sábado, 24 de agosto de 2019



24 DE AGOSTO DE 2019
JJ CAMARGO

OS QUE ACREDITAM

As conquistas institucionais demandam muitas mãos, mas sempre há uma pessoa que serve de modelo. A recepção aos novos calouros da Medicina era uma cerimônia esperada com ansiedade no meio acadêmico de Brusque, uma comunidade pequena do sudeste de Santa Catarina, com pouco mais de 130 mil habitantes, e considerada uma das melhores cidades para se viver naquele Estado.

Cada jovem, com aquele ar euforizante de vida recém inaugurada, que desfila pelo quarteirão acadêmico ainda tem a alegria adicional de quem vive em Santa Catarina, um oásis de sobriedade, conforto e liberdade para o crescimento dos mais novos com muita vida por viver e um reduto glamoroso da população idosa que batalhou muito e agora anseia por um recanto em que possa terminar a vida com o mínimo de sobressaltos. O Centro Universitário de Brusque (UniFEBE), com 40 anos de história, viveu o encantamento de recepcionar a primeira turma da nova Faculdade de Medicina. Conscientes da importância do evento e determinados a dar ao momento a solenidade indispensável a tudo o que se pretenda valorizar, os docentes estavam perfilados, orgulhosos de suas missões.

O tom dos discursos iniciais já revelava o grau de comprometimento da equipe docente na promessa reiterada e cheia de convicção de que esta nova escola de Medicina seria reconhecida no futuro próximo pela qualificação técnica dos seus egressos, mas também pela formação de profissionais imbuídos do humanismo, este que diferencia os médicos que sabem tratar não apenas as doenças das pessoas, mas, muito carinhosamente, das pessoas que adoeceram.

Na sequência, uma cerimônia sempre emocionante: a entrega do primeiro jaleco. Na medida em que a mestre de cerimônias chamava os calouros, a secretária se aproximava com o jaleco nominado e entregava à reitora ou ao vice-reitor que o repassava ao padrinho ou madrinha, e este, orgulhosamente, ajudava o afilhado a vesti-lo pela primeira vez. Em todas as circunstâncias, as conquistas institucionais demandam a ajuda de muitas mãos, determinadas e desprendidas, mas como sempre, e em qualquer lugar ou país, há uma pessoa que, pela gana de vencer os desafios, serve de modelo a todos os outros. E sem essa figura diferenciada, nada aconteceria, ou haveria necessidade de um tempo maior para se chegar ao ponto em que os encontrei.

Fui convidado para proferir a aula magna da faculdade, mas como não conhecia ninguém, fiquei observando os oradores e buscando identificar a tal pessoa, essa que faz possíveis as coisas improváveis. E de repente, ei-la ao microfone: dr. Osvaldo Quirino de Souza, um neurocirurgião, coordenador do novel curso de Medicina. Iniciou sua fala emocionada, citando Mark Twain, quando disse que "os dois dias mais importantes de alguém são o dia em que ele nasce e o dia em que descobre o porquê".

A seguir, reiterou a intenção de fazer da nova escola uma referência de orgulho para a medicina do Estado e afirmou que isso seria alcançado pela fusão de tecnologia mais moderna com humanismo, porque acreditava que, no futuro, sem esta combinação, a medicina sucumbiria. Ao terminar, conclamou os alunos à contínua busca da excelência e prometeu que daqui a seis anos, numa cerimônia ainda mais bonita, haveriam de admitir que naquela noite fria do inverno de 2019 eles tinham descoberto o porquê.

JJ CAMARGO


24 DE AGOSTO DE 2019
DAVID COIMBRA

Anos dourados e outros nem tanto

Na fotografia, estamos felizes. Veio-me o verso imortal do Chico quando vi a imagem que o Noriega me enviou por WhatsApp, dias atrás.

Aliás, essa música, Anos Dourados, não é uma música; é uma crônica. Maria remexe nos seus guardados e encontra uma velha foto em que ela e seu ex-amor dançam. Ele está falando algo que parece ser:

- Te amo, Maria.

Vê-lo outra vez a desconcerta, e ela acaba fazendo o que fazem os bêbados de madrugada: liga para ele. Mas ele não atende, a ligação cai na secretária eletrônica. Ela, ofegante, faz confissões confusas de paixão desfeita, desliga e pensa que será engraçado, se ele tiver outra mulher. Então, recorda-se do amargo da separação, quando prometeu que nunca mais o beijaria. Seus olhos, que ainda fitam a foto, começam a marejar e ela tenta lembrar que música dançavam naquela noite. Supõe que era um bolero, em um dezembro dourado e louco. Agora, chorando, Maria conclui que ainda o ama, mas, como havia prometido, sabe que nunca mais o beijará. Nunca mais.

Você pode não gostar das opiniões políticas do Chico, tudo bem, mas ouça essa música com atenção e sorva uma obra-prima da poesia breve.

Já eu e o Noriega não dançávamos na foto, embora também parecêssemos felizes. Estávamos no Japão, durante a Copa de 2002 ou o Mundial de 2006, sentados nos bancos de um ônibus que nos levaria para algum estádio ou campo de treinamento.

Nessas coberturas internacionais, construí boas e duradouras amizades com colegas de todo o país. O Noriega a quem me refiro, você deve saber, é o Maurício Noriega, da Sportv, um dos melhores comentaristas de futebol do Brasil. Além de ser inteligente, saber falar e conhecer o jogo, ele tem uma qualidade que aprecio em especial: o bom senso. Quando o Noriega se manifesta sobre o que quer que seja, sempre emitirá uma opinião sensata.

Bem. Dias atrás, o Noriega fez uma observação a respeito do ex-técnico do Fluminense Fernando Diniz. Disse que Diniz mostrou ideias bacanas, mas ainda não teve resultados. Nossa! As redes sociais se ergueram como o Mar Vermelho diante do bastão de Moisés e Noriega foi vilipendiado como se carregasse a peste negra para dentro das muralhas da cidade.

Conheço de sobejo a fúria azeda das redes, mas, desta vez, me assombrei: o Noriega? Será que as pessoas não percebem que ele é sobrinho da Coerência e primo-irmão da Ponderação?

É que os torcedores levam o futebol muito a sério, e isso é preocupante. O futebol, na essência, é uma brincadeira. Claro: milhares, talvez milhões de pessoas vivem do futebol, o que é sério. Mas as brincadeiras também têm de ser levadas a sério. Se você vai participar de um jogo, tem de obedecer as regras, jogar com lisura e respeitar os outros participantes. Você tem de saber brincar. Então, você joga a sério, mas o jogo continua sendo um jogo. Continua sendo uma brincadeira.

O futebol, se deixar de ser uma brincadeira, perderá a graça; perdendo a graça, deixa de ser divertimento; deixando de ser divertimento, não tem mais razão de existir.

O jogador pode ser um profissional sério, mas ele só será bom realmente se estiver se divertindo enquanto trabalha. Como o jornalista. Como o taxidermista que ora me lê. Como qualquer outro. E o torcedor, se brigar, ofender e for ofendido por causa do futebol, perderá o prazer de torcer. Assim, e só assim, o futebol tem sentido.

Nós, agora, estamos próximos de dois Gre-Nais históricos, que decidirão o campeão da Copa do Brasil. Que torcedores, dirigentes e jogadores lembrem-se disso: o futebol é só um jogo. Um sairá campeão e o outro vice; um ganha, o outro perde; mas depois, seja em anos dourados, como os que o Chico cantou, ou de chumbo, como são os dos intolerantes, depois, e para sempre, o jogo continua.

