sábado, 22 de junho de 2019


22 DE JUNHO DE 2019
DRAUZIO VARELLA


CRIME CONTINUADO DOS ADITIVOS

O OBJETIVO CLARO É TORNAR O CIGARRO MAIS VICIANTE E PALATÁVEL AO PÚBLICO INFANTIL
Há crimes contra a sociedade que se perpetuam. Os aditivos nos cigarros fazem parte dessa categoria.

São chamados de aditivos os produtos acrescentados ao fumo para mascarar o gosto repulsivo, potencializar os efeitos da nicotina ou dilatar os brônquios. São preparados com açúcar, essências de maçã, morango, chocolate e outros sabores agradáveis ao paladar infantil. O mais popular é o mentol, que anestesia a garganta para torná-la insensível ao calor e ao efeito irritativo da fumaça.

A combustão desses aditivos forma novos reagentes que se juntam aos 4 mil ou mais inalados a cada tragada. Da queima do mentol, por exemplo, resultam compostos comprovadamente cancerígenos.

Conscientes de que mais de 90% dos usuários começam a fumar antes dos 25 anos, o objetivo claro da indústria é tornar o cigarro mais viciante e palatável ao público infantil. Essa trama perversa ajuda a explicar por que tantas meninas e meninos se tornam dependentes de nicotina, algumas vezes, aos 10 ou 11 anos. Não é à toa que a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o tabagismo como doença pediátrica.

A partir dos anos 1990, a indústria investiu pesado nessa área. Hoje, os aditivos chegam a representar 10% do peso bruto de alguns cigarros.

Que motivos nos levam a permitir a perpetuação dessa estratégia criminosa?

Em primeiro lugar, o desconhecimento: a maioria das pessoas não se dá conta da gravidade dos malefícios do fumo e da natureza da dependência causada pela nicotina. Na própria imprensa, fumar é tratado como "hábito".

Hábito? Hábito é começar a barba pelo lado esquerdo do rosto, calçar primeiro o sapato do pé direito ou tomar banho antes de ir para a cama; fumar é dependência de droga. A mais feroz delas, capaz de provocar crises insuportáveis de abstinência em alguns minutos.

Já disse, nesta coluna, que a experiência em cadeias me convenceu de que é mais fácil largar do crack. Mantido longe do crack, das pessoas sob o efeito dele e dos ambientes em que era consumido, o usuário se conforma sem entrar em desespero. O fumante, ao contrário, sem o cigarro ao alcance da mão, enlouquece, esteja onde e com quem estiver - digo por experiência pessoal.

A segunda razão é menos farmacológica: a indústria tabaqueira nega que os aditivos sejam prejudiciais. Inescrupulosos como sempre e com a desfaçatez de quem explora um produto que deve matar 1 bilhão de pessoas apenas no século 21, questionam os pareceres dos especialistas e da OMS, que alertam sobre os perigos dos aditivos e recomendam sua proibição definitiva.

A Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) tem o desplante de ofender nossa inteligência, ao afirmar que os aditivos "não tornam o cigarro mais atrativo ou tóxico e que não há relação direta entre o consumo de cigarros com ou sem aditivos e as faixas etárias dos consumidores".

Devem nos considerar um bando de mentecaptos, prontos a acreditar que investem uma fábula na fabricação de cigarros "aditivados" e na pesquisa de novas substâncias com as mesmas características, sabendo que eles "não tornam o cigarro mais atrativo".

Para quem comanda um negócio que ganhou nas cortes americanas o título de a Maior Fraude à Saúde Pública da História, que valor têm as palavras dessa gente?

Há anos a Anvisa tenta proibir os aditivos, mas enfrenta o poder do lobby milionário da indústria e dos políticos cooptados por ela. Apesar da proibição, os aditivos continuam sendo usados por força de uma liminar.

Está para ser julgada uma ação no STJ movida pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), com a alegação de que a Anvisa "extrapolou suas competências, usurpando-as do Congresso Nacional, ao banir os aditivos sem a demonstração de risco imediato e urgente".

Dá para acreditar que uma associação com a relevância da CNI se preste a esse papel infame? Questiona a competência de um órgão técnico e responsável como a Anvisa para definir o que é nocivo à saúde da população, para atribuí-la aos nobres deputados e senadores.

Justamente a eles? Por que será, não? Até eu que sou meio bobo fico desconfiado.

DRAUZIO VARELLA


22 DE JUNHO DE 2019
PAULO GLEICH

BRINCANDO DE GÊNERO

Aos quatro anos de idade, a filha de um casal de amigos anunciou aos pais que não era mais uma menina, e sim um menino - Jorge. A mãe, intrigada com a súbita mudança, tentou em vão entender o porquê: era porque sim! Ante a insistência da pequena, acabou cedendo e entrou na brincadeira: passou tratá-la como ela reivindicava. Aquela fantasia durou algumas semanas, até que, algum dia, sem estardalhaço, ela "voltou" a ser menina.

Minha amiga relatou o episódio da forma que pais contam, espantados e divertidos, as peripécias de seus pequenos. Elogiei sua postura, pois ela entendeu que aquilo era algo importante para a filha, porém não se precipitou em tirar nenhuma conclusão daquela súbita "mudança", nem levá-la a sério demais. Assim, permitiu que sua filha brincasse com uma questão muito séria: a tentativa de compreender o mistério da diferença sexual e a pertença a um gênero.

A maioria de nós nasce com um genital que define a que sexo pertencemos. Mas isso por si só diz pouco sobre nosso destino como homens ou mulheres: é a acolhida dessa diferença pelos pais e pela sociedade que vai definindo como nos situaremos em relação a essa questão. Nossa programação instintiva é, diferentemente de outros animais, insuficiente: precisamos buscar fora de nós mesmos elementos para construir a resposta à pergunta sobre o que é pertencer a um gênero.

Freud denominou essa condição inicial do ser humano de bissexualidade, afirmando que somos muito plásticos no que diz respeito à identidade e ao desejo sexual. Que nos identifiquemos como homens ou mulheres (ou outro gênero) é resultado de um longo processo, iniciado na primeira infância, quando fantasias e brincadeiras tentam dar conta desse enigma. Não é por algo inato que a maioria das meninas brinca de princesa e os meninos, de super-herói: essas são imagens de mulher e de homem oferecidas pela cultura.

Atualmente, essas identidades têm sido um pouco mais flexíveis do que em outras épocas, quando qualquer expressão considerada do sexo oposto era duramente repreendida. Frases como "menino não chora" ou "isso não é coisa de menina" enclausuravam os sujeitos em ideais e comportamentos rígidos, impossibilitando identificar-se com atributos de ambos os gêneros. Além de não levar ao "bom caminho" da heterossexualidade, essa violência acaba com frequência gerando ódio ao sexo oposto.

Se hoje é socialmente mais aceito que crianças brinquem livremente com questões de gênero, persiste um equívoco semelhante ao de tempos atrás: as fantasias e brincadeiras das crianças são, com frequência, tomadas como signos definitivos de sua sexualidade, antes mesmo que algo esteja definido. É preciso escutar e respeitar as crianças, mas também ter em vista suas limitadas condições de dizer e decidir sobre quem são e o que desejam.

A fantasia e a brincadeira (que é uma fantasia encenada) são meios privilegiados que as crianças têm de lidar com o complexo e confuso mundo dos adultos e com os grandes enigmas da existência, que se colocam para elas muito cedo: o sexo, a morte, os sentimentos e as relações entre as pessoas. Permitir às crianças brincar e fantasiar com questões de gênero é entender que isso é algo bom e necessário para seu crescimento; definidor, mas não definitivo. Não suportar que isso aconteça talvez diga do quão pouco os adultos puderam (e podem) brincar com essa questão.

