sábado, 18 de janeiro de 2020



18 DE JANEIRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

LER E VIVER

HISTORICAMENTE, TEMOS BAIXO DESEMPENHO ESCOLAR MÉDIO. COM EXCEÇÕES NOTÁVEIS, AS ESCOLAS INCENTIVAM POUCA LEITURA OU APENAS PRODUZEM AVALIAÇÕES SOBRE LIVROS DE VESTIBULAR.

Em dezembro do ano que terminou, tive de renovar minha habilitação de motorista. Como em outras vezes, fui ao Poupatempo da Lapa, em São Paulo. Foi uma nova chance para eu sair bem impressionado pela organização, gentileza dos atendentes e eficácia. Tudo foi perfeito. Imaginando (meu pessimismo existe) uma demora que não ocorreu, levei dois jornais físicos e uma coletânea de contos russos. Mal li os editoriais e já estava tudo feito. Pertencemos a uma sociedade em que, quando as coisas funcionam, ficamos admirados. O que seria o básico para se esperar de qualquer serviço entre nós é motivo para uma profunda admiração.

Foco em outro ponto. Os serviços oferecidos lá são amplos e abarcam muitas faixas etárias e diversas camadas sociais. Ricos e pobres devem renovar a CNH ou fazer uma nova identidade. Havia evidências de grupos variados naquele espaço. Também um dado em comum a muitas idades e pertencimentos sociais: todos ficaram o tempo todo ao celular, conferindo mensagens e ouvindo áudios. Nenhum livro, jornal ou, aparentemente, textos virtuais na tela. Saí feliz com a eficácia do Poupatempo e pensativo sobre o não uso da leitura como aliada em tais situações.

Andar de metrô em várias cidades europeias ou simplesmente em parques significa ver muita gente lendo. Algo óbvio: existe um incentivo mais forte lá, cultiva-se o hábito, percebe-se o caráter de boa "contaminação" doméstica e social. Seria apenas isso?

Historicamente, temos baixo desempenho escolar médio. Com exceções notáveis, as escolas incentivam pouca leitura ou apenas produzem avaliações sobre livros de vestibular. No campo da exceção existem os professores e escolas notáveis que conseguem seduzir seus alunos para a viagem da leitura. Lembro-me da minha colega de literatura em um colégio de São Paulo, Marinez Rafaldini. Era dedicada aos bons livros e incentivava muito que os alunos bebessem dessa água extraordinária. Na formatura, um aluno disse a ela: "Nunca esqueceremos da sua maneira de ler Manuel Bandeira". Sim, uma poesia brilhante lida com entusiasmo e emoção, os olhos faiscando e um trabalho sistemático podem marcar a vida de um jovem. Fizemos peças teatrais sobre clássicos, dirigidas por mim e pelo professor Carlos Pelicia. Um Pagador de Promessas ou um Hamlet levados ao palco são memórias indeléveis para aqueles jovens. Reencontro alunos pela vida; muitos fazem referência aos livros e ao teatro.

O hábito precisa de auxílio. Muitas livrarias possuem uma sala especial para leitores infantis. Ir com pai e mãe em um sábado e ler ou comprar algo para os pequenos produz uma experiência única. Ler em casa, contar histórias, levar a bibliotecas: tudo solidifica o projeto fundamental de estimular leitores. Amar, cuidar, orientar, fazer vacinas, alimentar, proteger e... ler são sete verbos essenciais da maternidade e paternidade responsáveis. E, para nós, professores, o fundamental no esforço coletivo: selecionar um trecho, pensar em uma técnica, contar uma história fascinante, seduzir a turma com bons textos. Insistir, vencer resistências, subir na cadeira para declamar, colocar um adereço cênico, analisar de forma intensa, debater e, diante de caras desanimadas, entender que a resiliência é a chave. Alfabetização é um processo de vida toda e o momento escolar é uma parte importante.

Ter um texto em mãos, em papel ou na tela, é encetar uma conversa interessante com alguém. Livros devem ser fator de crescimento, o que não significa serem fáceis. Crianças e jovens precisam de curadoria para que encontrem fontes estimulantes. Que riqueza ler, aos 15 anos, A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Depois, ver um filme com o tema do livro. Debater o conteúdo, a advertência do texto sobre autoritarismos, explicando o contexto e o objetivo do autor. O jovem tem conhecimento para ler em inglês?

Maravilha, Orwell é um mestre da língua. Advertência importante: se seu filho entender de fato a obra, há o risco de ele contestar uma ordem sua baseada na reflexão do autor. Seu filho quer algo distinto da sua determinação e invoca um autor clássico? Chore, querido pai, emocione-se, querida mãe, ele começou a pensar e adquirir autonomia. Este era o momento para o qual você o preparou e ele começou a ser alguém fora da sua sombra.

Bendita rebeldia, abençoada irreverência que foge do narcisismo birrento e chega à elaboração de um argumento. Um irmão pediu algo e conseguiu e o outro não? Ele pode invocar o exemplo de Cordélia no Rei Lear: seu afeto é genuíno, porém, sua retórica, fraca. Ele quer sair sem rumo e diz que imitará o protagonista no Apanhador no Campo de Centeio? Ele ironizou a crença religiosa da família invocando A Cartomante, de Machado de Assis? Reze pela alma dele, porém rejubile-se pelo crescimento intelectual.

Ler é atingir maioridade intelectual. Ler traz ideias, contesta versões, estimula autonomia. Ler retira da zona de conforto e provoca disrupturas existenciais. Ler é um passo na direção do infinito e um caminho sem volta na busca de si e de sentido. Se você quer total tranquilidade e senso comum dominante, evite livros, fuja de bibliotecas e afaste seu filho do livro e do perigo de pensar. Ele será um adulto opaco, cinzento, acomodado, dirá coisas comuns e terminará a vida tranquilo, gravando áudios no celular esperando seu documento ser feito. É preciso ter esperança e alguma leitura.

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, ?Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia?

LEANDRO KARNAL



18 DE JANEIRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA

Uma visita à cidade do Amazonas onde mais de 80% dos habitantes são indígenas, de 23 etnias
Perdi a conta de quantas viagens fiz ao Rio Negro; mais de cem talvez. Há 20 anos, escrevi: se me fosse dado o privilégio da derradeira viagem, iria ao Rio Negro mais uma vez.

Mês passado, voltei ao Alto Rio Negro para gravar um documentário em São Gabriel da Cachoeira, a última das cidades na direção da Colômbia e a Venezuela.

São Gabriel já existia como aldeia indígena, quando os primeiros invasores brancos chegaram à região. Hoje, com cerca de 40 mil habitantes espalhados pelo município, metade dos quais no espaço urbano, é a segunda maior cidade do Rio Negro - perde apenas para Manaus, situada a 1.100 quilômetros.

A paisagem é de tirar o fôlego. Já passei horas encantado pela visão da serra do Curicuriari, ao longe, e das águas que correm ruidosas formando rodamoinhos entre as pedras, em oposição ao comportamento plácido que exibem rio abaixo, quando o vento as deixa em paz.

De costas para o rio, você verá a torre branca de bordas azuis de uma das igrejinhas mais singelas do Brasil, ao lado do colégio que os padres salesianos construíram no início do século passado, como parte do sonho de atrair, evangelizar, alfabetizar e convencer os indígenas a abandonar a língua nativa e os costumes que os religiosos consideravam pagãos.

A cidade é o centro político e administrativo da Cabeça do Cachorro (área maior do que Portugal), para onde convergem os indígenas das aldeias às margens do Negro e de seus afluentes que nascem nos países vizinhos. Mais de 80% dos habitantes são indígenas pertencentes a 23 etnias, que emigraram de povoados distantes. A diversidade de idiomas e tradições culturais dos povos do Alto Rio Negro é tão complexa quanto à das florestas habitadas por eles.