DAVID COIMBRA


24 DE AGOSTO DE 2019
MÁRIO CORSO

Camiseta de time de futebol

Pouca coisa é mais ridícula do que vestir uma camiseta de time de futebol fora do estádio, ou quando não é um dia de jogo. É certidão de deselegância, uma chinelagem que não precisa de recibo. Salvo, e unicamente, se for a camiseta do nosso time. Excepcionalmente, o nosso time tem as cores, o corte e a adequação necessários. Só ele permite o uso da camiseta extracampo sem ofender o estilo e o bom gosto. Por um acaso único e intransferível do destino, nosso time tem uma história extraordinária no futebol que dilui esse grave problema estético. Que sorte a nossa!

Vale o mesmo para as mulheres: elas vestindo uma camiseta de time de futebol no dia a dia é muito sem noção. É a apoteose brega sem escalas. Como que essa menina saiu de casa assim? Ela não tem mãe que lhe diga o óbvio? Não tem amigas que lhe sinalizem o desalinho? De onde lhe ocorre que isso seria razoável? Da mesma maneira anterior, apenas se for do nosso time, e unicamente dele, isso não é condenável. Por uma exceção ímpar, por essas raras causalidades felizes, mulheres com a nossa camiseta realçam o empoderamento feminino e sua graça ao portar as cores e o emblema do nosso time. Mas só o nosso, e isso não sou eu quem diz, mas o bom senso. Não esqueçam!

Existe demarcação territorial mais tola e sem sentido do que bandeiras com as cores de um time em janelas ou terraços quando não há jogo? O que essas pessoas pensam? Não se dão conta do ridículo, da infantilidade de fazer este xixi simbólico no entorno? Ninguém lhes educou para as boas maneiras e pela harmonia da arquitetura? Para o senso mínimo de civilidade? Por aquelas coincidências incríveis, apenas as cores e emblemas do nosso clube não ferem a elegância e a boa apresentação. Portanto, tenham a decência de não usar outras cores.

O que dizer de bandeiras de time de futebol em cima de caixão no velório. O falecido não se representa por outra coisa? Não tem outra identidade? Os familiares não se dão conta de que futebol não combina com o luto, com a perda trágica daquela pessoa querida? Que ideia de jerico colocar uma bandeira clubística em um momento triste e solene. Mais uma vez, por uma incrível exceção, a bandeira do nosso time pode ser usada até nesses casos. Mas apenas porque o nosso clube possui uma magnitude simbólica que transcende aos times comuns. Recorde, apenas a nossa trajetória histórica não corrompe a delicadeza da solenidade fúnebre. Tenham paciência, por favor não me venham com outras bandeiras.

Como podemos ver, como regra geral, acredito que fica claro pelo que expus, apenas as cores e insígnias do nosso time podem ser usadas fora do contexto do futebol sem ferir a sensibilidade estética, o bom gosto e a harmonia do cosmos.

MÁRIO CORSO

24 DE AGOSTO DE 2019
FLÁVIO TAVARES


NOSSOS PULMÕES


Aprender é o ato fundamental da vida. Aprendemos para o futuro, até se o futuro for só o minuto seguinte. O saber da ciência surge do que se constata pela experimentação, nunca de um anjo caído dos céus.


A grande lição sobre o futuro apareceu, na última semana, na audiência pública convocada pelo Ministério Público sobre a mina de carvão a céu aberto, entre Charqueadas e Eldorado, a 12 quilômetros da Capital. O debate de seis horas teve um denominador comum: os impactos do carvão são significativos, reconheceu o engenheiro Affonso Novello, coordenador do relatório apresentado pela mineradora.

A visão técnica (ou realista) não precisou lembrar que o carvão é o grande responsável pelo aquecimento global que ameaça a vida no planeta. Para conhecer o horror, bastou saber do carvão e dos fósseis.

O geólogo Rualdo Menegat, professor da UFRGS e da Unesco (ramo científico da ONU), lembrou que o carvão é mineral complexo, com 76 elementos perigosos, como enxofre e os radiativos urânio e selênio. O cádmio afeta o pâncreas, o volátil mercúrio contém neurotoxinas, como a pirina, cuja alta reatividade química se expande a centenas de quilômetros. O enxofre, ao reagir com a água, facilmente vira ácido sulfúrico numa mina em terra de banhados a metros do Jacuí?

Mas o relatório da empresa ao governo estadual "nada diz sobre a composição química do carvão", lembrou e indagou: "Se o próprio minerador não sabe do material com que vai lidar, o que falta?".

***

O futuro da área metropolitana será cinzento, com o Jacuí degradado e poluindo o Guaíba. O desvio de dois arroios e o rebaixamento do lençol freático nos 4 mil hectares da mina afetarão o aquífero quaternário que vai até o Delta do Jacuí, e perderemos reservas de água equivalentes ao Lago Guaíba. Até os poços tendem a secar.

Mas, na reunião do Ministério Público, a mineradora afirmou que "não há aquíferos na área"?

O professor de Engenharia de Minas da UFRGS Jorge Grabowsky lembrou que a Alemanha vem interrompendo a extração de carvão, enquanto, aqui, busca-se extrair 166 milhões de toneladas. Observou, ainda, que a mineradora apresentou apenas cinco amostragens de poluentes, ínfimas pelo tamanho da mina.

Aprendemos que, além de degradar nossa água, a mina lançaria na atmosfera 416 quilos/hora de partículas tóxicas em 1.056 detonações anuais, mais de três ao dia, afetando os moradores próximos, a fauna silvestre e a flora.

Tudo formará uma neblina ácida, talvez perene. No carvão, a drenagem ácida é inevitável, lembrou o geólogo Menegat, respeitado mundialmente.

Aprenderemos a respirar com 2 milhões de toneladas de enxofre sobre nossos pulmões?

FLÁVIO TAVARES


24 DE AGOSTO DE 2019
AMBIENTE

Cinco séculos de destruição

De 2002 a 2018, o desmatamento consumiu 200 mil quilômetros quadrados de floresta na Amazônia, o que equivale a duas vezes o território de Santa Catarina e a bem mais área do que a de países como Uruguai ou Inglaterra. O número assusta, mas é apenas uma fração da cobertura florestal perdida no país.

Os cinco séculos de história do Brasil têm sido, em grande medida, a crônica da destruição das nossas matas, primeiro pela Mata Atlântica, que começou a ser explorada para a extração de pau- brasil e hoje conta com apenas 7% da dimensão original.

As últimas décadas respondem por grande parte do estrago. Nos anos 1940, Getúlio Vargas iniciou a Marcha para o Oeste, que tinha como objetivo ocupar os grandes vazios do interior brasileiro. No final dos anos 50, Juscelino Kubitschek ordenou a construção de Brasília no meio do Cerrado. A partir da década seguinte, os generais da ditadura militar estimularam a ocupação da Amazônia, movidos por preocupações geopolíticas. Em meio a esse processo, milhares de pequenos agricultores gaúchos colonizaram vastas extensões de terra no meio-oeste, avançando para o norte. Esse processo de expansão da fronteira agrícola, que levou à derrubada de zonas florestais, é uma espécie de avô dos incêndios que estão em curso na Amazônia agora.

- O avanço do desmatamento se intensificou nos últimos 40 anos. Havia a preocupação do Estado brasileiro de ocupar a região e de defender as fronteiras. Isso levou à construção de grandes estradas, como a Belém-Brasília e a Transamazônica, à migração de grandes contingentes do Centro-Sul e do Nordeste e à oferta de incentivos, como distribuição de terra e crédito para a atividade agropecuária. Isso tudo ajudou o Brasil a aumentar e modernizar a produção agrícola, mas foi feito com um custo ambiental - afirma Paulo Moutinho, pesquisador sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

O resultado é que quase 20% da Floresta Amazônica foi destruída. Relatório feito em 2014 pelo Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) falava em 42 bilhões de árvores derrubadas e 763 mil quilômetros quadrados desmatados no período de quatro décadas. A área é equivalente a quase três vezes o território do Rio Grande do Sul. O número de árvores perdidas representa 2 mil por minuto, de forma ininterrupta.

