual e de gênero. Isso é comum a todos porque esses lugares são formados por uma mistura de pessoas, às vezes procedentes de países diferentes: Congo, Burundi... Alguns refugiados são ex-combatentes, ex-militares. Suspeita-se de que o "Monstro", por exemplo, seja uma base utilizada pelo Al-Shabaab (grupo terrorista islâmico que atua principalmente no sul da Somália). Tudo isso compõe uma violência cotidiana nos campos. Supostamente é um lugar seguro, mas não é o que ocorre sempre.

COMO NASCEU A IDEIA DE DOCUMENTAR OS CAMPOS?

Não foi exatamente um pedido do canal Arte. Tenho trabalhado como documentarista há alguns anos, e isso acabou levando a esse projeto. Não trabalho em países em guerra, mas em nações que estão em período de pós-guerra, ou então com temas que cercam os conflitos. Isso foi ao encontro do que os produtores do canal estavam pensando como projeto.

UM DOS PROBLEMAS QUE VOCÊ TRAZ À TONA NO FILME É A INVISIBILIDADE DOS REFUGIADOS. MESMO NA IMPRENSA, ESSE TEMA SÓ VIRA NOTÍCIA DIANTE DE TRAGÉDIAS.

Como jornalista, também tenho essa sensação. Há alguns anos, fui ao Iêmen cobrir os campos de refugiados, mas não entrei neles. Depois do início desse projeto, comecei a ler toda uma literatura escrita por pesquisadores, sociólogos, antropólogos e historiadores que estudam essa realidade e a organização dos campos. Antes, como público que assistia a documentários e lia notícias, e mesmo como jornalista, eu sabia da existência dos campos, mas me perguntava sobre a permanência das pessoas neles. O que vai acontecer com o passar do tempo? Com esse filme, entrei para registrar os absurdos que ocorrem nos campos e como eles seguem existindo depois das guerras ao longo do tempo.

NO AUGE DA CRISE DE REFUGIADOS QUE INGRESSARAM NA EUROPA, EM 2015, VÁRIOS PAÍSES FECHARAM SUAS FRONTEIRAS. TEMOS OBSERVADO O CRESCIMENTO DE GOVERNOS E GRUPOS CONSERVADORES NO CONTINENTE, COM UMA AGENDA CONTRÁRIA À MIGRAÇÃO. VOCÊ É PESSIMISTA EM RELAÇÃO AO FUTURO DOS REFUGIADOS NA EUROPA?

Sou muito pessimista. A última parte do documentário foi rodada na fronteira entre a Grécia e a Macedônia, em dezembro de 2015, justamente alguns dias depois dos atentados em Paris (série de ataques ocorridos em 13 de novembro). A Europa fechou brutalmente as fronteiras desde então. Como jornalista, presenciei esse fechamento. E foi impactante para mim, porque anos antes eu havia gravado para a emissora France 5 uma reportagem sobre os mais de 20 anos desde a queda do Muro de Berlim. Essa memória da fronteira entre os blocos Leste e Oeste já não existia mais, porque se vivia esse sonho de uma Europa totalmente aberta. E, em 2015, pá: fechou. 

Foram dois dias e três noites de gravações. Presenciei fisicamente a constituição dessa nova fronteira novamente entre Macedônia e Grécia. A Grécia é União Europeia. Em dois dias, começaram a colocar arame farpado. Nossa geração que sonhou com uma Europa aberta criou de novo fronteiras físicas no continente.

UMA CRÍTICA QUE SE FAZ À SOCIEDADE EUROPEIA EM GERAL, E FRANCESA EM PARTICULAR, É A DIFICULDADE DE INTEGRAR OS MIGRANTES, QUE MUITAS VEZES VIVEM NAS PERIFERIAS E SÃO COOPTADOS POR GRUPOS EXTREMISTAS. NO CASO DOS ATENTADOS DE PARIS, OS TERRORISTAS SAÍRAM DE UM DESSES GUETOS, MOLLENBECK, LOCALIZADO NA BÉLGICA.

Nesse caso, há uma confusão. Não se tratava de refugiados. Esses terroristas que realizaram os ataques a Paris se aproveitaram do fluxo de refugiados. É o que acontece: há alguma confusão no uso dos termos "refugiados" e "terroristas". A temática maior das eleições europeias tem sido e vai continuar sendo a dos refugiados.

É QUE GRUPOS POLÍTICOS COLOCAM TUDO NA CONTA DE REFUGIADOS. DIZEM, POR EXEMPLO, QUE AS MOVIMENTAÇÕES DELES FACILITAM A ENTRADA DE TERRORISTAS.

No caso da França, nenhum dos terroristas que foram para a Síria e voltaram para atacar era refugiado. Todos nasceram na França ou na Bélgica, e vários deles nem eram muçulmanos. Eram católicos.

A EUROPA JÁ LIDA COM A QUESTÃO DE REFUGIADOS HÁ DÉCADAS. NA AMÉRICA LATINA, ESTAMOS COMEÇANDO A VIVENCIAR O PROBLEMA COM A CRISE NA VENEZUELA. ABRIR AS FRONTEIRAS É SOLUÇÃO? OU CRIAR CAMPOS DE REFUGIADOS NO BRASIL?

