sábado, 20 de julho de 2019



20 DE JULHO DE 2019
REPORTAGEM

FRUSTRAÇÃO EM PORTUGAL

A avalanche de brasileiros tentando a sorte na pátria mãe inclui alguns bem-sucedidos e muitos que, após um período de decepções, têm de fazer as malas para voltar. um ano após percorrer o país conversando com gaúchos que se instalaram por lá, ZH ouve quem foi mas se viu forçado a retornar
"Aluguéis caríssimos, subempregos, xenofobia. Sim, brasileiros sofrem muito com xenofobia aqui em Lisboa! Portugal é lindo, maravilhoso para quem tem dinheiro e para quem vem turistar, mas para trabalhar... Está cada vez mais escravidão!", lamenta uma mulher. "Estou indo embora na próxima semana. 

Motivos? Muitos! Salário mínimo muito baixo, aluguel superalto, impostos nas alturas. Só gastei dinheiro com a minha cidadania portuguesa para nada. Uma grande ilusão! Muitos brasileiros têm vergonha de dizer a verdade... Vergonha de falar que a vida não é fácil", comenta outra. "A maioria das pessoas pinta o quadro mais bonito do que ele realmente é. Portugal é um país tranquilo para se viver, mas não é fácil como todos dizem, escrevem e postam", define um terceiro participante da discussão.

Os comentários constam da página Portugal que Ninguém Conta, grupo com quase 65 mil membros que são convidados a compartilhar suas histórias e impressões sobre o país que virou moda entre brasileiros nos últimos anos, atraindo uma multidão de aspirantes a uma nova vida na Europa - porta pela qual, atualmente, parece ser mais fácil entrar. "A intenção, em momento nenhum, é desmoralizar Portugal, e sim mostrar que emigrar não é tão fácil como dizem", lê-se na descrição da comunidade virtual.

Números comprovam o que facilmente se percebe no dia a dia: não é preciso procurar muito para localizar alguém que conhece alguém que desistiu da vida no Brasil e resolveu tentar a sorte, com mais ou menos recursos e planejamento, do outro lado do Oceano Atlântico. Os brasileiros continuavam compondo, em 2018, a maior comunidade estrangeira residente no pequeno país ibérico, com um total de 105.423 pessoas, número que representa um salto de 23,4% em relação a 2017, de acordo com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Trata-se do índice mais elevado desde 2012. Não entram nessa soma cidadãos com dupla cidadania ou em situação irregular.

O Programa de Apoio ao Retorno Voluntário e à Reintegração (ARVoRe) da Organização Internacional para as Migrações (OIM), ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), informa que 353 brasileiros - de 616 inscritos - receberam auxílio em dinheiro para voltar ao Brasil no ano passado, o que corresponde a 93% do total de indivíduos amparados pela agência no período. 

É o maior número de migrantes do Brasil ajudados desde 2013. Em 2019, até o final de maio, a OIM contabilizou 282 migrantes interessados, sendo 254 deles (90%) brasileiros. Em junho, 13 brasileiros regressaram. As estatísticas também mostram que a expectativa pode se transformar em inesperado pesadelo logo no desembarque: em 2018, 76,3% dos viajantes barrados (2.866) na tentativa de entrar em Portugal eram brasileiros, mais do que o dobro (114,5%) dos rejeitados no ano anterior, segundo o SEF.

Em julho de 2018, depois de percorrer 1,2 mil quilômetros do território lusitano, visitando cidades de Norte a Sul, ZH publicou reportagem com histórias de gaúchos que se arriscaram a encarar o desafio da mudança, narrando dificuldades, sucessos e aprendizados em uma nação que assistia à quarta grande onda migratória contemporânea de brasileiros, motivada pela acentuação da crise econômica e política do lado de cá e pela melhora das perspectivas por lá. Um ano depois, procuramos pessoas que desistiram do idílio português ou que, frente a enormes obstáculos, quase começaram a preparar as malas para o regresso ao Rio Grande do Sul.

Fabiano Luis Knopp, 43 anos, de Caxias do Sul, viveu em Lisboa entre abril e outubro do ano passado. Realizava, na maturidade, o sonho juvenil de morar no Exterior, adiado quando se tornou pai aos 25 anos. Fotógrafo, Knopp sabia do grande número de colegas brasileiros que exerciam a profissão em Portugal. Com a oferta de auxílio de um conhecido, resolveu se aventurar.

- Fui com a intenção de não voltar tão cedo, ou melhor, voltar apenas para visitar - recorda.

O começo pareceu promissor. Knopp se hospedou na casa de amigos brasileiros. Ao pé do Cais do Sodré, na margem sul da capital, admirava uma vista incrível do Rio Tejo e da Ponte 25 de Abril, com diminutos barcos de pesca misturados a gigantescos cruzeiros. Passadas duas semanas, abraçou o primeiro trabalho, fotografando um casamento. Pesquisou preços e apresentou, na ânsia de ser aceito, um orçamento de 250 euros, baixo para os padrões locais, que foi aprovado pelos noivos. "Nossa! Comecei muito, mas muito bem", pensou. A realidade logo se provaria bem mais árdua. Knopp teve de procurar outro endereço, além de uma colocação na área de restauração, que é como os portugueses se referem ao ramo de restaurantes e alimentação, uma vez que os trabalhos de foto sumiram. Encontrou emprego em um ponto tradicional da Praça das Flores. No início do verão, época repleta de turistas, preparava sanduíches, sucos e cafés, lavava a louça, limpava o chão e os banheiros, pela manhã e à tarde.

- Tinha que ser tudo muito rápido, pois português não tem muita paciência. Falamos o mesmo idioma, mas as diferenças são grandes no vocabulário, na cultura e nos costumes. Não foi nada fácil.

Quando passou para o turno da noite, a correria aumentou. Seu horário, oficialmente, era das 14h à meia-noite, mas, em geral, deixava o serviço de madrugada, chegando em casa somente às 2h30min. Dependia de ônibus - ou caminhava 40 minutos - e barco. Dispunha de apenas uma folga semanal, e os intervalos para o jantar eram de 30 minutos. No restante do tempo, Knopp ficava de pé. O ritmo era frenético.

- Eu estava me acabando - resume.

Decidiu largar o posto e começou na telentrega de comida. Não pagava pelo aluguel da moto, mas deixava 50% do que ganhava com o dono do veículo. Sobrava quase nada. A situação foi piorando. O caxiense dividiu moradia com outras quatro pessoas, dormindo em um sofá na sala. Trabalhou também em uma churrascaria, onde, com o fogo a pleno, a temperatura sufocava aos 47ºC no verão. Cumpriu turnos de até 16 horas de trabalho. O fotógrafo lembra de um dia em que, durante o almoço, o assunto da mesa eram o Brasil e os brasileiros.

- E tu, zuca (diminutivo de "brasuca"), o que acha dos brasileiros? - questionou um português.

Até então comendo em silêncio, Knopp, cansado das comparações, despejou:

- Há brasileiros e brasileiros, assim como portugueses e portugueses. É uma questão de cultura, é o sujo falando do mal lavado. Não podemos nunca generalizar.

Em 12 de agosto, domingo em que era celebrado o Dia dos Pais na terra natal, Knopp foi dispensado. Por mais esgotado que se sentisse, o fotógrafo lamentou perder o mínimo de estabilidade que conseguira até então, focando na promessa de que lhe seria dado um contrato de trabalho, o que o auxiliaria a permanecer legalmente em Portugal. Do pouco dinheiro que recebeu, emprestou uma quantia para um conhecido, que até hoje lhe deve. Ao retomar a função como motoboy, decidiu voltar para o Brasil.

- Pesei muito, falei com minha família e fiz uma coisa da qual talvez hoje me arrependa, mas, no meio do furacão, sozinho e sem ninguém, cabeça cheia, preocupado, nervoso, pois os dias foram passando... Minha última saída foi vender meu equipamento de fotografia para voltar - narra, ainda pesaroso por ter tido de abrir mão da câmera e das lentes.