Agentes

Na última década, o Brasil havia se tornado um modelo internacional de preservação, por ter conseguido inverter o processo. Diminuiu o desmatamento em 80% no período de 2004 a 2012. Depois disso, voltou à tendência de aumento, e já há previsões de que 2019 não será diferente. Existe o receio de que a retórica e a política ambiental do governo de Jair Bolsonaro possam ter estimulado a ação dos desmatadores.

Segundo Paulo Moutinho, há três perfis que costumam desmatar. O primeiro deles é o de proprietários rurais conscientes, que respeitam as leis e só promovem derrubadas com autorização de órgãos ambientais. Depois, há os que derrubam sem autorização, de forma ilegal, em geral para pastagem. Por fim, há o grupo que mais tem crescido e que se acredita estar por trás de grande parte dos incêndios que estão ardendo a floresta: o dos grileiros. Primeiro, derrubam áreas públicas e extraem a madeira. Mais tarde, quando o terreno está seco, colocam fogo. Por fim, tentam obter ou falsificar escrituras, criar gado no local ou vender a terra aos incautos.

- Eles estão roubando o patrimônio do povo brasileiro. Isso aumentou muito, porque eles têm a esperança de que vão ser anistiados - diz o pesquisador.

Agronegócio

Há hoje um descontentamento em relação a isso por parte do próprio agronegócio. Grandes produtores, muitos dos quais se beneficiaram do desmatamento no passado, estão agora percebendo que a continuidade da destruição pode ser fatal para os negócios - porque anteveem um boicote à produção brasileira pela comunidade internacional e também porque é o regime de chuvas propiciado pela Amazônia que sustenta a irrigação das lavouras.

O megaprodutor de soja e ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi assumiu o discurso da proteção ambiental. Em 2005, quando era governador do Mato Grosso, chegou a ganhar o "prêmio" Motosserra de Ouro, concedido pelo Greenpeace, por sua contribuição para o desmatamento. Nos últimos dias, tem insistido na necessidade de proteger a Amazônia.

- Não mudou a legislação, mas mudou a percepção. Há uma preocupação no mundo todo de que o Brasil não está cuidando da Amazônia, o que poderá trazer muito prejuízo. Temo muito boicote ao Brasil vindo de fora. Não somos uma ilha. Precisamos prestar atenção no caminho que o mundo anda. E os produtores precisam assumir o compromisso de que não estão vendendo produto que veio de área desmatada ilegalmente - disse, na sexta-feira, em entrevista à Rádio Gaúcha.

Segundo Moutinho, o processo de desmatamento deixou um total de 15 milhões de hectares abandonados ou subutilizados, porque não houve investimento ou recuperação do solo.

ITAMAR MELO


24 DE AGOSTO DE 2019
RODRIGO CONSTANTINO

Mensagem e mensageiro

Há uma diferença entre a mensagem e o mensageiro. Muitos preferem atirar neste para matar aquela. Não funciona. Uso como exemplo dois fenômenos que são similares: Trump e Bolsonaro. Ambos representam uma mensagem legítima, uma reação até saudável, que deve ser escutada e absorvida, por mais que a pessoa tenha aversão aos seus estilos.

Trump e Bolsonaro podem ser toscos, fanfarrões, e às vezes se excederem na forma e no conteúdo. Mas o que representam é uma espécie de "dedo do meio" para aquilo que se denomina establishment, incluindo a grande imprensa, a academia e a classe política. O nacional-populismo que expressam vem combater anos de bolha "progressista", de arrogância e hegemonia da esquerda, que trata seus adversários com desprezo e desdém.

Os "deploráveis", segundo Hillary Clinton, ou os "alienados" que teriam votado em Bolsonaro, para a imensa maioria dos jornalistas. Será mesmo isso? Após tanto tempo monopolizando as virtudes e demonizando conservadores, tratados como radicais e jogados no mesmo saco podre de nazistas, essas pessoas comuns, de classe média, informadas pelas redes sociais, expressam sua revolta por meio desses votos.

Roger Eatwell e Matthew Goodwin, em National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy, argumentam que o fenômeno é mais estrutural do que parece, e as reclamações desses eleitores, muitas vezes, são legítimas. Ignorar isso só vai levar a previsões equivocadas. É o mesmo ponto do historiador Victor Davis Hanson em The Case for Trump.

Entender o fenômeno não é o mesmo que endossá-lo. Mas pode ser fatal atirar nos mensageiros e fechar os olhos para a mensagem. Os populistas de direita podem errar em muitas receitas, mas adotam um diagnóstico um tanto correto para vários problemas que são ignorados pelos "progressistas".

O globalismo, o feminismo, a ideologia de gênero, o viés ideológico da mídia, a histeria ambientalista, todos são problemas reais. Quando o establishment trata essas críticas como paranoia de maluco, está alimentando a reação populista. Você pode não engolir o estilo desses líderes, mas é recomendável que preste atenção naquilo que seus seguidores estão condenando.

RODRIGO CONSTANTINO




23 DE AGOSTO DE 2019
DAVID COIMBRA

O valentão

Os Estados Unidos se autoproclamam a "terra dos bravos". O Brasil se tornou o lar dos valentes.

Mas, atenção, não se trata de elogio. Valentia é diferente de coragem. Coragem é fazer o certo, mesmo quando se perde com isso. É assumir a responsabilidade. É colocar a lealdade acima do interesse.

Valentia é outra coisa. O valente, em geral, é temerário ou covarde. O valente temerário, que pode ser um eufemismo para burro, é aquele que enfrenta um inimigo muito mais forte só para provar o seu destemor. O valente covarde é aquele que desafia um inimigo muito mais fraco só para humilhá-lo.

O valente covarde, por exemplo, é o que pratica bullying. Ele sabe que pode bater na sua vítima, então a oprime. Ele não corre nenhum risco, mas se sente grande por poder diminuir outra pessoa.

O governo brasileiro é assim. É um governo de valentões, o governo do prevalecido da escola, do tio que conta a piada constrangedora no almoço de domingo, da madame que fala alto no cinema.

Sob esse governo, a ignorância não aumentou entre os brasileiros, mas se tornou orgulhosa. É uma ignorância que bate no peito e se mostra, radiante. Agora é bonito ser grosseiro, porque a grosseria é confundida com autenticidade.

O chefe do governo, Bolsonaro, se esmera a cada dia para dar exemplos eloquentes desse tipo de comportamento. A diversidade é seu lema, porque ele ataca em praticamente todos os setores, do golden shower às cadeirinhas para crianças nos carros.

Ultimamente, ele tem se dedicado com ardor (mesmo) à área da ecologia. Nosso presidente valentão dispensou os bilhões que noruegueses e alemães mandavam para ajudar na preservação da Amazônia e ainda sugeriu, cheio do sarcasmo típico dos machões, que o montante fosse repassado a Angela Merkel, para que ela cuidasse das florestas da Alemanha, talvez sem saber que esse é provavelmente o país do mundo que mais se empenha na conservação da natureza.

Depois disso, diante dos 72 mil focos de incêndio que nesse momento estão consumindo a Amazônia, Bolsonaro disse que essas queimadas provavelmente são criminosas e apontou como culpadas as ONGs que atuam na região.

É grave.

Porque, ora, Bolsonaro é o presidente da República. É a maior autoridade do Brasil. Se ele tem informações de que ONGs estão incendiando a Amazônia, sua obrigação é mobilizar o aparato repressor do Estado para deter os criminosos. Mas, se ele não tem informação, se é palpite ou desejo, sua acusação cai sobre pessoas inocentes, muitas dessas que trabalham com seriedade para salvar a floresta.

