sábado, 25 de abril de 2020



25 DE ABRIL DE 2020
CRISE EM BRASÍLIA

Dólar dispara e retomada da economia fica mais distante

Moeda americana vai a R$ 5,668 e economistas veem maiores dificuldades para recuperação da atividade produtiva. A crise política acentuada pela saída do ministro Sergio Moro representa choque adicional para a economia brasileira em um momento que já era repleto de tensão. Devido ao aumento da turbulência em Brasília, a atividade deve sofrer ainda mais para conseguir deixar no retrovisor os estragos do coronavírus, dizem analistas.

- Quando você está em um buraco, é difícil sair dele. Com a perna quebrada, é ainda mais complicado - compara Alex Agostini, economista-chefe da agência de classificação de risco Austin Rating.

Na sessão de sexta-feira, o dólar acentuou a disparada e chegou a romper a barreira dos R$ 5,70. Fechou a R$ 5,668, alta de 2,54% e recorde nominal. Enquanto isso, a bolsa de valores de São Paulo, a B3, recuou 5,45%, a 75.330 pontos.

- O mercado reage com mais turbulência, vê mais incertezas no futuro e na natureza das políticas econômicas que serão implementadas. Muitas pessoas, eu, inclusive, acreditam que o governo acabou. Em que sentido? O governo atuará para não ser escorraçado do poder até 2022 por suposto crime de responsabilidade - afirma Cláudio Frischtak, sócio-gestor da Inter.B Consultoria. - Temos agora uma camada a mais em um bolo que já era indigesto. Não é apenas uma cereja - acrescenta.

Consultor de investidores internacionais, Frischtak teme que, diante da crise, o Planalto adote medidas de teor "populista". Ele também demonstra preocupação com o fato de que, ao final da pandemia, o rombo nas contas públicas terá crescido no país:

- Com o coronavírus, houve necessidade de transferência massiva de recursos para atender a necessidades da população. Assim, vamos iniciar o próximo ano com fragilidade muito maior nas contas.

Para Agostini, a apreensão com o futuro da economia vem aumentando em razão de uma série de episódios. Além da saída de Moro, os conflitos de Bolsonaro com o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e a participação do presidente em atos contra o Congresso também azedaram o humor de investidores.

- Os conflitos em que Bolsonaro se envolveu mostram uma intervenção política por parte dele. O problema mora aí. O discurso do governo era de defesa do liberalismo. Mas, nas últimas semanas, houve casos de intervenção - aponta Agostini.

Para o economista, os conflitos tendem a dificultar o andamento de privatizações almejadas pelo governo no pós-pandemia. Na última quarta-feira, o secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia, Salim Mattar, disse que as vendas de estatais devem ficar para 2021.

Segundo Marcel Balassiano, economista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), os efeitos imediatos da crise política atingem principalmente o mercado financeiro.

- A incerteza aumentou absurdamente - resumiu.

Preocupação

Também há inquietação com o futuro do ministro da Economia, Paulo Guedes. Na quarta-feira, o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, coordenou a apresentação de um plano de investimentos públicos em infraestrutura, com estimativa de R$ 30 bilhões destinados a obras até 2022. Uma das questões que chamaram a atenção foi a ausência de Guedes no lançamento do programa, batizado como Pró-Brasil.

Ao assumir a pasta da Economia em 2019, o ministro prometeu reduzir o tamanho estatal e destravar privatizações. Ou seja, a ideia de retomar investimentos públicos vai na contramão do ideário liberal defendido por Guedes e celebrado pela maior parte do mercado financeiro.

- O plano lançado pelo governo contraria totalmente a postura do Ministério da Economia. Não dá para entender. Tanto é que se passou a falar em uma possível queda do ministro Guedes - pontua Agostini, economista-chefe da agência de classificação de risco Austin Rating.

LEONARDO VIECELI


25 DE ABRIL DE 2020
CARTA DO EDITOR

E quando a vida voltar ao normal?

Qual a primeira coisa que você pensa em fazer quando o isolamento social arrefecer e, aos poucos, a vida social for retomada? Fizemos esta pergunta para pessoas dos 17 aos 78 anos, com ocupações variadas: estudantes e aposentados, escritores e comerciantes, esportistas e designers de moda. Na reportagem de três páginas do Caderno Vida, que ilustra a contracapa desta edição, algumas manifestações são inesperadas.

- Houve respostas que sintetizam vontades coletivas, houve respostas que comoveram, houve respostas que surpreenderam - diz Ticiano Osório, editor do Vida. As pessoas estão sentindo falta do contato físico de familiares, do abraço e do riso dos amigos, mas também de caminhar pela cidade ou à beira-mar, de praticar seu esporte favorito ou de simplesmente curtir um cinema.

A reportagem desta semana é mais uma sob o selo Fique Bem no caderno Vida, que se transformou em um espécie de refúgio para a saúde mental - e também física - do leitor. Na edição anterior, por exemplo, mostramos como fazer de sua casa uma academia para combater o sedentarismo, com sugestões de exercícios que usam cabo de vassoura, cadeira, sacola com livros ou mantimentos e até a parede como equipamento.

Além disso, Ticiano tem conduzido uma série de entrevistas para tentar ajudar as pessoas neste momento conturbado. O editor já conversou com as psicólogas Ana Maria Rossi, especialista em estresse e ansiedade, e Mara Lins, diretora do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo, com o psicanalista Edson Luiz André de Sousa, que destacou a importância de criar e ampliar os espaços de vida (afetos, arte) enquanto a imagem da morte nos ronda, e com o pediatra Daniel Becker, conferencista internacional e colaborador da OMS e do Unicef, que recomendou aos pais pegar mais leve com os filhos e consigo mesmos.

- Não tem receita de bolo, e nenhum dos entrevistados fecha os olhos para as dificuldades que muitas pessoas têm, sejam financeiras ou psicológicas. Mas, de tanto conversar e ler sobre positividade, acabei, felizmente, contaminado. Passei a pegar mais leve com as filhas, a Helena, de 10 anos, e a Aurora, de seis, por exemplo, o que também reverteu em dias e noites mais tranquilos para minha esposa, a Bia - conta o jornalista.

No sábado passado, inspirado pela reportagem de Camila Kosachenco sobre malhação sem sair de casa, Ticiano venceu a preguiça que o dominava havia um mês, desde a entrada em teletrabalho, e voltou a correr. Respeitando o distanciamento social: em vez das calçadas e das ruas, a garagem do edifício é a pista. Como Ticiano, espero que você também esteja aproveitando as dicas úteis do caderno Vida.

A partir da semana que vem, este espaço será ocupado pela jornalista Dione Kuhn, nova editora-chefe de Zero Hora. Ex-repórter especial e ex-editora de Política, Dione era responsável pela editoria de Notícias. Eu assumo a gerência de Esporte GZH, Rádio Gaúcha, Zero Hora e Diário Gaúcho. Boa sorte, Dione.

CARLOS ETCHICHURY

25 DE ABRIL DE 2020
RODRIGO CONSTANTINO

A pandemia da fome

Quando ficou claro que o coronavírus era grave e autoridades partiram para as drásticas medidas de isolamento, alguns tentaram alertar que era preciso buscar um equilíbrio entre saúde e economia. O presidente foi a principal voz nesse sentido, em que pese sua forma um tanto atabalhoada.

Talvez por isso mesmo, por perceberem aí uma oportunidade política, vários passaram a não só defender com unhas e dentes uma quarentena radical, como a demonizar quem quer que ousasse mencionar o aspecto econômico. Era um "assassino de velhinhos", um insensível preocupado só com o lucro de empresários gananciosos. Governadores como João Doria e Ronaldo Caiado embarcaram nessa narrativa, assim como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Deveríamos escutar apenas os "especialistas", ignorando o fato de que eles conhecem somente sobre uma parcela do todo, e mesmo assim de forma bem incompleta e com divergências sobre como agir. Mas os "dissidentes" foram jogados de lado e os "isolacionistas" eram os únicos com destaque na mídia alarmista. Fechem tudo, fiquem em casa, distribuam dinheiro pelo Estado e depois a gente vê como fica.

Achatar a curva, eis a única meta. Mas quando um município não tem sequer um leito de UTI em seus hospitais públicos, não é preciso uma pandemia para colapsar o sistema; basta uma pessoa com pneumonia! Para muitos locais brasileiros, não foi o coronavírus que causou o "colapso"; ele só expôs a realidade.

Ainda assim, as previsões mais catastrofistas felizmente não se concretizaram. O Brasil não é a Lombardia italiana, pelo visto. Não obstante, governadores comprometidos demais com o discurso isolacionista demoram a rever suas posições, e cada dia que passa produz mais desempregos. A crise do coronavírus poderá jogar mais de 265 milhões de pessoas no mundo para uma situação de fome. O alerta não é de Bolsonaro. Foi feito pela FAO, braço da própria ONU.

A miséria mata, e muito. Mas parece que esqueceram disso durante o pânico, como se só a covid-19 matasse - num país que teve mais de 3,5 mil óbitos por dia no ano passado! Um estudo acadêmico publicado na Lancet concluiu que a cada ponto percentual extra de desemprego, num contexto de recessão, perecem cerca de 30 mil brasileiros num período de cinco anos. É a pandemia da fome!