Knopp ainda teve uma última experiência, considerada a melhor delas, em um pequeno restaurante com cardápio típico da Ilha da Madeira. Conseguiu dar risadas e aprender, mas a passagem aérea já estava comprada. Ao fazer um balanço, ele dá medidas iguais a reveses e boas experiências.

- Não tenho vergonha de falar que passei fome, que por semanas almoçava somente feijão ou massa. À noite, comia torta de maçã do McDonald?s porque eram duas por um euro (cerca de R$ 4,50). Fui ajudado por pessoas incríveis. Me perguntam se não deu certo. Para mim, deu. Acredito muito no tempo e na intensidade das coisas. Acho que esse era o meu tempo naquele momento. Não me arrependo. Perguntam se volto... quem sabe, né? Porém, desta vez, faria um pouco diferente e já sabendo como as coisas funcionam - diz Knopp, ainda se readaptando à Serra (está vivendo em Farroupilha) e sem câmera própria.

Bons e maus brasileiros

Em 2017, Juliana Cramer, 42 anos, estudante de Gestão Comercial de Porto Alegre, acompanhou o então companheiro na empreitada da emigração. Antes de chegarem a Lisboa, passaram dias inesquecíveis, em clima de lua de mel, em Madrid, na Espanha. Mal havia desembarcado do ônibus que os levara até a capital portuguesa e Juliana já tinha opinião formada: detestou o lugar, achou tudo feio. O casal alugou um quarto em uma residência de brasileiras, e não demorou para que o homem conseguisse um emprego como cuidador de idosos. Sob o forte calor de agosto, ela sentia "um aperto no peito inexplicável".

- Eu odiei tudo lá, aquela água do mar congelante, as pessoas fumando na minha cara. Até os brasileiros que estavam há algum tempo lá já tinham jeito de relaxados e pegavam aquele sotaque horrível muito rápido - conta Juliana.

Em sua única tentativa de trabalhar, ela ficou apenas um dia em uma cafeteria. Ao final do expediente, o dono a dispensou, argumentando que ela não era rápida o suficiente. A universitária não teve mais disposição de seguir em busca de um emprego. Deprimida, pensava nos cães que havia deixado para trás e também na madrinha, que adoecera.

- Virei um zumbi. Só chorava, lavava roupas, limpava o banheiro e via novelas no celular.

Em pouco mais de um mês, comprou o bilhete aéreo da volta. Lamentava abandonar o relacionamento, mas se enxergava como se fosse um peso extra para o parceiro carregar. Os dois choraram juntos.

- Não vai - pedia ele.

A decisão estava tomada. Na condição de imigrante ilegal, conta Juliana, "morreria do coração". Já estava dependendo de tranquilizantes para conseguir tocar os dias.

- Foi realmente uma das maiores mancadas que fiz na vida: não ter me acostumado, não ter dado a chance de me acostumar ao lugar.

Um episódio ocorrido na Universidade de Lisboa ganhou destaque internacional em abril. Estudantes brasileiros da Faculdade de Direito se enfureceram ao encontrar, no hall do prédio, uma caixa contendo pedras e os dizeres "grátis se for para atirar a um zuca (que passou à frente no mestrado)". Uma associação de alunos da instituição assumiu a autoria do protesto, afirmando se tratar de uma mensagem satírica, e não xenofóbica, expondo a insatisfação com o número cada vez maior de brasileiros - tirando vaga de portugueses - na pós-graduação. Juliana não sentiu tanto na própria pele a discriminação, mas relata que a aversão e o rechaço são percebidos com frequência:

- Te exploram. Acham que as brasileiras são putas e que os homens são ladrões ou falcatruas. Eles te tratam muito bem na Europa se você é turista. No momento em que você pede trabalho, começa a discriminação.

Um advogado brasileiro que emigrou em condições favoráveis (tem cidadania italiana) e prefere não se identificar confirma parte do discurso de Juliana:

- Tem muitos bons brasileiros, mas também tem muitos maus brasileiros.

A má fama é real e encarada como sinal de alerta por alguns empresários portugueses. Morador do Porto, um empresário de 62 anos é proprietário de um restaurante. No geral, ele diz que sua impressão dos brasileiros é "a pior possível".

- Há uma vaga (parcela) que é desqualificada por demais. Não respeitam as nossas regras e querem impor as suas. Não há respeito. São muito cheios de si, não gostam de receber ordens e sempre acham que têm razão em tudo e sabem mais do que os portugueses. Causam-me sempre confusão. São indisciplinados e demoram para aprender. Quando aprendem, vão a um sítio melhor e deixam-nos de um dia para o outro - relata o empresário, que solicitou anonimato.

Ele também é dono de dois apartamentos, alugados para turistas. Os interessados brasileiros são rejeitados de antemão:

- Já tive problemas por não pagarem-me as contas de luz e gás. E não foi uma nem duas vezes. Quando decidem voltar ao Brasil, deixam-nos em sarilhos (situação difícil). Fogem e não pagam o que devem.

A esperança renovada

José Henrique Dias, 25 anos, técnico de metrologia, e Taiana Schumacher, 24 anos, analista de recursos humanos de São Leopoldo, passaram um ano em Braga, entre 2017 e 2018. Decidiram o destino com base em pesquisas na internet, comparando preços para descobrir a cidade mais viável. Com uma reserva de dinheiro levada do Brasil, alugaram um apartamento. O primeiro emprego de José Henrique, como vendedor de filtros d?água, apareceu após três meses. Na sequência, trabalhou em uma padaria, ramo em que a companheira também encontrou ocupação. Achou os expedientes puxados, de carga horária mais elevada. Com renda de um salário mínimo cada um, conseguiam se manter, mas a saudade da família e de casa acabou motivando a decisão de regressar.

- Também pesou a questão de não podermos trabalhar na nossa área - justifica ele. - Não nos arrependemos nem de ter ido, nem de ter voltado. Vemos como uma experiência. Na volta, passamos a dar valor a coisas simples, que antes nem percebíamos.

Uma segunda tentativa não é cogitada pelo casal.

- Gostaríamos de voltar para Portugal ou para a Europa para passear, mas não para morar - esclarece o técnico em metrologia.

A família da administradora de empresas Cristiane Gomes, 43 anos, de Porto Alegre, também se preparou com antecedência antes de deixar o Rio Grande do Sul. Foi uma resolução e tanto: ficariam para trás a estabilidade financeira, bons salários, casa e automóveis próprios, uma carreira artística consolidada - Cristiane e o marido, o empresário Sandro Morais Pimentel, 45 anos, cantavam no CTG Aldeia dos Anjos, de Gravataí, e viajavam para shows. A caçula, Luiza, 11, estudava em escola particular, e Rafhaella, 20, cursava Agronomia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

- Tínhamos quase tudo, mas não tínhamos segurança para andar na rua - sintetiza Cristiane.

Depois de dois anos de planejamento e uma viagem inicial a turismo, para reconhecimento do terreno, os quatro partiram em definitivo em outubro de 2018, rumo a Setúbal, a cerca de 50 quilômetros de Lisboa. Sandro solicitou um visto que lhe permitisse dar continuidade aos negócios no setor da construção civil. Os primeiros meses foram difíceis. Quando conversou pela primeira vez com a reportagem, em maio, Cristiane estimava já ter se submetido a mais de uma centena de entrevistas, sem ter conseguido emprego. Faltava-lhe o título de residência, cujo processo tramitava com morosidade no SEF, e só lhe restavam as vagas em cafés e restaurantes, além de outras similares, com remuneração igualmente baixa. A empresa do marido engatinhava, tentando criar raízes em um mercado de grande concorrência.

- Já estamos há algum tempo com a "faca no pescoço". Sem essa (autorização de) residência, muitas portas ainda estão fechadas e não conseguimos buscar melhor remuneração para sair do sufoco. Portugal não é tão disponível assim para os imigrantes, como se diz. Há de se ter muita resiliência para ouvir tanto "não", para se reconstruir e reorganizar a vida, que era de certa forma estável, para jornadas de 12 horas e subempregos, a partir do zero. Como se o que fizemos valesse nada. E realmente não vale. A não ser que você seja um profissional de atividade bem específica ou altamente qualificado, está fadado a apertar o reset e restaurar as configurações originais de fábrica - reflete a administradora, que, na Europa, modificou o repertório das apresentações musicais, trocando as canções tradicionalistas por sertanejas, almejando mais público. - Mas somos gaúchos! Não é qualquer marola que nos desestabiliza - completou.