Tukanos, baniuas, coripacos, barés, hupdas, desanos, tuyukas, arapaços, yanomamis, pira-tapuias, wananas e as mulheres e homens das demais etnias circulam de sandália havaiana e camisetas que não poupam estampas extravagantes, sob o sol inclemente que transforma a cidade num crematório, às duas da tarde.

O comércio é animado por carros de som, as lojas exibem roupas coloridas, tênis, redes, óculos escuros, material de construção, eletrodomésticos e móveis industrializados. Carros particulares, utilitários, táxis cansados de rodar e motos se movimentam sem engarrafamentos.

A cidade é mais multicultural do que São Paulo ou Rio de Janeiro. Na feira, no comércio e pelas ruas o transeunte ouve as línguas das diversas etnias, o português falado com sotaques variados e o portunhol dos que vieram dos povoados fronteiriços.

As estradas que levam a São Gabriel são líquidas. Os viajantes que partem com as canoas dos povoados rio acima, costumam levar vários dias para chegar à cidade. Com o litro de gasolina a R$ 5, é comum gastar com combustível mais do que o salário de aposentado ou do que lhes é pago pelo bolsa família, obstáculo que os obriga a viajar para receber o pagamento a cada três meses, prazo máximo que o governo lhes dá antes de recolher o dinheiro.

Os militares estão por toda parte; são elogiados e respeitados pela população. Não fossem o uniforme e a presença de alguns brancos e negros, nada os diferenciaria dos habitantes locais. Entrar para o Exército é aspiração generalizada dos jovens indígenas do Alto Rio Negro, garantia de salário mensal e de uma carreira. Infelizmente, o nível de escolaridade e as distâncias amazônicas impedem o acesso às academias militares e às posições hierárquicas superiores.

O comando militar da região está a cargo da Segunda Brigada de Infantaria de Selva, chefiada pelo general Danilo Alencar, homem que se emociona ao falar da alta qualidade do soldado indígena. Sob sua responsabilidade ficam o único hospital do SUS da região e os Pelotões de Fronteira.

O trabalho dos soldados nas fronteiras é solitário. Lá, eles são a única presença do Estado. Cada pelotão é chefiado por um tenente com menos de 30 anos que exerce a função de prefeito, juiz de paz, delegado, assistente social, gestor de atenção médico-odontológica, administrador do programa de inclusão digital e o que mais for necessário assumir nas comunidades carentes das imediações, esquecidas pelas autoridades municipais, estaduais e federais.

Dada a ausência total do Estado nos extremos da Cabeça do Cachorro, tenho convicção de que, se não fosse o Exército brasileiro, já teríamos perdido aquela parte do país.

DRAUZIO VARELLA

18 DE JANEIRO DE 2020

J.J.CAMARGO

ONDE FOI PARAR A ALEGRIA DE SER JOVEM?

COMO ERAM AS FESTAS DE TURMA ANTES DO ADVENTO DO ASSÉDIO SEXUAL E DO BULLYING

Os reencontros de turma - e estou falando de uma turma graduada há mais de 45 anos - trazem, com grande frequência, a ressurreição em tempo real de um dos sentimentos mais marcantes da nossa juventude: a alegria.

Recapitulando algumas festas loucas e tantas bobagens irresponsáveis, percebemos que o produto final permanece intacto: o riso. E, lembrando, rimos de novo e riremos outra vez no próximo encontro, porque rir era tão bom, que assumimos, inconscientemente, o compromisso implícito de preservar a razão do riso.

Nós festejávamos mais, amávamos mais, bebíamos mais, brigávamos mais e temíamos menos. Como nunca se tinha ouvido falar em assédio sexual, éramos mais carinhosos e espontâneos. Se nos referíssemos a alguém pela raça ou cor da pele, ninguém corria para o banheiro para chorar. No máximo, uma troca de baixarias e depois nos abraçávamos, sem melindres, pela mais óbvia das razões: ninguém podia ser diferente do que era, só porque simpatizava mais com a outra turma.

Como bullying (do inglês bully, que significa "tirano", "valentão", "brigão") não fazia parte do vocabulário da época, a gozação era livre e nunca se soube de ninguém que tivesse recorrido à ajuda psicológica por sentir-se zoado demais. Não se pode dizer que a nossa turma era uma amostra irreal da juventude daquela época, pelo contrário, todos os tipos estavam representados.

Alguns eram líderes naturais, e a maioria ficava com inveja por não ser como eles (naquela época havia a inveja boa!). Havia os espalhafatosos e os retraídos, os que gostariam de ser inteligentes, e os que eram. E, entre esses, alguns eram muito. Como seres humanos comuns, tínhamos uma maioria solidária na fraternidade e na gozação, e um núcleo de egoístas, que ostentavam uma certa arrogância, porque ingenuamente ignoravam o quanto a vida real seria intolerante com esse perfil no futuro.

Os distúrbios comportamentais que atualmente têm ocupado tanto espaço em literatura leiga e científica eram raros. Numa turma de 125 alunos, com idade média abaixo de 20 anos, na admissão, tínhamos dois colegas que, à época, não sabíamos classificar, mas que hoje reconheceríamos como emocionalmente instáveis. Ou seja, bem abaixo da média mundial atual, segundo relatório recente de Organização Mundial da Saúde (OMS), que revelou um aumento nos últimos 10 anos de 18,4% no número de pessoas com depressão - hoje, isso corresponde a 322 milhões de indivíduos, ou 4,4% da população da Terra.

Para piorar, os brasileiros estão elevando esses índices. No nosso país, 5,8% dos habitantes sofrem com depressão, a maior taxa do continente latino-americano. Estudos em andamento em universidades brasileiras revelam índices assombrosos de ansiedade entre jovens que deviam estar curtindo muito essa idade maravilhosa em que a única atitude inadmissível é sonhar pequeno, e a maior motivação, o desafio de estabelecer o tamanho do futuro. Este que sempre virá para premiar quem teve coragem.

J.J.CAMARGO


18 DE JANEIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Uma sentença de morte

Minha amiga Mariana Kalil está com câncer. Não é novidade, ela conta tudo a respeito nas redes sociais, e com pormenores, mas eu a acompanho mais de perto, nós conversamos sempre, estamos em permanente contato. Por dois motivos: por gostar muito da Mariana e para tentar ajudá-la com minha experiência no assunto.

A Mariana, agora, felizmente superou uma das etapas mais dolorosas desse processo de enfrentamento do chamado "imperador de todos os males". É a fase das más surpresas, quando você recebe uma notícia tão ruim, que parece inverossímil.

Escrevi acerca disso no meu livro Hoje Eu Venci o Câncer. Não foram poucas as notícias desanimadoras que me atropelaram, tempos atrás, mas houve uma que produziu uma reação bem curiosa.

Deu-se que, uma tarde, liguei para o médico a fim de saber o resultado de um exame importante e o resultado não foi negativo: foi péssimo.

- A doença está muito mais agressiva do que eu pensava - disse-me ele. - Praticamente incontrolável.

Entendi o que aquilo significava. E fiz a pergunta.

Não "uma" pergunta, e sim "a" pergunta. Que é difícil de fazer e difícil de ser respondida. Mas que devia ser feita. A seguinte:

- Quanto tempo eu tenho?

O médico vacilou, não havia como não vacilar. Pensou um pouco e deu uma resposta que, ao mesmo tempo, continha a sinceridade técnica que precisa ter o profissional e o otimismo quase exagerado que precisa ter o ser humano:

- Se tudo der certo, cinco anos.

"Se tudo der certo."