RODRIGO CONSTANTINO



25 DE ABRIL DE 2020
INFORME ESPECIAL

E xingar, pode?

"Vá se ferrar". A frase encerrava um longo e contundente e-mail, que recebi durante a semana. Críticas e elogios são parte do trabalho de um jornalista. Mas esse xingamento me fez pensar, porque indica o limite do transbordo. Quem manda alguém "se ferrar" quer, na verdade, dizer outra coisa, que também começa com "f". Mas o verniz da civilidade, embora craquelado, ainda não se rompeu. Está por um triz.

A civilização começou, milhares de anos atrás, quando, pela primeira vez, na saída da caverna, um soco foi substituído por um xingamento. O pensamento, atribuído a Freud, indica um caminho que, hoje, está sendo percorrido novamente, mas na direção aposta. O impulso da violência é natural. A questão é o que fazemos com ele: um poema, um xingamento. Ou um pontapé.

O mundo da internet vem mudando a forma como pensamos. A afirmação é da neurocientista da Universidade de Oxford Susan Greenfield. Uma das áreas afetadas pelo fenômeno é a formação da identidade, que passa a depender muito mais da visão dos outros. A possibilidade de estar cercado apenas por quem pensa igual, oferecida pelas redes sociais, leva à sensação de que a bolha onde vivemos é o mundo. A reação estridente gera o aplauso mais rápido e barulhento dos que torcem para o mesmo time. E quem não torce, é adversário. Ou inimigo. A busca de legitimidade na tribo contribui para a radicalização dos discursos, que acabam transbordando para a vida lá fora.

Conversei durante a semana com Fernando Schüler, uma das boas cabeças desse país. Filósofo e professor, cita vários autores para embasar ideias. Uma delas: a internet é um ambiente de baixa empatia, porque exclui a percepção mais ampla do outro. Acrescente-se o imediatismo das reações, fenômeno que merece uma compreensão mais ampla.

Algumas décadas atrás, discordar de um texto dava trabalho. Levantar-se, pegar uma folha de papel, colocá-la na máquina de escrever, redigir, envelopar, ir até os Correios e despachar ao destinatário, do qual era preciso pesquisar o endereço. Era um processo bem mais complexo e que exigia tempo. Hoje, a resposta é por impulso e, muitas vezes, disparada no pico da irritação. Nem é preciso escrever. Bem-vindos a 1982.

Nesse ano, Scott Fahlman, professor da Universidade Carnegie Mellon, na Pensilvânia, Estados Unidos, apresentou uma ideia aos colegas. Nas suas comunicações internas, acrescentar o sinal : - ) quando o texto fosse uma piada e : - ( quando o assunto fosse sério. Era posto em prática, pela primeira vez, um conceito que revolucionaria a comunicação. Os emoticons são os avós dos emojis - junção das palavras japonesas "e" (imagem) e moji (letra). Criados em 1999 pelo engenheiro Shigetaka Kurita, os primeiros 176 símbolos se transformaram, hoje, em mais de 2 mil.

A reação emocional e instantânea possibilitada pela internet é uma das ferramentas essenciais de um novo sistema. O "capitalismo de vigilância" (surveillance capitalism) é um conceito elaborado pela professora de Harvard Shoshana Zuboff. Uma de suas definições: "Uma nova ordem econômica que considera a experiência humana matéria-prima gratuita para práticas comerciais veladas de extração, previsão e vendas". É o que fazem, por exemplo, Google e Facebook.

O verdadeiro negócio dessas gigantes não é dar, mas sim retirar informações de seus usuários, para poder, sem que eles saibam, mapeá-los e oferecer-lhes, de uma forma mais eficiente para o negócio, produtos e serviços. Para tanto, as palavras não bastam. É preciso armazenar e decifrar emoções. Por dia, mais de 5 bilhões de emojis são compartilhados, só no Facebook e no Messenger.

Nesse contexto, a possibilidade de expressão com carinhas de riso e de ódio, sinais de aprovação e desencanto, de impaciência ou de gargalhada, oferece a essas empresas um tesouro incalculável para que elas nos conheçam, muitas vezes, mais do que nós mesmos. É isso que dá a elas o valor que têm: a matéria-prima comportamental que nos extraem, de graça, cada vez que externamos em suas plataformas, de forma rápida sem filtro, uma preferência ou uma emoção.

De volta a 2020, novos e explosivos ingredientes se somam ao caldo da intolerância online. Muitos deles fermentados na quarentena imposta pelo coronavírus. O psicanalista gaúcho Abrão Slavutzky identifica um dos mais relevantes: a frustração. Planos de viagens e de festas, de encontros e de compras, de conquistas e de crescimento. Tudo interrompido por um inesperado e gigantesco limite. Os pais sabem que ensinar os filhos a lidar com a frustração é um dos maiores desafios do processo educacional. A reação ao "não" é uma das menos gratificantes, mas das mais necessárias. Choro, gritos e birra são um eterno teste para a paciência e para a perseverança. Aí vem a quarentena e nos impõe essa espécie de regressão coletiva, na qual nos vemos diante de um novo e instransponível "não" aos nossos projetos e sonhos imediatos, quadro agravado pela indefinição sobre o futuro. A raiva também é um subproduto desses tempos, que inspiram, por outro lado, solidariedade e gratidão.

O fato de estarmos em casa, protegidos, contribui para a sensação de segurança e impunidade digital. Não há sequer o risco, mesmo que apenas hipotético, de encontrar o "inimigo" no supermercado ou da fila do cinema. A bolha ganhou uma camada extra de revestimento, feita de tijolos sólidos e de portas trancadas. De longe, todo mundo é mais valente e, muitas vezes, pela falta de empatia, nega ao outro a condição mínima de humanidade. O problema é que, mais cedo ou mais tarde, haverá o encontro na rua, como aconteceu recentemente em Porto Alegre, quando agressões covardes foram flagradas por câmeras durante uma manifestação.

Durante a semana, troquei e-mails duros com um leitor que se apresentou de forma extremamente agressiva. Foram textos curtos e ásperos. Na medida em que a conversa avançava, percebi ali um ser humano angustiado e triste com suas perdas reais. E vice-versa, acredito. Mas o que me motivou a escrever esse texto foi a última troca de mensagens entre nós, 24 horas depois. Combinamos tomar um café quando a quarentena passar para, fraternalmente, trocarmos ideias que não precisam, necessariamente, convergir. Encerramos provisoriamente nosso diálogo concordando que o esforço para construir pontes vale a pena, mesmo que seja muito mais fácil - e rápido - destruí-las.

TULIO MILMAN

sábado, 18 de abril de 2020

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18 DE ABRIL DE 2020
LYA LUFT

Pandemia & pandemônio

Roubo, ou empresto, a expressão que me escreveu minha querida Miriam Leitão. Vivemos isso hoje, com uma intensidade inquietante, sem ver a saída tão cedo, com líderes em alguns países bancando as maiores trapalhadas, pensando em política e poder... gente morrendo feito mosca, gente entristecendo ou ficando furiosa sem saber com quem...

Particularmente, sinto uma falta danada de conviver, como de hábito, com minha família, filhos, netos, netas, amizades queridas, e saboreando a velha liberdade que desde criança tanto aprecio: até para decidir que quero ficar em casa. Mas neste momento de loucura e tristeza, é preciso calar a criança rebelde dentro de nós, ou a adolescente também inquieta, e seguir as regras: para salvar vidas, verdade muito verdadeira.

Outro amigo me manda o poema que eu não conhecia de Mario Benedetti, que diz mais ou menos isso: "Quando a tempestade passar, sobreviventes de um naufrágio coletivo, nos sentiremos felizes por estarmos vivos, e com os amados vivos também. Lembraremos o que perdemos, e quem sabe aprenderemos tudo o que antes deixamos de aprender. E tudo será um milagre".

Nuns dias meio sombrios, o poema me animou, a beleza sempre anima, é a saída melhor, além dos afetos, nos momentos tormentosos.

Então esta noite tive um sonho - sonho intensamente desde criança, e lembro boa parte do que sonhei. "Sonhos são espumas", diziam em alemão minha mãe e avós, nem sonhando com o velho Freud, segundo o qual sonhos são, como também elas diziam, "espumas que flutuam sobre as águas escuras do nosso coração." (Do inconsciente, diria o Velho.)

Nesse sonho, que divido com meus leitores porque assim nos fazemos companhia uns aos outros, eu procurava uma tradução de um termo em inglês, que não recordo. E estranhava, porque geralmente sou boa nesse idioma, que, como alemão, falo quase desde sempre. Mas, claro, às vezes o bom dicionário ilumina.

O lugar era como um grande teatro, ou cinema. Na plateia, em lugar de poltronas, mesinhas e cadeiras como as de uma escola ou universidade, todas ocupadas, muitas dezenas de pessoas. As paredes eram cobertas de prateleiras, e me indicaram uma prateleira baixa onde estariam os dicionários. Recomendaram um de inglês, cujo autor não conhecia, não conheço e esse nome esqueci.