A julgar pela forma como se comportam Bolsonaro e seus auxiliares nesse caso, provavelmente a segunda hipótese é a correta: a denúncia é falsa. Você, perplexo, talvez esteja se perguntando: por que ele faria isso? Por que ele cometeria tamanha irresponsabilidade? A razão é óbvia: é porque ele é um valentão. Valentões acham uma frescura esse negócio de ecologia, de ONGs, de preservação da natureza. Bolsonaro, mais uma vez, está apenas sendo quem é. É a tal autenticidade tão admirada pelos brasileiros de hoje. O Brasil elegeu o prevalecido do colégio como presidente. Agora terá de aguentar o bullying.

DAVID COIMBRA


23 DE AGOSTO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

BOAS NOVAS PARA OS NEGÓCIOS

Em meio à maré de declarações disparatadas do presidente Jair Bolsonaro que obscurecem as notícias positivas de seu próprio governo, o Senado aprovou a Medida Provisória 881, conhecida como MP da Liberdade Econômica, uma das mais relevantes iniciativas postas em prática na história recente para destravar o emperrado ambiente de negócios no Brasil. 

Concebida no ambiente de liberalismo da equipe econômica, a MP tem as digitais de uma nova geração de lideranças gaúchas: o secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel, e o deputado Jerônimo Goergen, relator da MP na Câmara. A estimativa é de que a liberalização de normas terá o poder de gerar cerca de 3,7 milhões de empregos nos próximos 10 anos.

Apoiada por empreendedores que, a partir de entidades como o Instituto de Estudos Empresariais, defendem há décadas a desregulamentação e desburocratização da economia, a MP é o primeiro grande passo no sentido de esmaecer a percepção interna e externa de que a livre-iniciativa enfrenta no Brasil sobressaltos permanentes pelo excesso de normas e autorizações. Ao contrário do que apregoavam seus detratores, a MP não foi dirigida a grandes empresas, essas também sufocadas pelo emaranhado burocrático, mas destina-se a liberar o espírito empreen- dedor de pequenos negócios. Com a MP implementada, atividades de baixo risco, como costureiras, salões de beleza ou bancas de jornais, poderão funcionar sem a exigência de alvarás.

Além de ajudar a trazer à legalidade negócios que vivem na marginalidade, a MP determina que a obrigação de registro de ponto na entrada e saída só será necessária em empresas com mais de 20 funcionários e autoriza o chamado ponto de exceção, que permite mais flexibilidade para empresas e trabalhadores. Em contrapartida, o Senado retirou da medida o artigo que permitia o trabalho aos domingos e feriados sem necessidade de autorização por convenção coletiva. Na prática, porém, a mudança tem baixo impacto no espírito da liberalização, uma vez que há portarias que liberam o trabalho aos domingos em 79 setores.

Apesar da MP, ainda resta muito a fazer para simplificar a vida dos empreendedores e, com isso, trazer-se o Brasil para um patamar aceitável de modernidade na convivência do aparato público com a livre-iniciativa. Pelo ranking 2018 dos melhores países para se fazer negócios, o "Doing Business", do Banco Mundial, o Brasil amarga a 109ª posição, a última entre os países do Brics. A Índia, conhecida por sua indecifrável burocracia, está na 77ª posição do ranking, liderado por Nova Zelândia, Singapura e Dinamarca, em mais uma evidência de que a liberdade para empreender está diretamente associada ao grau de desenvolvimento de um país.



23 DE AGOSTO DE 2019
+ ECONOMIA

Petrobras busca startups gaúchas

Uma chamada a startups, pequenas e microempresas do Rio Grande do Sul foi feita ontem, em Porto Alegre, pela Petrobras, por meio do projeto Conexões para Inovação. É a primeira vez que a maior estatal do Brasil busca se aproximar do ambiente de inovação composto por esse universo, detalhou Ricardo Ramos, consultor de inovação aberta no Centro de Pesquisas da Petrobras (Cenpes).

- Uma das ideias é buscar sistemas para auxiliar inspeção, manutenção, mitigar o efeito de intermitência de energia, que startups possam desenvolver. O prazo para apresentação de propostas foi ampliado até 22 de setembro, na página do Sebrae, entidade parceira do projeto. A faixa preferencial dos projetos fica entre R$ 500 mil e R$ 1,5 milhão, mas nada impede que uma ótima solução de R$ 200 mil seja selecionada, detalha Ramos. O foco são soluções para modelos de negócios que já existem.

A Petrobras busca projetos para tecnologias digitais, captura e utilização de carbono, novas energias, nanotecnologia, corrosão e catalisadores. As inscrições podem ser feitas no link bit.ly/EditalPetrobras2019.

MARTA SFREDO


23 DE AGOSTO DE 2019
EDUARDO BUENO

O coco e o cocô

Ah, o coco - que fruto mágico. Mágico e misterioso, pois, na real, não se conhecem suas origens. O fruto, bem como a palmeira onde ele brota, provavelmente são nativos do sudeste da Ásia. Mas o fato é que cocos fossilizados de 12 milhões de anos foram achados na Nova Zelândia e a planta já estava bem instalada na Índia e na África bem antes de os sapiens darem as caras por aqui. Acontece que o coco boia - e, por isso, ao cair no mar, pode viajar milhares de milhas até encontrar ilha e/ou um continente e ali germinar na santa paz.

Atualmente o coco está espalhado por todas as zonas tropicais e em várias porções subtropicais desse planeta cada vez mais quente. Mas no Brasil, ele não chegou por meio das correntes: foi trazido por mão humana. A sempre desconfiável Wikipédia cita 1553, mas Luís da Câmara Cascudo, autor da primorosa História da Alimentação no Brasil, lacra 1570 como o ano do desembarque do coco na Terra Brasilis. E cita o ponto de partida: as ilhas do Cabo Verde, de onde ele teria vindo, junto com os escravos que com seu suor e seu sangue ergueram a colônia.

No Brasil, como na Malásia, na Índia e algures, o coco é carne, é água, é leite, é azeite, é óleo, é amêndoa, é vinho, é mel. E ainda é casa, teto, esteio, mourão, ripa, roupa, lume, jangada, cumbuca e vasilha. Mas também é praga e as vastas plantações que von Martius avistou na Bahia em 1819 viraram monocultura quase tão severa e nociva quanto a cana.

Já o cocô, ah, o cocô com certeza não tem tantas utilidades quanto o coco. Ainda assim, há todo um ramo da paleontologia que estuda o cocô (coprólitos, ou cocôs fósseis, já ajudaram os cientistas a solucionar mistérios). Há fetiches eróticos envolvendo o cocô (a coprofilia) e também a coprofagia, mas isso é melhor deixar pra lá. E eu mesmo escrevi um livro, Passado a Limpo, sobre a história da higiene no Brasil, onde o cocô pontifica.

Talvez por isso, assim do nada, me deu vontade de dar conselhos. Afinal, autores de autoajuda estão em auta, ops, em alta. Assim, em verdade vos digo: tomar água de coco todos os dias é uma boa. Fazer cocô todos os dias também. Tem gente que recomenda que se faça "dia sim, dia não". Há quem diga que ele "estava brincando" ao falar isso. De todo modo, não recomendo a prática: e se o cocô subir à cabeça? Por isso, melhor ir aos pés todos os dias - e não trocar os pés pelas mãos.

A não ser, é claro, que seja para escalar um coqueiro e colher o coco.

EDUARDO BUENO

sábado, 17 de agosto de 2019



17 DE AGOSTO DE 2019

LYA LUFT


A luz da alma


Todos temos dentro de nós temas que retornam, ressurgem, transfigurados, com diversas máscaras e roupagens, e insistem em aparecer: são os fantasmas de cada um.