Era, obviamente, uma sentença de morte. Quando ouvi aquilo, estava na redação de Zero Hora, de pé no corredor, olhando pela janela, vendo os carros rodando lá fora, na Ipiranga. Desliguei o telefone, girei o corpo para voltar à mesa de trabalho e então vi que a telefonista fazia um sinal para chamar a minha atenção. Fui até ela e ela avisou:

- Tem dois estudantes de jornalismo na portaria, esperando pra te entrevistar.

Esquecera daquele compromisso. Pedi que levassem os rapazes para uma salinha de entrevistas e fui para lá. Sentei-me na frente dos dois jovens e eles começaram a falar. Eu entendia o que eles perguntavam e respondia sem problemas, mas a sensação que tinha era de que não estava ali. Parecia que eu era um personagem, que estava assistindo a um filme ou vendo aquele cara (eu) de longe, do alto, de algum lugar seguro e distante. Não sentia desespero, nem tristeza, nem raiva, nem mesmo inconformidade. Não sentia nada. Eu estava como que anestesiado. Falava e ouvia a minha voz como se fosse a de outra pessoa. Gostaria de saber o que aqueles dois acharam da entrevista.

A Mariana se identificou com essa história. Também ela experimentou essa sensação de alheamento, certa feita. O que me faz deduzir que a nossa mente é, de fato, espantosamente poderosa. O homem é o único animal que sente medo do futuro desconhecido, algo terrível. Mas, ante o perigo real, ante o presente concretamente ameaçador, a mente protege o ser humano lançando-o para fora de si mesmo. É como se a dor não fosse dele.

É uma faculdade que deveríamos aprender a dominar para usá-la em outras circunstâncias difíceis. Seria útil. Sei disso, porque foi essa trégua que me permitiu reagir. Na mesma noite daquela notícia ruim, eu fui em frente e tentei e insisti até encontrar uma solução que me fez continuar vivo para contar a história, com alívio e alegria. Sete anos depois.

DAVID COIMBRA


18 DE JANEIRO DE 2020
VARIANDO

O novo status dos animais de estimação

Qualquer um que tenha um pouco de idade, como para enxergar contrastes, percebe que existe uma enorme diferença na importância que damos aos animais domésticos. Nossa sensibilidade para com eles multiplicou-se nas últimas décadas. A questão é: por que isso ocorre?

Teríamos evoluído, segundo dizem alguns? Ou nos demos conta de que eles são seres sencientes, nossos companheiros de planeta? Ou, ainda, que não seríamos tão distintos deles e, portanto, podemos estender a eles certos direitos que temos como humanos? Não discordo dessas teses. Acho-as muito bem-vindas, mas penso que não esgotam o tema.

Minha hipótese é de que há uma outra razão que corre em paralelo. Existe um movimento lento e subterrâneo que é a valorização da infância como grande época da vida. Vem de longe, mais de dois séculos, e segue acelerando. Antes, nas sociedades tradicionais, ser criança não valia a pena, elas só eram consideradas quando cresciam. Não havia uma cultura própria para a infância, nem cuidados especiais. Eram criadas para que sobrevivessem e depois, sim, uma vida as aguardava. Todos, portanto, queriam crescer para chegar a um status de valor.

Não existe nos contos folclóricos um personagem como Peter Pan: um herói aferrado à infância. Afinal, ele só faz sentido neste nosso novo momento, quando crescer seria perder o paraíso dos cuidados e proteção.

Sem entrar em detalhes das vantagens e desvantagens dessa revolução no trato com a infância, pois não é o foco, vou centrar no que penso ser um efeito colateral desse movimento. Os pets nos reconectariam com a infância idealizada, por isso seu papel hoje relevante. Projetamos neles o paraíso perdido, são nosso avatar infantil. Através deles, revivemos a boa infância que tivemos, ou tentamos fazer uma, para os que não a tiveram.

Observe nas redes sociais a profusão de imagens de pets aprontando, ou destruindo algo. São postadas pelos donos - se bem que quem é dono de quem seja uma questão -, que não conseguem esconder o gozo de possibilitar essa irresponsabilidade a suas criaturas. Os protestos contra a travessura não convencem ninguém. Porque o dono vive o que o animal fez como se fosse por ele. Recria algo da presença infantil inconsequente e feliz, apenas agora com quatro patas.

É a infância do sujeito que seria reencenada. Não se trata de alguém que não tenha filhos e que queira povoar com animais as crianças faltantes, embora não exclua essa possibilidade em alguns casos. Nada contra, cada um leva a vida como quiser. Afinal, nunca é tarde para se ter uma infância feliz...

Pergunto se a relevância dos pets não faz parte da grande infantilização que vivemos. Como em tantas outras coisas deste momento da história, surge a pergunta: onde estão os adultos do nosso tempo?

MÁRIO CORSO

18 DE JANEIRO DE 2020
ARTIGOS

REFORMA TRIBUTÁRIA, ONTEM E HOJE

Presidente do Instituto de Estudos Tributários (IET), professor da Escola de Direito da PUCRS, advogado | pedro@pedroadamy.com.br

"Portugal, ao tomar posse da terra nova, cuidou de uma coisa só: o Fisco. A colônia existia para o Fisco. A Fazenda Real era tudo e os interesses do povo eram nada. O Fisco organizou-se cá muito a cômodo, sem respeitar coisa nenhuma além do seu interesse - pessimamente entendido, aliás. Vieram depois a Independência, a Monarquia, a República, e em todas estas mudanças se mexeu em tudo, menos no Fisco... Não haverá progresso possível enquanto não houver mudança na mentalidade a este respeito."

A transcrição acima é do livro Mr. Slang e o Brasil, de Monteiro Lobato. Conhecido como criador do Sítio do Picapau Amarelo, ele foi um importante crítico social no início do século passado. Publicado em 1927, o livro traz as opiniões de Mr. Slang, um inglês fictício que vive no Rio de Janeiro e analisa as mazelas que afligem o país. Em um dos capítulos, Lobato traça um panorama do sistema tributário brasileiro da época, focando na elevada carga fiscal e na burocracia imposta ao cidadão.

Qualquer semelhança com a realidade atual não é mera coincidência. Ano após ano, temos novos recordes de arrecadação, com o contribuinte trabalhando mais de quatro meses apenas para pagar seus impostos. Isso sem contar a burocracia que consome recursos preciosos, que poderiam ser usados para aumentar a produtividade, gerando mais empregos e melhorando a renda dos trabalhadores. Isso demonstra que, acima de tudo e de todos, está o interesse em arrecadar cada vez mais.

Com o ano que se inicia, é nosso dever exigir uma reforma tributária que otimize e reduza os gastos públicos, torne menos burocrática a administração tributária e, acima de tudo, seja mais justa na distribuição da carga tributária entre os contribuintes. Em verdade, é urgente uma mudança de mentalidade, com uma reforma que busque não apenas aumentar a arrecadação, mas, sim, o equilíbrio entre as reais necessidades financeiras do Estado e os direitos dos contribuintes. Usando as palavras de Mr. Slang, escritas há quase um século e válidas ainda hoje: "Com o regime de impostos que tem, com os vícios burocráticos que alimenta, ainda é muito que o Brasil faça o que faz".

PEDRO AUGUSTIN ADAMY

18 DE JANEIRO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

A FLOR AO MAR


Os dramas do dia a dia acentuam as contradições. O turista e mestre em capoeira que, ao atirar uma flor ao mar, resvalou nas pedras do morro da Guarita, em Torres, e se afogou foi o oposto do motorista que atropelou e matou uma jovem e feriu a mãe, na Avenida Aparício Borges, na Capital, fugindo sem as socorrer.