PAULO GLEICH


22 DE JUNHO DE 2019
CAPA - ENTREVISTA | Miguel Gonçalves Mendes Diretor do filme ?O Sentido da Vida?

"O TEMPO NÃO PARA: TEMOS DE LUTAR AGORA POR AQUILO QUE ACREDITAMOS"

Miguel Gonçalves Mendes tornou-se um nome conhecido dos cinéfilos com José e Pilar (2010), filme que documentou dois anos da vida do escritor José Saramago e de sua esposa, Pilar del Río, e que concorreu ao Oscar. Depois daquele projeto, lançou-se ao ambicioso 

O Sentido da Vida, uma produção de 1,5 milhão de euros em que trabalha desde o início da década, com 2 mil horas filmadas em diferentes continentes. Falta apenas a finalização - e 300 mil euros, que o diretor busca angariar por meio de crowdfunding (interessados em ajudar podem buscar informações no site osentidodavida.com).

Como nasceu a decisão de fazer um filme que tem um paciente de PAF como fio condutor?

Eu tomei conhecimento da paramiloidose e li bastante sobre a sua origem. Fiquei impressionado pelo fato de ter sido uma doença propagada pelos portugueses no mundo inteiro. Daí tive a ideia de seguir um portador da doença numa viagem à volta do mundo, seguindo a rota dos portugueses que, no tempo das descobertas, a foram espalhando por cada país em que pararam na sua travessia. Apesar do infortúnio da doença, a verdade é que ela é a premissa perfeita para se falar da História do mundo e da globalização e até que ponto nós não somos efetivamente uma soma das partes. O Giovane é portador de uma doença que não é originaria do Brasil e encontrará no Japão pessoas com a mesma doença.

Que relação você estabelece entre a PAF e o título do filme, O Sentido da Vida?

A PAF é o pretexto para a viagem em busca do sentido da vida. É óbvio que o peso de ser portador de uma doença sem cura é brutal. É como se fôssemos recordados a cada momento da iminência da morte. Infelizmente, qualquer doença degenerativa nos obriga a olhar para a vida e o mundo com outra perspectiva e urgência. 

Esta viagem não diz só respeito a pessoas que tenham a PAF, mas também a todos os seres humanos, já que nela questionamos a existência através do que vai acontecendo ao Giovane e às várias personagens que vamos encontrando. Espero que pessoas vejam o filme e que, com ele, percebam que precisamos mudar as nossas vidas e o mundo, e terem a consciência de que o tempo não para. Temos de lutar agora por aquilo que acreditamos. Se esperarmos, pode ser tarde demais.

Como você encontrou Giovane Brisotto e o que motivou que ele fosse o escolhido para ser o protagonista?

Depois de ter a ideia para o filme, houve um período de castings intensivos com vários portadores da doença, de várias partes do mundo. Apenas tínhamos a certeza de que não queríamos ninguém português, para não correr o risco de ver um português a visitar lugares de origem portuguesa, o que poderia parecer qualquer tipo de saudosismo do império. Queríamos encontrar um portador da doença que pudesse entender esses lugares como um espelho onde se podem refletir, mesmo que de uma maneira disforme. 

Como sabíamos que o período de filmagens ia ser muito longo e cansativo, a pessoa que nós escolhêssemos tinha de ser não só a ideal para aquilo que queríamos transmitir, mas também uma pessoa que não se importasse de ser exposta durante tanto tempo, e com quem também nós nos pudéssemos relacionar de uma forma saudável. Teria de ser uma pessoa com quem me pudesse entender. Por exemplo, não podíamos ter um cara homofóbico ou racista, porque isso iria contra os meus ideais e os da minha equipe. E o Giovane era generoso, mal humorado no bom sentido, como nós, com um sorriso lindo e um olhar repleto de profundidade.


22 DE JUNHO DE 2019
J.J. CAMARGO

SE NÃO HÁ FUTURO, FALE DO PASSADO

A PALAVRA É O MAIS PRECIOSO INSTRUMENTO DE TRABALHO DO MÉDICO

Nas visitas aos leitos com estudantes, é rotina que se faça um resumo do caso, antes que entremos no quarto, para que os alunos tenham uma noção do que irão encontrar. Era um grupo de oito jovens, quartoanistas de Medicina, e a introdução foi sucinta:

- Vamos agora conhecer o Guilherme, de 57 anos, que tem um câncer avançado de esôfago, que tratou com quimioterapia e radioterapia, com uma resposta pobre, e a doença evoluiu até o surgimento de pelo menos três metástases cerebrais. É um paciente em fase terminal da doença, com um emagrecimento impressionante.

Um dos alunos, visivelmente ansioso, perguntou: - E o coitado ainda está consciente?

A confirmação de que sim resultou em três abandonos da visita. Uma doutora justificou:

- Eu não saberia o que dizer, muito menos o que perguntar, e eu choro com muita facilidade, o que acho que só iria deprimi-lo mais ainda.

Achei que a visita com o grupo rachado não valeria a pena, e voltamos para a sala de reuniões, para uma espécie de pausa emocional, a fim de organizarmos nossas cabeças e nossos sentimentos.

Era evidente, pela ansiedade coletiva, que a dificuldade aparentemente intransponível que o grupo antevia era a ausência de palavras adequadas. E a palavra, como se sabe, é o mais precioso instrumento de trabalho do médico, porque é através dela que conquistamos confiança ou plantamos incerteza, que somos acolhidos ou rejeitados, que oferecemos parceria ou nos perdemos na ilusão de que o paciente dará à tecnologia o mesmo valor com que a reverenciamos.

Quando a doutora que se confessara chorona relatou duas experiências prévias em que não conseguira sequer que os pacientes fixassem o olho nela, ficou claro que tínhamos de redefinir como a proximidade da morte é vista pelo doente. Porque, se isso for entendido, ficará compreensível a irritação do paciente com o discurso falacioso do médico ao descrever o que será feito para que desfrute um tempo que ele reconhece, pela percepção de sua fraqueza orgânica, como impossível: o futuro.

Ser médico nessa hora é entender que o fim da vida é reconhecível com a maior certeza pelo paciente, e que tudo que lhe interessa, nesse estágio, é como manejar o passado com suas sombras e dúvidas, e mentiras e traições, e culpas e remorsos. E o médico que pretenda escalar esse degrau superior da medicina é o que se oferece para ajudá-lo a apaziguar seus demônios, para que ele morra em paz.

Quando saía do hospital, dei uma última espiada. A doutora estava sentada na cama do seu Guilherme e lhe segurava uma das mãos. Quando ela comentou que "neste andar, não tem ninguém com netos tão lindos no porta-retratos!", ele sorriu, e ofereceu-lhe a segunda mão para que ela segurasse. Tomara que ela tenha chorado, porque terá descoberto, bem cedo na vida, o quanto o choro médico é bom de chorar.

P.S.: na terça, às 18h, estarei no elegante Centro Histórico e Cultural da Santa Casa para uma sessão de leitura de crônicas, com participação de Laura Medina, e de autógrafos de meu novo livro, Se Você Para, Você Cai.

J.J. CAMARGO


22 DE JUNHO DE 2019
DAVID COIMBRA

A tristeza de Paula Fernandes

A Paula Fernandes está de namorado novo, li por aí. Fiquei feliz, porque ela andava meio para baixo. Não faz muito, vi um vídeo em que Paula suspirava e chorava, coitadinha.

Foi por causa daquele Luan Santana.