Em geral manifestam-se na forma de sonhos, inexplicados medos, breves euforias. O assunto que hoje retomo é a doença de Alzheimer, abordado frequentemente em reportagens, artigos médicos, palestras de psiquiatras e experiências dramáticas de vida real. Terrível doença que acompanhei intimamente por mais de uma década, quando minha mãe passou, de minha mãe, a um ser quase desconhecido, inalcançável.

Aos poucos, de filha fui me tornando a cuidadora, a visita, por fim a estranha. Seu universo fora reduzido ao próprio mundo interior: ali comemorava 15 anos, ali era noiva ou tinha um bebê, ali me tratava de "senhora", ou me entregava algum pequeno objeto invisível que para ela devia ser muito precioso. "Cuidado!", me recomendava, "cuidado com isso!", e eu o recebia com as duas mãos em concha, para que ela não se afligisse. Às vezes, era mais bem-humorada na alienação do que nos últimos anos de lucidez ameaçada, nos quais eventualmente perguntava: "Será que estou ficando louca?"! E a gente respondia, tentando parecer natural: "Que bobagem, eu estou muito mais esquecida do que você!".

Um dos dramas de quem convive com isso é lidar com esse mundo e não tentar algemar a pessoa doente à nossa "realidade", pois isso só lhe provoca angústia inútil. Por algum tempo acompanhamos a pessoa amada para dentro de seu novo registro, procurando amenizar, não atormentar mais. Um dia, isso já não funciona: ela está fora do nosso alcance. Quem amamos não sabe mais de nós, recolhida numa bolha aparentemente vazia.

Eventualmente minha mãe parecia a mulher elegante de outros tempos: "Você quer uma bebida?", perguntava 10 vezes, porque ao indagar já o tinha esquecido, naquele território onde eu não era ninguém. O que se passaria naquela paisagem que eu não conseguia enxergar? Certamente havia consciência: minha mãe falava, ria, cantava baixinho para alguém que a gente não via. De mulher grande e saudável passou a uma velhinha minúscula, mas resistia à morte: essa tem lá a sua medida de tempo. Chega como uma faminta ave de rapina, ou aguarda como um lento animal que hiberna.

Da última vez em que vi minha mãe, ela, que há muito não falava, entreabriu os olhos e disse nitidamente para si mesma, para alguém - para ninguém: "Que bom estar assim, tão leve e tão jovem". Nem um brilho de reconhecimento no olhar quando me inclinei para ela. Poucos dias depois, a Senhora Morte chegou e num gesto casual recolheu a lamparina onde já não havia luz. Levou consigo a velha dama que há muitos anos deixara o palco da sua vida: mas nos bastidores, algumas vezes, ecoava o que parecia ser a sua voz, seu passo enérgico e seu riso alegre - tudo que mais recordo dela agora.

LYA LUFT

17 DE AGOSTO DE 2019
MARTHA MEDEIROS


Como é que diz?

A entrevista era para uma rádio e foi dada por telefone, o que me salvou do vexame. Os ouvintes não me viram fechando os olhos, franzindo o cenho, buscando no fundo do cérebro a palavra que não vinha. Cheguei a dar dois soquinhos na testa, tentando acordar alguém lá dentro. Não adiantava. Era um verbo básico, corriqueiro, desses que a gente usa toda hora, mas desapareceu. E eu ali, com a frase pela metade, sem conseguir concluir. Desesperador. Esse tipo de vacilo parece durar cinco angustiantes minutos, e não apenas cinco segundos, que é o tempo que a gente costuma levar para buscar uma expressão substituta.

Nada a ver com nervosismo ao falar em público. Acontece a mesma coisa quando estou tendo uma conversa informal: na hora que a palavra vai sair pela boca, evapora. Fico feito uma pateta, sem lembrar o que ia dizer. Outro dia, estava recomendando uma profissional para uma amiga, e queria usar um adjetivo para valorizá-la. E a droga do adjetivo não vinha. "Ela é muito... como diz? Muito... muito.... como diz quando a pessoa é... quando ela não faz..."

Minha amiga tentava ajudar. "Muito econômica? Muito honesta?"

"Não, não... Ela é muito... ah, caramba, como diz quando a pessoa é... quando não se.... quando fica na dela... DISCRETA!!!! Ela é muito DISCRETA!!!"

Essa era eu, exaltada pela vitória. Minha amiga e eu rimos à beça, ela também tem seus lapsos.

A senilidade, dizem, é a causa dessa amnésia ocasional. Pode ser, aceito o diagnóstico sem resmungar, mas acho que, no fundo, é cansaço. A gente passa a vida dando explicação, emitindo opiniões, tentando se fazer entender. Lá pelas tantas, esgota. Tenho procurado falar menos e escutar mais, não por ser magnânima, mas por pura preguiça. Não tenho mais energia para provocar discussões ou prolongá-las. Já não me entusiasma fazer alguém mudar de ideia, buscar argumentos para convencê-la disso ou daquilo. Muito esforço. O silêncio nunca me pareceu tão confortável.

Assim sendo, aproveitando que ando mais relaxada, meu vocabulário anda disperso. Às vezes, quando estou conversando com alguém e começo a contar uma história, não encontro um determinado verbo na ponta da língua, onde ele deveria estar. Não sei onde se mete. Some junto com algum substantivo.

Deve acontecer com você também, de vez em quando. Não chega a ser grave, mas é... como que diz... é... ah, meu Deus... é.... CONSTRANGEDOR! Isso, constrangedor. Então, por via das dúvidas, ando reduzindo as atividades em frente ao microfone e me afastando de plateias numerosas. Para evitar fiascos, já que estou sendo paulatinamente abandonada pelas palavras, logo por elas. De escritora para ex-critora, em breve. Sem drama, continuemos a rir.

MARTHA MEDEIROS


17 DE AGOSTO DE 2019

CARPINEJAR


Chamada a cobrar


Eu recebi uma chamada a cobrar. Não assimilei a confusão emocional na hora: veio uma palpitação junto. Fazia muito tempo que ninguém me ligava assim, que não escutava a gravação feminina cavernosa.

"Diga seu nome e a cidade de onde está falando. Para aceitá-la, continue na linha após a identificação".

Por mais que conhecesse cada palavra, não diminuiu o suspense o chamado, não reduziu em nada o coração troteado, o susto do ouvido, o estado exultante de vigília: Quem será? O que aconteceu?

Lembrei, pouco a pouco, do que significava uma chamada a cobrar, do ataque de nervos toda vez que ela aparecia levantando o gancho do aparelho.

Antes, entenda que venho de uma época analógica, em que não existiam celulares. Conversar ao telefone custava caro, e usávamos fichas para dar recados em orelhões. Às vezes, em situações adversas, não havia como falar com um familiar senão a partir do fiado.

O detalhe é que a chamada a cobrar costumava ser feita em último caso, como urgência urgentíssima.

Quando o telefone tocava de madrugada e surgia a advertência para autorizar a linha, a família gelava. Só podia ser tragédia. Só podia ser aviso de algum acidente ou pedido de socorro. Se um filho estivesse na rua, então, já se morria de enfarte durante a pausa. Gaguejávamos, atropelávamos a voz do outro lado com perguntas, não permitindo que ela se identificasse.

A chamada a cobrar encarnava um código de agouro. Uma invocação do mal. Um anúncio de encrenca. Uma intimação para tirar o pijama e perder a tranquilidade do sono.

Logo ao desligar, o destino seria o hospital ou a delegacia.

Penávamos de ansiedade. Dificilmente alguém recusava aquele interurbano. A aprovação nem descendia da curiosidade, mas do puro desespero.

Contávamos com seis segundos para aceitar ou não o telefonema.