As duas mortes mostram como a beleza e o absurdo podem convergir no horror. Nada é mais belo e poético do que jogar uma rosa ao mar. Nada é mais abjeto do que ferir a esmo no trânsito e fugir. Os dois opostos levam a igual conclusão: os acidentes são detalhe perigoso na vida e, assim, viver em harmonia com o todo da natureza é o único caminho sadio.



Hoje, as vulgaridades da sociedade de consumo nos distraem e não vemos o essencial. A sedução do supérfluo nos desumaniza, com o risco de virarmos máquinas falantes. Já se diz que, no futuro, a inteligência artificial dos robôs nos guiará até no sabor dos alimentos e na cor preferida.


Sem perceber, pouco a pouco perdemos nossa capacidade e viramos maquinário. Orwell e todos os que profetizaram as ameaças do futuro não ousaram chegar aos absurdos que a tecnologia anuncia como "conforto".


As emoções passam a plano inferior cada vez mais. Se não concordamos com a máquina, o erro é nosso. Se a máquina diz que 2+2 são 5, acrescentamos a unidade para concordar com "a infalível"...



Este exemplo bobo hoje desafia os grandes pensadores mundo afora. A alma humana, com suas emoções e percepções, nada vale?


Até aqui, nenhum progresso tecnológico ou novo sistema político pode mudar a alma humana. Mesmo polidos, conti- nuamos a ser Caim e matamos o irmão Abel ou repetimos o gesto de Eva acreditando na serpente e enganando Adão...


A consciência e o discernimento nos fazem diferentes da pedra, mas nós e a pedra somos parte da natureza, cada qual com sua função.


Isto nos diferencia da máquina, um conjunto de chips (antes, eram engrenagens) que aponta "tudo na vida", tal qual carro automático troca de velocidade por si. Mas, se temos de ir para trás, tudo é manual e vem do pensamento.


Avançamos ou vamos de ré num gesto de vontade.


O que nos distingue da máquina é a decisão, vinda da vontade.


Nem as máquinas do ano 3000 terão a visão poética de jogar uma flor ao mar. Só medirão o passo e apontarão o perigo do precipício. A máquina é útil e não me rebelo contra ela. Nenhuma, porém, substitui a alma humana e as emoções.


O ser humano não pode se tornar um autômato guiado por chips. A biologia não é um emaranhado de fios, mas um conjunto de órgãos ou neurônios ligados pelo que chamamos de metabolismo e consciência.


Já pensaram o que seria amar o belo e o bom por decisão da máquina? Ou viver o erotismo pelo computador ou celular?


Por tudo isto, penso no mestre em capoeira, que jogou uma flor ao mar e se afogou na própria poesia.



Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

18 DE JANEIRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

REPÚDIO GENERALIZADO


O repugnante episódio do agora ex-secretário de Cultura do governo Bolsonaro que utilizou expressões do ministro da Propaganda do nazismo teve desfecho relativamente rápido, mas guarda lições que deveriam se enraizar para ajudar a iluminar o presente e o futuro do país. A primeira e mais vistosa delas foi a extraordinária reação de toda a nação, sem distinção de credo, partidos, classes ou matizes ideológicos, que se levantou contra a sucessão de absurdos perpetrada pelo então secretário Roberto Alvim ao citar expressões de Joseph Goebbels ao som da ópera favorita de Adolf Hitler no vídeo de lançamento do Prêmio Nacional das Artes.

Em poucas horas, tão logo se identificou a similaridade com o discurso e a estética triunfalista do nazismo, as vozes da indignação se levantaram em uníssono, a ponto de o presidente Jair Bolsonaro, que inicialmente titubeou em demitir um secretário ao qual elogiava publicamente, se ver compelido a se livrar da mancha que ameaçava contaminar todo o governo. A pronta e inequívoca demonstração de repúdio da sociedade é um exemplo de que o Brasil não aceita e não aceitará posicionamentos que reflitam ideologias genocidas que deveriam ser relembradas apenas de forma indignada para que nunca mais tenham qualquer influência sobre sociedades na Terra.

Outro aprendizado que deveria ser introjetado pelo presidente Bolsonaro diz respeito à escolha de seu núcleo mais próximo. A nomeação de fanáticos políticos e religiosos, em geral seguidores do filósofo Olavo de Carvalho, é uma bomba permanentemente prestes a explodir. Na administração de um país, a busca da harmonia e do respeito a visões divergentes também nas áreas de comportamento deveria ser um objetivo permanente de nação. 

Não é o que se vê em boa parte do entorno mais extremado do presidente, que infelizmente faz questão de estimular atitudes e falas intransigentes quando não excêntricas. O responsável direto por esse constante estado de tensão que desvia o foco das realizações do governo e drena preciosa energia do país e da estrutura governamental é o próprio presidente, com frequentes exigências de lealdade e afinidade absolutas a seu ideário mais primitivo.

O episódio revela também uma disfunção profunda na perspectiva do governo Bolsonaro sobre a arte e a cultura. A inspiração nazista do discurso de Alvim não se limitou a reproduzir manifestações de Goebbels. A visão do secretário de que o povo precisa ser salvo de uma "cultura doente" ecoa claramente, como bem identificou o escritor Arnaldo Bloch em artigo em o Globo, a noção nazista de "arte degenerada" a ser purificada.

Onde fundamentalistas tentam se apropriar da arte e da cultura, numa espécie de purificação social, nasce o ovo da serpente do fascismo. O ovo estava depositado à porta do Palácio do Planalto, mas em boa hora o país se levantou em um movimento arrebatador de defesa dos valores mais profundos da democracia e da dignidade humana. Essa é a derradeira, mas não menos importante lição deixada pela tormenta palaciana: os que pensam ser possível garrotear as liberdades no Brasil de hoje encontrarão uma frente unida e sólida contra aventuras e tentações liberticidas.



18 DE JANEIRO DE 2020
DIÁRIOS DO MUNDO

O plano de Putin para se perpetuar no poder

É saudável o mundo ficar com um pé atrás sempre que Vladimir Vladimirovitch Putin (à direita na foto) anuncia seus planos. Como exímio enxadrista da política, o todo-poderoso czar do Kremlin costuma dar visibilidade apenas a uma parte de suas intenções - com impacto imediato. A outra porção, mantida sob sigilo até de seus mais próximos conselheiros, só se concretiza anos na frente.

Ao que tudo indica, o autoritário presidente russo começa a pavimentar o caminho para a sucessão, dentro de um projeto de poder iniciado em 1999, quando assumiu após a renúncia de Boris Yeltsin. Na quarta-feira, Putin fez uma jogada que surpreendeu boa parte do país - e do mundo - ao propor um referendo para alterar a Constituição, de 1993.

A uma análise apressada, muitos pensaram que ele estaria seguindo a cartilha de seus afilhados políticos Hugo Chávez, Nicolás Maduro e Evo Morales - mexer na Carta Magna para permitir reeleições infinitas. Não. O lance de Putin, é mais complexo, silencioso e à prova de suspeitas. O pulo do gato: a mudança daria mais poder a um órgão que hoje é meramente consultivo - o Conselho de Estado. Acredita-se que, em 2024, quando deixar o Kremlin, Putin almejaria seguir como presidente desta instituição, só que com um órgão vitaminado. Um Conselho de Estado poderoso garante o controle de todo o sistema. Ou seja, Putin sairia do dia a dia do governo, mas manteria-se como a eminência parda do regime.

Putin não dá ponto sem nó. Há 20 anos, aproveita-se do sistema semipresidencialista para mandar e desmandar no país. Entre 2008 e 2012, por exemplo, fez o sucessor, Dimitri Medvedev, mas continuou comandando a nação como um poderoso primeiro-ministro.

