sábado, 23 de maio de 2020



23 DE MAIO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Diário de uma advogada estressada

Seguindo a série de podcasts e páginas como sugestão para se ler e ouvir no distanciamento social - que pode até ser flexibilizado, mas não vai acabar tão cedo -, hoje a coluna apresenta a advogada estressada, que se confunde com sua própria autora. Ela se chama Saíle, uma auto-homenagem de seu pai, Elias, que escreveu o próprio nome de trás para a frente. E gostou. Saíle Barbara, porque Elias também era devoto da santa. Ana Paula, o nome que a mãe, dona Jane, queria, perdeu de goleada. Conheci a Saíle Barbara Barreto em uma oficina de escrita criativa, e lá tomei conhecimento de que a página dela no Facebook, Diário de uma Advogada Estressada, tinha 70 mil leitores. Poucos meses depois, já são 90 mil. Números de best-seller que a Saíle, advogada em Florianópolis que coleciona Barbies nas horas vagas, não cansa de aumentar com suas histórias bem-humoradas.

Filha e neta de professoras, ela conta que cresceu em uma casa cheia de livros, sempre incentivada a ler. Foi contando os causos de seu cotidiano de ações de divórcio, litígios e alguns barracos - todos devidamente protegidos pelas liberdades da ficção -, que Saíle começou a chamar a atenção em seu perfil no Facebook. Criou a Advogada Estressada por sugestão do irmão, que também batizou a página. E não parou mais de conquistar seguidores. Um detalhe: como quase sempre acontece com as autoras, as mulheres são o público principal da Saíle.

Hoje ela tem três livros independentes publicados: Tão Legal que Nem Parece Advogada, Não Sou Tua Querida! e Os Herdeiros da Nonna, todos à venda no Facebook e no perfil @advogadaestressada do Instagram. É a própria Saíle quem embala e despacha os livros, o que cria uma relação quase que de amizade com as leitoras - que também interagem, e muito, nas redes sociais. "Aquelas que estão todos os dias ali, comentando e curtindo, até já conheço. E respondo todas as mensagens, converso bastante e tento acompanhar os comentários. O que, confesso, já não é mais tão fácil como no começo."

Sobre o Diário da Advogada Estressada, Saíle conta: "A página é de humor, não jurídica. Embora tenha gente que não entenda, fiz questão de deixar bem claro que é ?para quem encara com bom humor os perrengues da advocacia?. Cada dia conto alguma coisa que me acontece. Faço um desabafo, mas não cito nomes nem entro no mérito de nenhum processo, até porque ficaria muito chato para quem lê".

A seguir, três trechinhos da Advogada Estressada para desestressar em mais um fim de semana de pandemia. E, assim, seguimos.

***

Hoje lembrei de um juiz com quem fiz muitas audiências (e levei muitos sustos) quando atuei como defensora dativa no começo da carreira. É que ele se jogava para trás e fazia umas caretas engraçadas sempre que ouvia alguma barbaridade nas audiências. E eram audiências de família. Então, sabe como é. Ele se jogava para trás muitas vezes, e eu achava que a cadeira iria partir, e o MM se estatelar no chão. Só que a cadeira era muito boa, e isso nunca aconteceu.

Pois bem. Um dia cheguei com um casal muito jovem para fazer um divórcio consensual. O guri entrou mascando chiclete e eu não vi. Tivesse visto, teria feito o dito cujo cuspir o chiclete, mas o "miserento" deve ter colocado aquela porcaria na boca no momento em que entrou na sala e estava de costas para mim.

O juiz viu. Fez aquela careta engraçada e jogou-se para trás em sua cadeira inquebrável. Olhou para o guri e perguntou, ainda calmo:

- O senhor casou apenas no civil, ou na igreja também?

- Na igreja também - ele respondeu.

- E entrou mascando chiclete?

- Claro que não - meu cliente respondeu rindo.

- Então por que para se separar está entrando aqui mastigando essa porcaria?