Aprovada na Universidade de Lisboa, Rafhaella começou a trabalhar para contribuir com o orçamento doméstico. Cristiane, angustiada, sabia que a família não teria como custear a graduação da primogênita se os documentos não fossem liberados antes do início das aulas e se não surgisse melhor fonte de renda. Ao mesmo tempo em que estavam cientes das dificuldades, os quatro aproveitavam o que a nova realidade lhes oferecia, como caminhar pelas ruas sem receio de assaltos ou ocorrências até mais graves. Todas as esperanças estavam concentradas em uma consulta no SEF agendada para 22 de maio. A depender da resposta das autoridades, duas opções estariam postas: desistir e voltar a Porto Alegre ou permanecer em Portugal e batalhar por melhores condições. Em muitas entrevistas para recolocação profissional pelas quais passou, Cristiane obteve promessas de que poderia telefonar de volta tão logo obtivesse seu título de residência.

Dias depois de irem ao SEF, e com a remessa dos cartões pelo correio, a família obteve a certeza: estava aprovada a permanência em Portugal.

- Foi muito tenso, mas passamos no crivo! - comemorou Cristiane, que até então economizava todo euro possível no supermercado e resolveu comprar um creme de amendoim de 2,99 como um mimo a si própria pela conquista.

A administradora começou, neste mês, um treinamento para trabalhar no setor de apoio ao cliente em uma empresa de telecomunicações.

- Conseguimos vencer um grande desafio, mas ainda falta um "eito", como se diz, para que tenhamos estabilidade e possamos dizer que encontramos o equilíbrio - avalia Cristiane.

LARISSA ROSO


20 DE JULHO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

CINTURAS EXUBERANTES

Ter tecido gorduroso nessa parte do corpo aumenta a mortalidade

Por 6 milhões de anos, a humanidade passou fome. No tempo das cavernas, nossos antepassados disputavam carcaças de animais com urubus e hienas.

Moldado na penúria, nosso cérebro desenvolveu redes de neurônios que estimulam a fome e fecham os olhos para a saciedade até passarmos mal de tanto comer. Essencial para a sobrevivência da espécie, esse mecanismo chegou intacto até nós.

Então, veio a segunda metade do século 20, em que novas tecnologias de produção agrícola, de armazenagem e preservação permitiram oferecer alimentos de boa qualidade a grandes massas populacionais. A dieta da classe média de hoje é mais nutritiva do que a dos nobres de antigamente.

Um cérebro engendrado para enfrentar epidemias de fome não estava preparado para o convívio com a fartura. A capacidade do organismo de transformar em gordura qualquer caloria em excesso, essencial para a sobrevivência em época de vacas magras, voltou-se contra nós.

As consequências foram desastrosas: 52% dos brasileiros estão na faixa de excesso de peso ou obesidade, número que ultrapassa 70% nos Estados Unidos e no México. A obesidade se tornou epidêmica na América Latina, na Europa, na Austrália, nos países árabes e até na China.

Para avaliar os riscos do acúmulo excessivo de tecido adiposo, foi criado o índice de massa corpórea (IMC), calculado a partir da relação entre o peso e o quadrado da altura (IMC = Peso/altura x altura).

Valores para o IMC abaixo de 18,5 caracterizam subnutrição; entre 18,5 e 24,9 está o peso saudável; de 25 a 29,9, o excesso de peso; e acima de 30, a obesidade.

Embora útil, o IMC não leva em conta a constituição física: um homem de 1m80cm, musculoso, com ossatura robusta, não pode ter o peso de um longilíneo da mesma altura. Da mesma forma, não permite distinguir aqueles com distribuição uniforme de tecido gorduroso, dos que o acumulam no abdômen.

A relação entre massa corpórea e mortalidade não é linear, entretanto. Naqueles com IMC acima de 30 e nos que caem na faixa da subnutrição, a mortalidade é mais alta, constatação conhecida como "paradoxo da obesidade". Essas análises, no entanto, são influenciadas pelo cigarro, doenças pré-existentes, sedentarismo, emagrecimento ou curto período de observação.

Vários estudos mostraram que o acúmulo de gordura na cintura (corpo em forma de maçã) aumenta o risco de doença cardiovascular, porque está associado a depósitos de tecido adiposo entre as vísceras abdominais, distribuição não encontrada nos casos em que a gordura está localizada preferencialmente nas cadeiras (em forma de pera).

Em 2014, epidemiologistas da Mayo Clinic, nos Estados Unidos, fizeram a análise conjunta (metanálise) de 11 estudos que incluíram 650.386 mulheres e homens, acompanhados por um período de até 21 anos.

Ajustados pelas características demográficas, níveis de atividade física e IMC, os resultados mostraram que, nos homens com circunferências abdominais > 110 cm, a mortalidade geral foi 52% mais alta do que naqueles com circunferências < 90 cm. Nas mulheres com circunferências > 95 cm, a mortalidade foi 80% maior do que  aquelas com medidas < 70 cm.

Esses números se mantiveram em todas as faixas de IMC. Nos homens, para cada 5 cm a mais na circunferência abdominal houve aumento de 7% no risco de morte; nas mulheres, esse aumento atingiu 9%.

Em outro estudo que envolveu um banco de dados com 15.547 participantes com doença cardiovascular, em três continentes, foi avaliada a relação entre as medidas da circunferência abdominal e da circunferência da bacia.

Pessoas com IMC na faixa da normalidade, mas com obesidade central, tiveram os piores índices de sobrevida. Por exemplo, as participantes com IMC = 22 e relação diâmetro da cintura/diâmetro da bacia igual ou superior a 0,98 tiveram mortalidade mais alta do que aquelas com o mesmo IMC nas quais a relação foi igual ou menor do que 0,89. O mesmo aconteceu em outras faixas de massa corpórea.

Conclusão: estar acima do peso ou cair na faixa da obesidade pelos critérios do IMC não leva a aumento da mortalidade, desde que o tecido gorduroso não esteja concentrado na cintura

DRAUZIO VARELLA


20 DE JULHO DE 2019
COM A PALAVRA

AS PESSOAS SÃO MUITO HIPÓCRITAS, CONTINUAM SENDO

Aos 70 anos, Odair José acaba de lançar seu 37º disco - talvez o mais roqueiro deles. Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio não segue a trilha romântica pela qual o cantor ficou conhecido no início dos anos 1970. Com guitarras distorcidas, ironia e humor, o álbum tem letras que criticam o armamento civil e convidam o ouvinte a deixar de lado as telas do celular e da TV. Liberdade sexual e o mundo da prostituição, temas recorrentes na carreira do autor de Esta Noite Você Vai Ter que Ser Minha e Eu Vou Tirar Você Desse Lugar, também estão presentes nas novas canções. 

Um dos artistas mais censurados durante o regime militar, ele começou a carreira musical ainda na adolescência, quando abandonou o conforto da casa dos pais, em Goiás, para viver no Rio de Janeiro. Nesta entrevista, relembra os problemas que teve com a ditadura militar, avalia a realidade do Brasil atual e conta como deixou o vício em álcool e drogas. E, acima de tudo, critica duas inimigas que persegue desde o início de sua carreira: a hipocrisia e a falsa moral.

HIBERNAR NA CASA DAS MOÇAS OUVINDO RÁDIO TEM PEGADA ROQUEIRA. COMO VOCÊ CONTEXTUALIZA O DISCO NA SUA CARREIRA?

