sábado, 21 de setembro de 2019


21 DE SETEMBRO DE 2019
COM A PALAVRA

"NEGAR O RACISMO É UMA POSTURA CLARA DE AGRESSÃO"

Entrevista | Paulo Scott, escritor, 52 anos - Autor do premiado Habitante Irreal, o gaúcho acaba de lançar seu quinto romance, Marrom e Amarelo, e foi selecionado para o programa de residência literária da Associação dos Escritores de Xangai

Umas das principais vozes da literatura brasileira contemporânea, Paulo Scott cresceu em Porto Alegre. Dos amigos e das ruas do Partenon, onde passou a infância e a adolescência, emergem algumas das histórias e dos personagens de seu quinto romance, Marrom e Amarelo, que acaba de publicar. 

O livro aborda o racismo, por meio da relação de dois irmãos - um de pele retinta, outro com fenótipo mais claro. Aos 52 anos, Scott tem no currículo prêmios como o Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional (pelo romance Habitante Irreal), o Troféu Associação Paulista de Críticos de Arte (pelos poemas de Mesmo Sem Dinheiro Comprei um Esqueite Novo) e o Açorianos (por O Ano em que Vivi de Literatura). No início deste mês, partiu em viagem para a China, sendo o primeiro brasileiro selecionado para o programa de residência literária da Associação dos Escritores de Xangai, lançado em 2008. O gaúcho deve passar dois meses no Oriente, realizando palestras e trabalhando em um novo livro.

SEU NOVO ROMANCE, MARROM E AMARELO, REFLETE, DE ALGUMA FORMA, A HISTÓRIA DE SUA FAMÍLIA, NÃO?

De fato, assim como o personagem principal do romance, também pertenço a uma família negra e tenho a pele bem mais clara que a de meu irmão mais novo. Nossa diferença é de um ano e dois meses. Quando eu era mais jovem, tinha essa questão de eu ter a pele e o cabelo claro. O cabelo só foi encrespar lá pelos 10 ou 12 anos. Isso fazia com que, a uma primeira olhada, a diferença entre nós fosse muito grande. Há também uma compreensão política minha, de que eu venho de uma família negra, porque meu pai é preto, um mestiço de pele marrom vermelha. Essas diferenças são pontos de partida para alcançar uma verdade que não é a minha verdade pessoal, autobiográfica.

COMO FOI TRABALHAR ESSE CONTRASTE ENTRE DOIS IRMÃOS COM FENÓTIPOS DE PELE DIFERENTES?

Percebi que, para chegar a uma verdade dos irmãos, eu teria que estabelecer certos limites. Eu, autor, não tenho a compreensão do que é a ter a pele retinta, mesmo eu me dizendo negro. Por isso, esse foi um romance muito importante para mim. Na construção da história, em um confronto pessoal com a minha biografia, percebi que minha compreensão da dimensão do preconceito racial no Brasil não era tão sólida quanto imaginava. Ao me jogar em uma pesquisa de cinco anos, percebi que meu conhecimento do sofrimento infligido pela opressão racial não era tão amplo quanto achava. É um processo de agressão profundo, que mesmo um negro mestiço como eu tem dificuldade em dimensionar.

O DEBATE PÚBLICO SOBRE O TEMA NÃO FOI CAPAZ DE TRATAR DA DIMENSÃO DESSE PRECONCEITO?

Publicamente, você tem cerca de 10 anos dessa discussão. É muito pouco tempo. Isso começa mais solidamente com a questão das cotas (raciais). Essa afirmação que se consolida como mais força nos governos Lula e Dilma.

AS COTAS SEMPRE GERARAM DISCUSSÃO. POR QUÊ?

Não tenho dúvida de que a maioria esmagadora do Judiciário, que é majoritariamente branco, é contra as cotas. Tenho amigos juízes. Eu me informo, converso. Tenho uma impressão de que o Judiciário não compreende a questão como deveria compreender. Tem uma lei que afirma as cotas, então não há o que discutir nesse sentido. Mas a convicção íntima da maioria dos juízes é de questionar as cotas. E o Parlamento atual é refratário às cotas. Não tenho dúvida, após escrever o livro, de que não há a devida compreensão desse processo de afirmação positiva, necessário em um país escravagista como o nosso.

O PRECONCEITO NÃO É SÓ DE COR, CORRETO?

Meus pais foram os primeiros que estudaram de verdade nas famílias deles. Meu pai foi o primeiro que se formou em uma graduação, em Direito, e acho que sou o primeiro da família a entrar numa pós-graduação. Me formei em Direito e entrei no mestrado da UFRGS em 1995. A questão financeira, que sempre fez da minha família uma família de classe média, é um elemento importante para gerar autonomia. Mas a questão de ter uma graduação e uma pós-graduação numa instituição respeitável como é a UFRGS torna você cada vez mais distante de uma identificação social aos olhos da sociedade sob o rótulo de ser uma pessoa negra. Ou seja, há um caldo de elementos fortíssimo que influencia esse tipo de avaliação. Como já disse Roberto DaMatta, esse tipo de variação de grau, de se tornar cada vez mais branco, vai depender da sua condição financeira, da sua instrução.

RECENTEMENTE, UMA AÇÃO UNIVERSITÁRIA COLORIU UM RETRATO DE MACHADO DE ASSIS, DEVOLVENDO SUA NEGRITUDE.

Machado de Assis tinha a pele retinta. Isso começou a ser discutido hoje graças a um processo que gerou um volume importante de pessoas negras, principalmente do sexo feminino, nas graduações e pós-graduações de qualidade. Isso é visivelmente uma opção política recente, do governo brasileiro deste século, de possibilitar esse acesso. Você vê nitidamente um salto na produção teórica, que propicia elementos inéditos na cultura brasileira para uma pessoa negra reavaliar a sua condição de subalterno. 

Isso é inédito na nossa história. E só está sendo conquistado não porque o mercado quer ou porque o tempo está passando. Isso está sendo catalisado, acelerado, por uma produção teórica com reflexos nítidos na produção de audiovisuais da web. Há uma geração nova que se apropriou dessas leituras, dessa teorização crítica recente, e projetou isso para um espaço mais popular, que é um espaço disputado no YouTube, por exemplo.

A INTERNET TEM AJUDADO A DISSEMINAR A REFLEXÃO TEÓRICA SOBRE A NEGRITUDE?

Sim. Ampliou muito a consciência do que é ser negro no Brasil. Isso não existia até o final dos anos 1990. É uma novidade deste século. Pela primeira vez, você vê negros dizendo "Não aceitarei ser tratado como subalterno, como sub-humano". Sub-humano é um termo usado pelo Achille Mbembe, o grande filósofo sul-africano. Esse rótulo colou nas pessoas de pele preta e não saiu mais. É um movimento cultural e ideológico muito forte, do mercantilismo, que trouxe pessoas para tratá-las como ferramenta nas plantações de cana, no tempo colonial, sob uma metodologia extremamente cruel, que aniquilou quase por completo a identidade dessas pessoas. Por isso, quando uma pessoa branca fala que veio do Vêneto ou de outro lugar qualquer, eu fico olhando e penso: "Eu não sei de onde minha família veio".

ANIQUILAR A IDENTIDADE TAMBÉM FAZ PARTE DE UM PROCESSO DE SUBJUGAÇÃO.

Sem dúvida. Por que os indígenas, que são submetidos a um holocausto constante no nosso país desde 1500, têm na sua linguagem, na sua postura identitária, na sua consciência e no seu orgulho uma solidez que os negros não têm? Porque eles não foram submetidos a esse processo de aniquilamento da identidade. Eles estão na terra onde sempre estiveram. Uma coisa que constatei muito fortemente em Porto Alegre, convivendo com negros africanos que vêm estudar no Brasil, é que eles têm uma solidez sobre quem eles são, sobre sua ancestralidade, uma autoestima. Isso é muito diferente com a maioria esmagadora dos negros brasileiros. A comunidade negra está em um bastante árduo processo de reestruturação da identidade, da ancestralidade, que lhe foi suprimida.

É VOCÊ ABORDOU A QUESTÃO INDÍGENA NO ROMANCE HABITANTE IRREAL. QUE OUTRAS DIFERENÇAS VÊ ENTRE OS ÍNDIOS E OS NEGROS NO BRASIL E O TRATAMENTO DISPENSADO A ELES?