Ela e ele iriam gravar a versão brasileira da música Shallow. Você sabe: a famosa "juntos e shallow now", que eletrizou o país antes mesmo de ser lançada. Aí, depois de tudo pronto e anunciado, o Luan desistiu. Paulinha ficou arrasada. Gravou o vídeo dizendo que estava "de coração partido" e perguntou aos fãs se eles queriam ser o Bradley dela. Alguém, pelo amor de Deus, quer ser o Bradley da Paulinha Fernandes?

Me deu uma raiva desse Luan Santana. O que será que o Roberto Carlos pensa disso? Talvez você não se lembre, mas foi o Roberto Carlos quem "descobriu" a Paula Fernandes. Ela não era muito conhecida, até que o Rei a convidou para participar do seu especial de fim de ano. Paula chegou dentro de um vestido azul bem curto, curtíssimo, sentou-se em um banquinho e cruzou as pernas longas e luzidias de um jeito que deu uma angústia. Roberto, ao lado, parecia levemente atordoado com a visão da moça. Esperei que ele, em algum momento, comentasse:

- São tantas emoções? Mas não comentou. Conteve-se.

Depois do programa, o boato que circulou pela nação em ebulição foi de que Paulinha estava namorando o Rei. Não era verdade, mas seria legal, se fosse. Roberto voltaria a cantar grandes clássicos, tenho certeza. "Eu te proponho, na madrugada, você cansada, te dar meu braço, no meu abraço fazer você dormir?"

Ultimamente, prefiro ocupar-me desses assuntos mais leves da vida mundana. Não que os temas, digamos, "sérios" deixem de me interessar. É que dá certa sensação de inutilidade escrever sobre eles. Em geral, as pessoas já se acantonaram em seus posicionamentos e vão analisar tudo por esse ponto de vista. Não importa o que é feito, importa quem faz. Não importa o que é escrito, importa quem escreve.

Então, mais me apraz escrever de Paulinha do que da reforma da Previdência. Foi um acontecimento aquele vídeo dela. Foi algo diferente de tudo o que tem sido feito e visto nas redes e afins.

Sabe por quê?

Porque ela estava triste.

Hoje, ninguém mais fica triste. Hoje, as pessoas ficam furiosas ou depressivas. Ou é a indignação ou é a doença. Ou o punho fechado batendo no peito ou o remédio tarja preta. A tristeza é considerada um sentimento menor, uma humilhação.

Na verdade, trata-se do contrário. A pessoa que fica triste por algo que outra pessoa lhe fez não está demonstrando a sua humildade, mas a sua humanidade. Como diria Fernando Pessoa, em sua obra-prima, Poema em Linha Reta:

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse não uma violência, mas uma covardia!

Não, são todos o ideal, se os ouço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos.

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Uma pessoa capaz de revelar sua tristeza fala com a voz humana que reclamava o poeta. Mais até: ela está sendo generosa com quem a agrediu. Porque está dizendo: eu me importo com você e você me decepcionou.

Se alguém embrabece comigo, embrabeço também. Mas, se percebo que causei tristeza, é como se um punhal me fosse enfiado bem aqui, no ventrículo esquerdo. As lágrimas de Paulinha me tocaram. Garanto que tocaram Roberto, sensível que ele é. "Ele não pensa em querer-te, te faz sofrer e até chorar", pode ter-lhe cantado o Rei. Felizmente, Paulinha está de amor novo. Um alívio. Vá saber, encontrou seu Bradley. E o Luan Santana? Ah, que raiva daquele Luan Santana!

DAVID COIMBRA


22 DE JUNHO DE 2019
MÁRIO CORSO

Comida para macho

Como nunca, as pessoas andam preocupadas com sexo. Não aquele que se faz na cama, e sim aquele tipo: é guri ou guria? Para tanto, elaborei um manual do sexo das comidas, para servir de guia a almas gaudérias inquietas. Imagina comer algo sem saber as consequências!

Churrasco é para macho, coma tranquilo. Carne passa segurança. Digamos que grelhado de peito de frango é a fronteira. Já começam com uns verdinhos em cima, tipo sálvia, sei não...

Quando nos chegam com peixe, tipo isso ou aquilo, estamos em território duvidoso. Exceção à tainha na taquara, aprecie com moderação.

Carreteiro é abençoado. Qualquer dúvida, abuse da pimenta e siga em frente.

Ovo frito é garantia. Qualquer coisa que fique meio assim, tasca um ovo frito em cima que salva. Fora sobremesa, vai com tudo.

Massa é território confuso. Pergunte se tem bacon. Se tem, vai. Se não tem, fica esperto.

Pão, depende. Se vem fatiado, não dá. Pão que é pão é aberto com a mão.

Fruta, o diminutivo já diz: frutinha. Consuma com algo que neutralize. Com um queijo da colônia e salame, dá até para comer uva branca sem semente.

Xis é aceito. Qualquer um, de preferência o X-tudo. Já hambúrguer é correto, mas deixa a porta aberta. Na dúvida, peça xis e deixe o hambúrguer para a prenda. O hambúrguer é algo que quer acertar, mas se deixa levar por cebola caramelizada, picles agridoces, essas coisa. Não é de raiz.

Arroz com feijão é tudo de bom. Siga e capriche na farofa. Mas cuidado com as farofa, se vêm com passas, nozes, já é de abrir o olho.

Lasanha é a comida mais perfeita do mundo. O que não impede de avacalharem. Pergunte se vai berinjela ou abobrinha em lâminas ao invés da massa. Se vai, saia do restaurante.

Salada é pra coelho. Enfeita e coisa e tal. É até de bom alvitre pra saúde comer umas folhas. Mas não exagere. Alguém estará vendo. Salada boa é salada de batata. Mas, se tiver coisas como maçã, evite.

Polenta com molho vermelho é das poucas coisas em que até Deus inveja a humanidade, coma tranquilo. Frita ou brustolada com queijo em cima vem bem também.

Verdura que honra o pago é a couve irmã da feijoada e radite com bacon, o resto nem dá bola.

Pizza é neutra. Nem é comida, é lanche. No caso, seria mais gaúcho ir de pastel.

Cachorro-quente até pode, mas por que o vivente comeria isso e não choripán? E, lembre, tudo o que precisa de ketchup não deveria nem existir.

Mandioca com carne de panela tá liberado.

Moranga caramelada pede torresmo para equilibrar.

Tudo que tem ovelha é ferrolho. Pode exagerar.

Cuca é perigo. O melhor é dar uma beliscada, como quem nem tá comendo. Por isso os alemão comem com linguiça, para modo de contrabalançar os efeitos perniciosos.

Sobremesa é três coisa: arroz-doce, ambrosia e doce de abóbora. O resto, esquece. Sagu pode, mas é mais castigo do que sobremesa.

MÁRIO CORSO

22 DE JUNHO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

O ALERTA DO GENERAL

Carlos Alberto dos Santos Cruz, que serviu ao governo Bolsonaro por quase seis meses, observou que o Planalto perde tempo com polêmicas inúteis e deixa de mostrar o que faz de bom

Em entrevista à revista Época poucos dias depois de ser dispensado da Secretaria de Governo da Presidência da República, o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz expressou uma preocupação recorrente em relação aos movimentos do núcleo mais ideológico do Planalto. Uma inquietação, aliás, que também aflige parte dos colaboradores do presidente Jair Bolsonaro. 

Ao admitir a existência de "um show de besteiras", reforçou a percepção de que, no coração do poder, há perda de tempo com polêmicas inúteis que desviam o foco e a energia do que realmente é importante para o país. Ou seja, enquanto o Brasil padece com uma economia estagnada, com 13 milhões de desempregados, criam-se controvérsias que apenas atrapalham qualquer tentativa de retomada e, ao mesmo tempo, fazem surgir ruídos que causam estorvos à tramitação da reforma da Previdência no Congresso.