Trinta anos se passaram nos breves segundos de ontem, ao atender o celular na rua e empalidecer o rosto com o eco do passado. Até descobrir que se tratava de um engano, simplesmente tranquei a respiração e desapareci dentro de mim.

CARPINEJAR

17 DE AGOSTO DE 2019
LEANDRO KARNAL

BALADA DO LOUCO


É o mais sólido e tradicional clichê que somos todos, em algum grau, loucos. Como a maioria é algo estranha, ser louco conteria um certo charme. O glamour da insanidade aparece na belíssima Balada do Louco: Mais louco é quem me diz, e não é feliz..., dos Mutantes, que ganhou registros com Ney Matogrosso, Rita Lee e Cida Moreira. A normalidade é tediosa, opressiva e até pecaminosa, algo que ecoa Erasmo de Roterdã (O Elogio da Loucura) ou Paulo Apóstolo (I Coríntios 4,10).



O sonho da contracultura articula-se com a postura de considerar que a vida enquadrada é "careta", antiga, ultrapassada e você, cumprindo todo o trajeto da "normalidade", acaba apenas servindo de massa de manobra. A sinceridade dos loucos e outsiders sempre foi admirada como emanação de algum acesso a um conhecimento superior.


Não seja mais um tijolo no muro, não marche para a mesmice: é o tema recomendado do clássico The Wall, de Pink Floyd. Um jovem que não tenha sido seduzido em algum momento pela ideia da insanidade contestadora de um Hamlet a apontar coisas podres no reino da Dinamarca, provavelmente, não é um jovem de verdade. Hoje quase uma denúncia de idade, lembro de um livro clássico da minha juventude: O Louco, de Khalil Gibran.


Narrei a loucura poética. Ela é irmã da contestação, da rebeldia criativa, da insubordinação contra poderes. O louco manso e criativo ri, diz aquilo que está engasgado na garganta dos comuns racionais e infelizes. A poesia-hino do levante contra o tradicional é o famoso Cântico Negro, de José Régio. Sim, a plateia ralou no emprego para obter a soma do ingresso, seguiu ordenadamente até o lugar numerado, chegou no horário previsto, arrumou-se para isso e seguiu organizada e racional.


De repente, a genial artista recita o cântico e todos apoiam e gritam. Era o momento permitido de rebeldia. Depois, em ordem e pagando estacionamentos extorsivos, todos voltamos para nossas casas. Para ser muito louco, hoje, precisamos de renda sólida, diferentemente dos filósofos cínicos como Diógenes, que podiam ser pobres e perturbados.


Tenho temido o crescimento do outro tipo de loucura, aquela amparada na classificação psiquiátrica. Acompanho, com horror, cenas como o perigoso empurrão de uma senhora sobre o padre Marcelo ou o casal de mulheres que tortura e mata um menino: é uma lista infindável de pessoas que não apresentam a loucura risível, todavia a perigosa e assassina.


O mesmo Erasmo de Roterdã fazia questão de separar uma loucura espirituosa da fúria, proveniente dos infernos. Crescem as ações perpetradas por pessoas diagnosticadas em alguma página do catálogo médico. Por questões jurídicas, mesmo tendo realizado crimes hediondos ou executado atentados terríveis, por vezes os médicos concluem que são inimputáveis. Por definição, um grau de perturbação mental elevado pode justificar a inimputabilidade, pois a vítima deixa de ter consciência do que faz. Nós que, com sorte, só temos graus leves de insanidade somos perfeitamente passivos de todo o peso da lei, o que não deixa de causar uma injusta indignação em muitos.


Em vários sistemas jurídicos do passado, não existiam atenuantes como transtornos psíquicos. Na Idade Média, uma criança poderia ser perfeitamente julgada, torturada e condenada, pois ainda inexistia o conceito de inimputabilidade ou mesmo o conceito de criança. Em tradições como a inglesa, os juízes podem decidir que alguém de 10 anos, tendo cometido crime grave, pode ser julgado e até condenado.



O medo social existe sempre. E se um louco me atacar? O que eu posso fazer? Retomando o caso conhecido do padre Marcelo: como evitar o medo de que atos violentos se repitam? Em um ambiente em que tantas pessoas manifestam seus ódios de forma tão polarizada e evidente, em que o rancor aflora de todos os lados em redes sociais, como garantir que os leitores de discursos explosivos sejam pessoas sensatas que saibam que há algo profundamente retórico naquilo tudo?


A loucura dos grandes deve ser vigiada, reflete o rei Cláudio ao pensar nas estranhas ações do jovem Hamlet. E a loucura cotidiana dos pequenos? E o delírio diluído em milhares de pessoas que abastecem seu desvario nas redes? E os seres "normais", tranquilos, trabalhadores e pontuais que, dirigindo um automóvel privado, moto, táxi, ônibus ou patinete, agem como se fossem Átila e pisoteiam/rodam um solo sobre o qual nem a grama ou a civilização crescerá de novo? Que outros continentes de loucura no oceano da razão descobriremos como o Alienista criado por Machado de Assis?


Que tempos felizes eram aqueles nos quais os romanos identificavam em Calígula, Nero ou Heliogábalo a insanidade clara e passível de eliminação! Que época abençoada: havia um louco e ele morria e pronto, o mundo melhorava... Outra era. O rei George III da Inglaterra e D. Maria I de Portugal foram atacados de insanidade e tiveram o mesmo médico, por sinal. A loucura do governante britânico não impediu a decolagem do poder inglês no século 19. A demência da avó de D. Pedro I não deteve o declínio português.


Parafraseando o coveiro de Hamlet, enviaram D. Maria I, louca, para o Brasil. Aqui se curaria e, se tal não ocorresse, poucos notariam a diferença. D. Maria gritava dos janelões do convento do Carmo no Rio de Janeiro. Ninguém a ouvia. Os gritos dos loucos, no Brasil, raramente superam os da "gente de bem". É preciso ter esperança e, talvez, alguma sanidade. Enquanto for possível.


LEANDRO KARNAL


17 DE AGOSTO DE 2019
COM A PALAVRA

"O QUE AS PESSOAS QUEREM COM O CINEMA, HOJE, É SAIR DA REALIDADE"

Entrevista | RODRIGO TEIXEIRA, Produtor de cinema, 42 anos Brasileiro de maior destaque em Hollywood, já esteve por trás de filmes como "Frances Ha" e "Me Chame Pelo Seu Nome"
Aos 42 anos, o produtor carioca Rodrigo Teixeira é o brasileiro com maior prestígio em Hollywood. Com a sua produtora RT Features, ele consolidou uma trajetória regular com filmes como Frances Ha (2012), A Bruxa (2015) e Me Chame Pelo Seu Nome (2017). O produtor deixou o mercado financeiro e a faculdade de Administração para se dedicar ao entretenimento tendo estreado no Brasil, com O Casamento de Romeu e Julieta (2005). 

Apesar da carreira internacional, ele nunca deixou de produzir títulos nacionais - como Tim Maia (2014), O Silêncio do Céu (2016) e o premiado em Cannes A Vida Invisível de Eurídice Gusmão (ainda inédito no circuito).Nos próximos meses, lançará Ad Astra, com Brad Pitt, Wasp Network, com Penélope Cruz, Gael Garcia Bernal e Wagner Moura, e The Lighthouse, com Robert Pattinson e Willem Dafoe. Ele esteve em Porto Alegre no fim de julho para ministrar uma masterclass promovida pela Fundação Cinema RS (Fundacine), ocasião em que conversou com ZH.

VOCÊ COMEÇOU NO MERCADO FINANCEIRO E CURSOU ADMINISTRAÇÃO. COMO FOI A TRANSIÇÃO PARA O CINEMA?