Os indígenas foram condenados a uma invisibilidade a que a comunidade negra não foi. Hoje são rotulados, por muitos que detêm poder de decisão, como seres inferiores aos animais, como estorvo. A Constituição de 1988 foi extremamente importante no processo de dignificação dos povos indígenas, parou de tratá-los com silvícolas, no sentido de produto selvagem, mas foi só um começo porque a conquista da dignidade demanda ações concretas do governo e da sociedade. No geral, o discurso sereno e racional dos indígenas é abafado, diferentemente do que acontece com o movimento negro. As lideranças indígenas, boa parte delas, se declaram em guerra contra os não indígenas, os invasores, os destruidores. Com a comunidade negra é diferente, pois, sem afastar as outras demandas todas, se trata de um processo de resgate daquilo que, na sua integralidade, se perdeu para sempre.

COMO A ATUAL GUINADA CONSERVADORA NA POLÍTICA NACIONAL SE RELACIONA COM A REAFIRMAÇÃO DE IDENTIDADE NEGRA?

É uma reação. Todo movimento de expansão gera uma reação. Pode ser uma reação positiva, de acolhida, de compreensão, mas também pode ser uma reação de ataque, porque as pessoas não querem perder espaço. Não tenho a menor dúvida de que a eleição de um candidato racista representa uma reação de ataque.

VOCÊ DEFINE O PRESIDENTE BOLSONARO COMO RACISTA? POR QUÊ?

Porque nega a existência do racismo. Negar a existência do racismo é uma postura extremamente clara de agressão e de deixar aparente a intenção de manter a desigualdade que há entre brancos e pretos. Quem sustenta esse discurso diz que não há racismo, que somos todos amigos. Sim, somos todos amigos, mas continua uma realidade em que, na maioria esmagadora das cidades, eu entro em um restaurante e não vejo pessoas negras. Eu entro em um espaço público e vejo pouquíssimas pessoas negras. Entro em uma universidade e não vejo pessoas negras. Às vezes, estrangeiros percebem com mais clareza esse racismo estrutural que está incorporado em nós.

É UMA POSTURA QUE NEGA A REALIDADE?

Quando alguém diz que assim está bem, está se posicionando pela da manutenção de uma injustiça. (Bolsonaro) Não se posicionou contra os bancos, que acha normal os bancos e o sistema financeiro oprimirem a população brasileira, escravizando brancos, pardos e pretos. Foi também um candidato que negou que haja fome no Brasil (Nota da Redação: Bolsonaro já era presidente, em julho, quando disse: "Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não se come bem, aí eu concordo. Agora, passar fome, não. Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com físico esquelético".) Pior do que dizer que a Terra é plana é dizer que não há fome no nosso país.

FOI UM PRESIDENTE ELEITO PELO VOTO. COMO CONVENCEU TANTOS ELEITORES?

Acho que há uma indignação irracional, mas justificável, dentro do plano íntimo de cada pessoa, de revolta contra a institucionalidade política, que é reconhecidamente mais articulada em benefício dos políticos do que da sociedade. A diretriz maior é de favorecimento de quem detém o capital financeiro, de quem manda no Brasil. É sempre difícil de localizar, mas com certeza não fogem desse grupo de mandantes os donos de banco. Falta debate racional. É uma opção emocional, virulenta, impensada, de reação a uma coisa que estava posta. É surpreendente como as pessoas são tomadas em um casualidade tão poderosa, embora passageira, que dão suporte a um discurso revolucionário de extrema-direita. 

O grande erro da esquerda quando esteve no poder foi não realizar mudanças claras. Deu um pouco de aconchego aos mais miseráveis e pobres, deu muitas coisas aos super-ricos e descartou a atenção que a classe média merecia. Aí você vê um cara que fala contra o sistema, um cara irascível, nitidamente despreparado, que não sabe nem falar, ganhar essa dimensão, com apoio de uma elite que, ao ver que seus candidatos não repercutiriam, apostou nesse aventureiro. Um somatório de fatores fez a sociedade apoiar esse candidato. Pessoas incomodadas com a própria incapacidade de encontrar solução para suas vidas admitem entrar nessa onda e se tornam agentes dessa onda sectária, que visivelmente vai colocar o Brasil em uma guerra civil.

VOCÊ ACHA QUE UM CONFLITO ARMADO É POSSÍVEL?

É um discurso que aponta na direção de uma ruptura social e que só pode acabar em uma guerra civil. Quando você faz propaganda de ideias inconstitucionais, você tem evidentemente uma figura irresponsável, sem compromisso algum com a sociedade, apenas com sua fortuna pessoal e de sua família.

MAS HÁ UM DISCURSO DE DEFESA DA PÁTRIA E DA SOBERANIA NO PAÍS.

Sim, porém compromete severamente a soberania do país. Porque se coloca interna e externamente como vassalo não de um país, mas de um governante, que é o Donald Trump, de maneira constrangedora. É um discurso de salvar o Brasil nos aliando incondicionalmente aos EUA. Quem conhece um pouco de história sabe onde acabam os que se dobram em posição de subserviência aos EUA. Todos quebram a cara. É um país imperialista. Não está brincando.

QUAL É O PAPEL DA SUA GERAÇÃO NESSE PROCESSO?

Mantenho o discurso do meu livro Habitante Irreal. A responsabilidade do caos do Brasil hoje se deve fundamentalmente ao fato de que a minha geração, que está por volta dos 50 para os 60 anos, errou. Não soube construir um Estado democrático de direito. Errou em não querer pagar o preço alto do caminho mais longo, o do diálogo. Tenho conhecidos que foram ministros do STJ, chefe da Polícia Federal, chefe da Procuradoria-Geral da Fazenda... Alguns são petistas. Mas também tenho conhecidos nesse governo atual, que estão assustadoramente aplaudindo, na sua condição funcional, os rumos políticos do país. Se você tomar como exemplo o chanceler (Ernesto Araújo), ele é gaúcho e é da minha geração. É uma geração que falhou, que chegou ao poder e não conseguiu enfrentar a dificuldade que um ambiente democrático impõe. Faltou diálogo, faltou transparência. Hoje, você tem uma luta pela transparência. Parece que estamos ainda na década de 1970.

NO INÍCIO DO ANO, VOCÊ LANÇOU O LIVRO DE POEMAS GAROPABA MONSTRO TUBARÃO. POR QUE POESIA NESSA HORA?

A poesia segue sendo a arma mais odiada pelos neofascistas e totalitaristas. Na poesia, há linguagem e construção de imagens que são atentatórias a essa opção de subjugar e padronizar a sociedade, de fechar espaço para questionamento, para o sonho, o afeto, a diversidade. Esse livro dialoga como o período em que vivi em Santa Catarina, de 2016 a 2018. Olhando de perto, é um Estado conservador e de extrema-direita.

SOBRE A RESIDÊNCIA LITERÁRIA NA CHINA, QUAIS SÃO SEUS PLANOS PARA OS DOIS MESES EM XANGAI?

Além de palestras e encontros com editores e escritores, vou usar essa estadia para pesquisar e escrever parte do romance Rondonópolis, que fala do agrobusiness gaúcho que tomou conta do Mato Grosso. É para essa faixa oeste do Brasil que vou me voltar nos próximos dois anos. É uma colônia. Um país que o Brasil do Sul, do Sudeste e do Litoral decidiu colonizar, mais do que a própria Amazônia. Você percebe claramente que é uma invasão colonizadora, com um ótica colonial. Traz o progresso, mas é uma progresso de exploração. É claro que há exceções, mas geralmente é uma exploração em diferentes níveis, principalmente de eliminação das comunidades originárias, de subjugação dos indígenas. 

ALEXANDRE LUCCHESE


21 DE SETEMBRO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

IDEOLOGIA DE GÊNERO

Embora disfarcem, o que esses moralistas de botequim defendem é a repressão do comportamento homossexual . Mal começamos a entender a diversidade sexual humana, vozes medievais emergiram das catacumbas para inventar a tal "ideologia de gênero".

Como nunca vi esse termo mencionado em artigos científicos nem nos livros de psicologia ou de qualquer ramo da biologia, fico confuso.

Suponho que se refiram a algum conjunto de ideias reunidas por gente imoral, para convencer crianças e adolescentes a adotar comportamentos homossexuais. Será que devo a heterossexualidade à inexistência dessa malfadada ideologia, nos meus tempos escolares? Caso existisse, eu estaria casado com homem?

Embora disfarcem, o que esses moralistas de botequim defendem é a repressão do comportamento homossexual que, sei lá por que tormentos psicológicos, lhes causa tamanho horror.

Para contextualizar a coluna de hoje, leitor, não falarei de aspectos comportamentais ou culturais, resumirei apenas alguns fenômenos biológicos ligados à sexualidade, uma vez que a diferenciação sexual é fenômeno de altíssima complexidade, em que estão envolvidos fatores hormonais, genéticos e celulares.