Mas, ao contrário do que parece à primeira vista, o general não saiu atirando, mesmo após ser submetido a doloroso processo de fritura. Na entrevista, reservou elogios ao governo a que serviu no primeiro semestre, apesar de lamentar as polêmicas desnecessárias. Assim, o que disse Santos Cruz deve ser analisado mais como um alerta, e não uma crítica de alguém magoado pela forma como foi descartado. 

São palavras que, portanto, servem para uma reflexão. Agir por impulso, falar o que vem à cabeça sem um mínimo de ponderação e engalfinhar-se em bate-bocas por redes sociais não resgatarão o país da crise. É preciso baixar a temperatura, dialogar e criar consensos. Por inexperiência ou ignorância mesmo, muitos governantes chegam ao poder considerando-se senhores do céu e da terra. Mas nem em ditaduras e monarquias isso acontece, pois mesmo tiranos autocráticos têm de prestar contas a um círculo que lhes empresta sustentação.

Santos Cruz ressalta que ainda há tempo de apertar os parafusos. E exibir o que o governo está fazendo de bom, sem deixar que o relevante seja ofuscado por querelas geradas pela legião de lunáticos seguidores do filósofo de ultradireita radicado nos EUA. 

Uma das áreas que vêm mostrando serviço é a da infraestrutura, seguindo o planejamento iniciado na gestão Temer, com concessões e privatizações. E mesmo que não houvesse o que ostentar, restaria ao governo concentrar sua atenção nas reformas, a começar pela da Previdência. Mirar em temas realmente importantes ajudaria ainda a ocupar de forma mais útil as mentes das alas mais delirantes do Planalto e arredores.


22 DE JUNHO DE 2019
INDICADORES

Dez razões para ficar


Há poucos dias, mais um amigo anunciou que vai dividir sua agenda entre POA e SP. Então, resolvi perguntar a empresários, artistas, advogados, psicanalistas, jornalistas etc.: o que te faz continuar aqui? Não tem valor estatístico, mas é uma mostra do que pensam. Quase todos tiveram muitas dificuldades em conseguir 10 argumentos positivos. Reuni por segmentos, sem colocar aspas. São as frases como foram ditas.

1- Afetos

Meus afetos estão aqui (foi o que mais ouvi!). Família conta muito. Apoio, laços, vínculos. É um conforto contar com pessoas de longa data. Sou casada com um gaúcho e ele não vai embora. O pertencimento: em qualquer outro lugar serei uma estranha. É aqui que construí e estruturei minha vida. Tenho rotinas de filhos organizada.

2 - Amor pela terra

POA é acolhedora, charmosa, te prende em cada detalhe. É uma cidade simples, fácil, com razoável estrutura de serviços. A cidade é equilibrada entre tamanho, população, stress etc. Gosto da "caseiridade": tudo é perto, dá para fazer muita coisa de bicicleta. Tem o lado bom do conservadorismo: um freio nos excessos. Somos acolhedores e temos espírito colaborativo. Amo o Guaíba. Meu lazer, esporte a vela, no Guaíba. Me identifico com a cultura daqui. Aqui as coisas são feitas com mais seriedade.

3 - Timing

Talvez eu tenha perdido o timing de sair, mas o meu futuro, possivelmente, seja com meus netos fora do RS. Aqui sou reconhecido. Fora, teria que começar tudo de novo.O que já conquistei, em outro lugar, terei que começar do zero. Teria dificuldades de reiniciar em outro lugar, falta de coragem, de iniciativa.

4 - Negócios

Aqui a mão de obra é mais barata do que em SP. Tem muito a ser feito. Construí carreira com vínculos no RS. É mais fácil conseguir oportunidades por relações já construídas.

5 - Tradição

Algumas coisas ainda me confortam, me remetem à infância. Fico porque sinto que o povo gaúcho honra suas raízes, tem espírito guerreiro, e me identifico com isso.

6 - Clima

As estações que mudam a cada quatro meses. Dão charme em relação a lugares essencialmente quentes ou gelados. Adoro o inverno, o frio.

7 - Opções culturais de POA, o Grêmio e o Inter

8 - Proximidades

Aqui estamos próximos dos países do Cone Sul, SC, possibilitando férias e finais de semana prolongados, via terrestre. A Serra, além da existência de cidades-refúgio próximas, com qualidade superior à da Região Metropolitana.

9 - Compromisso

Desejo ajudar a transformar o lugar onde vivo. Me sinto compromissado com o local onde nasci.

10 - Inovação

Fico porque acredito no movimento pela inovação que estão fazendo.

Alfredo Fedrizzi escreve aos fins de semana, a cada 15 dias. 

ALFREDO FEDRIZZI

22 DE JUNHO DE 2019

+ ECONOMIA

BOLSA DECOLA, ECONOMIA RASTEJA

A bolsa de valores de São Paulo (B3) encerrou a semana com novo recorde. Na sexta-feira, seu principal índice, o Ibovespa, fechou acima dos 100 mil pontos pela segunda vez na história. Ao final da sessão, confirmou alta de 1,7%, a 102.012 pontos. A máxima anterior havia sido registrada na quarta-feira.

Economista-chefe da agência de classificação de risco Austin Rating, Alex Agostini avalia que o desempenho do mercado financeiro espelha a "ausência de pontos negativos" na reta final da semana. Segundo Agostini, a expressão descreve, por exemplo, a não criação de novas turbulências entre o governo Jair Bolsonaro e o Congresso.

O que chama atenção é o fato de que o bom humor do mercado financeiro contrasta com o momento da economia real, em dificuldades no país. Entre janeiro e março, o Produto Interno Bruto (PIB) - a soma dos bens e serviços brasileiros - caiu 0,2%, alimentando o risco de volta da recessão técnica, caracterizada por dois trimestres consecutivos de baixa na atividade.

Agostini ressalta que a bolsa reflete, em parte, expectativas relacionadas ao futuro do país. Apesar dos recentes ruídos protagonizados pelo governo, investidores demonstram confiança na aprovação da reforma da Previdência, diz o analista.

Para completar o cenário, a sinalização de que países como os Estados Unidos terão taxas de juro reduzidas também beneficiou a bolsa brasileira. Quando há chance de os ganhos ficarem menores em mercados como o americano, abre-se a janela para que investidores demonstrem maior apetite por risco. Ou seja, olhem com mais atenção para países emergentes, como é o caso do Brasil.

- A explicação para o descompasso entre bolsa e economia real é simples. O desempenho das empresas no mercado é influenciado, em parte, por expectativas futuras. Como há projeção de que a reforma da Previdência beneficiará diferentes setores, o risco de o país entrar em colapso é menor. O momento atual da economia está pesando menos - pontua Agostini.

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O RIO GRANDE DO SUL teve baixa de 34,4%, para R$ 1,1 bilhão, na aprovação de novos financiamentos do BNDES no primeiro trimestre. O recuo na concessão de crédito do banco, envolvido em polêmica por causa da recente saída de Joaquim Levy, segue a diretriz da equipe econômica do governo federal. A intenção é reduzir o peso de instituições públicas nos financiamentos no país.

LEONARDO VIECELI

sábado, 15 de junho de 2019



15 DE JUNHO DE 2019
LYA LUFT

Responsabilidade

Quando menina, eu queria muito ser adulta, para poder tomar champanha, usar perfume francês, ter conversas interessantíssimas (eu achava...), viajar pelo mundo, comer iguarias diferentes - não só dormir cedo e comer franguinho com purê de batata.