É um álbum que segue a pegada dos meus dois trabalhos anteriores, Dia 16 (2015) e Gatos e Ratos (2017). Estou cada vez mais voltando a ser o Odair José da década de 1970, em relação a letras e temas. As composições são o meio que tenho para fazer minhas observações sobre o que está acontecendo, sobre o tempo que estou vivendo. Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio vai por esse caminho e também segue, à distância, o conceito de um disco que gravei em 1977, O Filho de José e Maria. Eles são parecidos na rebeldia e no formato. São músicas conectadas umas nas outras, contando uma história, unindo personagens. 

A questão de "hibernar" é para se retirar de cena, por estar descontente com a nossa realidade. "Na casa das moças" é porque não há lugar melhor para fazer essa hibernação (risos). E também para bater na falsa moral, que está cada vez mais presente na nossa sociedade. Já "ouvindo rádio" é para homenagear essa mídia que mudou minha vida e está viva até hoje. Enfim, é um convite à desobediência à falsa moral estabelecida. E estou feliz com a sonoridade. O que eu queria dizer com esse disco teria que ser com essa guitarra mal tocada que é minha característica. Acho que vou morrer e não vou aprender a tocar guitarra, mas sou assim, faço isso no palco. Não chamaria um guitarrista virtuose, porque não sou eu.

VOCÊ FOI MUITO CENSURADO NOS ANOS 1970 E ENFRENTOU DIFICULDADES PARA FALAR SOBRE TEMAS TABUS. O QUE O DEIXA DESCONTENTE COM O BRASIL, TANTOS ANOS DEPOIS?

Estou realmente decepcionado, triste. Sou uma pessoa ligada ao povo, viajo pelo Brasil há 50 anos, conheço o país de Sul a Norte, desde os tempos em que a dificuldade logística era maior e a censura, constante. Costumava dizer que não veria duas coisas em vida. Uma era o avanço da tecnologia. A outra é a piora do ser humano. Eu achava que, com o tempo, ficaríamos melhores, menos hipócritas, livres dessa falsa moral. Não foi assim. Errei nas duas coisas.

SUAS LETRAS FALAVAM DE SEXO E PROSTITUTAS. É POR ISSO QUE VOCÊ ERA CENSURADO?

Era mais do que isso. No início de 1972, comecei a fazer muito sucesso. O meio de comunicação principal era o rádio, e eu era um dos caras mais tocados. Então eu tinha uma penetração popular muito grande. Já me incomodavam a hipocrisia e a falsa moral, o preconceito, as coisas escondidas. Comecei a falar sobre isso. Vivia muito na noite e via a tentativa quase institucionalizada de desmoralizar a prostituição. Foi assim que nasceu (a música) Eu Vou Tirar Você Desse Lugar. Também percebia a situação das empregadas domésticas, que nos país está colocada, pelas relações estabelecidas, de maneira absurda, só resolvida em parte no governo de Dilma Rousseff. 

Falei disso em 1973 (com a música Deixe Essa Vergonha de Lado). Falei sobre pílula anticoncepcional, com Uma Vida Só. Por ser um cantor popular, queria falar sobre o que não se falava abertamente, principalmente pelo grau de religiosidade do brasileiro. E isso incomodou. A censura quis me calar porque esclarecer certos tabus ia contra os princípios da falsa moral.

COMO ERA ESCREVER MÚSICA SOB A SOMBRA DA CENSURA?

Não sei quantas músicas minhas foram censuradas. Mas as pessoas que pesquisaram o tema dizem que o Chico Buarque ocupa o topo da lista dos artistas censurados, e logo depois estou eu. Só de O Filho de José e Maria, que mexia com o tabu da religiosidade, tive oito das 18 músicas censuradas. As proibições atrapalhavam muito a criação. Não era apenas o censor lá no final. Quando você trabalha em um sistema desses, você já compõe pensando no que pode acontecer. E aquilo fica no conteúdo.

O BRASIL SEGUE SENDO MUITO RELIGIOSO, HOJE COM O CRESCIMENTO DAS IGREJAS DE MATRIZ EVANGÉLICA.

Já li que é possível avaliar o grau de evolução de um país conforme seu grau de religiosidade. Nesse quesito, acho que estamos muito mal. A religião está sendo usada de uma forma horrível, para manipular as pessoas. Estou falando de religião, não de Deus. Simplifica-se muito o que não é simples por meio da religião, com motivações interesseiras. Todas as religiões fazem isso, mas atualmente a bancada evangélica está passando do ponto. As pessoas têm que ter sua religiosidade, é um direito, e é bom ter sua fé. Mas permitir que alguém faça uso disso para manipular um sistema e ganhar dinheiro é falta de respeito.

QUE MANIPULAÇÃO É ESSA?

O uso da religião com fins políticos, financeiros e até sexuais. Há casos assim, criminosos, no país.

NA CANÇÃO POPULAR UNIVERSAL, A PROSTITUTA É CANTADA SOB DIFERENTES ENFOQUES. NO BRASIL, SÃO POUCOS A ABORDAREM ESSA FIGURA COM UM OLHAR SENSÍVEL. VOCÊ SE SENTE SOLITÁRIO NESSA EMPREITADA?

Muitos compositores estão nessa comigo, inclusive, aí do Sul, o Lupicínio Rodrigues. Mas me sinto solitário, sim, e lamento por isso. Embora, há 2 mil anos, tenha havido um cara que as defendeu e andou muito com uma delas... Quem fala mal da prostituição ou nunca conheceu uma prostituta ou está sendo hipócrita. Duvido que haja um homem que jamais teve interesse ou que nunca correu o risco de se apaixonar por uma prostituta. Quer coisa mais rock?n?roll do que um cara se apaixonar por uma prostituta? Se você for ouvir os discos dos Rolling Stones, vai encontrar isso lá.

SE ESSE TEMA ESTÁ NA BÍBLIA E NOS DISCOS DOS ROLLING STONES, POR QUE É TABU?

Porque as pessoas são hipócritas. Acho que me sinto solitário porque não há muitos trabalhando para quebrar esse tabu atualmente. O compositor que fica na zona de conforto repetindo fórmulas não faz arte; faz negócio. Eu não estou aqui para fazer negócio. Prefiro correr riscos. Gostaria de que meu trabalho servisse como um despertador de mentes adormecidas.

DO QUE SE ALIMENTA ESSE TRABALHO? QUAIS SÃO SUAS REFERÊNCIAS?

Musicalmente, minhas referências são os artistas das décadas de 1960 e 1970, aqueles que todo mundo sabe que serão citados. Gosto de todo tipo de música, desde que seja bem feita. Minhas influências maiores são os instrumentistas, o cara que toca um bom piano, uma guitarra ou bateria... Não sou fã do cantor, do intérprete. Admiro, mas não é uma coisa que me fascina. O que me fascina é o cara que pega o instrumento, faz uma música e a canta, como o Bob Dylan, por exemplo, para não falar só de músicos virtuosos. Paul McCartney, Jimmy Hendrix, Eric Clapton, Herbie Hancock... No Brasil, Tom Jobim, Luiz Gonzaga... Do Sul, admiro muito o Teixeirinha. Achava Teixeirinha o máximo. Quando o intrumentista faz a música e a canta, acho perfeito. Com relação às letras, aos temas, elas vêm do ser humano Odair José, da observação. Eu vejo as coisas e as vivo junto com o povo. Misturei meu destino com o destino o povo. Sou um militante a favor do povo.

VOCÊ TEVE UMA AMIZADE GRANDE COM RAUL SEIXAS E JÁ DISSE EM ENTREVISTAS QUE VOCÊS CONVERSAVAM MUITO SOBRE O MODO DE SE POSICIONAR NO MUNDO DA MÚSICA. CONTE UM POUCO SOBRE ESSES ENCONTROS.

Cruzei com o Raul em 1969, na Visconde do Rio Branco, na antiga CBS, que naquele momento era a maior empresa de discos do país. Ele estava chegando da Bahia; e eu, de Goiás. Era um cara muito inteligente, rebelde com as coisas com as quais ele não concordava. Raul também tinha uma formação musical mais apurada do que a minha, então aprendi muito com ele. Tanto é assim que na gravação do meu primeiro disco, em 1970, ele estava comigo no estúdio tocando guitarra e me ajudando a fazer as bases. Tem até uma música dele nesse disco, chamada Tudo Acabado. 