Até a quinta semana de gestação, o embrião é assexuado. Só a partir da sexta semana é que as gônadas começam a se diferenciar. Se houver desenvolvimento de ovários, eles secretarão predominantemente estrogênios; se forem testículos, a produção predominante será de testosterona. Digo predominante, porque pelo resto da vida homens também produzirão estrogênios e, mulheres, testosterona, embora em pequenas quantidades.

Variações nesse delicado equilíbrio hormonal modificam os caracteres sexuais secundários, a anatomia dos genitais e o comportamento sexual.

Por outro lado, o conceito de que o sexo seria definido pela presença ou ausência do cromossomo Y é uma simplificação. Muitas vezes, os cromossomos sexuais não se distribuem igualmente entre as células do embrião. Da desigualdade, resultam homens com células XX em alguns órgãos e mulheres com cromossomos XY.

Talvez você não saiba, caríssima leitora, que fetos masculinos liberam células-tronco XY que cruzarão a placenta e se alojarão até no cérebro de suas mães, para sempre.

Quando a genética é levada em conta, as fronteiras sexuais ficam ainda mais nebulosas. Há dezenas de genes envolvidos na anatomia e na fisiologia sexual. A multiplicidade de interações entre os dominantes e os recessivos torna mais complexa a diversidade sexual existente entre homens, bem como entre mulheres, e faz surgir áreas de intersecção que tornam problemático para algumas pessoas definir sua sexualidade dentro dos limites impostos pela ordem social.

Como deveríamos então definir o sexo de cada indivíduo? Pelo binário dos cromossomos XX e XY? Pelos genes, pelos hormônios ou pela anatomia genital? O que fazer quando essas características se contrapõem?

Segundo Eric Vilain, diretor do Centro de Biologia Baseada em Gênero, na Universidade da Califórnia: "Na falta de parâmetros biológicos, se você quiser saber o sexo de uma pessoa, o melhor é perguntar para ela".

Esses conhecimentos passam ao largo de grande parte da população. Para muitos, a homossexualidade é uma opção de gente sem vergonha. Repetem esse absurdo porque são ignorantes, sem a menor noção das raízes biológicas e comportamentais da sexualidade.

O argumento mais elaborado que conseguem usar como justificativa é o de que a homossexualidade não é fenômeno natural. Outra estupidez: relações homossexuais têm sido documentadas pelos etologistas em todas as espécies de mamíferos, e até nas aves, únicos dinossauros que sobreviveram à catástrofe de 62 milhões de anos atrás.

Assim como a heterossexualidade, a homossexualidade se impõe. Não é nem pode ser questão de escolha. É possível controlar o comportamento, mas o desejo sexual é água morro abaixo.

Nos dias assustadores em que vivemos, em que os boçais se orgulham das idiotices que vomitam com ares de sabedoria, vários demagogos se apropriaram do preconceito social, para criar a tal "ideologia de gênero", com o pretexto de defender a integridade da família brasileira. Partem do princípio que assim ganharão mais votos, uma vez que os iletrados são maioria num país de baixa escolaridade, infelizmente.

Mandar recolher livros e disputar a primazia do combate a essa ideologia cretina e sem sentido é apenas uma demonstração de arrogância preconceituosa tão a gosto dos pobres de espírito.

DRAUZIO VARELLA


21 DE SETEMBRO DE 2019
BEM-ESTAR

O NEGÓCIO DO BARÃO

Um dia na praia apareceu um cachorro tão magro, tímido e abandonado, que me apaixonei imediatamente. Era cor de areia e foi me seguindo com um olhar misto de esperança e gratidão, pelo carinho que fiz nele, e isso bastou para que me adotasse.

Levei para casa e, depois de um tempo, súper bem cuidado e alimentado, parecia outro. Revelou sua personalidade bem-humorada e uma grande facilidade para dominar as circunstâncias e se posicionar como dono do pedaço. Minha caseira o chamou de Barão e parece que ele sentiu um certo orgulho do nome.

Sua situação era de liberdade absoluta, e o Barão fazia o que queria, ia pra praia e voltava quando bem entendia. E ficou lindo, com o pelo brilhante, mas nunca perdeu aquele olhar de súplica capaz de comover qualquer um.

E ele sabia disso. O que eu não sabia é que usava justamente isso para seus negócios paralelos.

Barão saía de casa todos os dias ao meio-dia e só voltava umas duas horinhas mais tarde.

Ficamos curiosos de saber para onde ia, que encontros furtivos ele tinha, que vida secreta mantinha.

Até que um dia descobrimos seu plano. Ele calculava a hora do aperitivo numa elegante pousada próxima e ia se mimetizando na areia até escolher as mesas de onde sacava petiscos saborosos de gente de bom coração. Combinação perfeita pra deitar aos pés, com seu olhar pidão e receber delícias muito superiores à sua ração. Se arrastava pelas mesinhas de praia onde os hóspedes, felizes com suas caipirinhas, curtiam repartir com ele pedacinhos de filé, peixe, polvo, lulas, camarões.

Um dia foi seguido até em casa por umas crianças que, movidas de tanta pena, queriam dividir com ele seu prato de bacalhau. Ficaram surpresas de saber que ele tinha casa e dono. E ele olhou para gente com aquele ar constrangido por ter sido descoberto. Não que ele tivesse muita vergonha na cara, mas tinha a manha de ter sobrevivido de biscate a vida inteira e agora, que estava lindo e limpo, conseguia as melhores ofertas.

Resolvi botar uma coleira nele para evitar essa confusão, mas dois dias depois ele conseguiu arrancar. Parecia dizer que aquilo atrapalhava seu business, que parecer faminto, pobre e abandonado era fundamental pro negócio.

E o Barão prosperava. Já que eu não conseguia mudar seus hábitos, fizemos um acordo tácito: eu não me metia nos seus truques estratégicos, o deixava sem coleira, se passava por ele na pousada, na hora dos aperitivos, fazia que nem o conhecia e, depois, ele voltava pra casa na maior gratidão, me enchia de carinho, feliz de ser tão compreendido.

De certa maneira, essa seria uma boa mistura de amor e liberdade. Não privar alguém que você ama de alguma coisa que ele gosta muito, em nome de um sentimento de posse. Ser feliz de ver o outro feliz.

Barão viveu com a gente sua vida inteira, junto com os cães e gatos da casa, todos resgatados. De sua aparente timidez inicial se tornou uma espécie de mentor mais velho e respeitado por todos. Foi um dos cachorros mais adoráveis que tive e só parou seu rentável negócio quando engordou e já não convencia mais ninguém.

Bruna Lombardi escreve a cada 15 dias neste espaço. Na próxima semana, leia a coluna de Monja Coen - BRUNA LOMBARDI


21 DE SETEMBRO DE 2019
JJ CAMARGO

QUANDO NÃO HÁ JUSTIÇA

Raras coisas causam mais insegurança do que a percepção de que nada é bem como parece e que as verdades deixaram de ser absolutas
As verdades fundamentais devem mesmo ser recontadas para que não sejam descartadas na lata do lixo do esquecimento. Assim fazem as religiões, repetindo as mesmas orações ao longo dos séculos.

A lição oferecida por Bismark a Luiz Sáenz Peña, durante sua visita à Alemanha no final do século 19, figura nessa galeria de ensinamentos inesquecíveis. Como presidente eleito da Argentina, durante um curto período (outubro de 1882 a janeiro de 1885), e enfrentando grave crise econômica, ele viajou à Europa com o propósito de apresentar sua nação como o maior produtor de grãos do mundo, àquela época.

De volta para casa, se confessou decepcionado com a recepção do Chanceler de Ferro que, numa audiência relâmpago, lhe fizera uma única pergunta:

- Como é a justiça no seu país? Mais de um século depois, nenhuma pergunta define melhor e de maneira mais sintética como uma nação merece ser vista aos olhos do mundo. Se não há justiça, nada funciona de maneira confiável, além de que, como já referiu alguém, na falta dela, é muito perigoso ter-se razão.

Raras coisas causam mais insegurança do que a percepção de que nada é bem como parece e que as verdades deixaram de ser absolutas, porque estarão sempre pendentes de interpretações, e aparentemente condicionadas a fatores tão subjetivos quanto o humor de vossa excelência, o juiz.

O maior dos desencantos que possam assolar um país, invariavelmente, é decorrente da frustração de não ter em quem confiar, e na ausência de alternativa, só lhe resta rezar antes de dormir com ao menos um olho aberto.

A comparação com países mais desenvolvidos só serve para aumentar o desalento, ao se constatar como eles souberam evitar a barafunda de leis e decretos que possibilitam o absurdo de situações opostas terem ambas argumentos inteligíveis, defendendo-as.

A grande mídia, presumivelmente preocupada com o andar cambaleante da nossa estabilidade institucional, tem omitido em rede aberta os relatos fartamente documentados nas redes sociais, de multidões ocupando a principal avenida da maior cidade do país, em cerimônias grotescas de espancamento de bonecos representativos dos ilustres representantes da Suprema Corte.