Caminhei diante da primeira fileira de alunos, professores, estudiosos, todos ocupados com seus trabalhos. E de repente escutei uma espécie de música - como uma chuva doce caindo, musical, fora deste mundo. Parei no meio do meu trajeto, olhei aqueles tantos estudiosos, todos de cabeça baixa ocupados com seu livros, e percebi, então, que o rumor era das páginas, centenas, milhares, sendo viradas. Acordei: a chuva que de verdade caía lá fora tinha invadido meu sono, dando-me uma incrível sensação de consolo, beleza, aconchego.

De volta para a pandemia e o pandemônio, preocupada com meus amores e com milhões de desconhecidos no mundo, imaginei o que hoje escreveria aqui. Escrevi. Cuidem-se.

LYA LUFT


18 DE ABRIL DE 2020
CLAUDIA TAJES

O tempo é o melhor remédio

Uma coisa estranha do confinamento: as pessoas não se cumprimentam mais. Faz semanas que o único lugar a que vou, quando vou, é ao supermercado perto de casa. Não que eu conheça os eventuais companheiros de compras, mas até antes de tudo isso, uma olhada amistosa ao cruzar pelos corredores, um agradecimento quando alguém dava passagem, um bom dia por simples educação, faziam parte da etiqueta do esquilinho. Hoje em dia, uns passam pelos outros de cabeça baixa, apressados, quem sabe meio culpados pela saidinha utilitária.

Os assuntos também escasseiam. Primeiro que o interesse número um, o vírus, é do domínio de todos. O que trazer de novo se estamos todos ligados nos jornais e nas televisões em busca dos últimos números? De brinde, é preciso ver as carreatas impedindo a passagem de ambulâncias, a cloroquina receitada por desqualificados e empresários forçando a volta à normalidade. O problema é que não são tempos normais.

Enquanto isso, a gente vai redescobrindo a casa - nós, que temos a ventura de ter casa. A cozinha, essa desconhecida, virou meu território. E dê-lhe receitas novas pela internet, fora os livros que não eram consultados há anos. De um deles, de bolos e sobremesas, só sobrou a capa, o miolo totalmente comido pelas traças. Considerando o açúcar contido naquelas páginas, as traças devem estar diabéticas. A cozinha só não é um prazer maior pela louça que se acumula. Mas eis que uma exímia frasista, minha amiga Lúcia, me traz essa: enquanto há vida, há louça para lavar. Pura verdade. Parei de reclamar.

Para além do videogame e dos jogos online que têm preenchido parte do isolamento da ala mais jovem da família, surgiu aqui um passatempo revolucionário: os quebra-cabeças. Foi em um sábado que deu o estalo, um quebra-cabeça de mil peças vai manter a turma ocupada - e sem chatear, portanto. Mas onde comprar um em pleno confinamento? Foram várias ligações até que as meninas das Lojas França, que estavam de plantão, nos atenderam pelo WhatsApp com uma paciência de Jó. Depois, entregaram o quebra-cabeça na porta. É bom montar? Não, é horrível, dá vontade de chutar tudo quando as pecinhas não se encaixam. Mas o tempo passa que é uma beleza.

Se não fossem as entregas, aliás, as coisas estariam bem mais complicadas. Fui dos que não correram para comprar máscaras, achei que não precisaria usar. É um tanto de frescura, pensei, otimista. O que fazer quando a recomendação passou a ser o uso por todos? Depois de não achar em farmácia alguma, consegui na Isaclin. Não é jabá, é utilidade pública. E para abusar: a entrega de livros segue sendo uma mão na roda para quem quiser aproveitar a quarentena para passar o tempo viajando.

Embora um tanto elitista, o streaming é outra companhia valiosa (às vezes valiosa mesmo, dependendo dos preços) para passar o tempo. Mas tem muita coisa sendo disponibilizada de graça. É só entrar e assistir. Por exemplo:

A Casa de Cinema liberou todo o seu acervo no amor, do mítico Ilha das Flores aos filmes e séries mais recentes. E só entrar em casacinepoa.com.br.

Os 15 anos de atrações do Fantaspoa, melhor festival de filmes fantásticos de todo o universo, está disponível por meio do site fantaspoaathome.com.

Os documentários do festival É Tudo Verdade estão, de graça, na plataforma spcineplay.com.br. E não é mentira. E a nossa maravilhosa Cinemateca Capitólio, que felizmente continua a ser administrada pelo pessoal da Cultura do município, libera todos os dias um filme que os cinéfilos classificariam como uma pedrada. A melhor maneira de acompanhar é seguir o perfil @cinematecapitolio no Instagram.

Se é para ficar em casa, a gente aproveita para ficar um pouquinho mais inteligente também. Como diz um amigo, mal posso esperar para progredir para o regime semiaberto. Por isso sigo cumprindo a minha pena direitinho.

CLAUDIA TAJES

18 DE ABRIL DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Daqui pra frente

Semana passada, fui surpreendida por uma contratura traiçoeira: começou levezinha, no pescoço, e logo se expandiu para as costas e um dos braços. Dor infernal, de acabar com o bom humor. Achei que um analgésico daria conta, mas não tinha nenhum em casa, então pedi socorro por WhatsApp a um vizinho mais prevenido que eu. Ele colocou a cartela no chão do elevador e apertou no botão do meu andar - não me entregou em mãos por motivos óbvios.

Mas o analgésico não foi suficiente. Já não conseguia me mexer, não havia posição para dormir, e pior, não conseguia mais escrever. Eu precisava de um fisioterapeuta pra ontem, e que fosse valente, já que seria impossível me ajudar a distância. Quis a divina providência que me recomendassem a Carol, uma vizinha não de prédio, mas de quarteirão, que se prontificou a me atender em casa. 

Chegou com máscara, luvas, álcool gel e logo perscrutou cada uma de minhas costelas e meus músculos. Eu estava com um nó cego dentro do corpo. Ela aliviou a situação, mas deu a real: eu não ficaria boa num piscar de olhos. Sugeriu um pelotão de medicamentos e ordenou: repouso absoluto. Eu não poderia nem mesmo chegar perto do computador. Pensei: ok, tenho alguns textos de reserva justamente para essas situações. E relaxei.

Até que chegou o dia de enviar esta coluna para a redação do jornal. Abri meu arquivo de textos inéditos: qual escolher? Comecei a lê-los e me dei conta de que nenhum servia. Todos estavam relacionados a situações presenciais, ruas da cidade, hábitos culturais, preocupações que destoariam do que estamos vivendo hoje. Percebi que não era apenas o meu corpo que não podia sair de casa: minhas reflexões anteriores ao coronavírus também não.

A danada da contratura foi provocada por uma manobra desajeitada durante um exercício e pela má postura ao digitar no teclado, mas não se pode descartar os efeitos emocionais da pandemia. O estresse de ter a rotina interrompida. A aflição por quem não tem condições de ficar em casa, ou que nem casa tem. O medo de perder amigos e parentes. A falta de um prazo para o fim desta ameaça. As consequências econômicas, que serão dramáticas. A ausência de uma liderança política que nos passe confiança. Sorte de quem consegue peitar a crise sem desenvolver uma taquicardia, sem depressão, sem insônia, sem as entranhas acusarem o golpe. Eu, que me considero calma, amiga íntima do Dalai Lama, não consegui evitar a somatização.

Só me resta festejar a inexistência de exame antidoping para colunistas. Estou escrevendo este texto ainda sentindo dores lombares e ingerindo alguns comprimidos, mas não tem outra saída: daqui pra frente, o assunto mudou. A vida do lado de fora das nossas janelas terá que ser repensada - e reescrita.

MARTHA MEDEIROS

18 DE ABRIL DE 2020
CARPINEJAR

O aviário das varandas

Nunca as varandas e sacadas foram tão frequentadas. O medo pode confundi-las com gaiolas, já a esperança compreende que são aviários.

Com o resguardo diante da pandemia, elas se tornaram uma espécie de calçada da família. As pessoas viraram namoradeiras de pedra em seus corrimãos.

Você observa os edifícios e sempre tem alguém de vigia no mirante particular. Mesmo as mais estreitas, que não têm espaço nem para uma churrasqueira, vêm servindo para esticar as cadeiras de praia e as pernas. Ter uma abertura ao ar livre, para tomar sol e descascar tangerinas no inverno, para dar uma escapadinha e ver o movimento ou o não movimento das ruas.

Alguns entoam músicas para os vizinhos, outros tocam instrumentos como violão, violino e saxofone.

É uma porção de pássaros nos fios dos parapeitos, cantando, decantando a solidão, controlando o mundo de cima e se esforçando para exercer uma comunicação nova, à distância, pelos sinais e vozes, para alcançar ao menos a solidariedade dos rostos

É a redescoberta das serenatas, das conversas ao entardecer, de apanhar o pôr do sol ou a lua e manchar as camisas com os reflexos da luz. Ainda há aqueles que se trancam ali para fazer sua terapia por chamada de vídeo, isolados dos parentes, protegendo a privacidade das confissões, como se estivessem em antigas cabines telefônicas.

Há os que discutiram e, depois dos gritos dentro de casa, esfriam a cabeça com as sobrancelhas sofridas, pungentes, quase chorando de raiva. Há os fumantes, que tragam espirais de fumaça com lentidão, imitando suspiros à beira do cânion do Itaimbezinho.

Há os jogadores de carteado, do buraco, que montam brincadeiras de cartas com os filhos enquanto esperam o tempo passar. São os mais alegres, fingindo que atravessam um veraneio chuvoso.