Tranquei o francês, mas estou assistindo a um filme por dia no Festival Varilux em Casa e, também, seguindo o Justin Trudeau (primeiro-ministro do Canadá) no Instagram. Acho o máximo aquele homem lindo, fazendo os pronunciamentos em inglês e depois em francês. E ele fala pausadamente, dá para entender tudinho. Muito bom para treinar o ouvido. O que não dá de entender é como a cegonha me jogou aqui e não no hemisfério norte. Tá decidido! Vou processar essa desgraçada. Deixa estar, que vou pedir um dano moral beeeem alto no JEC, e ela vai se enfiar embaixo da cama tremendo de medo, hahaha!

Descobri outra utilidade para as máscaras. Além de nos protegerem um pouco mais do vírus e camuflar nosso mau humor, elas também servem de disfarce! Pois é. Passei por um parente hoje na rua. Um falso, que sempre me tratou muito bem, mas, na época do inventário da minha avó, descobri que andava falando por aí que a demora era culpa minha. Sim, guardei mágoa. O inventário já acabou faz tempo, graças a Deus, e também não vou fingir modéstia, graças à minha competência e empenho. (...) Hoje o vi na rua. Ele estava mascarado (como sempre) e eu também, mas, no meu caso, por conta da pandemia. (...) Eu sou má!

CLAUDIA TAJES


23 DE MAIO DE 2020
LEANDRO KARNAL

CEM SEM CLARICE

No fim deste ano, se viva estivesse, Clarice Lispector completaria cem anos. Cem anos e estamos sem Clarice. Parei para pensar sobre como ela me atingiu.

No Ensino Médio, tive acesso ao texto A Hora da Estrela. O último romance da escritora foi o meu primeiro contato com ela. Acompanhei Macabéa com o brilho de uma boa descoberta. Porém, confesso, talvez Clarice tenha razão quando pede, em um livro, que os leitores sejam almas já formadas. Gostei da jovem alagoana, compadeci-me de suas privações com a tia fanática, com o namoro ambíguo e a esperança inútil na cartomante. Fui seduzido pela narrativa e, no entanto, volto a dizer, Clarice talvez não seja a autora ideal para alguém de 15 anos.

Anos mais tarde, o estilo introspectivo da ucraniana-brasileira chegou a mim pelo primeiro romance dela: Perto do Coração Selvagem. Clarice mais jovem e eu mais velho foi uma paixão que se adensou. Foi amor de verdade. A memória era de um livro que me fazia perder o sono e eu não parava de ler enquanto comia, para crítica acerba da minha mãe. Joana marcou minha vida como personagem e iluminou cantos da minha alma. Virei um convertido lispectoriano chato que queria emprestar a obra para todo mundo.

Eu não imaginava que o salto seguinte seria o mais espetacular. Já professor, ganhei A Paixão Segundo G.H. Macabéa empalideceu, Joana diminuiu: aquele era, agora, o texto da minha vida toda. Nunca imaginei uma inteligência literária daquele porte. Eu tinha amado muitos autores brasileiros, todavia Clarice ocupava outra prateleira. Não era a beleza da semântica de José de Alencar, a ironia brilhante de Machado de Assis, a brasilidade iconoclasta dos Andrades (Oswald e Mário) ou a identidade regional que eu venerava em Erico Verissimo. Eu tinha tido uma paixão aguda pelos volumes de Eça de Queiroz na biblioteca do meu pai. Todos eram espetaculares e eu os carrego comigo até hoje. O volume d?A Paixão Segundo G.H. eu guardo rabiscado há 30 anos.

O mais dramático é que eu posso dizer com clareza total o motivo de eu achar Vidas Secas de Graciliano Ramos um marco. Também sei o motivo de cultivar sistematicamente a leitura da grande Lygia Fagundes Telles. Hamlet, de W. Shakespeare, foi o livro que li mais vezes na vida. Lembro-me até hoje da primeira vez que conheci o Quixote de Cervantes. Foi uma revolução. Custou-me um pouco mais banhar-me das margens dos rios de Guimarães Rosa, porém, uma vez que mergulhei, saí transformado.