Se você ouvir essa música vai perceber que tem um guitarra distorcida. Nós tínhamos poucas distorções naquela época, e a gravadora não nos deixava usar as poucas que tinham, porque não era comercial. Mas, em Tudo Acabado, você pode ouvir o Raulzito tocando uma guitarra distorcida. Já havia bossa nova, samba, Jovem Guarda, os Beatles... A gente se questionava como fazer algo relevante no meio disso. Ele achou o modo dele, e eu, o meu.

SEU MODO DE FAZER ALGO RELEVANTE FOI ESCREVER PARA UM PÚBLICO AMPLO, COM CANÇÕES SIMPLES E POPULARES. ACHA QUE ISSO TEM A VER COM SUA ORIGEM?

Sou filho de gente do agronegócio, do qual não sou muito favorável. Sou a favor da agricultura familiar. Por um esclarecimento pessoal, acho que é preciso ter o agronegócio, mas a agricultura familiar tem de ser protegida. Sou de uma família de classe média, e fui para o Rio de Janeiro sem dinheiro, como um jovem fugido de casa. Dormi na rua, morei em casa de estudante, enfrentei tanque do Exército na ditadura. Com 16 anos, assisti à intervenção militar e vi tirarem do governo de Goiás o Mauro Borges Teixeira. Ele foi tirado à força, com ajuda do pai, Pedro Luduvico, do Palácio das Esmeraldas, na Praça Cívica. Daquele momento em diante me tornei contra qualquer regime que não fosse a favor do povo. Eu já tinha me convencido de que lado estava.

COMO É VER MILITARES VOLTANDO AO PODER POR MEIO DO VOTO?

Não tenho nada contra os militares. O que atrapalha o Brasil não é o militar. O que sempre atrapalhou é a manipulação de pessoas que usam determinado sistema. Inclusive não acho que o ex-militar que está no poder, eleito pelo voto, represente os militares. É direito de qualquer cidadão se candidatar, mesmo sendo militar. Mas acho que o Brasil errou. E errou feio.

POR QUÊ?

Imagina um cordão com três pontas. Embaixo, há uma multidão de menos favorecidos. Em outra ponta, está a alta elite. Na outra, está o cara que, vindo de baixo ou de cima, está no meio. O que atrapalha o Brasil é esse cara do meio. Ele breca qualquer coisa que pode tirá-lo dessa posição. E aí cai na conversa da elite. Eu também sou um cara desse meio, apesar de já ter ganhado muito dinheiro e vivido com certo conforto. Não estou falando mal de elite, mas estou dizendo que a elite precisa entender que um governo feito por ela só vai funcionar se esse governo for voltado para o povo. Não existe modo de o país ir para a frente, ter progresso, se a parte menos favorecida não estiver incluída na divisão do bolo. Mas o governo atual não pensa assim.

O CARA DO MEIO TEM MEDO DE SAIR DA POSIÇÃO EM QUE ESTÁ, É ISSO?

Esse cara do meio se sente ameaçado quando percebe que quem vem de baixo está sendo beneficiado pelo governo e, assim, pode subir de posição. Só que, quando quem vem de baixo é assistido, a máquina da economia gira. É por isso que a elite precisa reconhecer que só será bem-sucedida quando a coisa fucionar também lá embaixo. O maior problema é que a parte burra da elite prefere ganhar menos do que ver o pobre ser favorecido. Esse tipo de raciocínio está matando as pessoas, inclusive em termos de harmonia. O país está sem harmonia.

NO NOVO DISCO, VOCÊ CRITICA A MÍDIA, EM FORA DA TELA, E O ARMAMENTO DA POPULAÇÃO CIVIL, EM CHUMBO GROSSO. FALE UM POUCO SOBRE ESSAS DUAS MÚSICAS.

Em Fora da Tela, me refiro à forma de acesso à informação, que tem sido feita de modo às vezes parcial. Quando mostram que um político é ladrão, por exemplo, por que não se esclarece que o sistema em que esse político vive é que tem de ser mudado? Que não se trata de caso isolado. Não adianta falar só do caso isolado, porque o próximo político que entrar será o próximo a ser acusado. O sistema está errado quando as pessoas se beneficiam dele, uma atrás da outra, sempre que a anterior sai. Quanto a Chumbo Grosso, acho um absurdo passar pela cabeça de alguém que é preciso armar o povo para ter segurança. Quem tem que oferecer segurança para a população é o governo. Sugerir que as pessoas se armem para se proteger é fugir de suas responsabilidades.

COMO CHICO BUARQUE E CAETANO VELOSO, VOCÊ FOI PERSEGUIDO E CENSURADO. MAS CHICO E CAETANO TÊM OUTRO TIPO DE RECONHECIMENTO DA CRÍTICA E DA ACADEMIA. VOCÊ NÃO SE RESSENTE DISSO?

Não me sinto ressentido, até porque admiro ambos. Acho que os dois inclusive têm trabalhos que vão muito além do meu. Ao mesmo tempo, é bem mais difícil colocar uma coisa na cabeça do povo, que é cheio de tabus, do que fazer uma música para um universitário intelectual, um cara que já entende sobre o que você está falando. Chegar a alguém preconceituoso, com informações enraizadas em costumes mais rudes, é muito mais complicado. Não me sinto ressentido, mas estou vivo para ver que meu trabalho, em alguns momentos, foi muito relevante nesse sentido.

SUA SATISFAÇÃO É SER COMPREENDIDO PELO GRANDE PÚBLICO?

Sim. Tenho participado do projeto Lula Livre. Quando canto Eu Vou Tirar Você Desse Lugar nesses encontros, vejo uma multidão de garotos de 18 anos cantando junto. E essa música tem 47 anos. É uma imensa satisfação ver tanta gente diferente sendo tocada. Ultimamente, tenho participado de projetos alternativos, com muitos jovens, fisicamente e de cabeça. É uma felicidade encontrar esse público.

O MOVIMENTO LULA LIVRE REALIZA SHOWS ABERTOS AO PÚBLICO EM NOME DA LIBERDADE DO EX-PRESIDENTE. POR QUE VOCÊ JULGA IMPORTANTE PARTICIPAR?

Participo porque acredito. Não estou defendendo A ou B. Defendo que as coisas sejam menos manipuladas. As pessoas estão sendo enganadas. O que adianta prender o Lula ou prender sei lá quem se o sistema segue o mesmo? Não se fala em mudar o sistema, só em tomar a chave. Então participo do Lula Livre com prazer e ficarei muito feliz quando houver um julgamento justo, pois aquilo ali foi meio palhaçada. Desde 1970 trabalho a favor do povo e da justiça. E o sistema judiciário brasileiro em alguns momentos está contra o povo.

PARA QUE GRAVAR UM DISCO HOJE? O QUE SIGNIFICA?

É a minha sobrevivência como pessoa. A única coisa que sei fazer é isso. E a minha vontade é sempre fazer alguma coisa melhor do que já fiz. Mas é verdade que a relação com as gravadoras mudou - ainda bem. A gravadora era boa porque, como empresa, garantia o conforto financeiro da coisa. Você tinha estúdio e orquestra, mas, em compensação, tinha que repetir fórmulas. Você não podia criar nada, porque isso esbarrava no comercial. Tive dificuldades nesse sentido. O fato de não existir mais gravadora, para mim, é uma benção.

HOJE VOCÊ ESTÁ AFASTADO DAS DROGAS. COMO SE DEU ESSE PROCESSO DE DESINTOXICAÇÃO?