E tudo ao som do Hino Nacional, que aliás nunca foi tão cantado como agora, a denunciar a emergência de um nacionalismo febril, com ares de revanche aos que não se conformam com a mudança.

Ou essa tendência da grande mídia de mostrar apenas um dos lados dos protestos tem interesses menos nobres?

JJ CAMARGO

21 DE SETEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Eu odiava fazer visita

A Rita Lobo é contra massa com salsicha. Na verdade, ela é contra salsichas. Pelo menos foi o que insinuou nesta sexta, quando a entrevistamos no Timeline.

- Nada de alimentos ultraprocessados! - bradou.

Será que todas as salsichas são ultraprocessadas? A minha avó fazia salsichas com as próprias mãos, e acho que não as ultraprocessava. Como será que se ultraprocessa uma salsicha, afinal?

Na Alemanha, a terra da salsicha, existem 1,5 mil tipos delas e duvido que todas sejam ultraprocessadas. Não, os alemães não fariam isso com suas salsichas?

Já contei a respeito do meu plano com as salsichas alemãs? Tem a ver com as ilhas Maldivas. Porque há 1,5 mil ilhas Maldivas e 1,5 mil salsichas alemãs. Meu projeto é conhecer uma ilha Maldiva por dia e, em cada dia, comer um tipo de salsicha alemã. Pode ser, inclusive, que em um desses dias eu aproveite a salsicha para temperar o molho da massa, o que causará escândalo em Rita Lobo, mas agradará o meu amigo Admar Barreto, aquele amante das massas com salsicha.

Quem me apresentou a Rita Lobo foi a Marcinha. Na verdade, apresentou-me o programa de culinária dela. Gostei de ver, porque ela cozinha dançando. Deve ser muito boa a comida de quem cozinha dançando.

Comida tem que ser preparada assim, com alegria e paciência. Melhor ainda se for com amor por quem vai comer, porque o contrário é uma tragédia.

Lembro de, uma vez, quando eu era pequeno, que a minha mãe me levou para "fazer visita" a uma amiga ou parente dela, sei lá. As mães submetiam os filhos a essa provação, no passado. Elas avisavam: "Hoje vamos fazer visita". Era horrível. Era sempre uma chatice. Eu queria jogar bola com meus amigos, puxa vida, e não ficar ouvindo aquelas conversas maçantes de adultos. Hoje eu acho que as pessoas não fazem mais visita, elas conversam pelo Whats.

Daquela vez, nós fomos fazer visita na hora do almoço. Sentamos à mesa e a tal amiga ou parente da minha mãe botou bem na minha frente uma enorme travessa de massa com salsicha provavelmente ultraprocessada. Eu estava com fome e me servi de uma porção generosa, até porque a massa parecia boa. Antes, porém, de eu dar a primeira garfada, a cozinheira veio lá de dentro. Era a mãe ou tia ou avó da dona da casa. Ela se instalou em uma cadeira sem sorrir nem cumprimentar ninguém e disse alguma coisa. Quando ouvi sua voz, me arrepiei. Olhei para ela: era uma mulher sinistra.

Vou dizer para você que acredito no Método Lombroso: a aparência das pessoas diz um pouco (ou até muito) do que elas são. A personalidade de um ser humano vai desenhando o seu rosto ao longo dos anos e vai mostrando quem ele é. Quando você tem uma sensação estranha ao ver alguém, não aconteceu nada sobrenatural, nada transcendental: foi a sua inteligência que lhe mandou um aviso. Esse "instinto" nada mais é do que o som do alarme disparado por sua própria experiência dizendo que, antes, você viu algo semelhante. Não descarte essa advertência. Preste atenção. Investigue o seu sentimento. E você descobrirá que um gesto breve ou a entonação de uma frase fizeram uma revelação e talvez estejam até gritando: "Cuidado!"

Foram essas sirenes que soaram quando vi a mulher que preparou aquela massa. "Ela é má", pensei, enquanto levava uma garfada à boca. Assim que dei a primeira dentada, a impressão se confirmou: a massa tinha sabor de ressentimento azedo, de mágoa antiga, de ódio corrosivo. Olhei para o meu prato cheio daquela substância repulsiva e me perguntei, com desespero: "E agora? O que é que vou fazer com isso?" Foi o pior almoço da minha vida, logo eu, que, a despeito dos preconceitos de Rita Lobo, gosto de massa com salsicha.

Não foi o ultraprocessamento que me trouxe aquele dissabor gastronômico de infância. Foi o sentimento com que a cozinheira temperou a comida que preparou. Tenha precauções, portanto: escolha pratos de cozinheiras que pareçam boas pessoas. E que, se possível, dancem enquanto fazem o molho da massa.

DAVID COIMBRA


21 DE SETEMBRO DE 2019
MÁRIO CORSO

Amparando os mais velhos

Philip Roth escreveu no livro Homem Comum: "A velhice não é uma batalha, a velhice é um massacre (?) acontece quando você está mais fraco e mais impossibilitado de enfrentar a luta como antes". Os velhos lúcidos odeiam a expressão "melhor idade" por ser um eufemismo vazio. Melhor idade para tomar remédios, brincam.

Existe dignidade no envelhecimento, podemos levar uma boa vida, mas, que é um massacre, é um massacre. Isso não impede de ser a melhor fase para alguns, quando uma serenidade invade o espírito e fica-se em paz com o destino. Mas a verdade é que dia a dia perdemos nossas capacidades, e esse é o golpe a que Roth refere.

Muitas vezes, o cérebro está bem, mas o corpo não responde como antes. Há um acervo de dores de ontem e de hoje que se alternam em incomodar e limitar. Existe até a piada: se você acordar um dia e não sentir dor nenhuma, alerta, pode ser que você esteja morto!

Mas nem sempre o cérebro está melhor do que a carroceria. O envelhecimento pode ser desparelho, com alguns órgãos mais velhos que outros, e quando a cabeça colapsa é o pior dos danos. O fato é que na velhice precisamos de ajuda, e aqui começa o drama: muitos não aceitam ser ajudados.

Danos cerebrais senis produzem perda cognitiva ou desequilíbrio emocional. Esse adoecimento liquida com a autocrítica necessária para reconhecer a impotência e tolerar cuidados. Sim, trata-se de tolerar. Mesmo que a família acolha a fragilidade do seu idoso com respeito, nem por isso ele gostará de voltar à dependência infantil. É de perda de poder que se trata. Pior, da inversão de poder: tornam-se filhos dos filhos, e pode ocorrer que estes aproveitem para serem autoritários, tomando gosto pela virada do jogo.

Os que compreendem e aceitam ajuda são uma minoria. Na maioria, não fica claro se negam a limitação para negar a idade, ou negam a idade para negar a limitação. Os cuidadores trabalham dobrado, além de ajudar, terão que convencer seus velhos da necessidade das providências que tomam. Feito uma canoa em que o mais necessitado da viagem rema ao contrário.

Eu os entendo, é duro precisar dos outros. É um inferno perder a autonomia. Essa teimosia guarda um orgulho de quem não dava satisfação para ninguém e era forte para remar. A negação é por seguir tentando serem úteis. Não querem a aposentadoria das responsabilidades. Não querem abrir mão de ser o pilar, que já não são. Para esses, aceitar amparo é passar recibo da impotência.

Na contramão dessa dignidade reivindicada, temos os velhos que se tornam bebês. Num narcisismo tardio, só olham para si. Dos outros, cobram os cuidados do passado e vão aprofundando com gozo suas incapacidades.

Resta lembrar ao leitor que estiver nas lides com seus longevos pais ou parentes: ali adiante seremos nós. Será que vamos de bom grado aceitar ajuda?

MÁRIO CORSO

21 DE SETEMBRO DE 2019
FLÁVIO TAVARES

SILÊNCIO DO MUNDO

Ouvir e escutar a um sábio não nos faz igual a ele, mas nos desperta para a sabedoria que jogamos ao lixo todos os dias, como se desperdício fosse. Senti-me assim, integrado ao entendimento do mundo, ao ouvir Ailton Krenak, dias atrás, no Theatro São Pedro, no Porto Alegre em Cena.

Ao final, o aplauso de pé e unânime do público soou como agradecimento por tudo o que, ao longo de 95 minutos, ele ensinou sobre "o silêncio do mundo". Krenak não é apenas um líder indígena cujo nome revela a própria etnia, mas um pensador universal, um filósofo que parte do mundo concreto e nos faz ver muito além do visível.