Conservador e católico, fui positivamente chocado por Nelson Rodrigues na juventude. Preciso confessar: nada lido antes se comparou ao furacão provocado pelas reflexões da enigmática G.H. O motivo? Até hoje não tenho certeza, provavelmente apenas eu possa repetir as ideias: "Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender". Ou: "Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda". Era o que sempre senti e que só agora, pela pena da autora, podia expressar. Era o que sempre temera encarar: como redefinir a vida sem respostas de sistemas externos e acabados, religiosos e filosóficos. Clarice foi fundo no abismo do desespero humano e emergiu com mais densidade do que qualquer outra pessoa no século 20 na língua portuguesa.

Li a biografia dela bem depois. Benjamin Moser fez um trabalho ótimo. Também devorei os contos que ele organizou. Nos pequenos relatos vi, de novo, o brilho genial da mestra da língua. G.H. foi mais adiante: além de brilhante como escrita, é impactante como percepção. Geralmente acho tediosos os fluxos de consciência porque eles despertam uma subjetividade tamanha que só vale para o autor. Clarice parecia uma mulher atormentada. Porém, de forma fascinante, tornou a dor uma alavanca criativa.

Em 10 de dezembro de 2020, ela faria cem anos. Sua vida acompanhou as tragédias do nosso tempo. Antissemitismo, emigração, a memória das guerras, as oscilações políticas no Brasil entre ditaduras e espasmos democráticos. Vi Beth Goulart encarnando a autora no Rio de Janeiro. A semelhança física se tornava notável e o talento da atriz iluminou o gênio da escritora.

Existem bons pintores e existe Diego Velázquez. Existem bons autores e existe Kafka. Existem ótimos autores e existe Clarice Lispector. De onde saem esses meteoros fulgurantes e escassos? Creio que nunca saberemos.

Volto a dizer. Clarice é autora madura para mentes maduras. Ela não atende problemas comezinhos ou seres ainda muito presos ao aqui e agora. Talvez, o maior indicativo para saber se é hora de acessar Clarice seja um pouco da experiência de G.H. no apartamento: o enfrentamento denso e produtivo da solidão. Se você precisa estar sempre com muitas pessoas, se não consegue jantar sozinho ou ir ao cinema só com sua pessoa, creia-me, ainda não é hora de ler Clarice Lispector. Clarice implica vida interior mais elaborada, não exatamente erudição, porém capacidade de enfrentar bem uma noite de sábado tendo a si por espelho e companhia. Não consegue? Não se preocupe, ela esperou um século, pode esperar uns dez anos a mais. Ela aguarda. É preciso ter esperança e é necessária paciência pela hora da sua estrela ficar autônoma para ler G.H.

LEANDRO KARNAL


23 DE MAIO DE 2020
LIVRO - Psicanalista e jornalista

UMA CARTA ANTIGA, mais atual do que nunca

COM ENSAIOS, TESTEMUNHOS E FICÇÕES, VOLUME RECÉM-LANÇADO COMPILA RESPOSTAS DE ESCRITORES E PSICANALISTAS À CÉLEBRE MISSIVA DE 1935, NA QUAL FREUD RECHAÇAVA A CURA GAY

Em 2017, a decisão de um juiz de Brasília causou grande comoção por abrir uma brecha para autorizar terapias de reorientação sexual - a famigerada "cura gay". Naquelas discussões travadas na arena virtual, circulou uma carta supostamente escrita por ninguém menos do que Sigmund Freud, fundador da psicanálise, endereçada a uma mãe que lhe pedira conselhos sobre como lidar com a homossexualidade de seu filho. Em poucas linhas, Freud a tranquilizava, informando que não se tratava de doença, nem motivo de vergonha, portanto, não havia nada o que curar.