Quando comecei a fazer sucesso, eu era um totalmente limpo, só pensava no trabalho, comprei um terreno na Barra para fazer um campo de futebol porque gostava dessa coisa saudável. Depois, do final da década de 1970 até os 2000 foi uma loucura total. Nem posso te afirmar se meu corpo hoje está totalmente limpo, pois fiz tanta besteira... Apesar de meu médico me dizer que estou bem. Há 17 anos parei com tudo, drogas, bebida, cigarro, pois percebi que não estava me fazendo bem. Nem sei como não morri. Hoje faço exercícios regularmente, procuro estar disposto. Não é facil ter disposição aos 70 anos. Mas eu quero. Eu preciso disso, preciso subir ao palco com minha guitarra e tocar duas horas sem demonstrar cansaço. Preciso dessa energia para viver, para sair com a minha família. Por isso parei com tudo. E tive a sorte de conseguir.

VOCÊ BUSCOU TRATAMENTO?

Minha mulher me ajudou, me alertou. E eu mesmo percebia que não estava aproveitando a vida da melhor forma. Agora inclusive está mais divertido. Ser careta é melhor. Tenho uma música do disco O Filho de José e Maria que diz que a maior loucura é o estado de lucidez. Estou vivendo isso.

UMA DAS FAIXAS DE HIBERNAR NA CASA DAS MOÇAS OUVINDO RÁDIO É GANG BANG. COMO É CANTAR SOBRE SEXO GRUPAL AOS 70 ANOS?

Gang Bang é um barato. É um convite à desobediência, à farra, ao puteiro. Vamos liberar o fetiche. Tudo mundo tem fetiche. Quem diz que não tem é porque tem e não quer contar. Em 1972, gravei a música Esta Noite Você Vai Ter que Ser Minha, na qual eu falava sobre virgindade, sobre liberação sexual. É isso, e continua sendo. Vamos liberar isso aí! Vamos viver! Como digo em Gang Bang, o que foi combinado, acordado, vale.

VOCÊ É CASADO HÁ 35 ANOS. O QUE SUA MULHER ACHA DO TRATAMENTO DE ASSUNTOS SEXUAIS NA SUA MÚSICA?

Minha mulher sempre me passa um pito. Sobre a capa desse disco, por exemplo, ela perguntou se precisava ser assim. Mas arte é arte. O artista tem que falar aquilo que pensa. Ela já está há muito tempo comigo, sabe que sou sincero, que não aceito preconceito. Eu só não gosto de coisa que não foi combinada. Se a pessoa está manipulando, sendo hipócrita, agindo de má-fé, aí bato de frente. Mas, se está tudo dentro do combinado, está tudo liberado.

ALEXANDRE LUCCHESE

20 DE JULHO DE 2019
ESPIRITUALIDADE

TRAVESSIA


Travessia sem travessas.

Impressas em nossas mentes as memórias ancestrais.

Divagando, nas vagas do mar.

Como garrafas flutuantes, contendo mensagens.

Quem as irá encontrar? Quem poderá decifrar a mensagem sagrada?

A vida humana registrada em massa cinzenta.

Vários tons, muitos milhões de anos. Nada se perde. Tudo se recria.

Surpreendente mente.

Como poderia Buda saber há 2.600 anos o que hoje a Ciência está descobrindo?

Que capacidade é esta do ser humano de perceber o imperceptível?

Inteligência emocional.

Inteligência espiritual.

Não são novas inteligências. São muito, muito antigas.

Agora tem nomes, apenas nomes.

Conhecer a si mesmo, de Sócrates, na Grécia antiga, é o caminho da libertação. Um conhecimento profundo e sutil, que transcende o próprio eu.

Muito além de uma história pessoal, de detalhes sórdidos ou belos.

Quem é este para ser conhecido?

Quem é esta que pode se autoconhecer?

Mente a mente humana. Desmente. Desmantela e reconstrói.

Atravessando umbrais tenebrosos e umbrais assombrados.

Pelas sombras, pois há luzes.

Sem a luz, onde ficaria a sombra?

Atravessando rios caudalosos de águas verdes, translúcidas onde peixes e pedras brancas, arredondadas, brincam de esconde-esconde.

Estamos nessa travessia.

Quer de rios, quer de mares, quer de montanhas ou lagos.

Atravessamos cidades e oceanos, países e planetas.

Vagamos pelo espaço interno e espaço externo.

Descobrimos o milagre da vida e nos deslumbramos.

Depois esquecemos.

Encolhemo-nos como pequeninos fetos dentro do útero materno.

Enrolados em nós mesmos procuramos pelo fio da meada.

Meada?

Linha, corda, seda, lã, algodão, tecido sintético, plástico.

Tudo é vida.

Vida na travessia.

Qual a sua embarcação?

Alguns de iate, lancha, navio.

Outros de prancha, alguns no stand up.

Aviões, helicópteros, carros de corrida, motocicletas, bicicletas, pedalinhos...

A pé, a dois, de braçadas.

Travessia sem travessas, sem atalhos.

Não pode pular etapas. Uma por uma as notas dedilhadas no violão.

O piano toca. O pintor retoca.

Dançamos o movimento puro de mover-se.

Inteiramente sós e sempre acompanhados.

Girando a roda do Darma, Buda suspira.

Inspira e expira conscientemente.

Sorri. Levanta uma flor.

Quem arrancou a flor da Terra?

Quem entregou a flor ainda adolescente, cortada, morrendo, sofrendo, sem seiva, sem água?

Não podemos voltar atrás.

Não podemos devolver a flor ao caule que também murcha sem a flor.

Choramos por compreender a dor dos seres que nos ensinaram a crer que eles não sentem.

Tudo sente. Tudo é.

Tudo atravessa conosco e evitamos atravessadores.

Mas todos o somos.

Na grande travessia eu escolho os ensinamentos de Buda.

E você? Mãos em prece

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Monja Coen escreve a cada 15 dias neste espaço.

MONJA COEN


20 DE JULHO DE 2019
JJ CAMARGO

A delicadeza no sucesso pode ser falsa

Alcançar a condição de socialmente agradável é um dos mais complexos e penosos exercícios civilizatórios.

Provavelmente nada é mais ingênuo do que se referir a alguém como estando muito mudado. Como se fosse possível. Porque o máximo que conseguimos é tentar refrear a resposta impulsiva, capaz de revelar como de fato somos. E isso às custas da sempre dolorosa contensão dos ímpetos, ou seja, do abafamento das chispas do nosso núcleo duro, através do processo difícil e infindável da educação continuada.

Alcançar a condição de socialmente agradável é um dos mais complexos e penosos exercícios civilizatórios, porque exige doses indispensáveis de sensibilidade, inteligência, empatia, amabilidade e hipocrisia. Não a hipocrisia ostensiva que agride, mas aquela sutil que bloqueia a exposição da supersinceridade, esta, sim, absolutamente incompatível com o convívio social sofisticado. Não bastasse o trabalho para se disponibilizar todos esses atributos, ainda há que mantê-los ativados, o que multiplica a dificuldade, dada a frequência com que, por distração ou cansaço, sem querer, deixamos transparecer o que preferíamos ocultar.

Isso ocorre bastante na sala de cirurgia, um cenário clássico onde desfilam os auxiliares sempre relaxados para debater os lançamentos da Netflix, e o chefe, mais concentrado, menos tolerante a ruídos paralelos, e por uma curiosa razão biológica, com mais calor.

Na minha experiência, essa situação, de responsabilidades heterogêneas, é um verdadeiro laboratório de comportamento humano, porque o humor naturalmente oscila à medida que o procedimento avança, as escolhas são feitas, e espera-se que as melhores decisões sejam facilitadas pela calejada carreira do cirurgião, para afinal se alcançar o estágio recreativo, quando a sala fica mais ruidosa e a temperatura ambiente mais agradável. 

Pois é exatamente neste percurso de exigências variadas e imprevisíveis que algumas vezes deixamos de aparentar e, completamente desprotegidos, somos. Essa hora pode ser cruel com os falsos gentis que, sob tensão inesperada, esquecem de segurar a máscara da gentileza que, despencando, os revela toscos e primitivos.

Na Clínica Mayo, convivi com o professor Spencer Payne, um dos maiores cirurgiões torácicos americanos do século 20, um modelo de objetividade técnica e de serenidade no campo cirúrgico, que me propus a imitar - e foi uma pena que não tenha conseguido. Contrariando a tendência de ser cordial quando tudo está bem e agressivo quando não, ele parecia mais gentil durante as complicações. E impressionava o quanto a espontaneidade da gentileza sob tensão era o requinte de uma personalidade naturalmente afável e doce.