Para ele, a abstração não é mero jogo de palavras, mas - sim - entender que "humanos" e "não humanos" são uma coisa só, que a vida na Terra é unidade indivisível. Ou que a rocha da montanha e a água dos rios têm vida como uma planta ou como cada um de nós. Assim, foi fácil aprender que, quando parte da vida é exterminada (seja bicho, rio, rocha, oceano ou planta), é também o extermínio de todos nós.

Após a apresentação, ao abraçá-lo, indaguei há quanto tempo ele pensava assim, nessa unidade da vida: "Faz alguns séculos. Desde que Dom João VI nos perseguiu para se apoderar da riqueza do nosso solo", respondeu sem ironia, para mostrar que também a História (com H maiúsculo) é contínua.

No Brasil Colônia, a cobiça pelo ouro expulsou os krenak do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, para Mato Grosso e Goiás. Em persistente luta, eles voltaram à terra natal. Mas em 2015, o rompimento das barragens das minas de Mariana devastou as terras e as águas do Rio Doce. "Hoje nos refugiamos em nossa própria casa", disse-me Ailton Krenak.

Antes, na palestra, ele havia frisado que, na cosmogonia indígena, o mito orienta tanto quanto a História, ou até mais.

A sociedade de consumo, porém, se esquece disto e, desprezando a natureza e a vida, transforma tudo em "recursos". Um rio - que é vida - vira "só recurso" a explorar e degradar, lembrou Krenak, que se mostra preocupado com a futura devastação do Jacuí e do Guaíba se for implantada a mina de carvão a céu aberto, a 10 quilômetros de Porto Alegre.

No recente livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Krenak lembra que a humanidade se distancia do seu verdadeiro lugar "enquanto corporações espertalhonas tomam conta da Terra" e nos levam a viver em ambientes onde tudo é artificial, do ar à comida.

- Nosso tempo é especialista em criar ausências, dede o sentido de viver em sociedade à própria experiência de vida. É importante viver a experiência de circular pelo mundo, não como metáfora mas no sentido de contar uns com os outros - frisa este pensador que, descalço no palco do São Pedro, fez eco ao advertir sobre o silêncio que nos leva ao fim do mundo.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

21 DE SETEMBRO DE 2019
OPINIÃO DA RBS

RECUO PRUDENTE

Agiu com sensatez o governo Eduardo Leite ao cancelar a operação de venda de parte das ações ordinárias do Banrisul. É notória a situação de emergência financeira do Estado, com falta de recursos para pagar salários e outros compromissos de curto prazo, mas seria equivocado se desfazer de uma parcela importante dos papéis do banco por valores muito abaixo do que seria justo apenas para tapar os buracos mais urgentes cavados pelo desencontro crônico entre receitas e despesas ordinárias do Piratini.

O Banrisul é o mais valioso patrimônio estatal do Rio Grande do Sul. Vender as ações por um preço considerado satisfatório já era uma estratégia duvidosa, por ser apenas um desafogo de fôlego curto. Levar adiante a oferta pelas condições propostas pelos investidores interessados seria um erro grave. Foi prudente, portanto, o recuo. Afinal, não há ingênuos no mercado financeiro. Sabedores da situação desesperadora do caixa do Estado, seria natural uma tentativa para tirar vantagem. 

E era um dever de Eduardo Leite dar um passo para trás. Desajuizado e lesivo seria insistir na operação apenas para cumprir a promessa de campanha de colocar os vencimentos do funcionalismo em dia até o final de 2019, mesmo que, oficialmente, os recursos, inicialmente projetados em R$ 2,2 bilhões, seriam destinados a pagar passivo de custeio. Não seria o ideal, de qualquer forma.

Ao mesmo tempo, reabriu-se a discussão sobre a possibilidade de privatizar o Banrisul, um tema sensível pelas resistências políticas e pelo próprio apreço dos gaúchos pela marca. Pela lógica, seria uma forma de valorizar ainda mais os papéis do banco, uma vez que, nestes casos, os investidores aceitam pagar o chamado prêmio pelo direito de controlar o negócio. Ser sócio minoritário de um Estado em apuros, por outro lado, normalmente não é algo percebido como uma oportunidade dos sonhos.

Sem querer comprometer-se pessoalmente com a ideia, o que seria contrariar um discurso de campanha, Leite passou a responsabilidade de analisar o tema para a Assembleia, onde há uma porta aberta. Tramita na casa uma proposta de emenda à Constituição para privatizar sem a necessidade de consulta à população estatais como o Banrisul, a Corsan e a Procergs. 

Em uma democracia, não há mal em se fazer qualquer debate, pesando prós e contras. Mas, como admite o governador, alienar o Banrisul não será a solução para os problemas medulares do Estado. É preciso consertar a estrutura do gasto público para que caiba nas receitas. Caso contrário, o vertedouro do dinheiro permanecerá aberto e nenhuma venda de patrimônio será suficiente.

OPINIÃO DA RBS

21 DE SETEMBRO DE 2019
RODRIGO CONSTANTINO

Máquina do tempo

O que o leitor acharia de viver num mundo onde todos podem usar uma máquina do tempo para regressar ao passado, não para mudá-lo, e sim para bisbilhotar tudo aquilo que os outros fizeram e usar essa informação contra eles no presente, sem qualquer contextualização? Parece uma distopia de Black Mirror, não? Só que esse é o nosso mundo moderno.

Desde o advento das redes sociais, deixamos rastros de cada fase de nossas vidas. As pessoas esquecem que jovens são, bem, um tanto idiotas em geral. O filósofo Bentham idealizou uma penitenciária que permite a um único vigilante observar todos os prisioneiros, sem que estes possam saber se estão ou não sendo observados. Agora imagine algo similar, mas com todos vasculhando todos o tempo todo, a vida toda. Eis o que temos.

E pior: sob a ditadura do politicamente correto, esse passado “condenável” tem sido usado para humilhações ou manipulações políticas no presente. O sujeito fez uma piada “homofóbica” décadas atrás? Não pode mais apresentar o Oscar. O outro teve exposta alguma brincadeira adolescente num grupo privado, considerada racista hoje? Então deve se curvar diante da patrulha ou será massacrado. 

O caso mais recente foi o do premier canadense Justin Trudeau, que teve exposta uma imagem de décadas atrás, fantasiado de árabe numa festa sobre Aladim, com o rosto pintado de marrom. Racismo!, gritou a patota. E Trudeau, um “progressista”, teve de pedir desculpas, admitindo que hoje considera mesmo isso racismo, mas na época não considerava.

Não gosto da política esquerdista de Trudeau, mas acho errado tal exploração política em época de campanha. Temos que nos perguntar em que tipo de sociedade desejamos viver: se numa em que, pela guerra política, vale tudo,  ou se em outra, onde a decência deve estar acima de tais disputas.

Em seu clássico A Marcha da Insensatez, a historiadora Barbara Tuchman lembra como é injusto julgar homens do passado pelas ideias do presente. Exato. É como tentar reescrever a história, condenando os “pais fundadores” por terem tido escravos numa época em que isso era considerado normal. Pessoas – e costumes – mudam. A vida em sociedade será insuportável se o passado jamais for esquecido ou contextualizado.

RODRIGO CONSTANTINO

sábado, 14 de setembro de 2019



14 DE SETEMBRO DE 2019
LEANDRO KARNAL

Setembro amarelo

Precisamos tocar em um tema-tabu e extremamente doloroso. Trata-se de um fato que ninguém gosta nem de pronunciar e a imprensa evita desenvolver por medo de estimular. É um choque desigual: silêncio da grande imprensa e uma internet fervendo de exemplos, depoimentos, perfis de suicidas e até formas de morte mais eficazes. Nas famílias nas quais ocorre, reina velada omissão. O sentimento de culpa de amigos e familiares é enorme. 

Há um momento em que evitar o tema pode estar se tornando uma cortina pesada que oculta o que provavelmente se desenvolva nas coxias. Precisamos falar de suicídio. Setembro é declarado como o mês amarelo, assim seria o momento de pensar nas advertências possíveis para tema tão importante. Dez de setembro é o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio (em inglês: World Suicide Prevention Day WSPD). A cada 45 minutos, um brasileiro tira a própria vida. São 32 brasileiros a menos por dia. Chega de silêncio. Não está funcionando.

Uma das coisas mais angustiantes do suicídio é sua alta incidência entre jovens de 15 a 29 anos. Segundo dados variados, existe uma tendência de queda geral no número de suicídios entre adultos, todavia um inquietante aumento na faixa etária mencionada. A Unifesp tomou dados do SUS para levantar um número assustador: enquanto a taxa mundial declinou 17%, no Brasil, o número de suicídios de pessoas de 10 a 19 anos, nas grandes cidades, aumentou 24%. Moças tentam mais o suicídio do que rapazes e estes últimos efetivam mais devido à maior letalidade dos métodos masculinos. Nos setores de emergência, tentativas de suicídio são a principal causa de atendimento de adolescentes.