Não é fake news: a carta realmente foi escrita por Freud, em 1935. Porém, só chegou a público anos depois, através do sexólogo norte-americano Alfred Kinsey, a quem aquela mãe a havia reenviado. Assim como Freud, Kinsey em muito contribuiu para levantar o véu de moralismo e hipocrisia que encobria a sexualidade no início do século passado. Ambos revelaram que, no que tange à sexualidade humana, os desvios costumam ser a norma, pois sua função vai muito além de atender a meros fins reprodutivos.

Que essa carta tenha ressurgido nos dias atuais é significativo: se foi necessário pedir ajuda a quem, quase um século atrás, ajudou a lançar luzes sobre um tema obscurecido por medos e preconceitos, é porque os avanços talvez não foram tão grandes quanto se havia imaginado. Ou, pior ainda: que as poucas, mas importantes conquistas - legais, sociais - se encontram sob ameaça, como tem sido possível acompanhar na escalada de discursos discriminatórios e violentos, disfarçados de defesa da moral ou direito à opinião. Como lembra o psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge, nada está definitivamente conquistado nesse âmbito, no qual medo e moral amiúde se unem, causando de microviolências cotidianas a atrocidades institucionalizadas.

A atualidade da carta de Freud motivou o psicanalista e filósofo Gilson Iannini a organizar Caro Dr. Freud - Respostas do Século XXI a uma Carta sobre Homossexualidade, recentemente lançado pela editora Autêntica. Convidou 23 autores, muitos dos quais psicanalistas, a escrever respostas, como se fosse a eles que aquela carta de Freud tivesse sido endereçada. A maneira como o convite foi recebido por cada um e a forma como a resposta foi redigida é diversa e plural - como são as vozes de seus autores.

Entre os textos, podemos ler o tocante testemunho da psicanalista transexual Letícia Lanz, no qual narra os efeitos deletérios do preconceito ao longo de sua vida. Ou a ficção de Guacira Lopes Louro, estudiosa de gênero que convida a pensar em como a família de antigamente, idealizada nos dias de hoje, também carregava suas contradições e sofrimentos. Encontra-se também a missiva de Adilson José Moreira, que faz da mãe da carta de Freud uma mulher negra da periferia, convocando a refletir sobre violências bem brasileiras, como o racismo estrutural que nos funda como sociedade e indivíduos.

Um ponto que se destaca em várias das cartas é uma dura crítica endereçada à psicanálise e, sobretudo, aos psicanalistas. Na própria carta de Freud, a despeito do que disse à mãe aflita, afirma-se que a homossexualidade seria fruto de uma "detenção no desenvolvimento sexual", podendo dar a entender que seria um déficit. Vários autores lembram que, contrariando Freud, houve muitos psicanalistas que consideravam a homossexualidade um desvio ou perversão, utilizando a teoria para camuflar (mal) seu preconceito e, com isso, trazendo ainda mais dor e repressão àqueles que buscavam alívio para seu sofrimento. Houve muitos psicanalistas que praticaram a cura gay - ou melhor, tentaram curar algo incurável, pois não é uma doença.

Pode parecer anacrônico, mas essa é ainda uma prática corrente por parte de alguns profissionais e escolas psicanalíticas - o que revela o quanto medo e moralismo, quando não têm suas raízes inconscientes analisadas, seguem causando graves danos, ocultando-se sob nobres disfarces. Que caiba no livro essa (auto)crítica é um ato de responsabilidade e coragem, sobretudo em tempos em que nós, psicanalistas, temos de defender nossa prática, que é leiga e plural desde sua fundação, de tentativas de controle por parte de grupos cujas intenções são, no mínimo, suspeitas.

PAULO GLEICH


23 DE MAIO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

HISTÓRIA E POESIA

Certa feita, Aristóteles (384-322 a.C.) foi procurado por jovens atenienses que desejavam criar tragédias como os grandes mestres do século V a.C., Ésquilo, Sófocles e Eurípides. O filósofo deu-lhes então lições com seu método peripatético, caminhando e conversando por Atenas, explicando o fenômeno em sua natureza, propriedades, conceitos e finalidades. Formulou para aquele curso categorias fundamentais, como hamartia (ato falho) e catarse (purificação pelo êxtase), e, sobretudo, mimese (imitação). A tragédia é arte mimética, imita ações e a vida, e o faz para examinar questões importantes e resolvê-las em um ritual artístico depurador, muito benéfico para indivíduo e comunidade. Dessas aulas resultou a edição do primeiro e mais importante tratado de teoria da cultura, a Poética.