Com a habilidade de ex-espião do FSB (antiga KGB), consegue, por baixo dos panos, eliminar adversários sem provocar alarde - até porque a imprensa é censurada no país. Para isso, vale sacrificar aliados, como Medvedev, que renunciou logo após o anúncio, na quarta.

Uma das suspeitas é de que caberá ao primeiro-ministro ser o bode expiatório pelos problemas da economia, que patina abaixo de 2% desde que o país saiu da recessão do biênio 2015-16. A Putin, ficam os méritos, como ter estabilizado o país após a década perdida de 1990, iniciada pelo colapso soviético.

No plano externo, o presidente nunca teve tanta influência. A Rússia voltou a ser a principal força política de oposição aos Estados Unidos - enquanto a China prefere o papel econômico. Com o desengajamento dos americanos do Oriente Médio, Putin consagrou-se como senhor da paz e da guerra. Na Síria, manteve o ditador Bashar al-Assad entronado. No auge da quase guerra entre EUA e o Irã, deu um recado militar aos americanos, fazendo operações no Mar Negro. Mantém boas relações com Israel e Arábia Saudita e atrai a Turquia. Enquanto isso, apesar de o Ocidente espernear, a anexação da Crimeia se consolida silenciosamente.

O primeiro teste dos democratas

Já foram 27 pré-candidatos democratas. Agora, são seis. Mesmo assim, a incerteza impera na oposição a Donald Trump. No próximo dia 3, o caucus (prévia) de Iowa, um pequeno Estado no meio-oeste americano, abre o calendário eleitoral. A cada quatro anos, a região monopoliza as atenções mundiais com seu complexo sistema de votação que serve como primeiro termômetro para os pré-candidatos.

A escolha se encaminha para o enfrentamento entre Joe Biden e Bernie Sanders. O ex-vice-presidente e o senador por Vermont estão empatados tecnicamente no Estado (20,7% contra 20,3%). Em nível nacional, Biden está bem na dianteira (27,2% contra 19,2%). A senadora Elizabeth Warren e o prefeito de South Bend, Indiana, Pete Buttigieg correm por fora (ela tem 16%, ele 7,2%).

Quem defenderá Trump?

As prévias democratas ocorrerão em meio ao processo de impeachment de Donald Trump no Senado. O advogado de celebridade mais famoso dos Estados Unidos, Alan Dershowitz, disse na sexta-feira que fará parte da equipe jurídica que defenderá o presidente. Segundo relatos da mídia americana, outro membro de destaque da equipe será Ken Starr, o promotor especial no julgamento político do ex-presidente democrata Bill Clinton em 1999. Ele é um herói para muitos da direita, apesar de Clinton ter sido absolvido no Senado.

Entre os clientes famosos de Dershowitz, estão o agressor sexual Jeffrey Epstein e o ex-jogador de futebol americano e ator O.J. Simpson.

Protagonismo gaúcho

Gaúchos foram protagonistas da cerimônia de inauguração da nova estação Comandante Ferraz, na quarta-feira, na Antártica. No ato, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Jefferson Simões lançou um balão meteorológico (foto). Também participou do ato inaugural a reitora da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), Cleuza Maria Sobral Dias. O vice-presidente Hamilton Mourão e o secretário-geral das Relações Exteriores, Otávio Brandelli, também gaúchos, representaram o presidente Jair Bolsonaro.

> A SEMANA QUE EU VI

APÓS TENSÃO, OS PROTESTOS

Por dois dias seguidos, estudantes iranianos saíram às ruas em protesto contra o governo e o líder supremo do regime. As manifestações eclodiram após autoridades admitirem ter derrubado o avião comercial ucraniano.

FENÔMENO NAS FILIPINAS

O vulcão Taal, nas Filipinas, expeliu uma enorme massa de cinzas (foto) e acendeu o alerta no país. Milhares de moradores dos arredores de Manila foram obrigados a deixar suas casas. Voos foram cancelados na região.

POLÊMICA NA FAMÍLIA REAL

Após reunião familiar na segunda-feira, a rainha Elizabeth II divulgou comunicado dizendo que concordou com a decisão de seu neto, príncipe Harry, e da mulher dele, Meghan Markle, de serem mais independentes da família real britânica. Fala-se em "período de transição".

PAUSA NA GUERRA LÍBIA

Sem a presença de potências ocidentais, Rússia e Turquia costuraram uma trégua para a guerra civil na Líbia. O acordo, que ainda precisa ser ratificado pelo líder rebelde Khalifa Haftar e nem de longe garante o fim das hostilidades, é uma vitória do presidente Vladimir Putin.

RODRIGO LOPES


18 DE JANEIRO DE 2020
REINO UNIDO

"Não há precedentes de decisão semelhante"

RENATO VIEIRA E SILVA, Autor do livro God Save the Queen - O imaginário da realeza britânica na mídia

Doutor em Comunicação, Renato Vieira e Silva estuda há anos a realeza britânica como fenômeno midiático. Ele costuma afirmar que, em um mundo cheio de tragédias replicadas pela mídia, o esplendor da monarquia, na caracterização teatral de desenvolver sonhos, contribui para dar maior leveza à vida.

Como o senhor avalia a decisão do casal do ponto de vista midiático?

A realeza passa de tempos em tempos por fenômenos ou acontecimentos dessa natureza. Mas não há precedente na monarquia britânica de uma decisão semelhante. Alguns comparam com o que aconteceu com o tio da rainha, Eduardo VIII, quando ele abdica da coroa. Mas aquele contexto, nos anos 1930, foi muito diferente e mais impactante porque ele era o rei da Inglaterra, que desiste da coroa para se casar com uma mulher divorciada americana. Isso apressou toda a cadeia sucessória. Ao sair da função, passa o trono para o irmão, pai da atual rainha, que, por problemas de saúde, dura pouco. E a rainha Elizabeth II assume muito jovem o trono. O que Harry e Meghan estão decidindo agora é algo em busca de uma vida um pouco menos vinculada à instituição e a todas as obrigações que fazem parte dos rituais esperados da realeza.

A realeza se alimenta da fama?

Evidentemente. Tem o ônus e o bônus. A superexposição cria admiração, reforço da marca. É como a Coca-Cola. A monarquia britânica é a realeza mais conhecida do mundo. A marca vem sendo revigorada. Os casamentos, tanto de William quanto de Harry, representaram suspiros de modernidade, de pessoas que estão dentro de uma nova era. O fato de serem filhos de Diana, que também teve exposição midiática fabulosa, reforça isso. Ela sofreu bastante (com a exposição na mídia), mas, ao mesmo tempo, se aproveitava disso.

No que a realeza britânica se diferencia e como a decisão pode impactar outros reinos?

A realeza britânica é bem diferente. Há as chamadas monarquias discretas, como as dos países nórdicos, onde temos inclusive uma rainha com raízes no Brasil (rainha Silvia, da Suécia, é filha de mãe brasileira). Os membros têm atividades, mas não há superexposição. A Espanha era uma das mais expostas pelo papel do rei Juan Carlos, que teve participação grande no período pós-general Francisco Franco, e atuou pela redemocratização do país. Até que ele se retirou de cena ao ser flagrado em safári na África, caçando, em um momento em que boa parte da sociedade espanhola falava em proteção ao ambiente. Um fim melancólico. Já a de maior popularidade, com exposição e certa devoção, é a holandesa. Os reis interagem muito com a população. Existe o Orange Day, por causa da Casa de Orange, dinastia que governa a Holanda há pelo menos seis séculos. Nesse dia, todo mundo usa alguma roupa laranja para louvar a monarquia. O monarca também deu passo interessante ao se casar com uma argentina. Há também as monarquias extremamente discretas, como a japonesa. A casa real japonesa parece convento, você entra e ninguém fica sabendo.