Em uma manhã de sábado, reoperamos um menino de sete anos, e a abertura do tórax confirmou que falhara a última tentativa cirúrgica de substituição do esôfago queimado por soda cáustica, e enquanto eu pensava que esbravejaria naquela situação desesperadora, ele agradecia todos os pequenos gestos dos auxiliares e fechou a pele até o último ponto, o que usualmente era tarefa dos residentes. Compadecido pelo sofrimento do mestre, que dias antes comentara o quanto gostava daquele menino, encontrei-o no vestiário com olhos vermelhos, e no afã de confortá-lo disse que tinha ido para a Clínica Mayo por causa dele, e que agora, quando voltasse para o Brasil, eu poderia contar que tinha descoberto um Spencer Payne ainda melhor do que aquele encantava o mundo nos livros e congressos. Dois latinos teriam se abraçado, mas ele ao menos assoou o nariz antes de dizer:

- Nós erramos muito. A única coisa que pode nos redimir é deixar que os outros percebam o quanto sofremos com isso.

A delicadeza no sucesso pode ser falsa, sim. No fracasso, não.

JJ CAMARGO

20 DE JULHO DE 2019

DAVID COIMBRA

Eu queria ser Marlowe

Do que eu gosto mesmo é de histórias de detetive. Sei que o gênero não tem muito prestígio intelectual, mas o que é que vou fazer se estou mais para o IAPI do que para a Ilha de Capri?

Ainda hoje, às vezes, sinto necessidade, e essa é a palavra certa, "necessidade", pois às vezes sinto necessidade de ver um filme ou de ler um livro do gênero policial.

Um dos meus personagens preferidos, óbvio, é o detetive particular Philip Marlowe. Quando guri, eu queria ser Marlowe. Porque ele era durão, mas sensível; cínico, mas honesto; solitário, mas cobiçado pelas mulheres.

Ah, as mulheres com que se envolvia Marlowe! Sedutoras. Insinuantes. Fatais. Certa feita, em meio a uma investigação, ele comentou:

- Podemos ter ressaca de outras coisas, além de álcool. Eu tive uma de mulheres, uma vez.

O curioso é que o criador de Marlowe, o grande Raymond Chandler, não chegava a possuir uma vasta experiência com o sexo oposto. Alguns de seus biógrafos suspeitam que ele só foi perder a virgindade aos 31 anos de idade, com uma mulher 18 anos mais velha, por quem se apaixonou e com quem iria se casar.

Mesmo assim, Marlowe abordava o assunto com desenvoltura. Numa de suas histórias, ao descrever uma personagem, disse que ela era "um pouco mais do que bonita e um pouco menos do que bela".

Não é perfeito?

De outra ele escreveu o seguinte: "A dez metros, ela parecia cheia de classe. A três metros, parecia algo concebido para ser visto a dez metros".

Uma daquelas fêmeas provocantes que se atravessaram na vida do incorruptível detetive Marlowe um dia fez assim:

"Mordeu os lábios, voltou um pouco a cabeça e olhou-me de soslaio. Depois, baixou as pálpebras, até quase tocar com os cílios nas faces, e levantou-as de novo, lentamente, como uma cortina de teatro. O truque não me era estranho e destinava-se a fazer com que me atirasse no chão e rebolasse com as quatro patas no ar".

Ah, como eu queria ser Philip Marlowe?

Esses livros de Chandler, bem como os de Hammett, Goodis, Simenon e da velha senhora Christie, esses e tantos outros eu consumia na Biblioteca Pública Romano Reif, que antes ficava incrustada na frente do salão de festas da Coorigha, na Plínio Brasil Milano, e que agora está plantada em frente ao Estádio do Alim Pedro, onde eu dava meus lançamentos de 60 metros, estilo Roberto Rivellino, o Patada Atômica.

Chegou a época em que havia lido todos os livros da biblioteca. Ou, pelo menos, todos os que me interessavam. Aquele lugar faz parte do que hoje sou. Pelo menos da parte boa.

Bem.

Há cerca de ano e meio, moradores do IAPI me contaram que a biblioteca estava em dificuldades. Havia vazamentos no teto e infiltrações nas paredes. Quando chovia, as bibliotecárias tinham de cobrir livros e computadores com lona. Escrevi a respeito em Zero Hora, falei na rádio, pedi que o poder público ajudasse.

Deu resultado?

Zero!

A prefeitura alegava que o terreno em que está a biblioteca é do Estado, o Estado alegava que a biblioteca é municipal. Em resumo, não deram a menor importância para o que estava acontecendo.

Felizmente, Gilberto Petry, presidente do Sinmetal, o Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, leu a coluna e decidiu ajudar, até porque, segundo me disse ele, "o IAPI é o melhor empreendimento popular já feito no Brasil". O Petry tem toda a razão - o IAPI é um pedaço de Liverpool em Porto Alegre.

Agora, depois de resolver alguma burocracia, o Sinmetal começou a fazer obras na biblioteca. Ou seja: é a comunidade resolvendo seus problemas - porque das autoridades não se pode esperar muita coisa mesmo.

Fiquei muito feliz. E, na certa, mais felizes estão os guris do IAPI. Quem sabe alguns deles não estão neste exato instante lendo o velho e bom Marlowe e aprendendo com ele? Posso vê-los atravessar a rua, gingando em direção ao campo do Alim Pedro, e pronunciando frases como:

"Existem dois tipos de verdade: a que ilumina o caminho e a que aquece o coração".

DAVID COIMBRA

20 DE JULHO DE 2019
MÁRIO CORSO

Sensação de idade

Enfim uma boa notícia vinda de longe, dos astros. Porém largue dos astrólogos, o certo é contratar astrônomos quânticos. Esqueça a barafunda de signos, a confusão dos ascendentes, descendentes e periclitantes. Concentre-se na verdadeira e correta ciência atual: a temporalidade cósmica.

Esses dias, um sábio astrônomo de minha confiança, mediante uma módica quantia, refez os cálculos da minha idade. Ele descobriu que, devido a uma perturbação no espaço-tempo, causada pela gravidade oscilante de alfa centauro, acrescentada de uma inesperada chuva de bósons-phi solares na década passada, e um giro da inclinação do nosso planeta devido ao magnetismo de Vênus, abriu-se um vórtex espaço-temporal que acelerou negativamente meu tempo solar.

Na verdade verdadeira, eu tenho apenas 42 anos reais, no máximo uns 45. Prefiro o primeiro cálculo. Como eu sei que a estimativa dele está certa e não a matemática do cartório? Elementar, pois é como me sinto. Finalmente alguém, cientificamente calçado, entendeu meu problema e me deu uma luz. Afinal, a minha opinião sobre mim mesmo é o que realmente importa.

Em resumo, esqueça a certidão de nascimento e foque-se na "sensação da idade", agora ela tem respaldo científico. Largue esses calendários antiquados, que não levam em conta a relatividade molecular, o carbono 14 e o quadrante das luas de Júpiter. Desista dessa bobagem de aniversários terrenos. Você é filho da Via Láctea, por que essa fixação absurda na circunvolução solar?

Aposente o espelho, esse errático, malévolo e altamente perverso instrumento da objetividade ilusória. Esqueça as fotografias mentirosas que captam apenas a luz deste planeta, e não a energia fractal holística do universo, portanto nos fornecem imagens distorcidas e parciais. Concentre-se e repita mil vezes o mantra: o que importa é a idade que sentes que tens.

Temos, entretanto, o pequeno problema do nosso corpo se deixar levar pelas antigas crenças, ser viciado na ciclotimia solar. É a força do hábito, é difícil fazer esta nossa carcaça teimosa entender que a realidade é outra. Portanto, resta o drama de ficarmos presos a esses corpos supostamente envelhecidos, que se recusam a admitir nossa idade correta.