No capítulo IX da Poética, Aristóteles compara história e poesia. A história trata das coisas acontecidas (tá genómena), ao passo que a poesia trata do que poderia ter acontecido (hoia an génoito, no modo verbal optativo, que o grego usa para indicar possibilidade). Ademais, a poesia não vem da métrica dos versos, pois se a obra de Heródoto fosse escrita em verso, não deixaria de ser história. A poesia, afirma Aristóteles, é mais filosófica e mais elevada que a história, pois se atém ao universal, e a história, ao particular. E arremata: "É universal o que tal tipo de homens diz ou faz em tais circunstâncias, segundo o verossímil ou o necessário" (katà tò eikòs è tò anankaion). Particular é o que fez Alcibíades. Universal, o que ele poderia ter feito, em dadas circunstâncias.

Quentin Tarantino gosta de jogar com as relações entre história e poesia, ao tomar fatos históricos conhecidos e recontá-los com outro final, positivo, estendendo, no afeto e na fantasia de um bom filme, o poder da poesia sobre o destino da história. É o que vemos em Bastardos Inglórios (2009) e Era uma Vez em Hollywood (2019), em que o final da Segunda Guerra Mundial e a morte de Sharon Tate são recontados com desenlaces que produziriam alívio para todos. Abre-se a reflexão: e se fosse diferente? Como poderia ser?

A História não é hipotética, pois trata do que ocorreu, e são fatos particulares, como o texto acima comentado, do estagirita, ou a cidade em que nasceu, Estágira, colônia grega na Macedônia, mas cada ato guarda uma potência que o transmite para imaginações onde reinam a poesia, a filosofia e outra dimensão da história, ética e especulativa. Foi o que pensou Tucídides (460-400), o historiador, ao declarar que escrevia sobre a guerra legando um "tesouro para a eternidade", para quem quiser examinar com clareza o que aconteceu, e pode ocorrer novamente, de modo igual ou semelhante, conforme a natureza humana.

Ora estamos em meio a uma tragédia, global e brasileira, um vírus letal agravado por ignorâncias ainda piores. Diante do vírus e da história, cada erro é fatal. Não há poesia em uma montanha de corpos que há pouco respiravam, e não haverá história se desdenharmos a ciência ou repetirmos, hoje ou amanhã, os erros do passado.

FRANCISCO MARSHALL


23 DE MAIO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

A HORA DE NASCER

Quem decide a hora do parto é um mistério que começa a ser desvendado. Há décadas, os estudiosos procuram entender o mecanismo desencadeante das contrações uterinas que expulsam o feto, depois de nove meses de acolhimento e proteção.

Os estudos em outros mamíferos sempre apresentaram resultados conflitantes, aparentemente inconciliáveis com os dos seres humanos. Não faz sentido imaginar que um fenômeno tão essencial à reprodução das espécies fosse criado especialmente para o homem, em desacordo com os princípios mais elementares da evolução darwiniana.

Nos últimos anos, finalmente, começamos a chegar a um consenso: o processo que desencadeia o parto é de natureza inflamatória, modulado e influenciado por eventos endócrinos de origem materna, fetal e placentária.

Em 1998, Lo Y. e colaboradores detectaram a presença de DNA fetal livre no sangue materno, em concentrações correspondentes a 3,4% até 6,2% de todo o DNA livre existente na circulação da gestante. Curiosamente, essas concentrações aumentavam muito no final da gravidez.

Esse DNA fetal que circula com liberdade pela corrente sanguínea da mãe, vem de células da placenta (trofoblastos), que morrem espontaneamente ou necrosam.