Não existe um perfil único, mas o suicida costuma dar alguns indícios de que vive uma fase difícil. Os especialistas advertem: qualquer sinal de tirar a própria vida deve ser levado a sério. Fazer um jovem falar de seus problemas é um desafio enorme para pais, familiares e professores. Meu amigo Ricardo Krause, psiquiatra especialista no tema, escreveu-me: "O adolescente fala de seu sofrimento com um silêncio incomum, ao se afastar de amigos, ao começar a falar e se interessar por temas de morte e biografias de suicidas, ao doar seus pertences em vida, ao deixar de fazer as coisas das quais sempre gostou". Logo, penso, o silêncio é uma forma de comunicação importante.

Ainda com a assessoria do dr. Krause (a quem agradeço a disposição de melhorar meu enfoque sobre o tema), sabe-se que 90% dos casos de suicídio ocorrem com pessoas que apresentam um transtorno psiquiátrico, o que aumenta a previsibilidade e as possibilidades de intervenção. Depois da depressão e da bipolaridade, o que mais predispõe são os transtornos ligados ao uso de substâncias. "Devemos pensar nisso quando naturalizamos o uso cada vez mais precoce de álcool entre os jovens: os mesmos drinques que dão coragem de chegar a uma menina podem dar coragem para pôr fim à própria vida. Também precisamos ter cuidado com a relativização dos riscos da maconha, uma das drogas cientificamente confirmadas como desencadeadoras de surtos psicóticos, a terceira patologia mental mais ligada ao suicídio", lembra-me o psiquiatra presidente da Abenepi (Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil e Profissões Afins).

Internet e sono teriam relações com suicídios? Sim. O sono é poderoso elemento de estabilidade física e mental. Especialistas sugerem que, entre a última exposição à internet e o sono, exista um intervalo mínimo de uma hora e meia. Por quê? A luz, os sons, a excitação mental das redes e da navegação perturbam o relaxamento necessário, atrapalham a arquitetura do sono e comprometem o dia seguinte. Internet deve ser tratada como café forte e medicamentos de excitação mental: o uso depois de certa hora pode ser danoso ao equilíbrio indispensável ao repouso.

A internet é um verdadeiro "dreno" da já escassa atenção que os jovens recebem em média dos adultos. As redes matam a comunicação olho no olho. Mais: a ditadura da felicidade impede que dramas possam aflorar. Ninguém quer ler sobre deprimidos e angustiados, todos incentivam viagens fabulosas e consumo. Isso fecha ainda mais o jovem em uma depressiva gaiola dourada. O pior de tudo: os games adestram a mente com uma virtualidade excessiva e uma confusão que, com o desenvolvimento de hábitos repetitivos, produzem a sensação de que, morrendo nesta fase, logo adiante ressuscito com cinco vidas de bônus.

O Setembro Amarelo é um sinal de alerta. Amarelo indica que os riscos existem e que estão em toda parte. Imagine: você e eu, adultos e com experiências sólidas e vida feita, perdemos o ânimo e saímos do estado racional algumas vezes. Imagine alguém de 14 anos que, para piorar, ainda é autorreferente e pensa o mundo como um fenômeno a partir de um julgamento menos elástico e mais assertivo e com menos lastro biográfico para dar perspectiva. Não controlamos tudo, porém podemos aumentar a chance de estimular a vida, o dom maior. Agradeço ao dr. Ricardo Krause. Voltarei ao tema em breve. Mais do que nunca preciso repetir meu bordão: é preciso manter a esperança. Sem esperança não há vida.

LEANDRO KARNAL


14 DE SETEMBRO DE 2019
REDE SOCIAL

GENTILEZA GERA GENTILEZA

Fernanda Gentil subirá a um palco de Porto Alegre, no sábado, para mostrar que seu talento não fica restrito apenas à televisão. A apresentadora trará à Capital pela primeira vez o espetáculo Sem Cerimônia, um monólogo sobre a vida da jornalista. Com três sessões - duas no sábado, às 18h30min e às 21h, e uma no domingo, às 17h -, a apresentação será realizada no Teatro da Amrigs. O show trata de assuntos relacionados à vida pessoal e profissional de Fernanda, 32 anos, e marca a sua inserção no entretenimento. Longe dos programas de esportes, ela está prestes a voltar à TV com o programa Se Joga, que irá ao ar na Globo logo após o Jornal Hoje e foi criado para substituir o Video Show. A estreia será no dia 30 de setembro. Os ingressos para o espetáculo na Capital estão praticamente esgotados. Há disponibilidade apenas para a sessão extra de sábado, às 18h30min. A compra pode ser feita pelo site minhaentrada.com.br, e o valor é R$ 92 (inteira).

MODA, ARTE E MÚSICA

Trabalhos e acessórios da artista Paula Stein, conhecida pelos quadros das coleções Bichos Urbanos e Bichinhos Urbanos, serão destaque da próxima edição do evento Plus, neste sábado, na loja T&B Clothing, localizada no bairro Três Figueiras. O encontro, tradicionalmente organizado por Magda Landgraf, mãe da artista, terá clima italiano com a apresentação de músicos ítalo-brasileiros. Vai das 10h às 19h.

DICA DO FÍNDI: LIVRO

Escritora gaúcha premiada, autora de A Ponta do Silêncio e Harmonia das Esferas, Valesca de Assis (foto) tem bagagem de sobra para indicar um bom livro para os leitores da coluna. A sugestão da gaúcha para o final de semana é Eu Vou Matar Maximillian Sheldon, obra de contos mais recente do também escritor gaúcho Leonardo Brasiliense:

- Abarca temas recorrentes na nossa humanidade: rancores, desejos, loucura, traição e até amor e bondades. Partindo do princípio de que os humanos são todos diferentes, em saúde e doenças - e com a narrativa aguda que caracteriza o autor -, temos um universo de não entendimentos, uma vez que nosso olhar raramente procura o olhar do outro para tentar compreender-lhe o destino. Recomendo vivamente o livro, construção de um jovem autor talentosíssimo, vencedor, entre outros, do Prêmio AGES e do Jabuti.

TRADIÇÃO EM BAILE

Com música romântica e um jantar caprichado, o cantor Edgar Pozzer (foto) comandará mais um baile neste sábado. O evento, ideal para quem quer matar a saudade dos Anos Dourados, será realizado no Clube Caixeiros Viajantes, a partir das 20h. Com um repertório cheio de bolero, samba, bossa nova, música italiana e "algumas modernidades", como diz Pozzer, o show será acompanhado por José Vidal & Quarteto e terá a participação de Helena Ruperti e Cezar Teixeira.

BALÉ DE GALA NA CAPITAL

Em comemoração aos 40 anos de história de sua escola de balé, Vera Bublitz (foto), junto da filha Carlla Bublitz, realiza o Gala Excelência em Dança neste sábado. A partir das 19h, o Teatro Otto Walther Beiser, antigo Teatro CIEE, receberá um espetáculo com a participação de bailarinos que conquistaram oportunidades mundo afora. Entre esses alunos, estão Ana Clara Jardim, Giovana Riffi, Daniela Schneider e Ana Maestri, que ganharam bolsas para estudar no Exterior durante o Festival Internacional de Dança de Porto Alegre, em junho. Os ingressos custam R$ 100 (mezanino e camarote) e R$ 120 (plateias baixa e alta), e podem ser adquiridos no teatro ou nas sedes do Ballet Vera Bublitz, na Capital.

REDE SOCIAL




14 DE SETEMBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Proteção à família

O retorno da censura é uma cortesia dos atuais governantes brasileiros, que parecem não ter outra preocupação a não ser proteger nossa família - até emociona tanta gentileza. O prefeito Crivella, do Rio, tentou recolher uma história em quadrinhos publicada 10 anos atrás porque soube pelo Twitter que haveria em suas páginas uma ilustração que ele considerava imprópria para menores. Fez tanto estardalhaço que acabou projetando o que gostaria de ocultar: o desenho de dois personagens do mesmo sexo se beijando foi parar na capa dos jornais, viralizou nas redes e todo mundo viu. Um erro estratégico, mas valeu a intenção, ele só queria nos proteger.

O atual presidente do Brasil foi eleito, entre outras razões, porque também prometeu proteger nossas famílias: ele garante que o cinema nacional não mais fará corar as senhoras de bem e continua incentivando cada pai a dar uma coça em seu filho ao primeiro sinal de que ele possa vir a ser maricas. Ufa, estamos protegidos.