Há também os velhinhos que jamais se aproximam do umbral, temerosos da altura, que mantém a sombra e a pele unidas no mesmo passo.

A porta de correr das varandas está mais usada do que a porta da frente. Não duvido que os anjos, os Cristos e as tabuletas de bem-vindo mudem de lugar.

CARPINEJAR


18 DE ABRIL DE 2020
LEANDRO KARNAL

QUAL É A NOSSA LÍNGUA?

Mário de Andrade (1893-1945) ironizava a pretensão das elites brasileiras em Macunaíma. Em determinado momento da obra de 1920, na Carta Pras Icamiabas, o autor imita um estilo um tanto parnasiano e bacharelesco (cita, nominalmente, o falecido Rui Barbosa) e se espanta com a opulência linguística paulistana que "fala numa língua e escreve noutra". Era uma crítica ao abismo (e à pretensão) entre a oralidade e as formalidades da escrita, na insistência de regências lusitanas e na busca de latinismos empoados.

Por muito tempo, o valor de alguém era medido pela riqueza vocabular, precisão e estilo erudito. Fulano era culto, dominava mesóclises, evitava barbarismos, contrariava o uso corrente e empregava palavras raras em orações com inversões sintáticas. Era um distintivo social, uma forma de exclusão mais do que comunicação. Por que dizer que o cachorro era de pelo castanho se poderíamos falar em pelo tanado? Uma casinha parália era melhor do que uma à beira-mar. 

Da varanda da dita casa, excitaríamos a osfresia com o roçar talassocrático, distantes da algaravia dos grazinas urbanos. Em outras palavras que o vulgo desconheceria, melhoraríamos o olfato com as ondas sem ouvir o falar confuso das pessoas de mau humor da cidade. Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades. Hoje, falar assim faz você perder a entrevista de emprego, afasta pessoas assustadas com seu engrimanço (linguagem obscura) e, na insistência, isola o neoparnasiano.

Não se trata apenas de vocabulário. A ordem da frase, o uso de orações subordinadas, tudo foi transformado. A maior evidência é a dificuldade com o Hino Nacional Brasileiro, calcado em outra estética e inacessível em seu sentido para a maioria absoluta dos brasileiros. Joaquim Osório Duque Estrada fez das "margens plácidas" o sujeito em uma elaborada construção sintática. Soma-se o vocabulário rico (quando você usaria a palavra garrida fora do hino?) a recursos de inversão sintática e... temos uma nação que ama o Hino, todavia o desconhece. É quase impossível cantá-lo com multidões de forma clara. Era uma virtude na época da composição. Tornou-se um fardo para professores que o ensinaram, como eu.

Voltemos a Mário. Éramos ricos pelo uso de duas línguas, uma para escrever e outra para falar. Hoje, a língua escrita, encastelada em palácio de mármore, teve seu fosso terraplenado e suas torres atacadas pelas catapultas do uso coloquial. Se o modernista ironizou a insistência na norma formal lusitana, hoje caminharia em um campo devastado pelo uso que se impôs: a eficácia acima de tudo. Caem parnasianos e florescem especialistas no grande público. Importante é comunicar e nivela-se pelo ponto mais baixo, dando a entender que a oralidade é imperatriz e a formalidade, uma serva imunda que se esconde no porão da cidade conquistada.

Tentarei ser mais direto. Na época do autor de Macunaíma, havia uma luta para que o português falado pelos brasileiros pudesse incorporar o uso corrente sem ficar prestando genuflexão a formas arcaicas ou em desuso. O brado era: vamos ouvir como se fala nossa língua nas ruas sem ficar tentando julgá-la. Tinha imenso sentido para evitar o "preconceito linguístico" quase sempre máscara de demofobia, de horror ao povo e aos pobres em particular.

Passados muitos anos, parece que vivemos o momento oposto. É válido apenas o que é falado na praça e a gramática normativa não tem mais espaço ou sentido. Transitamos da demofobia para a normafobia. Antes, nada; agora, tudo é válido. Quero sempre insistir em três pontos para todos nós, usuários da língua portuguesa: A) ninguém fala a língua com perfeição ou sabe tudo sobre ela; B) a língua é um patrimônio amplo que passa pelo uso em todos os campos; C) a transformação da língua é um processo permanente. Falando do terceiro item: um aluno deve ser estimulado a dominar a linguagem rápida, sintética, sem vogais e com imagens do WhatsApp. Da mesma forma, deve ser levado a decifrar os longos períodos do padre Antônio Vieira ou o vocabulário de Euclides da Cunha.

Acima de tudo, no coloquial livre ou no formal profissional, todos devem ter clareza da adequação e da precisão dos termos empregados. Todos estamos aprendendo sobre a língua portuguesa, sempre. Arrogância ao corrigir alguém são insegurança e dor pessoal. O tempo vai eliminar algumas expressões, apagar (ou seria deletar?) textos e autores, exaltar outros e criar novas formas. Não temos duas línguas (oral e escrita): possuímos inúmeras. A língua é viva e não pertence a uma pessoa. Quanto mais eu conseguir aprender, mais longe vejo e mais alcanço. Língua é patrimônio coletivo e é um imenso privilégio compartilhar o uso da lusofonia com irmãos europeus, africanos e asiáticos. É preciso ter esperança, filha da latina spes, quase sufocada pela imperialista hope. Sempre há esperança quando as pessoas se comunicam.

LEANDRO KARNAL

18 DE ABRIL DE 2020
JULIA DANTAS

DESEJO DE MORTE

No fim de semana passado, a Avenida Paulista foi ocupada por um grupo de pessoas que pedia o fim do isolamento social dançando com um caixão erguido acima dos ombros. Era uma referência ao que ficou conhecido como "meme do caixão". Nele, primeiro há o vídeo de alguma atividade arriscada (digamos, uma manobra de skate). O filme é cortado e seguido de outro breve vídeo: o de uma cerimônia fúnebre de Gana na qual o caixão é levado em meio a uma dança. O rito original serve para celebrar a vida da pessoa que se foi, mas, no meme, a mensagem humorística é a de que a situação inicialmente retratada vai acabar mal.

Outros já referenciaram o tal meme: em Porto Alegre, o vereador Valter Nagelstein já havia gravado um vídeo encenando, com sua família, uma morte por coronavírus. Na semana que passou, o presidente da Embratur fez uma montagem colocando o rosto de Jair Bolsonaro sobre o rosto de uma das pessoas que carrega o caixão. Quando li a manchete sobre isso, achei que era uma crítica ao presidente, mas que nada: a montagem era uma homenagem ao líder. Esse é o Brasil: enquanto a maioria da população (76%) defende as medidas de isolamento social, parte das nossas autoridades ri dos mortos (além de ser incapaz de entender um meme, o que configuraria um problema menor não fosse indício de limitada capacidade cognitiva).

Antes da pandemia - naquele mundo que agora parece pré-histórico - e ainda antes das últimas eleições, muitos de nós alertávamos: essa extrema direita fanática tem um desejo de morte. Hoje, os fanáticos mesmo gritam, dançam e celebram a morte em praça pública. Esse grupo que tomou a Avenida Paulista é ideologicamente o mesmo que vestiu camisetas com a imagem de um torturador: eles agora poderiam muito bem vestir uma camiseta em favor da pandemia.

As estatísticas estão disponíveis para quem quiser ver e mostram que ainda estamos apenas no começo. No Brasil, um quarto dos mortos estava fora de qualquer grupo de risco. Não temos testes suficientes, mas o aumento no número de mortes por problemas respiratórios pode nos dar alguma ideia da profundidade da subnotificação. Apesar de tudo isso, há quem acredite que estamos falando de uma gripezinha, ou que um milagre vai cair dos céus e resolver tudo sem nosso esforço. Dessas pessoas, a gente ainda pode se compadecer: estão, talvez, distantes da ciência ou desorientadas pelo medo.

Já as pessoas que saíram em carreatas pedindo que os outros - aqueles que não têm carro nem plano de saúde - voltem a se expor e arrisquem sua saúde precisam ser responsabilizadas. Quem, de dentro de seu carro de luxo, pede o fim da quarentena está em campanha pela morte dos que andam de ônibus e trabalham aglomerados; quem diz que o vírus mata apenas velhinhos está em campanha pela morte de idosos; quem lê que uma vítima tinha diabetes e decide culpar a diabetes em vez do coronavírus está em campanha pela antecipação da morte. Desejam a morte alheia e talvez não percebam que, ao mesmo tempo, enveredam por um caminho suicida.

Escritora, autora do romance Ruína y Leveza | JULIA DANTAS
18 DE ABRIL DE 2020
COM A PALAVRA - GONZALO VECINA NETO, Médico sanitarista, 67 anos

O SUS É ÓTIMO. MAS MAL GERIDO. PORQUE O ESTADO É MAL GERIDO.