E não obedecer... o que era meu maior problema, porque a cada comando eu queria saber o motivo. Alguém um dia me disse, achando graça dos meus acessos de mau comportamento ("eu quero ser grande! eu quero ser grande!"), que era pura ilusão achar que os "grandes" é que tinham vida boa. "A gente tem mais é responsabilidades", concluiu, acho que era um dos tios. Achei melhor não perguntar também o que era "responsabilidade". Eu cedo ia descobrir. Tive muitas mais tarde, tenho algumas até hoje, e foram das melhores coisas que me aconteceram, pois irresponsabilidade gera caos, angústia e tédio.

Estou lendo, relendo, um livro do psicólogo e professor universitário canadense Jordan Peterson, 12 Regras para a Vida, um Antídoto para o Caos. Atenção: apesar do título, nada tem a ver com autoajuda. No YouTube, pode-se assistir a inúmeras entrevistas e palestras suas, sobre política, direitos humanos, psicologia, saúde, especialmente psíquica.

Não sou facilmente tiete de ninguém, mas neste momento meu "guru" é ele, pela lucidez, bom senso, empatia e simplicidade. Entre muitas coisas sobre depressão (não tristeza pontual sobre algum motivo), por exemplo, algumas parecem muito lógicas e eficientes: ter um excelente psi, aceitar medicação (dada por esse excelente terapeuta ou médico) e deixar de se sentir vítima. Depressão ataca milhões no mundo inteiro, o próprio Peterson e sua filha sofrem ou sofreram disso, que aliás se manifesta em várias pessoas de sua família.

Pare de se vitimizar e, se conseguir sair da cama, faça alguma coisa. Saia do quarto. Realize qualquer atividade ou trabalho. Estude. Caminhe, corra, qualquer coisa, desde que o obrigue a sair de seu próprio sofrimento. Mantenha algum horário. E, metafórica e concretamente, arrume suas coisas: bote em ordem seu quarto ou seu escritório, e aos poucos verá que vai arrumar sua vida.

Caminhe ereto, olhe pra frente, procure se interessar em alguma coisa, qualquer coisa ou pessoa, ajude a si mesmo como se fosse um amigo importante. Seja amigo de quem deseja seu bem. Busque o que tem significado, não o que é só conveniente. Não se exija demais, nem seja demais permissivo com você mesmo. A vida é cruel, para algumas pessoas em alguns momentos é trágica, mas não há outro jeito a não ser este: cuide de sua existência, veja como você a quer viver.

Falando assim, parece fácil... ou impossível. Escritos e falas do doutor Peterson não se dirigem só para quem tem problemas sérios, mas valem para cada um de nós, pois a vida é dura tarefa para qualquer um. Já escrevi, e repito, o que me disse um amigo, "Lya, cada um tem a sua dor". Não se entregue, não se vitimize, não se isole, nem julgue os outros. Vai ser difícil.

Mas assuma responsabilidade em construir sua vida, nem que seja um tijolinho por dia.

LYA LUFT

15 DE JUNHO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Mulherzinha à toa


Fiquei observando os dois sentados lado a lado na sala de embarque do aeroporto. Conseguia escutar o que eles diziam, até porque não se preocupavam em ser discretos. Não fazia ideia qual seria a profissão da dupla, até que me deram uma pista. Um deles comentou sobre uma atriz de TV: "Aquela? É uma mulherzinha à toa". Arqueólogos, por certo. Desenterraram dois fósseis numa única frase.

Há vestígios de sua passagem pela Terra, mas ninguém sabe dizer quem foi a última "mulherzinha" sobrevivente: a única certeza é que elas foram extintas, não existem mais. As "mulherzinhas" eram translúcidas e decorativas. Precisavam pedir licença para dar opinião e, mesmo quando recebiam, não eram escutadas. Frágeis e dependentes, seus fósseis são hoje fonte de informação valiosa no estudo da evolução da espécie. Pode-se, muito raramente, encontrar uma variação de "mulherzinha" escondida em algum reduto, servindo de primeira-dama de um poderoso. Mas a história confirma que elas desapareceram mesmo e deram origem a uma nova categoria classificada como "mulherões", que hoje habita todo o planeta.

Já a "à toa" é fonte de discussão entre paleontólogos, pois há indícios de nunca ter existido. É enorme a incredulidade no meio científico de que possa ter passado pela Terra, algum dia, uma mulher inútil. Ainda que a espécie, na era das "mulherzinhas", não trabalhasse fora das cavernas, é sabido que a maioria delas tornou-se mãe - o que fulmina por completo a ideia de uma classe "à toa". 

Mesmo as que não exerceram a maternidade, dedicaram suas vidas a cozinhar, costurar, podar o jardim, cuidar de outras crianças, lecionar, medicar feridos, aconselhar atormentados, comandar orações e gerenciar a rotina doméstica. Pesquisas apontam que o termo "à toa" possa ter sido derivado de um preconceito ancestral em relação à sexualidade das "mulherzinhas" e se mantido até os dias atuais na tentativa de oprimir os "mulherões", já que, em algumas mentes arcaicas, ainda causa espanto o fato de as mulheres terem o direito de fazer o que bem entendem com o próprio corpo.

Eis o curso da história: "mulherzinhas" evoluíram para "mulherões", e as "à toa", que existiam apenas como lenda difamatória, hoje são presidentes de empresas, esportistas, participantes de rali, médicas, engenheiras, motoristas de aplicativos e de caminhões, jornalistas, vereadoras e um longo etcetera, e ainda impressionam por sua capacidade de preservar a maternidade como importante realização biológica da espécie, mesmo em meio a tantas transformações.

Quanto aos dois sujeitos na sala de embarque, que ainda acreditam que existem "mulherzinhas à toa", espera-se que rumem à extinção, eles também.

MARTHA MEDEIROS



15 DE JUNHO DE 2019

CARPINEJAR

Pais açucarados

A prostituição mudou de nome. Não vigora mais a figura do cafetão. Não há mais a necessidade de resolver a noite com dinheiro vivo ou cartão. Os motéis ficaram para trás. O novo termo da safadeza bitcoin é patrocínio.

Inspirados no modelo americano Sugar Daddy (Pai Açucarado), vários aplicativos no país vêm ganhando popularidade estabelecendo um escambo sexual. É um serviço de acompanhantes para altos executivos, generosamente estendido para todos os públicos.

Clientes pagam mesadas para fazer sexo com jovens bonitas dentro de uma redoma de reserva e discrição na web. É um casamento do Tinder com o Mercado Livre, um ponto de pegação e também um pregão virtual, onde você fica com quem faz o lance mais alto.

Funciona como um app monetário de paquera, com claras e diretas segundas intenções, destinado a uma faixa etária mais velha, abonada, sem paciência para intimidade e que não pretende perder tempo com conquistas espontâneas. Rola-se na tela um cardápio com figurinhas para escolher a anatomia de sua preferência.

É uma negociação cheia de eufemismos. Os interessados "investem" na pessoa, em vez de cobrir um valor específico que pudesse ser enquadrado como venda do corpo. Mas dá no mesmo.

Posses compensam poses. Mulheres estipulam o que desejam para sair com alguém. Oferecem prazer em troca de um sonho de consumo. Qualquer ambição material entra na negociação. Eu transo com você se adquirir o último modelo do iPhone ou eu transo com você se pagar uma cirurgia plástica nos seios ou eu transo com você se quitar a minha faculdade ou eu transo com você se bancar um aparelho. Dependendo do que se pede, carro ou imóvel decorado, pode-se formalizar um plano de convivência de um a dois anos, quase um namoro sacramentado por conveniência e oportunismo.