Outros estudos confirmaram que a quantidade desse DNA fetal circulante chega a aumentar 12 vezes no decorrer da gestação, atingindo o pico nas proximidades do parto.

Mulheres que dão à luz prematuros apresentam níveis sanguíneos de DNA fetal livre cerca de duas vezes mais elevados do que as demais. Em conformidade, o risco de prematuridade é maior entre as gestantes com níveis mais altos de DNA fetal livre.

Nas gestações de gêmeos, esses níveis são 30% mais altos, aumento que provavelmente explica a duração mais curta das gravidezes com múltiplos fetos.

Como era de se esperar, a existência de DNA fetal livre na circulação materna não é exclusividade humana: tem sido documentada em camundongos, cavalos, vacas, ovelhas e em primatas, como nós.

Estudos anteriores haviam demonstrado que o parto espontâneo é mediado pela ativação de mecanismos inflamatórios que conduzem à liberação de citocinas, que atraem neutrófilos e macrófagos (proteínas e glóbulos brancos envolvidos na resposta imunológica) para o útero grávido e à ativação de proteínas capazes de desencadear as contrações uterinas.

Essa cadeia de acontecimentos conduz ao amadurecimento do colo do útero, à ruptura das membranas amnióticas e às contrações rítmicas. O que faltava explicar era o mecanismo responsável por disparar esse conjunto de ações.

Os resultados dos estudos aqui discutidos permitem supor que concentrações crescentes de DNA fetal livre, liberado durante o processo de amadurecimento e senescência da placenta, atingem o pico no fim da gestação, estimulam o sistema imunológico inato através da ativação de receptores existentes nas células envolvidas na resposta imune e desencadeiam contrações uterinas expulsivas.

Como não podia deixar de ser, esse mecanismo é comum a todos os mamíferos.

DRAUZIO VARELLA

23 DE MAIO DE 2020
MONJA COEN

MÃOS EM PRECE


Unir palma com palma. Dedos unidos. Nada a esconder. Lado direito e lado esquerdo juntos. Presença pura. O maior presente é a presença. Sem dualidades. Duas mãos formam um gesto. Gesto de entrega, de respeito, de devoção, cumprimento, reconhecimento.

Um de meus professores no Mosteiro Feminino de Nagoya, o Reverendo Monge Mano Kampo Roshi dizia: "Quando colocamos as mãos palma com palma não estamos fazendo nada errado, nada escondido. Quem consegue fazer esse gesto manifesta o estado de um ser iluminado".

Você consegue? Consegue colocar as mãos em prece?

O gesto é a ação. A ação é a realização. No início, apenas um gesto. Depois uma postura: corpomente unidos. Quando duas mãos se tornam uma atitude, que pode transformar o mundo. Teclando, servindo, recebendo, dando, compartilhando, cumprimentando, acolhendo.

Olho no olho. Sem esconder a face, sem esconder nada. Cumprimento adequado para a não contaminação. Cumprimento benéfico para o encontro verdadeiro de quem nada tem a temer.

Vamos, venha comigo. Vamos nos reconhecer pessoas humanas. Sendo humanas somos sagradas.

O que separa você da pureza? Vamos, junte as palmas de suas mãos.

Oremos por todos que já morreram - que não tenha sido em vão. Roguemos pela descoberta de remédios que curem, sem efeitos colaterais, as várias doenças relacionadas ao coronavírus.

Com as mãos unidas, agradecemos às heroínas e aos heróis que se expõem para que possamos ficar em casa: são médicas e médicos, enfermeiras e enfermeiros, auxiliares, grupo administrativo de hospitais e centros de atendimento, grupo de limpeza e de cozinha, motoristas de ambulâncias e carros fúnebres, policiais, bombeiros, garis, lixeiras e lixeiros, pessoas que trabalham com alimentos e remédios - desde quem planta, colhe, revende, transporta. Fábricas de medicamentos e de alimentos.