Professor da USP, foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Anvisa, além de ex-secretário da Saúde de São Paulo e superintendente do Hospital Sírio-Libanês

Não é utopia: nomes técnicos de referência podem resistir a ideologismos passageiros, ocupando cargos importantes em governos de variadas matizes do espectro político. Gonzalo Vecina Neto é um exemplo. Defensor do Sistema Único de Saúde (SUS), ele foi um dos mentores (e o primeiro presidente) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Depois, aceitou o convite de Marta Suplicy, então prefeita de São Paulo pelo PT, e foi secretário de Saúde da maior metrópole do país. Professor da Universidade de São Paulo (USP), ainda dirigiu o Hospital Sírio-Libanês, tornando-se um dos gestores de saúde mais experientes do Brasil - e uma das cem personalidades mais influentes da área no país, segundo a revista HealthCare Management. Sobre a crise decorrente da pandemia de coronavírus, pode-se dizer que seu olhar é, na medida do possível, otimista.

- Aparentemente, nosso sistema não vai colapsar - diz, prevendo uma diminuição gradual do isolamento da população. Mas não deixa de ser crítico:

- Espero que a sociedade acorde para a necessidade de garantir políticas públicas de saúde que construam um futuro menos desigual para as pessoas.

SEM O SUS, É A BARBÁRIE. UMA CITAÇÃO DESSA SUA FRASE ABRIU A COLUNA DE DRAUZIO VARELLA EM ZERO HORA NO DIA 4 DE ABRIL. EM TEMPOS DE PANDEMIA, UMA SAÚDE PÚBLICA DE QUALIDADE É A ÚNICA FORMA DE FUGIR DA BARBÁRIE?

Vou responder lembrando como a Europa viveu seus últimos 15 ou 20 anos. Nesse período, os países europeus tentaram se readaptar a uma nova realidade, com novos parâmetros econômicos e de produção, buscando minimizar a importância de vínculos empregatícios, desregulamentando serviços, enfim, diminuindo o Estado. O resultado dessa experiência está se vendo agora, quando uma pandemia chegou e a saúde pública se mostrou enfraquecida para lidar com essa situação: há milhares e milhares de mortes, dificuldades generalizadas em todos os países, inclusive aqueles com melhores índices econômicos.

Por lá, já está ficando claro para todos os europeus que essa experiência não deu certo. Eles sacrificaram uma parte da civilidade que construíram em nome desses princípios que se revelaram monstruosos. Os partícipes de uma sociedade moderna precisam ter garantias de direitos mínimos de sobrevivência - o que vinha sendo deixado de lado e agora, infelizmente, cobrou seu preço de modo muito eloquente. Aqui no Brasil, temos de acordar para isso também. Temos de tomar as lições que a experiência europeia nos legou e entender que o Estado precisa dar essas garantias.

A PANDEMIA NÃO É UM MOMENTO DE EXCEÇÃO?

Precisamos estar preparados para momentos de exceção. Em 2016, quatro anos antes do coronavírus, vimos ser aprovava a Emenda Constitucional 95, que limitou gastos do Estado. "Não congelou os gastos da saúde", dizem seus defensores, "mas sim os gastos públicos; cabe aos governantes fazerem os cortes nas áreas que bem entenderem". Mas isso é uma balela. Houve determinação de cortes. Isso é diminuir o Estado, o que se mostrou um problema. Ao final da pandemia, espero que a sociedade acorde para isso, para a necessidade de construir políticas públicas de saúde que construam um futuro menos desigual para as pessoas. Em uma situação de emergência como o atual, a população marginalizada, as pessoas que vivem nas periferias ou mesmo da informalidade, que somam 40% dos brasileiros, ficam em uma condição de extrema vulnerabilidade. Todos estamos vulneráveis, mas alguns são ainda mais do que os outros. Esses milhões de brasileiros não podem ficar desassistidos. É nesse sentido que digo: em uma sociedade desigual, não há como garantir segurança social para seus partícipes. A distribuição equânime do direito à assistência de saúde está intimamente ligada à segurança social de todos.

OS EUA, PAÍS MAIS ATINGIDO PELA PANDEMIA, TÊM UMA EXPERIÊNCIA AINDA MAIS RADICAL DE AUSÊNCIA DO ESTADO NA ÁREA DE SAÚDE.

Os EUA, em saúde, são exemplo para nada. A média de gastos dos países europeus na área se situa entre 10% e 12% do PIB. Os EUA gastam 18%, o que dá mais ou menos US$ 7 mil per capita por ano. O Brasil, para se ter uma ideia, embora a alta do dólar demande uma atualização desse cálculo, vinha gastando entre US$ 10 mil e US$ 12 mil. Imagina: gastar tudo isso e não fornecer saúde pública para os cidadãos, ter expectativa de vida mais baixa e índices de mortalidade infantil muito menores, na comparação com os europeus... O sistema norte-americano é todo partido, tem o Medicare, o Medicaid, um regime para funcionários de empresas com mais de 50 trabalhadores, outro para empresas com mais de 50, outro para veteranos de guerra, enfim, é uma salada. E, no fim, você precisa ter um plano privado - sob pena de não ter assistência. Isso não dá certo, tanto que desde o governo Obama há movimentações para mudar essa realidade.

Paradoxalmente, os EUA são talvez o país que mais investe em pesquisa científica em saúde.

Isso se explica pela expectativa de ganhos. Veja bem: não quero dizer que sou contra o capitalismo. Não é isso. É o sistema em que vivemos e que triunfou. Isso está posto e não vai mudar. O que não quer dizer que o lucro tenha de pautar todas as nossas tomadas de decisão. O que faz um padeiro feliz pode não ser apenas o dinheiro que ele ganha vendendo pão, mas a satisfação do cliente, os laços com a comunidade a partir do produto que ele faz. A ciência e tecnologia, especialmente nos EUA, é totalmente dirigida pelo apetite das multinacionais em produzir produtos com patentes que lhes garantirão ganhos financeiros.

Veja, agora, essa questão dos EPIs (equipamentos de proteção individual usados pelos médicos e agentes da saúde): sua produção foi transferida para Índia e China, porque a mão de obra é mais barata. Funciona bem em momentos de normalidade, mas estourou uma pandemia e não há mais EPIs para o mundo todo. Pessoas morrem por falta de equipamento. É a mesma coisa com relação ao teste PCR (que detecta a presença do coronavírus): centralizamos a produção onde era mais em conta e agora faltou. A ausência de uma relação mais sólida e responsável entre o capital e o trabalho, no âmbito da saúde, teve consequências desastrosas. Precisamos refletir sobre isso.

corremos hoje o risco de um colapso no sistema de saúde do Brasil?

Se um país como a Itália colapsou, essa possibilidade existe, sim. Se não controlarmos o número de casos, e eles forem maiores do que a nossa capacidade de atender, claro que sim. Porém, se você perguntar minha impressão sobre a possibilidade de haver esse colapso a partir do que estamos vendo, minha resposta é não. Aparentemente, nosso sistema não vai colapsar. Estamos fazendo uma quarentena que não é tão radical, mas que, me parece, começou na hora certa, a tempo de evitar a propagação maior do vírus. É verdade que nosso presidente não consegue ajudar muito, mas os governadores tomaram a frente da situação e determinaram procedimentos adequados. Acho que isso será suficiente para nos salvar do pior.

Há muitos casos de doenças respiratórias nesta época, com a aproximação do inverno. Isso não pode piorar a situação?

Um período crítico é março-abril. Nesses dois meses, endemicamente, registramos no Brasil um aumento de casos de gripe sazonal e outros males respiratórios. Falo do Brasil como um todo - temos de considerar que o Sul fica mais frio, mas outras regiões, nem tanto. Neste ano, graças à quarentena, março-abril foi leve nesse sentido. Os pronto-socorros infantis, neste momento, estão com 10%, 15% de sua capacidade ocupada, somente. Isso é um claro reflexo da interrupção das aulas. As crianças não estão indo à escola. E a escola é onde as crianças trocam material biológico.

É de lá que elas levam esse material para outros locais, suas casas, seus prédios. Só o fato de essa troca entre as crianças estar interrompida já é suficiente para frear dramaticamente o avanço de endemias respiratórias, o que traz consequências importantes para a luta contra o coronavírus: apesar de não haver marcadores da transmissão da covid-19 - porque nos faltam PCRs para testar as pessoas que têm os sintomas -, é perfeitamente possível presumir que seu avanço foi igualmente freado. Também por isso março e abril são meses críticos: é o período em que as trocas ocorrem mais intensamente, depois das férias de verão e do reinício das aulas.

cientistas brasileiros conseguiram decodificar o vírus rapidamente, em apenas 48 horas. Não é possível fazer PCR?S a partir disso?

É possível e foi feito, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e laboratórios, mas não em grande quantidade. Temos poucos equipamentos de testagem, daí só podemos testar para conseguir direcionar o paciente que já tem forte sugestão de estar com a covid-19.

qual a consequência de não se entender precisamente quantas pessoas morreram, quantos são assintomáticos, entre outras respostas que os testes trariam?

É um problema. Ficamos com menos informação para fazer o controle de propagação do vírus, por isso o esforço do poder público em importar testes mais rápidos. Além do equipamento para testes em si, é importante importar dados de países que testaram mais pessoas, casos da China e da Coreia do Sul. Temos uma informação valiosa, que veio do sudeste asiático, que é a de que 80% das pessoas que foram infectadas tiveram a covid-19 de forma muito branda ou imperceptível. Isso significa que devem existir muitos assintomáticos. Mas essa é uma presunção, que deve ser considerada levando em conta que nossas condições sociais são distintas das de uma região tão distante.