Não sou especialista em política latino-americana. Mas, se um governo quer promover a criação de um campo, isso significa dizer que não quer integrar. Um campo é uma coisa temporária. Se o Brasil for abrir um campo, por exemplo, para os venezuelanos, quer dizer que vai deixá-los ali e, depois que a crise passar, fazê-los voltar para o seu país. Não conheço bem a situação do Brasil, mas penso que o país tem uma sociedade civil forte porque está dando um jeito. Como na França. A França tem uma situação dupla: em nível político, sobretudo com o governo de Emmanuel Macron, há uma política dura, intransigente com os refugiados. Menos do que outros países, mas, ainda assim, com um discurso duro. E a sociedade civil é superorganizada, faz muitas coisas para os refugiados. Embora muitos estejam presos como criminosos. A sociedade civil francesa se organiza em campos no interior para apoiar. Quando não há campos, a sociedade civil se organiza para ajudar.

A FRANÇA TINHA A SELVA DE CALAIS, ACAMPAMENTO IMPROVISADO DE MIGRANTES E REFUGIADOS QUE TENTAVAM ATRAVESSAR O CANAL DA MANCHA PARA CHEGAR AO REINO UNIDO. O LOCAL FOI DESTRUÍDO PELO ATUAL GOVERNO. OS REFUGIADOS VOLTARAM?

Calais foi desmantelado, mas os refugiados voltaram. O maior impacto será a saída do Reino Unido da União Europeia. Vai haver uma divisão de fronteiras entre França e Inglaterra, caso o Brexit se confirme. O que vai acontecer agora? A França vai manter esse campo?

VOCÊ FEZ UM FILME SOBRE A VENDA DE ARMAS FRANCESAS PARA PAÍSES QUE VIOLAM DIREITOS HUMANOS. O BRASIL TAMBÉM JÁ TEVE ESSA POLÍTICA. POR UM LADO, OS PAÍSES ASSINAM TRATADOS QUE REGULAM O COMÉRCIO DE SEU ARSENAL, MAS, POR OUTRO, VENDEM PARA REGIMES QUESTIONÁVEIS, COMO O DA ARÁBIA SAUDITA. ISSO MOSTRA O CINISMO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL?

Sim, enorme. O discurso é dúbio, cínico. Em nome dos direitos humanos, dos quais a França é porta-voz, ela diz: "Somos uma potência independente e devemos ter autonomia, o que inclui uma indústria de armamento forte, que nos dá a possibilidade de vender". A França discursa que, para garantir sua independência, tem de ter essa possibilidade de vender armas. 

E acaba vendendo para fora, de onde surgem grandes clientes. Só que alguns desses clientes, as únicas potências que realmente podem comprar, são Arábia Saudita, Egito, países que não respeitam os direitos humanos. Então, a França faz isso: fecha os olhos e o nariz e para poder arrecadar com o comércio. É um discurso contraditório. Estou lançando um livro na França justamente sobre o tema, uma versão do documentário Mon Pays Fabrique des Armes (2018) ("Meu país fabrica armas", em tradução literal).

COMO FOI O TRABALHO EM MOSSUL, A ÚLTIMA CIDADE DO IRAQUE A SER LIBERTADA DO GRUPO TERRORISTA DAESH? (OS FRANCESES USAM O TERMO DAESH PARA SE REFERIR AO ESTADO ISLÂMICO COMO FORMA DE DESAFIAR A LEGITIMIDADE DA ORGANIZAÇÃO DEVIDO ÀS CONOTAÇÕES NEGATIVAS DA PALAVRA, QUE SIGNIFICA PISAR OU ESMAGAR)

Fui três vezes a Mossul para acompanhar a pessoa que foi nomeada pelo governo do Iraque para coordenar a reconstrução da cidade. Nos últimos dois anos, nada aconteceu em Mossul em termos de reconstrução. Entrevistei várias pessoas que moram lá e sofreram os ataques da coalizão. Conheci vários meninos perseguidos pelo Daesh. Pessoas que fugiram e viveram em campos e, agora, voltaram a Mossul. Essas pessoas são como fantasmas, não têm direito a nada. As crianças dessas famílias não têm o direito de frequentar as escolas. Estão dentro da cidade, mas sem direito algum.

QUANTO TEMPO VOCÊ FICA EM CADA MISSÃO GRAVANDO?

O dinheiro é pouco, então, não fico muito tempo. Uns 15 dias em cada local. Para Bienvenue au Réfugistan, fiquei no máximo três semanas em cada país. No campo em si, não tenho permissão para ficar muito tempo - entre três e cinco dias. Na Jordânia, foi especialmente complicado: só dois dias, e com um agente do governo sempre nos acompanhando, andando atrás, dizendo que agradecia muito ao rei da Jordânia. Antes, ele conversou com todas as pessoas as quais eu ia entrevistar. Não estávamos preocupados em mostrar as práticas políticas; queríamos mostrar como funciona o campo. Nossa intenção não era criticar a Jordânia, e, isso sim, mostrar a dificuldade que é entrar, fazer essas entrevistas e como funcionam as autorizações para os campos. Mas ele ficou ali, fiscalizando.

RODRIGO LOPES