Muita gente trabalhando para que uma grande parte possa ficar em casa e evitar a contaminação que causaria o colapso da rede de saúde do país.Vamos colocar as mãos unidas, dedos retos para o céu. De longe nos cumprimentaremos, de máscara nos reconheceremos pelos gestos, atitudes, tom de voz, movimento muscular, olhos que expressam o que muitas vezes não sabemos expressar.

Que sejam encontros de ternura e de acolhida. Solidariedade e cooperação. Percebemos que não vivemos isolados, mas o isolamento é pleno cuidado uns com os outros. Tenha paciência e resiliência. Sem beijos, sem abraços, sem cheiros, sem afagos.

Por amor e com amor, por respeito à vida e à saúde, lembrem-se de como deve mover suas mãos, seu coração, seus olhos, sua mente. Sem julgamentos e aversões. Sem apegos e apertões. Momento de reconhecer o sagrando em cada ser. Respire profundamente e caminhe com serenidade. Está tudo errado e está tudo certo, tudo bem. Podemos ter tranquilidade em meio a pandemia. Sorria.

Somos a vida da Terra - girando sem parar e sem voltar atrás.

Adiante o futuro será o que construirmos agora - com atitudes e pensamentos, palavras e comportamento.

Lembre-se das máscaras, das luvas, das proteções oculares. Lembre-se de não colocar as mãos nos olhos, nas narinas, na boca, na face.

Mantenha distância - isso é proximidade e intimidade. Cuidem-se cuidando de todos nós.

Somos uma, sendo duas. Nem duas, nem uma. Como você fica? Como você faz? Mães em prece. Monja Coen escreve a cada 15 dias neste espaço.

Na próxima semana, leia a coluna de Bruna Lombardi.

MONJA COEN


23 DE MAIO DE 2020
J.J. CAMARGO

DANOS COLATERAIS

Qualquer projeção que se faça em relação ao que virá depois desse pesadelo será um pretensioso exercício de futurologia, típico de tempos de desocupação compulsória.

Mas, abstraídos cartomantes e tarôs, um olhar crítico sobre o que já aconteceu permite identificar alguns grupos mais fragilizados e algumas atividades mais ameaçadas.

Do ponto de vista médico, os pacientes crônicos estão sendo penalizados pela desassistência imposta pela falta de leitos hospitalares em centros com grande proliferação da pandemia, como Manaus, São Paulo e Rio, e em outros, como no caso do RS, pelo medo de irem ao hospital, e lá se infectarem. Vivemos aqui, e tomara que a calmaria persista, a curiosa situação de hospitais vazios e os pacientes crônicos, especialmente os idosos, subestimando a sua doença antiga e morrendo em casa por medo da doença nova. Uma ironia para quem, por falta de discernimento, exagerou na observância do Fique em Casa.

A estratégia do distanciamento social, vigente em quase todos os países, tem provocado efeitos diferentes dependendo do momento em que foi implantada. Quando precoce, ela desacelera a progressão da doença, dando chance a que assistência médica seja racionalizada em termos de disponibilidade de leitos, especialmente de terapia intensiva. Quando a propagação do vírus já ocorreu, o confinamento, por agrupar pessoas contaminadas, aumenta exponencialmente o número de casos novos. Isso ocorreu, provavelmente, na Lombardia, onde houve uma resistência inicial de reconhecer a extensão da pandemia, que já se alastrava por todo sul da Europa. Recorde-se da campanha ruidosa: "Milão não pode parar!"

Por outro lado, tudo o que tem sido copiado de países desenvolvidos precisa ser revisto sob o prisma da nossa gigantesca desigualdade social, escancarada covardemente com a chegada do vírus nas favelas. E que deixará como legado a vergonha de terem sido, historicamente, tratadas como comunidades invisíveis, que só eram identificadas quando vestiam fantasias coloridas para desfilar no Carnaval.