O senhor considera que já é possível pensar em fim de quarentena? Se não, quando será?

A suposição que nós temos é de que o pico da epidemia vá ocorrer nos próximos dias. Está todo mundo dizendo que o pico está chegando, e chegando, mas ele não chega. É porque, ao que parece, estamos conseguindo controlá-lo. Ótimo. Mas estamos ou no momento mais crítico ou chegando nele nos próximos dias. Nós fizemos uma preparação, aumentando leitos, construindo hospitais de campanha. Foi suficiente? Ainda não sabemos ao certo. Pode ser que nem seja necessário tanta coisa, depende de como o vírus vai se propagar. Mas é melhor assim do que pagar para ver as mortes, como sugeriu o ex-ministro Osmar Terra. O que me parece claro é que, enfim, em cerca de duas semanas, mais ou menos, ou seja, até o fim de abril, a gente vai ter uma noção mais clara dessa chegada ou não do pico da doença. E aí vamos poder tomar as decisões sobre aliviar ou não a quarentena. É certo que a saída do isolamento terá de ser gradual. Quando? Vamos saber melhor em poucos dias.

Mesmo que ainda não tenhamos medicamentos com eficácia comprovada?

Tudo o que falo parte da premissa de que não teremos medicamentos. Isso demora, não tem como ter comprovações tão rapidamente. A cloroquina, até agora, não recebeu nenhum estudo sério. Então, por enquanto, ela é uma perigosa promessa. Por que perigosa? Porque já sabemos que ela produz danos, que tem efeitos colaterais importantes. Ou seja, ainda não sabemos se ela é com certeza eficiente contra o coronavírus, mas já conhecemos sua possibilidade de trazer malefícios às pessoas. Seu padrão de segurança em tratamentos para malária e artrite é um; no caso da covid-19, é outro.

Como será a convivência pós-quarentena sem medicamentos de eficácia comprovada e sem a expectativa imediata da existência de uma vacina?

A hora em que a epidemia começar a arrefecer, poderemos presumir que um grande número de pessoas já teve a doença. Não podemos esquecer dos assintomáticos, que são muitos, como já falamos. Então, mesmo que ainda tenhamos casos, estará claro que ela começa a ser controlada pelo nosso organismo. Agora, se depois de abrir a quarentena os casos subirem muito novamente, teremos de voltar tudo. É preciso ter humildade, respeitar o inimigo, que já demonstrou ser muito forte. E seguir tendo recomendações especiais com os grupos de risco: maiores de 60 anos e portadores de algumas patologias.

recomendações das autoridades de saúde, incluindo as do ministério da área, não têm sido cumpridas pelo presidente jair Bolsonaro. Como ficará esse processo de saída da quarentena se essa situação de orientações contraditórias permanecer?

Veja bem. A sociedade está submetida a um acordo social escrito chamado Constituição Federal, cujo guardião é o Judiciário, ou, no nosso país, o Supremo Tribunal Federal (STF). E o STF já disse que é da responsabilidade dos Estados decidir sobre o isolamento social nestes tempos de pandemia. Por isso, apesar de o Ministério da Saúde dizer uma coisa e o presidente, que é responsável pelo governo ao qual o ministério está vinculado, dizer outra, temos uma certa tranquilidade: quem vai coordenar a saída da quarentena são os governadores, que têm se mostrado alinhados com o ministério.

Ao falar sobre os sistemas de saúde anteriormente, o senhor reiterou sua preocupação com a desigualdade. Como avalia o sus hoje? Temos um sistema satisfatório ou que precisa avançar? nesse caso, em que aspecto?

O SUS tem problemas. Por ser um sistema complexo, não há soluções simples. Acredito que seja impreterível ter um financiamento melhor. O que é isso? Um gasto público maior. Hoje, o Ministério da Saúde financia 42%, 43% dos gastos do SUS. Esse índice já chegou a ser de 52%. Em meio a essa queda, governos estaduais e municipais tiveram de aumentar seu gasto com o sistema - e o fizeram. De toda forma, não estamos passando dos 45% de financiamento público à saúde. Ou seja, 55% saem dos bolsos das pessoas ou das empresas. Isso significa que mais da metade do investimento é feito para benefícios individuais. Não constrói pontes para sanar a desigualdade, que, em se tratando de saúde, é o grande nó a ser desfeito.

Na Europa, os países ainda têm como gasto público, apesar de terem feito movimentos para a diminuição disso, 70%, 80%. É bem mais do que nós. Então temos uma questão a resolver. Defendo que temos de aumentar o gasto público e, além disso, aumentar a capacidade de o Estado financiar esse gasto. O dinheiro público da saúde tem de vir de impostos diretos, progressivos, ou seja, sobre a renda, e não regressivos, que incidem sobre o consumo. O imposto precisa servir para criar pontes para a igualdade, é assim que uma sociedade civilizada deve ser, com os ricos pagando mais para que isso se traduza em saúde para todos, incluindo os pobres.

o sistema brasileiro de saúde também gera desigualdade social?

Vou dar um exemplo. O modelo de incorporação de tecnologia do SUS é regido pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias), que avalia as possibilidades e aprova ou não o uso de determinadas ferramentas no sistema. Ao mesmo tempo, existe a Agência Nacional de Sáude Suplementar (ANS), que atualiza o rol de procedimentos dos atendimentos para quem tem plano de saúde de modo quase automático. Isso significa dizer que temos dois sistemas, um para os ricos, que é o da ANS, atualizado rapidamente, e outro para os pobres, que é o Conitec, mais burocrático. Esse é um retrato da desigualdade que precisa ser combatida no sistema brasileiro, sob pena de nos deixar muito mais vulneráveis como sociedade, afinal, as consequências disso são sentidas por todos, nem precisaríamos de uma pandemia para perceber isso.

que outras lições a pandemia pode deixar para nosso sistema de saúde?

Duas coisas, ainda. A primeira é a digitalização do sistema. O Estado brasileiro não está digitalizado. O desenho administrativo do Estado data de cinco décadas atrás, lá dos anos 1960. Não modernizamos quase nada desde então. E é uma dificuldade... Em 2019, o Conselho Federal de Medicina (CFM) proibiu a telemedicina por uma razão absolutamente corporativista. Para defender os empregos na área, foram contra um recurso que garantiria o acesso à medicina de massas que hoje estão desassistidas. Isso é ininteligível.

Hoje você não consegue garantir acesso à ultrassonografia para muita gente porque atrás do equipamento deve ter um médico. Por que não um técnico, apenas, que depois envia as imagens a um médico? É uma vergonha isso. O Estado brasileiro está atrasado. O SUS é ótimo. Mas mal gerido. Porque o Estado brasileiro é mal gerido. A segunda questão: criar uma rede integrada de acessos, fazer as redes municipais e estaduais conversarem. Não há integração da massa de serviços disponível na sociedade, em grande parte devido a questões políticas, broncas de uma administração com outra. O acesso precisa ser regulado, implantando uma atenção primária universal, em que as redes regionais conversem, otimizem o acesso à saúde.

É claro que evoluímos: antes do SUS, as pessoas compravam um plano de saúde com direito, por exemplo, a 15 dias de UTI por ano. Precisou de 16? Azar, morreu. Isso mudou, inclusive planos de saúde melhoraram. E eles podem seguir existindo, oferecendo opções extras de atendimento, mais conforto no tipo de cama, mais espaço, televisão no quarto, menos fila de atendimento etc. Defendo a coexistência de modelos de saúde pública e privada. Mas a diferença não pode ser a vida e a morte. Precisamos aperfeiçoar o sistema justamente para diminuir essa diferença.



18 DE ABRIL DE 2020
DRAUZIO VARELLA

AS ENFERMEIRAS

Mais do que os médicos, elas têm papel decisivo na linha de frente contra o coronavírus. A assistência médica no Brasil é centrada na figura do médico. A epidemia que enfrentamos agora, provocada por um vírus contra o qual ainda não existe vacinas nem medicamentos específicos, ressalta o papel decisivo de enfermeiras, técnicas de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogas e o pessoal de limpeza e desinfecção das enfermarias e UTIs, enquanto reserva aos médicos funções mais discretas nas equipes que atuam nas linhas de frente.

É voz corrente que as enfermeiras ajudam os médicos a cuidar dos pacientes, inversão de valores injusta: nós é que as ajudamos, quem cuida são elas. O padrão de atendimento de um hospital ou de um serviço ambulatorial de saúde é estabelecido pelo corpo de enfermagem, aos médicos cabe interpretar exames, definir as linhas gerais do tratamento e prescrever as medicações indicadas.

Diante de uma epidemia dessas, em que receitamos apenas drogas para aliviar sintomas e cuidados respiratórios que dependerão de fisioterapeutas para os exercícios necessários e o ajuste fino dos aparelhos de respiração mecânica, nossas prescrições têm impacto limitado na evolução dos infectados, especialmente daqueles em estado grave.

Amparar o doente enfraquecido no caminho até o banheiro, pegar veias invisíveis para administrar soro e antibióticos, trocar o pijama e os lençóis da cama, recolher a urina, dar banho depois de um episódio de diarreia e tranquilizá-lo nos momentos de fragilidade psicológica na solidão das madrugadas, não são tarefas realizadas por médicos.