Que papel a mídia britânica teve na decisão do casal?

Quando Meghan anunciou o nascimento do filho, um chargista colocou a foto de um casal, uma foto antiga e, no meio, um bebê chipanzé. Harry entrou com ações na Justiça. Eles passaram a ser mais seletivos. Mas o que deixou transparecer é que havia já processo de saída desde o ano passado: eles tinham viajado pela América do Norte por seis meses, já não passaram o Natal com a rainha, rompendo uma tradição e, agora, vieram com esse anúncio. Isso impacta a estrutura da monarquia.

William e Kate são contraponto a Harry e Meghan?

Com certeza. Muito mais assentados dentro do esperado. Nada de bizarro ou que fuja ao protocolo daquilo que é esperado do papel que venham a representar.

18 DE JANEIRO DE 2020
ACERTO DE CONTAS

FINANÇAS PESSOAIS | Gasolina de dar inveja



Quem nunca recebeu uma foto de um posto de combustível nos Estados Unidos? Em destaque, um preço da gasolina de fazer inveja. Leitores perguntam como é possível tanta diferença e a coluna traz um comparativo feito pelo químico industrial Marcelo Gauto, especialista na área de petróleo e combustíveis. Ele avaliou a composição do preço médio da gasolina para o consumidor no Brasil, de R$ 4,38, com o cobrado nos EUA já convertido de dólares para reais, de R$ 2,85.

Os gráficos apontam grande diferença na carga tributária. Enquanto nos EUA, os impostos e outras taxas representam 18% do preço, no Brasil respondem por 44%. Lembrando que o Rio Grande do Sul está entre os Estados com alíquota mais alta de ICMS sobre a gasolina, 30%. Portanto, o gaúcho paga ainda mais tributos do que a média nacional. Tanto que o litro da gasolina comum está, em média, a R$ 4,76 nos postos daqui.

Há ainda um peso bem maior do etanol. No Brasil, o combustível tem um percentual obrigatório que precisa ser adicionado à gasolina e que tem pesado nos preços. Ele é de 27%, contra 10% de mistura nos EUA. Desde o último trimestre de 2019, o custo do etanol tem subido nas usinas do Sudeste e Centro-Oeste.

Recomprada e de volta ao mercado imobiliário

Uma marca que já foi bastante conhecida no mercado imobiliário gaúcho está de volta. A Noblesse foi recomprada por Eduardo Sukienik e o CEO prepara a abertura de uma loja já em março. Ele era proprietário da rede de imobiliárias, vendida para a Brasil Brokers em 2007, empresa que recentemente deixou o Rio Grande do Sul.

A Noblesse foi fundada em 1996, com 10 corretores. Anos depois, pegou todo o boom imobiliário, chegando a ter 12 lojas e 550 profissionais. Então, Sukienik vendeu a empresa para a Brasil Brokers e ficou com uma participação na compradora. Logo depois, a companhia abriu capital na bolsa de valores, o chamado processo de IPO.

- Saí da empresa em 2015, pouco depois de o mercado ter virado em 2014. O setor imobiliário foi do céu ao inferno sem escalas. O índice de distrato ficou muito alto. Praticamente, se vendia duas vezes a mesma unidade - lembra o executivo.

Sukienik saiu da Brasil Brokers com um cláusula de não competição por quatro anos. Agora, com a companhia recuando para Rio de Janeiro e São Paulo, ele comprou os direitos da marca, apostando em uma retomada do mercado imobiliário:

- Já está acontecendo em São Paulo, onde tudo é a jato. Para cá, vem de carro, mas também chega. Vejo que o mercado imobiliário está voltando com responsabilidade, não apenas para satisfazer investidor. Há muito mais critério na avaliação dos compradores.

Na volta ao mercado, o foco da Noblesse será em imóveis de médio e alto padrão. A primeira unidade ficará no FK Convenience Office, na Avenida Túlio de Rose, em Porto Alegre. Começa com cem corretores e 10 funcionários administrativos.

GIANE GUERRA

18 DE JANEIRO DE 2020
+ ECONOMIA

Mais desgaste para imagem do Brasil


Não havia alternativa senão a demissão depois de vídeo gravado em estilo nazista pelo agora ex-secretário da Cultura, Roberto Alvim. Pouco antes de ser exonerado, defendeu a obra, atribuindo a citação de Joseph Goebbels, a "coincidência retórica" em entrevista à Rádio Gaúcha. Era a imagem do Brasil como um país minimamente civilizado que estava em jogo. Continua, mesmo após a saída de Alvim, porque ele deve ter avaliado que o vídeo seria aceitável neste governo.

O caso foi registrado pelos principais jornais, como The New York Times, TVs, como a britânica BBC e sites focados no mercado financeiro global, como Bloomberg.

Desde o episódio das queimadas na Amazônia - não pelo fogo em si, mas pela reação do governo ao problema, com desprezo ao ambiente e à ciência -, a visão sobre o Brasil no Exterior está em xeque. Com exceção de uma visita amistosa à China, para apagar o discurso agressivo da campanha, nada foi feito para mudar a percepção externa. Depois do vexame de 2019, quando sequer usou o tempo de que dispunha para "vender" o Brasil a alguns dos mais poderosos investidores do planeta, neste ano o presidente Jair Bolsonaro preferiu não ir ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.

Só nesta semana, demonstrou tolerância a conflito de interesses no governo, ao manter no cargo o chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência (Secom), Fabio Wajngarten, mesmo diante do fato de que ele é sócio de empresa que recebe dinheiro de contratadas do governo. Ensaiou ser leniente ao levar Alvim para sua transmissão ao vivo em uma rede social depois do vídeo.

Tudo isso ocorreu na semana em que o governo federal apresentou planos de concessão de serviços e privatização de empresas, contando com capital externo nos dois casos. Embora haja muito dinheiro amoral circulando pelo mundo, fontes oficiais de recursos têm princípios. O desgaste na imagem do governo brasileiro é só parte do cenário que provocou, em 2019, o maior saldo negativo na entrada e saída de dólares. O eco nazista foi um limite ético. Daqui para a frente, terá de provar que, de fato, abomina "ideologias totalitaristas e genocidas".

Shopping de bike

Porto Alegre ganhou uma espécie de shopping de bicicletas. Na Avenida Nilópolis, o Bike Hut - Bike.Cultura.Café reúne loja, oficina e cafeteria. O espaço foi criado por Eduardo André, empreendedor que migrou do setor de telecomunicação. Mudou-se para Porto Alegre para acompanhar sua mulher e acabou unindo hobby e negócios. Foi precursor em corrida BMX (com bicicletas especiais), nos anos 1980.

A associação dos profissionais dos Correios contesta o secretário de Desestatizaçao, Salim Mattar. Ele afirmou que a empresa "não vem dando lucro nos últimos anos". Segundo a entidade, em 2017 os Correios lucraram R$ 667 milhões e, em 2018, R$ 161 milhões. Os dados foram checados e estão corretos.

CRISE? QUE CRISE?

Indústria de Campo Bom, a FCC inova com a DunDun Cerâmica, que fixa revestimentos cerâmicos, substituindo argamassa colante. Prevê retorno de R$ 20 milhões até 2024.

Aos 40 anos, a Fenin Fashion, feira de moda que ocorre em Gramado entre os dias 28 e 31, terá pela primeira vez um hub de inovação, o I.Nova Fenin. Espera 25 mil visitantes.

O Sindmóveis, de Bento Gonçalves, coordena missão para Alemanha e Reino Unido com designers brasileiros e apoio da Apex.