É o apogeu do ter em detrimento do ser, a normalização da ideia de que tudo pode ser comprado, a gourmetização digital da nudez. Cria-se uma variação sofisticada de uma antiga profissão: alugam-se momentos em nome da aparência, sem nenhum envolvimento emocional.

Além da coisificação do corpo feminino, as plataformas incentivam a mentalidade incestuosa, já que os homens são tratados como pais mimando as suas filhas. Alcançam presentes às protegidas para a realização de fantasias ou respectiva ostentação da ninfeta em lugares públicos. O uso contaminado do papel da filiação provoca repulsa, tendo em vista que a gratificação representa uma contrapartida a favores eróticos.

Parem o mundo que eu quero descer.

CARPINEJAR

15 DE JUNHO DE 2019

PIANGERS

Me separei

Foi em 2013, mais ou menos, que o meu casamento acabou. Minha segunda filha tinha acabado de nascer, e eu era um pai participativo, fazendo tudo aquilo que se espera: banho, fralda, pediatra, shopping, creche. Mesmo assim, minha esposa não estava satisfeita. Reclamava constantemente, e meu argumento era: "Olha o tanto que eu já faço".

Começamos a dormir em camas separadas e a conversar sobre os trâmites de uma separação. Comuniquei a minha mãe, que ouviu calada. Mãe é anjo da guarda que faz planos. Nos ligou na semana seguinte lamentando o divórcio. Disse que tinha comprado um fim de semana em um resort e que já tinha reservado tudo e não poderia cancelar. Teríamos que ir como família.

"Ok", falamos, "mas vamos dormir em quartos separados". Claro, disse minha mãe. Chegamos lá e era uma cama de casal. "Não consegui trocar", nos disse. Na hora da praia ela não podia ir junto. "Vão vocês", ela dizia. "Eu fico com as crianças". Minha mãe deixava sempre eu e minha esposa sozinhos, com tempo para conversar.

E a gente foi se encostando de novo, conversando de novo, entendendo-se de novo. E eu perguntei para minha esposa o que ela tanto reclamava e queria. "Eu já faço 50%", eu disse. "Não é justo você reclamar!". E ela me disse: "Eu não quero 50%. Eu quero 100%. Eu estou sempre aqui completamente, mas você, às vezes, está com a cabeça em outro lugar, está com prioridades em outro lugar, finge que está aqui, mas não está".

Acho que só ali eu entendi. Um relacionamento não é dar 50%. Um relacionamento é dar 100%. E quando a gente não dá 100% o outro nota.

Foi em 2013, mais ou menos, que o meu casamento recomeçou. E a gente foi se conhecendo de novo e namorando de novo e acho que noivamos e casamos de novo. E a gente discute, de vez em quando, mas separar acho que nunca mais. A gente sempre dá um jeito de se puxar para perto. E se, um dia, a gente fizer uma festa de renovação de votos, acho que vamos renovar essa coisa de estar 100% na parada. Que casamento é all in. E se essa festa sair mesmo, vocês estão todos convidados. Que acho que vai ser bonito demais.

PIANGERS


15 DE JUNHO DE 2019
PAUILO GERMANO

Imprensa é para incomodar

Camille Desmoulins mal tinha 30 anosquando criou um jornal antimonárquico e começoua estimular a revolta contrao rei Luís XVI, no fim do século 18. O governo francês mandou prendê-lo, mas o jornalista deu um jeito de sumir. A essa altura, os jacobinos já se articulavam para tomar o poder e, quando enfim conseguiram, como rei deposto, Desmoulins ressurgiu como herói.

Legal, ele ficou feliz, só que aí veio o Período do Terror: morte a todo mundo que se opusesse ao novo regime. Combativo que era, o jornalista saiu a denunciar a carnificina nas páginas do Le Vieux Cordelier. Adivinhem? Sobrou para ele, claro: guilhotina aos 34 anos.

Perseguido pelo rei e decapitado pelos inimigos do rei, Desmoulins ainda é um ícone da conturbada relação entre imprensa e poder. Embora tivesse uma evidente inclinação política, nada - nem a iminência da morte - o impediu de fazer o que o jornalismo precisa fazer: denunciar, incomodar e, acima de tudo, mostrar o que os governos tentam esconder. Não interessa qual governo.

Foi para isso que as sociedades inventaram o jornalismo. Justamente para escapar dos informes chapa-branca que os governos, lá na Roma Antiga, já distribuíam em tábuas de pedra com as versões que lhes convinham sobre assuntos que lhes convinham. Jornalismo é o que não convém. É o que o governo não quer. Sei que soa antipático, mal-humorado, mas não há função mais indispensável à democracia do que essa.

De uns tempos para cá, vem crescendo o clamor por um tal "jornalismo positivo". É evidente que, se um governo apresenta um projeto fora da curva, e esse projeto é positivo, o bom jornalismo deve cobrir o assunto. Mas não porque é positivo, e sim porque há interesse público nele. Porque é notícia. E notícia é o que fugiu do script. É, como disse Eugênio Bucci, o avião que cai, e não os milhares de voos que diariamente terminam bem.

Não há dúvida de que o interesse público, quando se fala em governo, jamais estará nos servidores honestos que nunca desviaram dinheiro do erário - está nos que desviam. Está no que deu errado. Ou, no mínimo, em um enredo que ninguém esperava: se o filho de um desembargador vira milionário, não é notícia; se o filho de um engraxate consegue o mesmo, talvez seja. E aí teremos, que legal, uma "pauta positiva".

Mas a moda agora é dizer que a imprensa "persegue" esse ou aquele governante. Ora, a única forma de a imprensa ajudar no avanço democrático é incomodando quem governa. Aliás, também falavam que Camille Desmoulins perseguia Luís XVI e, depois, os jacobinos. Veja que democrático o que fizeram com ele.

PAUILO GERMANO


15 DE JUNHO DE 2019
COM A PALAVRA

"A RESISTÊNCIA À IGUALDADE É UMA CAUSA DO ACIRRAMENTO DE ÂNIMOS"
ENTREVISTA | Dominic Barter, PESQUISADOR SOCIAL, 51 ANOS*

Em oficinas Brasil afora, Dominic Barter gosta de se apresentar como pesquisador das relações humanas. É uma forma de introduzir seu trabalho, batizado de "desenho de sistemas dialógicos". Barter se dedica à Comunicação Não Violenta (CNV), área de estudo criada pelo psicólogo norte-americano Marshall Rosenberg há mais de 50 anos. A CNV busca colocar em prática, nas relações cotidianas e nos sistemas sociais, o poder do diálogo e da empatia no aprimoramento da capacidade de conviver e na compreensão de conflitos, mesmo diante de comportamentos e situações coletivas que envolvam dor e sofrimento. Barter foi aprendiz e colega de Rosenberg por 18 anos e já desenvolveu trabalhos em mais de 30 países. Ele mora no Brasil desde 1992 e, a partir da sua experiência nos morros do Rio de Janeiro, desenvolveu os Círculos Restaurativos, abordagem brasileira de Justiça Restaurativa agora presente em mais de 40 países.

A NÃO VIOLÊNCIA É VINCULADA A GRANDES LÍDERES, COMO MAHATMA GANDHI E MARTIN LUTHER KING. COMO A COMUNICAÇÃO NÃO VIOLENTA (CNV) PODE SER APLICADA NO DIA A DIA DO CIDADÃO COMUM?