Para alguém que se recupera de uma pneumonia, são fundamentais os exercícios respiratórios e os procedimentos que dependerão do contato direto com o doente e do empenho de fisioterapeutas. O médico se limita a anotar na prescrição: fisioterapia respiratória.

Ciosos de nossa exclusividade dos assim chamados atos médicos, impedimos que outros profissionais exerçam atividades para as quais foram preparados, depois de frequentar quatro ou cinco anos de universidade, muitas vezes seguidos de cursos de pós-graduação. Não deixamos que se encarreguem sequer de alguns acompanhamentos ambulatoriais que não conseguimos fazer. Entre outros exemplos, o controle da pressão arterial de quem sofre de hipertensão, crucial para evitar complicações que encurtam a vida e aumentam os custos do SUS e da Saúde Suplementar. Entregamos aos pacientes uma receita com os medicamentos que devem tomar, muitas vezes sem esclarecer com a devida ênfase a natureza crônica da doença e suas possíveis consequências nem reforçar a necessidade da aderência ao tratamento.

O resultado é catastrófico. No fim do primeiro ano, perto da metade interrompeu a medicação. Entre os demais, estão os que o fazem de forma irregular e aqueles que mantêm níveis pressóricos ainda elevados sem desconfiar.

Se os controles da hipertensão e de outros enfermidades crônicas ficassem a cargo da enfermagem e dos farmacêuticos que a legislação obriga a estar presentes na farmácia da esquina, em contato direto com os pacientes, não seria mais inteligente? Não é ridículo obrigar estudantes a passar quatro anos nas faculdades de Farmácia e Bioquímica, para deixá-los de plantão em funções burocráticas, nas drogarias?

É claro que não caberia a esses profissionais prescrever hipotensores, hipoglicemiantes, antibióticos e outros tratamentos que exigem formação especializada, mas explicar como os remédios devem ser tomados, quais os efeitos colaterais mais comuns, as possíveis interações medicamentosas e encaminhar ao médico aqueles com má resposta à medicação prescrita.

Pequenos municípios com grande dificuldade para atrair médicos podem estruturar as equipes do Estratégia Saúde da Família - considerado um dos melhores programas de saúde pública do mundo - sob o comando de enfermeiras que tenham acesso a unidades básicas de saúde de cidades mais próximas, para transferir os casos que não cabem a elas resolver.

Não se trata de deixar que os mais pobres recebam cuidados precários, mas de garantir acesso à assistência aos que não têm nenhuma. Basta criar protocolos com critérios rígidos, de modo que cada profissional conheça os limites de sua atuação e possa executar as funções para as quais foi preparado.

Que a epidemia sirva para criarmos novos modelos de atenção à saúde.

DRAUZIO VARELLA


18 DE ABRIL DE 2020

BRUNA LOMBARDI


Nova flor


Vai passar. Vamos vencer essa guerra e superar a maior crise mundial do século, e o que vamos aprender com isso? O que de fato vai mudar?

Tivemos muitas perdas, mortes, sofrimento, isolamento, solidão. Mas também participamos de um dos maiores e mais constantes exercícios de solidariedade, vimos de repente mais união, mais compreensão da nossa pequena condição humana. Não somos invencíveis e precisamos urgente de um nova perspectiva, uma nova consciência.

Nessa situação surreal, somos forçados a olhar o todo e compreender que estamos todos diante de um poder maior. Em tudo existem dois lados, e precisamos reavaliar o que nos move, nos rege, nos guia.

Essa tremenda crise econômica vai finalmente nos obrigar a repensar o nosso sistema? A desigualdade social, que a gente acabou aceitando como uma regra, mostra que o fio que separa cada um de nós é extraordinariamente frágil.

Quem sabe nessa imensa lição de humanidade possa nascer mais empatia, gentileza e gratidão entre estranhos? De repente chega a hora da colheita das sementes que plantamos, das verdades que escondemos de nós mesmos, daquilo tudo que a gente não soube ou não quis lidar.

Não há mais tapete para esconder sujeiras e vamos ter que encarar e limpar, limpar os cantos mais escuros da casa e da alma. Limpar a mente, abrir o coração e deixar entrar o sol, a luz, a ventania.

Dizer aquilo que não tivemos coragem de dizer, de enfrentar, confrontar nossos medos e mostrar tudo o que dói.

A crise revela quem somos e o que precisamos fazer. O lado bom é que a gente vai se livrar do peso, do acúmulo, das coisas que a gente foi deixando e fingindo não ver. Não tem jeito mais. A mudança começa agora. E vai fazer um bem danado, por mais difícil que seja essa travessia.

A gente vai descobrir uma coragem que não sabia que tinha, que se apresentou na hora certa, porque quando a gente precisa, a coragem sempre aparece.

É hora de limpar o que nos intoxica porque ninguém tem tempo mais pra coisas que nos fazem mal.

A gente vai querer muito abraço sincero, muito colo, muita lágrima e desabafo, beijo e carinho com uma intimidade que só o amor permite.

Relações de amor, afeto e amizade só vão sobrar as verdadeiras e a gente vai dar o maior valor para cada uma.

A gente vai querer dar mais risada, brincar mais, deixar fluir porque precisa equilibrar o que passou com muita leveza e boa energia.

Uma força vai nascer dentro de nós e desabrochar como uma flor, que depois de um longo inverno sente no ar a mudança do solstício e se prepara pra nova estação.

Vai passar. E a gente vai se preparar agora para uma nova primavera na nossa vida, para um despertar de uma nova pessoa, uma nova consciência.

Temos a possibilidade de reescrever nossa história e buscar as coisas que a gente quer, porque ainda é possível. E deixar pra trás o que já não nos traduz e nem representa a pessoa que queremos ser. A vida é agora.

Dizem que para quem não acredita, nenhuma palavra é possível. Para quem acredita, nenhuma palavra é necessária. Deixe a sua flor desabrochar.

BRUNA LOMBARDI

18 DE ABRIL DE 2020

ENTREVISTA

"A PANDEMIA ACIONOU NOSSO ESPÍRITO DE CRIATIVIDADE"

ENTREVISTA, Edson Luiz André de Sousa, Professor titular do Instituto de Psicologia da UFRGS e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)

Dias atrás, em seu perfil no Facebook, o psicanalista gaúcho Edson Luiz André de Sousa fez um post intitulado "Sobre o que nasce, apesar de tudo". No texto, que incluía um fragmento do poema É sobre de repente abrir alguma coisa, de Lorenzo Ganzo Galarça, ele refletiu sobre "a sinfonia imensa dos gestos solidários, das palavras de afeto, das imagens de esperança" produzidas aos milhares dentro das casas durante a quarentena imposta pelo coronavírus. Contou, então, sobre uma atitude mínima mas comovente de sua filha, Alice Tessler, que lhe presenteou com alguns grãos de feijão em um algodão, "cena tão familiar para muitos de nós, nos reconectando com a infância mais autêntica".

No espaço sobre a foto do tal vasinho, o pelotense de 60 anos, radicado desde os 11 em Porto Alegre, escreveu: "Não é suficiente, mas são destes gestos que precisamos nos alimentar. Fico sonhando com tantas germinações acontecendo por aí. (...) Está na hora de renovar as sementes. Precisamos plantar o que gera vida, enquanto é tempo".

- Somos obrigados a encontrar estratégias de sobrevivência diante deste cenário de morte. A pandemia acionou nosso espírito de criatividade. Espero que isso nos enriqueça no futuro - diz Sousa, que, nesta entrevista, fala sobre a importância do fortalecimento dos laços afetivos e das redes de apoio (que geram um sentimento de pertencimento ao mundo) e sobre o poder da arte, capaz de "nos despertar, uma forma de ativar nossa consciência diante da realidade que vivemos e da realidade que desejaríamos viver".

O que é viver nos tempos de coronavírus?

É um desafio para cada um de nós, pois fomos abruptamente confrontados com uma sensação generalizada de desamparo. Para muitas pessoas, trata-se de algo poucas vezes experienciado na vida. Ao mesmo tempo, somos obrigados a encontrar estratégias de sobrevivência diante deste cenário de morte. A ideia de contaminação se impôs e, paradoxalmente, vivemos a ambiguidade de nos distanciar fisicamente de nossos parentes, vizinhos, amigos, mas também de estreitar laços afetivos, compensando em parte esse distanciamento. A angústia também se fez presente, na medida em que o coronavírus desafia o saber humano e a ciência, já que ainda não temos respostas para o tratamento e vacina. Foi possível identificar imediatamente reações díspares que vão desde uma negação completa até situações de pânico. 

O fato de ser um acontecimento mundial também tem sua relevância, pois embora cada país esteja vivendo a pandemia de uma forma singular, há uma vivência compartilhada no mundo todo. Se por um lado vemos algumas atitudes colaborativas, por outro nos assustamos com uma espécie de guerra sanitária que surge, com aviões sendo retidos em alguns países com máscaras e equipamentos hospitalares, enfim, um verdadeiro horror. No Brasil, particularmente, a situação do vírus colocou também em pauta nossa situação política, sobretudo pela negligência com que o presidente do Brasil vem lidando com esta situação. Está muito presente para todos aquela cena em que, desrespeitando a quarentena, saiu apertando a mão de seus simpatizantes. De alguma forma, o vírus trouxe à cena a necessidade de lermos a história de nosso tempo. No que diz respeito à vida privada, a pandemia nos exigiu criar novos estilos de vida e estratégias de sobrevivência. Enfim, acionou nosso espírito de criatividade.