MARTA SFREDO


18 DE JANEIRO DE 2020
OPERAÇÃO GREENFIELD

Assessor de Guedes e mais 28 viram réus

Esteves Colnago, assessor especial do ministro da Economia, Paulo Guedes, e mais 28 pessoas viraram réus após a Justiça acolher denúncia do Ministério Público Federal (MPF) por decisões tomadas por eles na gestão de fundos de pensão. Os procuradores os acusam de administração temerária de instituição financeira em razão de investimentos feitos na empresa Sete Brasil e analisados pela Operação Greenfield, que apura desvios em fundos de pensão e bancos.

"O MPF produziu e apresentou a este Juízo peça acusatória formalmente apta, acompanhada de vasto material probatório, contendo a descrição pormenorizada contra todos os denunciados", afirmou o juiz federal Vallisney de Oliveira, da 10ª Vara Federal de Brasília, em sua decisão.

Em sua decisão, Vallisney torna réus 29 ex-dirigentes dos fundos de pensão da Caixa (Funcef), Banco do Brasil (Previ), Petrobras (Petros) e Vale (Valia). No total, os investimentos dos fundos de pensão na Sete geraram perdas de R$ 5,475 bilhões às entidades, segundo o MPF (em valores atualizados até outubro de 2019).

Funcef

Colnago foi membro do conselho deliberativo da Funcef e votou favoravelmente a um investimento feito pelo fundo de pensão na Sete em 2012. Segundo a forçatarefa da Greenfield, ele aprovou de forma temerária investimentos feitos na empresa Sete Brasil, de construção de sondas de petróleo.

Na visão do MPF, Colnago e outros gestores do Funcef autorizaram os aportes ignorando riscos, diretrizes do mercado financeiro e do Conselho Monetário Nacional (CMN), além dos próprios regimentos internos.

Criada no auge dos investimentos no setor naval do país e do pré-sal, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a Sete tinha como missão gerenciar a compra e a operação de 28 sondas para exploração de petróleo para a Petrobras. Entre seus sócios, tinha a própria Petrobras e o fundo de investimentos FIP Sondas, que reunia investidores como os bancos BTG Pactual e Santander, o fundo FI-FGTS e os fundos de pensão de Petrobras, Caixa, Banco do Brasil e Vale. Juntos, os sócios aplicaram mais de R$ 8 bilhões na empresa. Dinheiro já reconhecido como perda total no FIP Sondas.

A derrocada financeira da Sete começou na fase inicial da Lava- Jato, no final do ano de 2015. As primeiras denúncias de executivos da Sete, que também eram da Petrobras, levaram o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a vetar o empréstimo de longo prazo que permitiria manter a máquina da Sete funcionando.

Com a decisão, veio a crise do petróleo no mercado internacional. As sondas da Sete foram contratadas quando o petróleo atingiu US$ 110 o barril. Quando pediu recuperação judicial, já em 2016, o valor era de pouco mais de US$ 30.

Contraponto

O QUE DIZ ESTEVES COLNAGO

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo na última semana, Colnago disse não se arrepender de votar pelo investimento porque, em sua visão, as informações disponíveis na época não o fariam tomar outra decisão. Chegou a revelar que a recomendação de voto feita pela diretoria da Funcef ao conselho era de não fazer um novo investimento na Sete Brasil, mas que na hora da reunião os conselheiros foram informados pelos executivos que a visão tinha mudado para pró-aporte. Afirma ainda que ficou desconfortável com a situação, mas que acabou sendo convencido pelos diretores e pelos documentos trazidos à reunião de que o investimento seria uma boa opção.

– Não me arrependo. Deu errado. Podia ter dado muito certo. Mas deu errado. Você ia imaginar que a Petrobras estava cheia de coisa lá dentro? Nunca. Que o petróleo ia despencar? Os grandes bancos estavam entrando, não só os públicos – afirmou.


18 DE JANEIRO DE 2020
RODRIGO CONSTANTINO

Histeria coletiva infundada

O presidente Trump autorizou o ataque que eliminou o líder das milícias terroristas iranianas. Qual a reação da maior parte da imprensa? Entrar em histeria coletiva, com alguns falando até em Terceira Guerra Mundial. O povo unir-se-ia em torno do regime, a Rússia poderia entrar no conflito, a suposta irresponsabilidade de Trump levaria ao caos completo.

O resultado concreto? O povo tomou coragem de protestar com mais veemência contra os aiatolás opressores, especialmente após a trágica derrubada do avião ucraniano, e os países europeus passaram a falar mais grosso contra Teerã, exigindo termos mais duros para retomar o acordo anterior, assinado por Barack Hussein Obama e que era muito negligente.

A mesma turma fez alarde por dois anos sobre o tal conluio de Trump com os russos, que levaria o presidente americano à prisão, apenas para ver, decepcionada, o relatório Mueller, que nada trouxe de bombástico. Viram, então, na conversa com o presidente ucraniano um novo pretexto para o sonhado impeachment, finalmente aprovado na Câmara de maioria democrata.

Não tiveram coragem, porém, de acusar o presidente de qualquer crime, preferindo o vago termo "abuso de poder", e após uma novela patética, o processo foi encaminhado ao Senado, onde será devidamente enterrado. Mais um drama exagerado que não vai dar em nada.

Trump destruiria a economia, que cresce bem e apresenta a menor taxa de desemprego da história. Ele perseguiria minorias, que continuam com todos os seus direitos garantidos. Na política externa levaria ao confronto nuclear, enquanto o ditador coreano aceitou pela primeira vez sentar-se para negociar. O que explica tanto erro de análise?

Chamam de "Trump Derengement Syndrome" essa patologia que acometeu tantas pessoas mundo afora. Antes mesmo de o homem iniciar seu governo, já tinha gente certa de que um novo Hitler surgira. Não havia qualquer indício disso. Zero de evidência. Mas a narrativa foi poderosa, espalhando o medo. Uma histeria coletiva infundada, tal como no alarmismo do ecoterrorismo. E a vida segue, melhorando aos poucos. Apesar dos histéricos...

RODRIGO CONSTANTINO


18 DE JANEIRO DE 2020
CARTA DO EDITOR

A mina e os gaúchos

Uma das funções cada vez mais necessárias do jornalismo contemporâneo é iluminar cenários dominados pela desinformação e contaminados pelo viés ideológico. É o que tentamos fazer nos veículos do Grupo RBS.

No caderno DOC desta edição (e desde sexta-feira disponível para assinantes de GaúchaZH), temos um bom exemplo desse desafio. Em sete páginas, apresentamos uma extensa reportagem sobre um investimento bilionário em gestação no Rio Grande do Sul. Trata-se da Mina Guaíba, um projeto da empresa Copelmi que prevê a escavação de uma jazida de carvão e a construção de uma estrutura destinada a converter reservas carboníferas em gás sintético natural, fertilizantes e metanol entre os municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul. Espécie de polo petroquímico à base de carvão, o empreendimento seria construído a 240 metros de uma área de preservação, a 1,5 quilômetro do Rio Jacuí e a 535 metros do Parque Estadual Delta do Jacuí - um filtro natural que contribui para manter potável a água do Guaíba.

Para investigar o assunto, destacamos Marcelo Gonzatto, 45 anos, repórter talhado para traduzir conteúdos complexos e um dos mais completos jornalistas da Redação Integrada. Lotado na editoria de Notícias, Gonzatto, profissional de ZH há 24 anos, recebeu a seguinte orientação da direção da Redação: usar o tempo necessário para produzir uma reportagem profunda, que contemplasse diferentes pontos de vista e acrescentasse na discussão sobre a pertinência de um investimento que poderá criar até 7 mil empregos e injetar, em duas décadas, R$ 23 bilhões na economia do Estado.