Há tendência de contar a história dos movimentos não violentos como se fossem associados a indivíduos excepcionais. Não reconhecemos que, mesmo nos casos envolvendo figuras famosas, o que estava acontecendo era um movimento, do qual essas pessoas eram simplesmente uma parte. Os líderes vistos como excepcionais são pessoas comuns com fortes sistemas de apoio que possibilitam que ajam com uma coragem que se destaca. O exemplo brasileiro mais famoso internacionalmente quase ninguém aqui ouviu falar, exatamente porque foi realizado por pessoas "normais". Os trabalhadores da fábrica de cimento Perus, em São Paulo, fizeram uma greve que começou em 1962 e durou sete anos. Eles pleiteavam melhores condições de trabalho. Em pleno governo militar, orientavam sua ação pela proposta da não violência.

COMO A CNV ENTRA NAS RELAÇÕES COTIDIANAS?

Nas últimas décadas, tantos esforços foram realizados que nunca vamos conseguir mensurar tudo que aconteceu na sociedade para transformar preconceitos do nível interpessoal. Os maiores exemplos são as mudanças na questão de raça, nos direitos civis e na transformação no tratamento das mulheres e das múltiplas formas de amar. A CNV tanto bebe dessas fontes quanto as alimenta.

ESSES EXEMPLOS SÃO FOCO DE EMBATE.

Há traços complexos entre quem está trabalhando para transformar uma dinâmica de repressão e as pessoas que temem perder, de algum jeito, seu bem-estar. Na visão delas, em um entendimento superficial e medroso, os privilégios de um grupo são ameaçados por essa transformação em curso, quando na verdade é uma contribuição para o bem-estar de todos. Cientificamente, já se sabe que se beneficiar de uma dinâmica que oprime outros faz mal à pessoa, a sua saúde física e psicológica. A CNV ajuda a promover essas transformações sociais de formas que não impactam negativamente em outros.

NOS ÚLTIMOS ANOS, CRESCEU NO BRASIL UM CLIMA DE POLARIZAÇÃO QUE INVADIU TODAS AS ESFERAS DA VIDA, A PONTO DE CAUSAR BRIGA ENTRE AMIGOS E DENTRO DE FAMÍLIAS. QUAL A ORIGEM DISSO?

A origem está, em parte, na forte resistência que essa transição para liberar pessoas da exclusão e da opressão social tem sofrido. Isso tem acirrado as posições dos dois lados, principalmente em relação à sensação de injustiça diante da forma como o poder é distribuído na sociedade. Com a ascensão econômica e a libertação das necessidades gritantes de simplesmente comer e ter um lugar para morar, as pessoas estão procurando uma participação social cada vez mais ampla. Querem ter a mesma experiência que outros têm. A resistência a esse movimento de maior igualdade tem aumentado e também é uma causa do acirramento de ânimos. Junta-se isso a uma crise econômica e a uma enorme expansão dos meios de expressão por meio das mídias sociais e cria-se uma situação social em que muitas pessoas estão falando, mas poucas estão ouvindo. Há falas mais articuladas, mas em sacrifício da capacidade de escutar e de perceber a humanidade da outra pessoa. Estamos sofrendo isso nas famílias, no trabalho e nos relacionamentos. Prestamos atenção na opinião do outro, mas temos dificuldade de enxergar o ser humano por trás dela.

COMO A CNV PODE CONTRIBUIR PARA QUE A GENTE VOLTE A FALAR DE POLÍTICA SEM TER O OUTRO COMO INIMIGO?

A CNV nos ajuda a focar a atenção não apenas na fala, mas na mensagem por trás dela. Precisamos prestar atenção não apenas no que a pessoa está falando, mas no que ela quer dizer, no que está sentindo e precisando. Isso facilita a descoberta de que, em muitas situações, nossas formas de nos expressar e de ouvir um ao outro não são precisas. A CNV nos ajuda a ter uma escuta inteligente, que procura, entre as palavras, encontrar a pessoa que está buscando se expressar.

OS GAÚCHOS, MUITAS VEZES, FAZEM QUESTÃO DE RESSALTAR PONTOS DE DIVERGÊNCIA, DISCORDÂNCIA, EM RELAÇÃO AO OUTRO. COMO O SENHOR ANALISA ESSA CARACTERÍSTICA?

Dentro de um país tão grande e diverso como Brasil, ter uma identidade própria e uma cultura local é algo que muitos querem destacar e defender. Isso é saudável no sentido de querer reconhecer e celebrar uma história de superação de um povo. Ao mesmo tempo, se isso provoca uma redução na capacidade de absorver o diferente e de reconhecer o valor daquilo que não vem do berço, mas vem para acrescentar, pode tornar-se uma limitação.

ESSA TENSÃO CRESCE EM RELAÇÃO À POLÍTICA.

A política não é uma briga de pessoas, é uma briga de ideias. E o embate de ideias dentro da esfera democrática é para encontrar o que serve melhor à sociedade, e não aquilo que eu prefiro. Para a política ser dialógica na busca do que melhor serve à sociedade, precisamos ter simultaneamente a defesa daquilo que a gente acredita que seja melhor e a disponibilidade de ouvir e de ser mudado pelo que a gente escuta.

O SENHOR DIZ QUE O BRASILEIRO É CAMPEÃO EM SIMPATIA, MAS NÃO EM EMPATIA. PODE EXPLICAR A DIFERENÇA?

Simpatia é a energia fraterna com a qual a gente alimenta as relações no dia a dia. Envolve a disponibilidade de rir junto, de brincar junto. E uma qualidade muito bonita de acolhimento quando o outro não está bem. É uma receptividade de alguém pelo fato de essa pessoa estar passando por uma situação difícil, que é implicitamente considerada imutável. A simpatia é maravilhosa, mas é passiva. Oferece consolo para aquilo que não podemos mudar. Já a empatia é transformativa. Em vez de dar colo, a empatia junta forças. Ela oferece apoio para a capacidade de mudar a situação. Empatia é esse foco de atenção ao outro que permite liberar a imaginação, revelar o próximo passo, energizar para uma ação transformativa.

COMO O SENHOR AVALIA ESTE MOMENTO DO PAÍS, QUE CONVIVE COM UM FASCÍNIO POR ARMAS E COM A IDEIA DE QUE O CIDADÃO COMUM VAI RESOLVER SEUS PROBLEMAS COM ELAS AO MESMO TEMPO EM QUE SE CHOCA COM EPISÓDIOS COMO O DO MÚSICO FUZILADO POR MILITARES NO RIO?

As pessoas precisam ter condições de segurança. Se você não quer que a população ande armada, tem de oferecer alternativas viáveis. Está muito claro pelas pesquisas que armar a população significa aumentar consideravelmente o perigo e o número de mortes. Estatisticamente é mais perigoso ser assaltado portando arma do que desarmado. Mas a sociedade não está segura. A população prisional aumentou 700% nas últimas duas décadas, e o Brasil já tem a terceira maior população carcerária do mundo. E ninguém está se sentindo mais seguro. A orientação do sistema de Justiça pela punição não está funcionando. Para oferecer uma alternativa real a essa tentativa de se armar, precisamos de uma profunda reavaliação de como estamos praticando a justiça no país e de como criar uma comunidade mais segura. A não violência tem muito a ajudar no entendimento de quais são os elementos necessários para criar sistemas restaurativos, que respondem ao conflito por meio de um viés dialógico.

PODERIA DESCREVER ESSE PROCESSO?

O Rio Grande do Sul é um dos Estados pioneiros na criação de formas dialógicas de responder a conflitos dolorosos e violentos. Há experiências ocorrendo desde 2005, no Judiciário, em escolas e em entidades da sociedade civil. São processos pelos quais as partes envolvidas em um conflito podem se encontrar dentro de um ambiente seguro para promover um diálogo. Ali, cada uma delas pode descobrir o que aconteceu, o significado do que o outro estava almejando no momento em que o conflito aconteceu, e fazer um plano concreto de reparação de danos e de restauração da segurança e do bem-estar de cada um para promover uma reintegração de todos na convivência normal. O Brasil inova nessa área desde os anos 1990, a partir da minha experiência no Rio. Há evidências aqui e no Exterior da eficácia dessas experiências em reduzir a reincidência, aumentar a segurança comunitária e criar uma maior experiência de segurança para a população.