Uma pena não termos tido essa sorte antes. Poderiam ter nos privado dessa onda feminista, em que mulheres vêm a público lutar contra a violência doméstica e contra salários desiguais, quando deveriam estar atrás de um fogão preparando o jantar do marido e limpando os ouvidos da criançada, cumprindo assim seus deveres de mãe e esposa. Um governo protetor jamais decretaria luto oficial pela morte de Leila Diniz, e sim divulgaria um "vade retro" em alto e bom som, para evitar que o mulherio valorizasse maus exemplos.

Mas não. Deixaram passar a pílula anticoncepcional, o seriado Malu Mulher, a lei Maria da Penha. Só podia acabar em Bruna Surfistinha.

Eis que nossas famílias agora estão assim, desamparadas, precisando com urgência da tutela de homens sábios como Bolsonaro e Crivella. Graças a essas criaturas magnânimas, nossos filhos se sentirão tão envergonhados de serem "impróprios" que casarão com pessoas que não amam, e serão infelizes e recalcados como manda o figurino. Nossas famílias temerão a liberdade, vivendo tranquilas como gado num curral, mugindo em uníssono. O pensamento será condicionado, os questionamentos serão silenciados e as janelas que dão para o mundo, cerradas. Deem-se as mãos, irmãos. Não precisamos de arte, pesquisa, abertura. 

Não precisamos de empatia e de informação. É perigoso conhecer novas culturas, descobrir como vivem e sentem as pessoas que não são como nós. Fechem os olhos, apaguem a luz. Repitam: só há uma única maneira de ser feliz, nenhuma outra. A maneira certa é a de quem traz a Bíblia embaixo do braço, sem precisar ler mais livro algum. Acreditem na sorte que tivemos: o mito veio nos salvar da tentação de sermos independentes. Entreguemos a Deus e aos Estados Unidos os nossos desejos, confiemos cegamente no Paulo Guedes e no Moro, e rezemos.

MARTHA MEDEIROS

14 DE SETEMBRO DE 2019
CARPINEJAR
A flor e a torta

No amor, às vezes é preciso diminuir o ritmo.


Porque o outro não vem lhe entendendo, você conversa com pressa, come as frases, os cumprimentos, as gentilezas, pensa em explicar depois e não explica nunca, lembra de contar as novidades apenas quando está longe, sai correndo e volta tarde.


Está criando um enorme mal-entendido. A sensação é que deixou de amar. Nem reparou que passa a mensagem errada. Sua esposa (ou seu marido) já está criando teorias da conspiração, prevendo que a relação amornou e se encaminha ao fim. A surdez emocional surge de pequenos ruídos de comunicação que não são esclarecidos pontualmente.

E você não deixou de amar, deixou de viver o amor, que são duas operações diferentes. Deixou de declarar o amor. Deixou de verbalizar o amor. Deixou de demonstrar o amor. Extraviou-se na mecânica da rotina e na afobação. Jura que dividir a mesma casa é o equivalente a repartir os pensamentos.

Parece que foge do contato visual e só se sente sempre atrasado. Parece que evita o abraço e o beijo e só se encontra aflito em dar conta de tudo. Nem é capaz de identificar a preocupação de sua companhia com o seu comportamento desleixado. Acha que está tudo bem. Não vê o sinal de alerta piscando nos olhos dela, muito menos detecta a quebra involuntária da lealdade de sua parte.

Reduza a velocidade. Faça de conta que está carregando uma torta ou uma orquídea no banco ao lado do carro. Não pode frear de modo brusco, tem que manter a constância e evitar as curvas mais fechadas. Um deslize e a cobertura da torta desmorona. Um descuido e a orquídea perderá as suas frágeis pétalas.

Ande alguns quilômetros de palavras assim nos diálogos com o seu par, consciente do material valioso que transporta: vários anos de casamento, de confissões, de partilhas, de aventuras, de arrebatamentos, de filhos, de cumplicidade na mesa e intimidade na cama.

É o mesmo malabarismo atento que devemos ter em nosso romance: falar pausado, didático, lento, cuidando com a reação e respectiva compreensão, expondo as nossas emoções, desenhando o nosso raciocínio, para que a verdade (o doce) e a beleza (a flor) jamais se machuquem à toa.

CARPINEJAR


14 DE SETEMBRO DE 2019
COM A PALAVRA

O JORNALISMO NEUTRO TORNA-SE UM AMPLIFICADOR DAS MENTIRAS.

Entrevista | ROSENTAL ALVES - Jornalista, 67 anos Titular da cátedra de Comunicação da Unesco e fundador do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da Universidade do Texas

Regulamentar Facebook e Google para evitar excessos é preciso, uma vez que as informações pessoais de nossa vida cotidiana estão nas mãos dessas empresas. E o jornalismo precisa se adaptar ao novo contexto político da sociedade. Esses são dois argumentos defendidos com convicção por Rosental Alves, 67 anos, titular da cátedra de Comunicação da Unesco (órgão das Nações Unidas para ciência, cultura e educação) e uma das maiores autoridades do mundo na área. 

Carioca que construiu carreira no Jornal do Brasil, como repórter, correspondente internacional e editor, ele vive nos Estados Unidos há mais de duas décadas. Trabalha como diretor do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da Universidade do Texas e é membro do conselho de laboratórios de estudo em jornalismo na Universidade de Harvard e de Columbia. Rosental concedeu a seguinte entrevista a Zero Hora:

Estamos na era da pós-verdade: o compromisso em discutir com base em fatos não é mais um pressuposto. O terreno é fértil para fake news. O que fazer?

Não gosto muito da expressão "era da pós-verdade", porque é como se a "era da verdade" tivesse sido encerrada. Na realidade, estamos na era dos ataques à verdade ou de assalto à verdade, que ocorre graças a um dos aspectos mais importantes da revolução digital: a democratização da informação. Um dos privilégios que os meios de comunicação tinha era deter quase que o monopólio da distribuição de informações. Isso foi rompido, o que empoderou as pessoas e organizações da sociedade civil a terem algumas dessas habilidades. 

Para nós, veteranos na revolução digital, essa mudança nos dava um grande otimismo sobre o futuro. Sonhávamos que isso fortaleceria a democracia, que as pessoas seriam mais bem informadas. Mas o sonho virou pesadelo. Não pensávamos que os maus seriam mais eficientes e rápidos do que os bons em aproveitar as características desse novo ecossistema. Chamo de maus aqueles que têm usado a tecnologia para manipular informação, influenciar as eleições e o pensamento político, levando a essa polarização que vemos ao redor do globo.

Por definição, o que governantes dizem é notícia ou tem potencial de ser. Mas como lidar com a profusão de declarações de políticos sem base em fatos e na ciência? A imprensa deveria deixar de reportar?

A imprensa não pode usar a mesma metodologia de avaliação do que é notícia que usava no mundo anterior. De maneira geral, na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, vemos que a maior parte da imprensa continua usando esse critério. Em uma situação de assalto à verdade como vemos hoje, o jornalismo feito simplesmente com a mesma neutralidade anterior torna-se um amplificador das mentiras, falsidades que os news makers (pessoas que a imprensa acompanha) tentam levar à população. 

Sabe-se que muitos leitores não passam da manchete e do primeiro parágrafo da notícia. Se você simplesmente dá uma manchete que reproduz uma falsidade que um poderoso disse, não importa que, no quinto parágrafo, você diga que ele se contradiz. Você já ajudou a espalhar a mentira. O jornalismo é dinâmico e precisa mudar com a criação desse novo ambiente midiático. Deve tomar medidas de precaução para não ser só uma correia de transmissão de mentiras.

O senhor cita o caso específico de quando uma pessoa fala uma mentira. E quando a declaração é um ataque a direitos humanos?

A gente tem de pensar antes de reproduzir o que as pessoas falam. Se um news maker fez uma declaração ou tomou posição moralmente questionável, isso é notícia, não dá para deixar de publicar, porque é algo que tem consequências políticas e sociais. Mas como você enquadra a declaração? Quando você publica uma mentira, mesmo que o desmentido seja feito, você a divulga. Isso é uma armadilha.

O senhor já afirmou que o problema das fake news é que elas jogam com emoções. Como dialogar com o familiar ou amigo que compartilha desinformação?

Todo cidadão tem obrigação de desbancar mentiras. E é responsabilidade de cada pessoa, em cada grupo onde está inserida, checar o que fala em vez de simplesmente passar adiante uma mentira que pode ser verdade. É relativamente fácil, com o Google: bastam 30 segundos para verificar se a informação é velha ou se é mentira. Mas o jogo é muito desigual. As emoções têm sido manipuladas de uma maneira muito forte para a disseminação de mentiras. E o WhatsApp empoderou cada um de nós a criar nossa própria rede social privativa. 