Gonzatto falou com pelo menos 20 pessoas no Brasil, nos EUA e na China ao longo de dois meses. Acessou documentos, produzidos por órgãos governamentais e consultorias privadas e pelo menos 20 pesquisas acadêmicas sobre o tema. Ouviu gestores de instituições públicas, de ONGs e de corporações. Entrevistou pesquisadores, investidores e ambientalistas. Leu relatórios sobre a operação de uma planta industrial da unidade de gaseificação de carvão da usina de Great Plains Synfuels, na cidade de Beulah, em Dakota do Norte, nos EUA, apresentada como referência para o polo carboquímico em materiais de divulgação da Copelmi.

O repórter constatou também que a China, principal parâmetro internacional na gaseificação do carvão, reduziu suas apostas nessa tecnologia nos últimos sete anos por conta de perdas bilionárias, problemas operacionais e denúncias de danos ambientais.

Como ocorre nas grandes reportagens de ZH e GaúchaZH, o texto foi lido e relido pelos principais editores da Redação. Ao todo, houve nove leituras e vários ajustes pontuais para que o relato ficasse preciso, equilibrado e sem adjetivos. É um processo que chamamos, internamente, de "espancamento" do texto levado aos leitores.

O resultado desta investigação jornalística é uma reportagem de fôlego que ata diferentes pontas e, sem a pretensão de esgotar o assunto, apresenta um tema de alta relevância para os gaúchos em toda a sua complexidade. Com "Um debate chamado Mina Guaíba", capa do caderno DOC, cumprimos nossa obrigação de contribuir com o debate público.

CARLOS ETCHICHURY

sábado, 11 de janeiro de 2020



11 DE JANEIRO DE 2020
LYA LUFT

Coração atrapalhado

Sei que tenho uma síndrome (ou como queiram chamar) de abandono e terror de separação.

Nem sempre, no cotidiano, é um terror de verdade, mas um frio na alma, uma inquietação intensa, quando sei que alguém vai para longe - ou lembro que alguém está longe. Quando pequena (ah, a infância, a memória e o esquecido...), com certa frequência, eu era mandada nos fins de semana para o sítio de amigos queridos de meus pais, a talvez 20 minutos da cidade. Para mim, era o exílio num deserto do outro lado do mundo. Chorava durante o breve trajeto, implorando a meu pai que me levasse de volta para casa... chorava ao ver seu carrinho azul-metálico-claro sumir na estradinha do sítio; chorava ao acordar e ao deitar, por mais que a generosa e supermaternal família, a quem eu chamava de tios, e suas filhas alegres, solícitas e carinhosas, tentassem me distrair.

Me levavam para ver os leitõezinhos novos; me deixavam pegar ovos mornos no galinheiro; me levavam a passear na carroça puxada por bois (ou um cavalo?) que já nem usavam mais, apenas porque eu adorava o cheiro, o rangido das rodas, o jeitão dos animais. Me deixavam espiar de longe o ninho dos quero-queros, avisando que eram ferozes quando tinham filhotes - certa vez um deles veio num voo rasante sobre nós, e todas nos jogamos no capim, loucas de medo. De noite, me contavam mil histórias para eu dormir. Eu, tantas vezes, inconsolável.

Em certas tardes de domingo, meu pai me levava a passear de carro, talvez com a mãe dele (quem não teve antigamente uma vó Olga?), íamos até embaixo de uma enorme figueira, e eu podia correr no capim, subir nas pedras, e escutar as conversas deles. Até hoje acho que ouvi minha avó se referir a mim em alemão como armes Kind (pobre criança). Ou era meu sentimento de ser isso, quando diziam que minha mãe precisava descansar com seu bebê pequeno, e que eu era muito agitada. Verdade: com certeza muito amada, mas inquieta, sempre falando, cantando, dançando, perguntando mil coisas e desobedecendo às ordens mais simples - numa autonomia boba numa menina tão pequena.

Ou ficava quieta longos tempos olhando o nada ou as árvores, apenas pensando ou sentindo o mundo... coisa que hoje pouco se deixa as crianças fazerem porque têm de estar sempre ocupadas, sabe Deus por que razão. "Essa menina está quieta demais, vai ver, está doente"... era o outro lado da minha moeda.

Por que esta longa introdução? Para explicar, talvez, por que filho que morou na África fazendo um trabalho incrível ou netos na Nova Zelândia, onde estudaram com brilho e trabalham com sucesso, e a mera ideia de alguém ir estudar no Exterior - por mais que seja um bem, afinal estamos no mundo globalizado - me inquietam burramente. Racionalmente, quero que façam sucesso longe, que se realizem, que sejam felizes, e me orgulho, e aplaudo, e curto de verdade.

(Mas aquela Lyazinha de quase 80 anos atrás, com seu coração atrapalhado, ainda quer todo mundo bem pertinho.)

LYA LUFT

11 DE JANEIRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Reatando com o analógico

Quando nos falam sobre pessoas que caíram no golpe do bilhete premiado, ou que acreditaram estar escutando, pelo telefone, as súplicas de um filho sequestrado e acabam entregando seu dinheiro nas mãos de golpistas inescrupulosos, logo pensamos que nós não seríamos pegos. Não seríamos tão ingênuos. Não seríamos tão trouxas.

Corta para a véspera de Natal. Você está exausta em frente ao computador, de coração mole e com os neurônios fritando, quando recebe uma mensagem de uma amiga pelo WhatsApp. Você sabe que ela anda com problemas financeiros, e está fazendo o que nunca fez: pedindo um empréstimo.

Precisou fazer algumas transferências bancárias e excedeu o limite do dia, faltou fazer mais uma, você poderia fazer por ela? Logo ela irá te ressarcir. Você, sendo uma pessoa vivida, pegaria o telefone e ligaria para ela para combinar a transação, mas você não telefona. Você faz o depósito online. Parabéns, você foi pega. Você é ingênua, sim. Você é trouxa, sim.

Esta é mais uma crônica da série "Até que acontece com a gente". Sempre tão atinada, caí feito um patinho neste golpe eletrônico já tão divulgado. Minha amiga teve o celular clonado, não era ela que estava falando comigo, lógico. Meus amigos me consolam dizendo: "Martha, você tem bom coração, não deve se envergonhar, quis apenas ajudar". Pois é, mas de que adianta ter bom coração num planeta fake?

Não temos mais o direito de confiar, de permitir que a vida flua sem o radar ficar ligado 24 horas. Não podemos escutar "te amo" acreditando que é amor mesmo, vá que seja por interesse. Ao ouvir um "te devolvo amanhã", é certo que nunca mais verá o que emprestou. Temos sempre que ler nas entrelinhas, desconfiar das intenções, ficar alerta para escapar de tentativas de empulhação. Até as notícias que lemos nas redes sociais não são notícias, e sim desinformação planejada para manipular nossos pensamentos e opiniões. O que mais falta para virarmos uma sociedade de paranoicos?

Daqui pra frente, serei mais cuidadosa, mais atenta, mais malandra - menos eu. Efeito colateral da tecnologia: se os estelionatários são avatares, é sendo um avatar de mim mesma que reagirei. Não bloquearei minhas contas nem me mudarei para o meio do mato: irei me adequar, providenciarei os ajustes necessários, começando por fazer as pazes com o analógico.

Falar mais com as pessoas, e não apenas me comunicar via digital. Escutá-las. Se não ao vivo, que seja pelo telefone, aquele aparelhinho incrível que, antes de virar um transmissor de gravações e mensagens abreviadas, permitia que ouvíssemos a voz do outro em tempo real.

Alô? Tudo bem com você? Que bom te ouvir.

MARTHA MEDEIROS