COMO O SENHOR ANALISA A REPETIÇÃO DE ATAQUES ARMADOS EM ESCOLAS NO BRASIL?

A área da educação é uma das mais sofridas no país. Tenho trabalhado bastante em escolas e vejo um grau de sofrimento muito assustador. Depois dos profissionais da área prisional, os professores são uma das categorias que mais solicitam intervenção psiquiátrica. Sofrem de depressão e faltam ao trabalho por causa de doenças. É inevitável que esse sofrimento caia sobre os alunos. Para muitos jovens, a escola é a primeira experiência profunda de sofrimento social. É onde descobrem o racismo, o sexismo e o bullying, além de que sua fome orgânica de aprender é desconsiderada em troca de engolir dados sem uso criativo ou prática evidente, simplesmente para passar numa prova. Há também um descompasso crescente entre a estrutura da escola e o ritmo das transformações na sociedade. Esse cenário aumenta as possibilidades de conflito e, quando os colégios não sabem lidar com isso de forma dialógica, mas apenas por meio da punição e da imposição de regras, muitos jovens saem da escola com uma experiência profundamente sofrida e sem expectativa de que a vida voltará a ser alegre.

ESSA É A CAUSA DOS ATAQUES?

Tragicamente, alguns têm decidido registrar esse sofrimento na forma de protesto mais desesperada possível, que mostra uma tentativa de resgatar algum poder de ação, de autonomia, cometendo esses crimes horrorosos. É um grito de desespero, de não ser ouvido, como tantas vezes é a violência social. O que é trágico é que os atiradores deixam muito claramente, em seus diários ou manifestos online, evidências de que tentaram expressar esse desespero de formas menos letais antes, mas não foram ouvidos. No caso da escola de Suzano (episódio de abril deste ano), a gente sabe agora que os jovens escolheram muito bem em quem atirar. Uma mulher que trabalhava lá havia muitos anos e era querida foi poupada. Há um dado a ser estudado: são meninos que matam, e eles matam na maioria meninas.

POR QUÊ?

Muitos jovens vivem uma profunda desorientação perante à transformação dos papéis de gênero na sociedade. Os meninos são criados para serem homens de uma forma que muitas mulheres não toleram mais. Isso desorienta os jovens profundamente, cria uma ideia de que nunca vão poder estabelecer relações amorosas. Esse tema é muito complexo, mas é evidente que o acesso a armas aumenta muito a letalidade desses episódios. É só comparar o que acontece nos EUA e o que acontece na Europa, onde a população não é armada. Mas a raiz do problema não está no acesso a armas, e sim na maneira como a gente cria espaços em que jovens podem crescer, se expressar, serem ouvidos e apoiados a se realizar de forma harmoniosa com seus desejos e com a sociedade. A gente não está fazendo isso.

FALE UM POUCO DO PROJETO DA ESCOLA QUE O SENHOR PLANEJA ABRIR EM PORTO ALEGRE (LEIA AO LADO SOBRE ESSA INICIATIVA).

Estou muito grato à Secretaria Municipal de Educação e aos meus parceiros pela abertura, curiosidade e compromisso deles com a inovação. Não é fácil fazer educação de uma forma que cuida e respeita o magistério e os jovens, que procura sustentar a curiosidade nata que eles têm sobre o mundo, mas é um dos trabalhos mais gratificantes que conheço. É preciso criar escolas verdadeiramente libertárias, nas quais os jovens possam expressar o que eles têm, de forma única, para contribuir pelo futuro.

O SENHOR JÁ DESENVOLVEU TRABALHOS EM MAIS DE 30 PAÍSES. O QUE ENCONTROU DE COMUM ENTRE ELES?

Comum é o desejo das pessoas de viver em paz e em harmonia com o outro. Isso é universal. As pessoas querem segurança, liberdade, respeito, acesso a recursos materiais mínimos para viver, sentido nas suas vidas. Querem justiça e a possibilidade de expressar o que é único a cada um, seu jeito de amar, vestir, rezar, comer e de se expressar culturalmente. Todos experimentam um intenso sofrimento quando esses desejos são reprimidos por indivíduos ou condições sociais. E estão dispostos a lutar por essas necessidades, mas, muitas vezes, estão desprovidos de mecanismos eficazes para travar essas lutas sem acidentalmente se tornarem fontes da repressão dos outros, exatamente o que não querem para si próprios. Essa é a grande tragédia. Em nome desses valores universais, oprimimos pessoas que compartilham dos mesmos anseios. Marshall Rosenberg falou que a violência é a expressão trágica de necessidades universais não atendidas. Minha experiência tem comprovado a sabedoria dessa observação.

O SENHOR TRABALHA COM INFRATORES E VÍTIMAS, VIOLÊNCIA ESCOLAR E FAMILIAR, COMUNIDADES DEVASTADAS POR GUERRAS E COM A VIOLÊNCIA NO RIO. COMO CUIDA DE SI?

A liderança pelo sacrifício é contraproducente. Viver bem e viver bem com os outros não pode ser feito de uma forma que nos custe o prazer e a alegria de viver. Para fazer o que faço, esse encontro com muitas dores e sofrimentos, é essencial ter um sistema de apoio. É essencial ter pessoas para quem posso virar quando estou triste, desanimado, perdido ou sobrecarregado. Simplesmente quero a companhia de alguém disposto a me ouvir. Às vezes, é bom ouvir um conselho de alguém sábio. Mas na maioria das vezes nem conselho eu quero. Quero aquilo de mais primário que amigos podem dar um ao outro: a presença, uma escuta carinhosa, amorosa. Isso me ajuda a lembrar que tenho a força para lidar com as situações. Não é todo dia que os resultados dos nossos esforços são suficientes. Procuro sempre parar para celebrar e agradecer aquilo que está acontecendo na minha volta e que me lembra das belezas da vida. A gratidão é o combustível secreto de quem trabalha pela não violência.

QUE LIVRO O SENHOR DARIA PARA O PRESIDENTE JAIR BOLSONARO LER?

Em geral prefiro não fazer sugestões sem antes receber um pedido, ainda menos a alguém tão ocupado quanto um presidente. Noto que aconselhar sem que o outro peça pode gerar resistência. Bolsonaro se descreve como um homem de fé, e muitas tradições religiosas oferecem sabedoria profunda acerca de não violência, inclusive na política. Certamente encontra-se toda a Comunicação Não Violenta no Novo Testamento. Mas a resposta que mais faz sentido no contexto desta entrevista seria recomendar o livro do meu mentor Marshall Rosenberg, Comunicação Não Violenta. Ele ilustra décadas de experiências que Marshall teve ao redor do mundo respondendo não violentamente a desafios sociais e pessoais dos mais cabeludos.

UMA ESCOLA NÃO VIOLENTA EM PORTO ALEGRE

Barter está em tratativas com a Secretaria Municipal de Educação da capital gaúcha para implementar na cidade um projeto semelhante ao Espaço Beta, localizado no Rio de Janeiro e do qual ele é cofundador. O princípio educativo dessa iniciativa é orientar o aprendizado dos alunos a partir de seus próprios desejos – seja criar uma horta, costurar ou falar outro idioma. Em Porto Alegre, a escola deve ser de Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental.

*Inglês que coordena no Brasil projetos de Comunicação Não Violenta, o que inclui mediação de conflitos e práticas restaurativas.

LEANDRO FONTOURA