Em um momento no qual há uma pressão muito grande para o Facebook tomar providências que evitem abusos, é mais difícil fazer regulações dentro do WhatsApp. Em comparação ao Facebook, as bolhas no WhatsApp são fechadas, fora do escrutínio público. Passamos por uma fase de transição para um mundo diferente do anterior. Mas acho que essa febre de acreditar em uma mentira e retransmiti-la vai passar, porque as pessoas começarão a desenvolver o "desconfiômetro". Bom, talvez seja esperançoso da minha parte.

O senhor mencionou a regulamentação do Facebook. O próximo desafio, então, é o WhatsApp?

É uma situação delicada. Não queremos delegar a Facebook e Google o poder de censura. Eu sou a favor de uma regulamentação positiva, que tenha por base a liberdade de expressão e que possa proibir abusos. O próprio Facebook tem evoluído na sua velha posição de negar a possibilidade de qualquer regulamentação para, agora, desenvolver seus próprios sistemas internos de verificação. O Google e o Facebook de hoje são bem diferentes de dois anos atrás. Críticos podem continuar dizendo que eles precisam fazer muito mais, mas o desafio deles é bem grande também - o YouTube tem 400 novas horas de vídeo por minuto. No meio do caminho, eles vão errar, vetando coisas que não deveriam. A gente tem que entender isso, mas continuar demandando mais controles.

O senhor defende que redes sociais não são apenas plataformas, mas também empresas de mídia. Por quê?

Esse é o ponto nevrálgico. As plataformas têm defendido a tese de que são como uma companhia telefônica, que não é responsável se uma pessoa liga e ameaça outra pessoa. Só que está claro que essa situação não pode perdurar: as plataformas são meios de comunicação. Elas não podem se eximir da responsabilidade gigantesca sobre a epidemia de notícias falsas, de bolhas de radicalismo, de disseminação de discursos de ódio bem debaixo do nariz delas. Se continuarem não querendo ser vistas como meios de comunicação com responsabilidade de publicadores, então teríamos que encontrar uma categoria especial para elas, na pior das hipóteses. Mas, para ser justo, nos últimos dois anos, elas têm tomado medidas. 

O Facebook acaba de anunciar que terá uma aba de notícias, começou a contratar jornalistas e admitir a possibilidade justa e necessária de pagar os meios de comunicação pelas notícias que publica. Isso faz com que seja um publisher. (Nota da redação: a União Europeia aprovou, em abril, exigência de que obras artísticas e intelectuais só sejam compartilhadas no Facebook e YouTube com autorização do autor. Nos EUA, o Google recebeu multa de US$ 5 bilhões por quebra de privacidade. No Brasil, o Conselho Executivo das Normas-Padrão, órgão que estabelece diretrizes para o mercado publicitário brasileiro, reconheceu Google e Facebook como veículos de mídia).

Como o senhor vê a movimentação de países europeus para regulamentar o Facebook?

Pode ser que haja alguns exageros nas regulamentações dos países europeus, mas eles estão na vanguarda do mundo. Resolveram tomar iniciativas muito estudadas que podem estar exageradas em um aspecto, mas você não faz um omelete sem quebrar os ovos. É parte do processo de construção do novo ambiente midiático.

O que é acertado e o que é exagerado na regulamentação europeia?

O Google virou o indexador da grande biblioteca que é a internet. Mas a simples indexação de notícias não é uma violação de direitos de autorais, sobretudo se o Google não ganha dinheiro diretamente com isso. Se ele se tornar um agregador de notícias com intenções comerciais explícitas, talvez mude a situação. Mas acho que a gente precisa entender que o grande negócio dessas plataformas são os dados que extraem da gente, sem nossa autorização. A Europa levantou a questão sobre isso: as empresas de tecnologia não podem pegar dados sobre as pessoas sem autorização. Se o petróleo, nos anos 1920, era o novo ouro, nos anos 2020 o novo ouro são os dados. As plataformas sabem mais sobre nós do que nós mesmos. Não é uma boa isso ser feito sem nenhum controle da sociedade.

Qual o paralelo que o senhor faz entre a cobertura que a imprensa americana faz do governo Trump e a que a brasileira faz da gestão Bolsonaro?

A imprensa nos EUA tem apanhado muito. Trump não tem limites nas mentiras e na manipulação das informações. Ao longo da formação de sua persona pública, Trump chegava a ligar para jornais de Nova York imitando outra voz para sair nas colunas sociais e ter a imagem projetada de rico, bonito e famoso. De outro lado, a imprensa se construiu no século 20 dentro de padrões de objetividade e neutralidade. Mas jornais chegaram a um ponto aqui em que começaram a questionar isso. A imprensa brasileira está passando por momentos similares. O presidente Bolsonaro é um imitador do presidente Trump na fórmula de falar radicalismos e de manter uma campanha de desmoralização da imprensa. Os mesmos jornalistas e meios de comunicação que eram execrados pela esquerda, vistos como parciais, opositores e injustos, agora são execrados pela direita e pelo governo de extrema-direita com os mesmos adjetivos.

o senhor vê diferença na hostilidade a jornalistas durante o governo do PT e agora, no governo Bolsonaro?

O jornalista não existe para agradar aos poderosos, mas sim para incomodá-los. E cumprem o seu papel agora como cumpriram na época do PT. É muito interessante que a Míriam Leitão tenha sido atacada injustamente por petistas e agora seja atacada por bolsonaristas. Isso mostra que ela tinha coerência na essência de seu trabalho. Na época de PT, PSDB, Itamar Franco e (José) Sarney, havia coberturas desagradáveis da imprensa, mas nenhum presidente declarou guerra. 

É lamentável. Mesmo na ditadura militar, não havia o discurso de que a imprensa é inimiga. Eu me formei jornalista vivendo na ditadura militar, recebendo ligações da Polícia Federal sobre ordem de censura, quando eu trabalhava na Rádio Jornal do Brasil. Recebíamos ligações e depois uma nota do que o governo não queria que fosse posto no ar. Era censura explícita. Alguns jornais foram sufocados à morte por meios financeiros, como o Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, mas mesmo assim não havia o discurso de que a imprensa é inimiga, como há hoje nos EUA e no Brasil. 

É uma situação realmente sem precedentes, fruto de tendência assustadora ao autoritarismo. Aqui nos EUA, qualquer coisa que desagrade a Trump é chamada de fake news. Bolsonaro, com o O Globo na mão, mostrou uma reportagem que o desagradava, da mesma forma como (Hugo) Chávez fazia regularmente ao ir para a televisão, ou o Rafael Correa, no Equador, que rasgava jornal em frente às câmeras. O Bolsonaro não chegou aí ainda, mas está no caminho.

Um em cada cinco brasileiros vive em uma cidade que não tem jornal para ler. É o caso de 70% das cidades do norte do Brasil. São os desertos de notícia. Qual o impacto disso para a vida dessas pessoas?

Aqui nos EUA, as evidências são grandes. Quando um jornal desaparece, há estudos mostrando que os funcionários públicos começam a aumentar os próprios salários, os contratos de empreiteiras passam a ficar mais caros e aumenta a polarização na comunidade.

Como avalia os vazamentos de conversas de procuradores da Lava-Jato e a forma como o Intercept vem conduzindo a cobertura?

A revolução digital criou a possibilidade de esses grandes vazamentos de dados existirem. Não tenho nenhuma dúvida de que o material recebido pelo Intercept é de interesse público e que foi processado com critérios jornalísticos profissionais e éticos. O Intercept pode ter cometido alguns erros, porque é uma apuração humana - sei que houve erro na grafia do nome de uma procuradora, por exemplo. Mas não pegaram a base de dados sem critério. Inclusive, chamaram outros meios para ajudar na investigação. 

Fizeram o trabalho jornalístico que seria feito por qualquer organização jornalística. Existe uma jurisprudência da Suprema Corte Americana, desde os documentos do Pentágono dos anos 1970, segundo a qual uma informação que o jornalista considera de interesse público pode ser publicada mesmo que obtida de maneira criminosa, desde que o jornalista não tenha participado da obtenção. A abominável insinuação de que Glenn Greenwald poderia ser preso é uma mentalidade de ditador. Em uma democracia, existe essa possibilidade de publicação.

O que é preciso focar para o futuro?

Eu sou muito otimista sobre o futuro do jornalismo. As revoluções são geralmente seguidas por um período de caos. Estamos nessa confusão agora, mas são as dores do parto de um ecossistema midiático novo, no qual o jornalismo vai sobreviver e prosperar. O mundo nunca deixou de ter jornalistas. O contador de histórias é parte de qualquer grupo humano desde o tempo das cavernas. A tecnologia cria problemas, mas depois os seres humanos a usam para criar soluções.

MARCEL HARTMANN