Fiquei no mercado financeiro só um ano e pouco. Há 21 anos trabalho com mercado de entretenimento. Também atuava no mercado editorial. O cinema em si, assim como o audiovisual, passou a ser um foco exclusivo em 2004, quando produzi O Casamento de Romeu e Julieta.

Como funciona sua escolha de trabalhos?

Minha primeira escolha é sobre aquilo que quero ver. Penso muito no que gosto de assistir. Me coloco no lugar do público e respondo para mim essa pergunta. Você gosta disso? É isso que você gostaria de ver? Tendo uma resposta positiva, vou para cima do projeto e tento realizá-lo. Também tenho uma intuição que considero relativamente boa e me faz saber selecionar os projetos.

Em um filme, É possível perceber o estilo do roteirista, do diretor, do fotógrafo etc. De que maneira o filme fala pelo produtor?

É só você analisar a obra do produtor, aí você consegue entender quem ele é e o que ele faz. No meu caso, admiro outros produtores e tento criar a minha linha editorial. Tento encontrar uma linha, buscando inspiração nos filmes que eu gostaria de assistir. Essa é minha grande busca.

você já comentou que sofreu preconceito no Brasil da própria classe de colegas. Que preconceito foi esse?

Dizia respeito a eu ter vindo de onde vim. Não comecei nessa indústria, não fui assistente de ninguém. Não estudei cinema. Sou cinéfilo por amor. Tive dificuldade de ser aceito não nessa indústria como um todo, mas em São Paulo especificamente. No Rio, sempre fui bem recebido.

era bairrismo?

Não exatamente. Era mais entender de onde vim. Como se a arte fosse para outra turma. Na verdade, ninguém nunca me perguntou, naquela época, qual era minha relação com o cinema. Sou apaixonado por filmes desde criança. Lembro de ir ao cinema aos seis anos e me relacionar com o que via na tela. Infelizmente, não me vejo com potencial para roteirista ou diretor, mas sim como produtor, e esse know-how e essa cinefilia me trouxeram muitos benefícios.

TEVE ALGUMA PRODUÇÃO EM ESPECIAL QUE TE DESPERTOU PARA TRABALHAR COM CINEMA?

Muitos. Os Bons Companheiros (1990), do Martin Scorsese, O Rei da Comédia (1982), também do Scorsese, O Poderoso Chefão (1972), do Coppola. Steven Spielberg sempre foi um diretor que mexeu comigo, assim como Terrence Malick e Clint Eastwood. Assistir ao John Ford adulto também mexeu comigo. Os filmes de samurai do Akira Kurosawa. Central do Brasil (1997), Bye Bye Brasil (1980) e Pixote, a Lei do Mais Fraco (1980) são exemplos nacionais que conversaram comigo. Depois que vi Cidade de Deus (2002), fiquei pensando na capacidade técnica que a gente tinha para fazer um filme desses. Teve tanta coisa que mexeu com a minha cabeça que uma hora acabei pensando: "Cara, como é que faço para entrar nisso?".

Nos países nos quais a indústria é mais estabelecida, como os eua, o produtor é mais valorizado. Falta valorização da classe no cinema nacional?

Luto por isso. O problema, no Brasil, não é que o produtor seja desvalorizado. É que normalmente o diretor se autoproduz. Então, a figura do diretor é confundida com a do produtor. O produtor é o cara que está no começo do projeto do filme. O Brasil tem muitos produtores importantes. A Casa de Cinema, em Porto Alegre. A Conspiração, no Rio. A Vania Catani, a Emilie Lesclaux, mulher do Kleber Mendonça, que é uma excelente produtora. Sara Silveira, também. Iafa Britz, Mariza Leão, olha a quantidade de mulheres que há no Brasil produzindo filmes comerciais, de arte, dos mais diversos.

Quais são os principais problemas para produzir um filme no Brasil?

Produzir um filme em qualquer lugar é difícil. O primeiro problema é o processo de análise: o projeto é bom ou é ruim? Depois, tem o financiamento. Terceiro: como a gente distribui esse filme que produzimos. Esses três são os principais problemas.

O que te motiva a seguir trabalhando no brasil, em paralelo aos projetos nos eua?

Primeiro é o fato de produzir na minha língua, na minha terra, com pessoas com as quais facilmente me relaciono. Só que é um processo mais difícil, porque você tem uma dependência de dinheiro público. Precisa passar por diversos processos para obter financiamento.

Como foi trabalhar em Ad Astra - Rumo às estrelas, um filme com orçamento de US$ 100 milhões (que estreia no brasil em 26 de setembro)?

Foi uma escola. Aprendi muito. Teve uma equipe brilhante, com vencedores de Oscar. É um filme de estúdio, no qual você lida com o estúdio. Há um profissionalismo naquelas pessoas, que estão lá pelo ofício, não somente pela arte. E é um filme de ficção científica, me ensinou sobre o espaço, sobre futuro.

e o trabalho com brad pitt? Como foi?

Nunca imaginei que trabalharia com ele. Foi um sonho, de certa forma. Qualquer ator desse porte que você tenha oportunidade de trabalhar e tenha a generosidade do Brad Pitt... Ele é assim. Foi muito legal com a equipe, muito profissional. Foi um filme difícil, pois era totalmente concentrado nele, estava presente em quase 100% do tempo. Esse tipo de ficção científica eu não conseguiria fazer no Brasil. Porque é muito irreal (trata-se da história de um homem que viaja aos limites do Sistema Solar para encontrar o pai desaparecido e desvendar um mistério que ameaça a vida humana). Os EUA têm a Nasa, isso faz diferença para fazer esse tipo de projeto acontecer.

Outro próximo lançamento é Wasp Network, de Olivier Assayas, estrelado por Wagner Moura e Penélope Cruz, a ser exibido no Festival de Veneza no mês que vem. Pode contar um pouco mais sobre a construção desse filme?

Nesse projeto tenho uma participação enorme. Paguei para o Fernando Morais escrever o livro Os Últimos Soldados da Guerra Fria (sobre espiões cubanos em Miami tentando fazer conteúdo inteligente contra os anticastristas, que estavam tentando se infiltrar na infraestrutura turística de Cuba). Ele o fez, e eu fiquei com os direitos. Ofereci ao Assayas, que entrou no projeto. O filme se desenvolveu, levantou capital. Montamos uma estrutura em Cuba e outra na Espanha para as filmagens. Terminamos de rodar há quatro meses, só. E já está em Veneza. É uma maravilha. Um projeto do qual só tenho orgulho. Deve estrear em novembro no Brasil.

Para você, quais são os principais aspectos que um filme precisa ter hoje em dia para chamar atenção na indústria?

Depende muito. Há três tipos de cinema sendo feitos hoje em dia. O entretenimento escapista, que é o blockbuster que todo mundo vai assistir. Há também aquele cinema médio, com filmes que estávamos acostumados a ver nos anos 1980 e 1990 e, agora, estão aparecendo na Netflix. E o cinema independente, mais autoral, que se comunica com a sociedade sobre certos temas, traz reflexões. Acho que o cinema é uma grande ferramenta para contar uma história, tanto quanto as séries de TV. Creio que esse deveria ser o papel do cinema independente hoje: criar histórias para provocar reflexões.

Quais os exemplos desse último tipo de filmes?

Há muitos. A Hora Mais Escura (2012), da Kathryn Bigelow, é um relato da caçada a Osama Bin Laden. Era Uma Vez em Hollywood, do Tarantino (em cartaz nos cinemas), é um exemplo parecido com Shampoo (1975), do Hal Ashby, que falava sobre masculinidade em um ambiente republicano no poder, com Nixon. Houve, em Shampoo, um recurso ficcional que era um homem ter de mentir que era gay para poder montar sua estrutura como cabeleireiro, para onde ele levava mulheres além de fazer o seu trabalho. Foi como se mostrou a bobeira do machismo, do homem que está encaminhando para esse lado. O Warren Beatty, protagonista, era um protótipo daquele personagem, sofria as consequências disso. Esse longa filmado em 1974 seria uma obra-prima ainda hoje. É esse tipo de cinema que, para mim, é importante existir atualmente.