Mas essa é uma luta de todos. Com união, confiança, pensamento positivo, terapia vibracional e astrônomos da temporalidade cósmica, saberemos contornar a ditadura da equivocada e ultrapassada cronologia biológica que nos assujeita. Vamos assumir as rédeas e mostrar a esse corpo birrento com quantos chakras se faz uma aura.

E você caro leitor, qual é a idade que você sente que tem?

MÁRIO CORSO

20 DE JULHO DE 2019
OPINIÃO

UM CLÁSSICO GIGANTE

O Gre-Nal é uma verdadeira instituição do Rio Grande do Sul. Talvez seja um dos nossos maiores patrimônios. Em nossos estádios, é jogado um dos maiores clássicos do planeta - uma rivalidade sadia que engrandece os dois clubes e o futebol gaúcho. Uma disputa que mexe com paixões, com glórias, com o orgulho, com a história, com a economia. E, claro, com a memória de cada torcedor.

Lembro de assistir, aos oito anos, ao primeiro Gre-Nal do Beira-Rio, em abril de 1969. Um jogo marcado por brigas e expulsões, que terminou 0 a 0. Foi o início de uma era vitoriosa para os colorados, que viram na década seguinte o time chegar ao ápice do país. Daquela esquadra, na minha opinião, o homem Gre-Nal costumava ser Valdomiro - protagonista nos oito títulos de campeão gaúcho, conquistados entre 1969 e 1976, feito até hoje inédito no futebol gaúcho.

A antiga casa do nosso rival, aliás, foi palco de Gre-Nais memoráveis. O primeiro deles, em 1954, quando eu nem era nascido, ainda hoje é contado com orgulho pela nação alvirrubra: um elástico 6 a 2. Sorte a minha de ter presenciado outro resultado semelhante, a do 5 a 2, em 1997. São muitos clássicos, muita rivalidade e boas lembranças.

Mesmo os jogos que não acompanhamos presencialmente ficam na memória. Todo colorado recorda do gol mil de Fernandão: a cabeçada potente que, do meio da área, estufou as redes e entrou para a história. Naquele dia, estava em São Paulo a trabalho e comemorei como se fosse na arquibancada do Gigante - assim como festejei tantos outros gols marcados pelo nosso eterno capitão.

Como dirigente, também foram muitos os momentos inesquecíveis. Eu era vice-presidente de Futebol quando vencemos, por 4 a 1, a primeira final de Gauchão disputada fora de Porto Alegre.

Neste sábado, vamos comemorar 110 anos de Gre-Nal. Um clássico que chega a essa marca já não pertence mais a dois clubes: é uma partida que conta a história da nossa gente. Com o Beira-Rio lotado e o apoio inabalável de nossa torcida, o Inter vai a campo em busca de mais uma vitória que consolida nossa supremacia no confronto - e que buscará dar novas alegrias e boas lembranças para a torcida colorada.

MARCELO MEDEIROS

20 DE JULHO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

AVANÇO NA DUPLICAÇÃO DA BR-116


Em um país onde obras públicas são sinônimo de atraso, merecem reconhecimento o esforço e a capacidade técnica do Exército, que assumiu um trecho da duplicação da BR-116 e promete concluir a tarefa antes do prazo contratual. Os 50 quilômetros que há pouco mais de seis meses passaram a ser responsabilidade do 1º Batalhão Ferroviá- rio, pelo cronograma original, deveriam estar prontos no início de 2022, mas o chefe do Comando Militar do Sul, general Geraldo Antônio Miotto, surpreen- deu positivamente ao afirmar que os primeiros trechos começam a ser liberados no próximo ano.

Além da agilidade, é digna de elogio a atenção com a qualidade do pavimento, um cuidado essencial para que a via, como bem sabe quem circula pelas estradas brasileiras, não fique tomada de buracos e outros defeitos na pista pouco tempo após o trânsito ser liberado. O local, entre Guaíba e Tapes, onde cerca de 180 homens do Exército agora trabalham incansavelmente estava sem operários e máquinas desde 2016, quando a construtora contratada para executar o serviço começou a sucumbir à crise, até ter de recorrer à recuperação judicial e acabar tendo o contrato rescindido com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit). 

Onde o cenário era de abandono, o ritmo agora é acelerado. Uma agilidade que também cria a expectativa dos gaúchos de que outras estradas, com obras congeladas ou em velocidade reduzida, possam ser assumidas pelos serviços de engenharia e tropas do batalhão que soma mais de um século e meio de história.

A duplicação da BR-116 é a prioridade número 1 entre as obras nas rodovias federais gaúchas. Com grande movimento, a estrada foi a que mais registrou vítimas fatais nos últimos anos no Estado. De 2007 a 2018, mais de 1,2 mil pessoas perderam a vida em acidentes na via. É uma carnificina inaceitável, e parte dela pode ser atribuída à grande demora na duplicação da estrada. Vale lembrar que as obras na rodovia começaram em 2012. A previsão original era de que estivesse pronta em 2015.

Quando estiver duplicada, com a sua capacidade de tráfego ampliada, a BR-116 trará ainda um grande impulso à economia gaúcha, facilitando o transporte de mercadorias da Região Metropolitana e Serra para serem exportadas pelo Porto de Rio Grande.

Segundo o Dnit, todos os trechos da duplicação, entre Guaíba e Pelotas, têm obras em andamento. Mesmo com o comprometimento do governo federal de entregar o projeto, é preciso manter a mobilização, não só na Zona Sul, mas em todo o Estado, para afastar qualquer risco de nova frustração. Os indícios, porém, são positivos, com a possibilidade de os primeiros quilômetros da rodovia serem entregues no início de agosto.

OPINIÃO DA RBS

20 DE JULHO DE 2019
AMBIENTE

Últimas polêmicas


13 de abril

Enquanto visitava a região do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, determinou abertura de processo administrativo contra servidores do ICMBio sob alegação de que não teriam comparecido a uma reunião para a qual teriam sido convocados. No encontro, estavam políticos como o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) e representantes do agronegócio.

15 de abril

Então presidente do ICMBio, Adalberto Eberhard pediu demissão em ofício enviado a Salles. O médico veterinário alegou "motivos pessoais" e agradeceu pela "oportunidade e toda a confiança" depositada. Sabe-se que Eberhard era contrário à fusão entre o ICMBio e o Ibama, plataforma defendida pelo ministro e pelo presidente Jair Bolsonaro.

17 de abril

Servidores federais da área ambiental divulgaram carta aberta à sociedade repudiando as "declarações e posturas" do ministro. No documento, a Associação Nacional de Servidores Ambientais (Ascema Nacional) alegou que "o ministro vem, reiteradamente, atacando e difamando o corpo de servidores do ICMBio através de publicações em redes sociais e de declarações na imprensa baseadas em impressões superficiais após visitas fortuitas a unidades de conservação onde não se dignou a dialogar com os servidores para se informar sobre a situação e sobre eventuais problemas e dificuldades". No mesmo dia, Salles anunciou o comandante da Polícia Ambiental de São Paulo, Homero Cerqueira, para a presidência do ICMBio.

23 de abril

Salles mandou exonerar o chefe do Parque Nacional Lagoa do Peixe, Fernando Weber, funcionário do ICMBio. Sem mencionar nome, disse ter sucessor escolhido para o cargo. Questionado sobre as razões que levaram à destituição de Weber da função, explicou apenas que "cargo de confiança é prerrogativa do Executivo escolher".

24 de abril

Três diretores do ICMBio pediram exoneração de seus cargos. O comunicado foi apresentado à pasta pelo presidente-substituto do órgão, Régis Pinto de Lima, e por Luiz Felipe de Luca e Gabriel Henrique Lui.

12 de julho

Salles nomeou Maira Santos de Souza para substituir Weber como chefe do Parque Nacional da Lagoa do Peixe. A unidade é administrada pelo ICMBio e, até abril de 2019, contava com um chefe do seu quadro. Maira é agrônoma e filha de produtores rurais da região. O nome foi indicado pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB-RS), que disse ter o aval da bancada ruralista.