Os sentimentos bonitos que afloraram, como empatia e solidariedade, vão permanecer? Estamos diante de uma revolução comportamental?

Meu desejo é de que permanecessem, mas tenho minhas dúvidas. Esta empatia e esta solidariedade, tão presente em muitas pessoas, está longe de ser unânime. Vemos redes de apoio aos mais vulneráveis se multiplicando, mas, ao mesmo tempo, pessoas virando as costas para o mundo, se preocupando única e exclusivamente com sua sobrevivência e suas estratégias de isolamento. Isso é algo que vem sendo bastante debatido: o fortalecimento das redes de apoio, que já existiam mas que agora precisam ainda mais estarem em pauta. De toda forma, me parece impossível que a vida seja retomada normalmente como era antes. Li recentemente em um poema de Alberto Pucheu, poeta e professor na UFRJ, intitulado "Poema para a catástrofe do nosso tempo", a referência de um grafite em Hong Kong onde estava escrito: "Não podemos voltar ao normal, porque o normal era exatamente o problema".

Este vírus colocou em cena muitas das fragilidades de nosso pacto social e, entre eles, o mais escancarado de todos que é a desigualdade social. Uma hipótese a levar em conta é de que, depois que tudo passar, seremos todos de certa forma sobreviventes. Quem sabe esse sentimento não despertará em nós outros valores, outras prioridades, outro estilo de viver? Estamos testemunhando várias situações de familiares distantes se aproximando, de amigos voltando a falar, de pais e mães convivendo mais com os seus filhos, de muitas pessoas tendo que fazer atividades que antes delegavam, como cuidar da casa, fazer comida. Espero que isso nos enriqueça no futuro.

Para alguns, a quarentena é uma privação de prazeres e da rotina, uma dor de cabeça mais longa. Para outros, pesa mais: pode já ter significado o desemprego e a falta de dinheiro para alimentar a família. Para além do auxílio econômico, como se pode contribuir para a saúde mental dessas pessoas?

Tens razão em apontar esta diferença brutal no que diz respeito à desigualdade social. Inclusive, é paradoxal percebermos o quanto a indicação "fique em casa" escancara o fato de que milhares de pessoas não têm casa ou vivem em habitações precárias. As orientações de higiene também evidenciam isso, pois uma numerosa população não tem acesso a saneamento básico e água tratada. A esperança é de que esta pandemia, mais uma vez, funcione como um alerta ao mundo de que não poderemos seguir vivendo diante de tal desigualdade social.

No que diz respeito à saúde mental, eu sublinharia dois fatores importantes: o papel dos laços afetivos tanto com as pessoas mais próximas, familiares, amigos, como eventualmente com pessoas mais distantes em gestos solidários. Tais atitudes geram no sujeito um sentimento de pertencimento ao mundo, de valor, e isto é fundamental para a sua saúde psíquica. Um segundo fator, que considero importante, é a esperança. Poder imaginar um mundo melhor depois de tudo isso traz um pouco de apaziguamento à angustia. Imaginar um futuro aciona o que temos de mais precioso para nossa saúde psíquica: desejar.

Percebi, nos seus posts no Facebook, que o senhor lança mão de filmes (como o iraniano Onde Fica a Casa do Amigo?), de poemas, de pinturas para refletir sobre o que estamos vivendo. Qual é o papel da arte neste momento?

O papel da arte é fundamental. A arte sempre foi um meio de ver e ler o mundo de forma crítica, acionando assim nossa responsabilidade diante do que vivemos. Não penso a arte como algo contemplativo e que levaria o sujeito a um anestesiamento. Pelo contrário, penso a arte como uma forma de despertar, como uma forma de ativar nossa consciência diante da realidade que vivemos e da realidade que desejaríamos viver. Outro fator relevante é que muito da produção criativa traz junto narrativas da história e de como podemos aprender com as experiências que a humanidade já viveu. Não necessariamente encontramos as respostas na arte, mas certamente ativamos, com muito mais ênfase, as perguntas, as boas perguntas. A arte sempre nos abre um direito de sonhar e, portanto, de certa forma uma utopia. Como dizia Ezra Pound (poeta americano, 1885-1972), "os artistas são a antena do seu tempo".

Em tempos de aperto no orçamento doméstico, a cultura tende a ser enquadrada como supérflua. É possível viver longe dela? Quais são os prejuízos?

A cultura é essencial, pois ela funciona como uma espécie de espelho de uma determinada época. Uma sociedade sem cultura é vazia e pobre de espírito e tende muito mais facilmente a seguir cegamente qualquer ideia, qualquer líder, sem muito questionamento. Não podemos esquecer que a cultura, além de nos conectar com a história de uma determinada sociedade, também nos abre novos futuros, pois aciona nos sujeitos a consciência de que são eles que fazem esta história. Uma sociedade que não dá valor à cultura abre espaço para a barbárie!

É possível ser criativo em meio à ansiedade, ao estresse, ao medo?

Sim. Em primeiro lugar, é importante salientar que ser criativo não significa necessariamente criar obras de arte. Podemos ser criativos reinventando nosso cotidiano, buscando desenvolver outros olhares sobre o mundo. Mudar um hábito, algo ao mesmo tempo simples e complexo, não deixa de ser uma proposição criativa. Resgatar uma habilidade adormecida, imaginar uma receita diferente, anotar os sonhos que teve à noite, e tantas outras coisas que podemos descobrir bem perto de nós, ativa também nosso poder de criação.

Até diria que nestas situações a força criativa surge como estratégia de sobrevivência, e por vezes, com mais força. Temos vários relatos de obras criadas em situações extremas. Primo Levi produziu toda uma literatura a partir de sua experiência em campos de concentração (Náufragos e Sobreviventes, É Isto um Homem?). Dostoievski escreveu Memórias do Subsolo diante do leito de morte de sua mulher em uma situação desesperadora de crise financeira. Graciliano Ramos iniciou a escrita de Memórias do Cárcere na prisão.

Nessas horas de desamparo e medo, a criação surge como oxigênio abrindo para o sujeito alguma saída. Mesmo em situações em que uma saída não se anuncia para o autor, criar algo tem a força de servir como testemunho. O artista deixa seu registro para a história, cumprindo assim a importante função de testemunhar. No ano passado, eu vi na Biblioteca Nacional em Paris uma exposição intitulada Manuscritos no Extremo. Ela mostrava justamente algumas criações geradas em situações extremas de violência, desamparo. Ao mesmo tempo que essas produções são hoje documentos históricos de catástrofes vividas, são sobretudo monumentos à vida. Nestas horas, lembro sempre de Holderlin (filósofo alemão, 1770-1843): "Lá onde está o perigo, cresce também o que salva".

Dá para imaginar o que artistas, escritores etc estão criando?

Difícil saber, mas certamente estão trabalhando. Vejo várias iniciativas de artistas que estão surgindo. Produções colaborativas, propostas de exercícios de escritas diárias, novas parcerias de trabalho. Certamente, uma parte da história do que estamos vivendo será contada por esta produção que se prepara em silêncio nos bastidores, exatamente como este vírus que circula sem sabermos exatamente por onde circula. Já ando lendo alguns textos, alguns poemas. Entre eles, me impressionou muito o trabalho do poeta Alberto Pucheu, do Rio de Janeiro, e sua série Poema para a catástrofe do nosso tempo. Por aqui, um amigo artista, Leandro Selister, criou um grupo no Facebook, Nosso olhar, convidando as pessoas a compartilharem uma foto de sua janela durante a quarentena. Estamos vendo a construção de uma grande poesia visual!

Que outras atitudes positivas podemos ter frente à pandemia?

A pandemia abre a chance para cada um de nós rever seus valores, seu estilo de vida, sua forma de habitar o tempo. Muitos estão tendo a surpresa de se reencontrar com amizades esquecidas, com livros guardados na estante. Como nunca, é tempo também de pensar no outro e, neste sentido, acho que colocar em ação movimentos solidários. Isso se faz ainda mais urgente quando o Estado não cumpre a função que deveria cumprir, em vir em auxílio das populações mais vulneráveis. Acho que esta pandemia nos ensina também o papel da informação e que é nossa responsabilidade buscá-la de forma crítica. A onda de fake news que o mundo vive há alguns anos é outro vírus que temos de enfrentar.

Dar valor ao tempo que temos e nem sempre percebemos. A vida não é só trabalho. Precisamos acionar outra ocupações do nosso tempo. Abri tempo e espaço para leituras que estava a horas para fazer, uma delas é reler Ernst Bloch e sua trilogia Princípio Esperança. Há muito anos trabalho com o tema das utopias e acho que, neste cenário de distopias que vivemos, precisamos ativar nossas esperanças autênticas. O cenário que temos é preocupante, e a imagem da morte ronda nossos pensamentos. É fundamental criarmos e ampliarmos nossos espaços de vida. Eles não são uma vacina contra o vírus, mas nos fazem mais fortes psiquicamente para enfrentá-lo. Nestas horas, uma palavra pode fazer toda a diferença.

TICIANO OSÓRIO