Hoje, os maiores blockbusters são os filmes de super-herói. Isso é um limitante para quem quer trabalhar com público maior?

Acho que limita um alcance mais amplo, mas não determina que não se possa trabalhar com grandes públicos. Temos de formar plateia. Creio que o maior problema que temos hoje é formar plateia. Aqueles que vão ver Vingadores deveriam ver também Kurosawa. É uma questão de educação, de como educamos o público para o que ele assiste. É obrigação dos canais de streaming mostrarem conteúdos distintos. Sou radical nesse ponto. Mas adoro filmes escapistas. Vejo filmes de heróis com os meus filhos. Adoro.

O público ficou mais infantil, mais adolescente? O que justifica tanto sucesso de filmes de super-herói?

Acho que o mundo passa por uma realidade dura. E o filme de super-herói te transporta para uma realidade mais lúdica, que é o que todo mundo está buscando. O que as pessoas querem com o cinema, hoje, é sair da realidade e acompanhar uma vida na qual a preocupação é outra: você lutar contra um monstro e vencer no final. O público procura isso: entretenimento, com efeitos especiais, som, esse tipo de coisa. Há filmes bons de super-heróis. Assim como há ruins.

O DOMÍNIO DESSES FILMES NÃO DIMINUI O ESPAÇO PARA O CINEMA DE AUTOR?

Acho que o cinema de autor encolheu. Você tem de encontrar soluções - circuito de festivais, cinemas alternativos, salas comerciais que exibem o cinema de autor. Há espaços mais restritos.

Como você tem acompanhado as críticas de bolsonaro à atuação da agência nacional do cinema (Ancine)?

Acho que é um processo que necessita de diálogo. Temos de apresentar ao governo quais são as intenções do mercado, e que nós temos um mercado, uma indústria, que zelamos pelo dinheiro público. Precisamos apresentar uma pauta econômica. Acho que a Ancine tem uma pauta econômica importante, sim, que precisa ser discutida. É necessário mostrar ao governo que existe um pensamento de negócio por trás do que a gente está fazendo, e não só um pensamento de financiamento público. Há um pensamento industrial e econômico nessa produção.

O que você acha que aconteceria se a Ancine fosse extinta?

Seria um retrocesso a tudo que foi criado nos últimos anos. Não estamos preparados para não ter uma agência de cinema nem para não ter incentivo público. Por isso sou muito a favor de um diálogo. Temos de sentar com o governo e mostrar com números que o audiovisual brasileiro é importante para a economia e que a Ancine, como agência reguladora, precisa existir.

Nos últimos tempos, alguns grupos têm demonstrado hostilidade aos artistas no Brasil, inclusive por conta das leis de incentivo. Como você vê esse fenômeno?

Ter hostilidade contra lei de incentivo é uma falta de conhecimento sobre o que é a lei de incentivo. Nada é feito ali de forma ilegal. Só estudar a lei e ver que ela existe para ser exercida de forma legal. É uma falta de inteligência, uma falta de educação criticar o incentivo. Quanto à hostilidade aos artistas, trata-se muito mais de uma confusão política do que qualquer coisa. Qualquer comentário hoje é levado para o lado político.

Você teme que a censura atinja a produção audiovisual no brasil?

Temer eu não temo, mas acho que qualquer ambiente de censura que exista teremos de combater. Censura não é algo cabível nos dias de hoje, em qualquer país do mundo.

E se o governo determinar que tipo de produção possa ser financiada com leis de incentivo?

Trata-se de uma linha tênue para que se estabeleça a censura. O governo não pode fazer isso. É preciso haver variedade de temas nos filmes.

o Brasil sempre teve ciclos de produção industrial, em geral com filmes cômicos: as chanchadas da Atlântida, as pornochanchadas, o cinema caipira com Mazzaroppi e, mais recentemente, as "globochanchadas". Há um caminho para se ter um cinema industrial mais estabelecido?

Acho que os ciclos existem de diversas formas. Esses ciclos terminam quando você forma o público. Se você forma público, esse ciclos vão mudar, não vão ser tão pontuais. Eles vão passar, mas terão deixado seu legado.

De alguma forma, com o financiamento via renúncia fiscal, os filmes ganharam um certo padrão, que acabou rompido com o uso das novas tecnologias (câmeras digitais mais baratas, internet para distribuir, streaming). Antes, o que predominava no Brasil era uma realidade de poucos recursos e poucas janelas de exibição. Agora, há as múltiplas formas de mostrar os filmes, porém, nem todas com grande alcance. Quais os ônus e bônus desse cenário com mais gente se lançando na produção audiovisual?

Acho que o ônus é um excesso de conteúdo sendo produzido de forma desregulada no mundo inteiro. Você não tem janela para exibir tudo que é produzido. E isso acaba criando bolhas de conteúdo. Essas bolhas são um problema mundial que vivenciamos atualmente. Já o bônus é que agora você tem uma série de plataformas que permitem que você, mesmo não tendo um histórico tão grande, consiga encontrar chances de exibir seu filme eventualmente.

Qual a consequência dessas bolhas?

Os financiamentos de projetos podem ser reduzidos. Não se tem capacidade de distribuir tudo. E aí me parece que essa bolha uma hora vai estourar. Ou a gente diminui e pensa de uma forma mais coerente, ou essa bolha vai estourar e uma série de financiamentos poderá ter fim.

Há uma guerra de bastidores que estúdios e distribuidoras travam com a Netflix. É uma briga por mercado, que tem como pano de fundo a mudança na experiência de ver filmes - antes na sala de cinema, agora também em casa. Como você vê o streaming no mercado de cinema?

Era uma entrada que ocorreria, evidentemente. Não havia como não acontecer isso. A Netflix é um player importante. Faz coisas interessantes em termos de financiamento, mas ao mesmo tempo faz coisas que não considero tão boas. Não me parece que a Netflix ajuda a formar plateia. Pelo contrário. Do jeito que os filmes são colocados na prateleira frontal do serviço, deseduca o público. Você não acessa os clássicos e não apresenta produções que são relevantes na formação de qualquer cinéfilo. Acho que a Netflix está para o cinema assim como o Walmart está para o mercado de supermercado no mundo. Tem um excesso de produto, e não necessariamente o bom está na frente.

A tendência agora é que o mercado de streaming seja diluído com novas plataformas da Disney, Apple, entre outras. Como você vislumbra esse cenário?

Acho que a competição é bem-vinda. Vai ter um que vai fazer o serviço premium, outro que vai fazer um serviço sem foco, outro mais nichado, outro mais popular. Sou totalmente a favor de competição.

Com a ascensão da figura do showrunner no audiovisual (responsável pelas séries de tv), você já pensou em enveredar para a televisão? Está nos seus planos?

Vou fazer a produção executiva para séries. Ou seja, já estou enveredando! Há um monte de coisas rolando. Está no meu radar, sim.

COM QUEM VOCÊ NÃO TRABALHOU E GOSTARIA DE TRABALHAR?

Adoraria trabalhar com o Spielberg. Quem sabe um dia...

E O QUE ACONTECEU COM O FILME SWEET VENGEANCE, QUE VOCÊ PRODUZIRIA COM O DIRETOR BRIAN DE PALMA?

Não conseguimos encontrar um casting para fazer o filme acontecer. Está engavetado. Por enquanto...

WILLIAM MANSQUE