Quem imaginar que o fim da quarentena significará a volta à normalidade levará um susto ao descobrir grandes lacunas geradas por atividades que literalmente desapareceram. O turismo, por exemplo, que representava 8% do PIB nacional, e foi um dos setores mais atingidos, terá que ser repensado para realocar as 300 mil demissões.

Os trabalhadores autônomos, inclusive os que nem têm CPF, precisarão de créditos extras, porque, se não, ao fim do trimestre da ajuda de R$600, descobriremos que este grande medo que tem atrapalhado o sono dos abastados e gerado tantos distúrbios psiquiátricos era apenas premonição do caos que sempre acompanha uma sociedade que tenha como único objetivo a sobrevivência egoísta.

E que ninguém seja ingênuo de propor, a quem tenha fome, as normas de convívio racional.

J.J. CAMARGO


23 DE MAIO DE 2020
DAVID COIMBRA

Vingança na quarentena

- Te prepara - ela avisou, os olhos chamejando de ódio vermelho. E, depois de abaixar a voz, como se falasse consigo mesma, anunciou, entre dentes: - Eu vou me vingar. Ele estremeceu. Sentiu que ela falava sério. Não era uma ameaça vã: ela ia se vingar.

- C-como assim? - gaguejou. - Te prepara! - ela repetiu. E trancou-se no quarto.

Maldito coronavírus! Maldito chinês comedor de morcego! Se não fosse a quarentena, ela não descobriria seu pequeno deslize. Havia sido pequeno mesmo, minúsculo, uma única vez com uma colega, uma noite antes do confinamento. Uma aventurinha, pra que fazer caso com isso?

Até então, a colega havia sido discreta. Mandava algumas mensagens por Whats, nada mais. Só que, um dia, eles tiveram de fazer uma reunião online, e ela comentou, quando a imagem dele apareceu na tela do computador: - Que bom te ver. Estava com saudade...

Só isso. Mas foi o que bastou. A mulher dele ouviu lá da cozinha, desconfiou e, na primeira oportunidade, vasculhou seu celular. Encontrou uma ou duas mensagens comprometedoras, pressionou-o e ele, como se estivesse sentado na saleta de interrogatórios da Polícia Federal, confessou:

- Foi só uma vez. Juro. E não tem importância nenhuma... Mas não adiantou. Ela jurou: - Eu vou me vingar.

E agora estava lá, trancada no quarto, enquanto ele batia na porta e implorava:

- Abre, amor... Abre... Vamos conversar...

Ela não abria nem respondia. Ficou em silêncio por mais de uma hora. Quando finalmente abriu a porta, ele levou um susto: ela estava toda arrumada, equilibrada sobre saltos altíssimos, dentro de uma minissaia curtíssima, os cabelos soltos, toda pintada, a boca carmim, os olhos faiscando. Estava linda, ele tinha de admitir. Linda.

- O que é isso? - ele perguntou, aflito. - Vou sair. - Sair? Como assim? Na quarentena? Vai aonde?

Ela não respondeu. Marchou em direção à garagem, ondulando feito a serpente do Jardim do Éden. Ele a seguia e gritava:

- Espera! Espera! Vamos conversar! Eu te amo! Vamos conversar!

Ela continuou muda, muda entrou no carro e muda se foi, desaparecendo no escuro da rua, enquanto ele corria atrás, aos berros: - Não! Não! Eu te amo!

Voltou para dentro de casa com o coração batendo na garganta. Para onde ela teria ido, vestida daquele jeito? À casa de um amante? Será que ela tinha amante? Não... claro que não... Ela era uma mulher fiel. Mas agora... Depois de saber que havia sido traída... Agora... Ela ia se vingar! Ia arrumar outro! Mas quem? Quem estaria disponível na quarentena?

Ele começou a pensar nos amigos e nos conhecidos. Estremeceu ao lembrar de um colega de trabalho dela, um fortão, um maldito rato de academia. Eles o encontraram na praia, no verão. O cara estava sem camisa, tinha grandes bíceps e pequena barriga. Ele viu que ela olhava para o peitoral do desgranido enquanto conversavam. Ela o procuraria, óbvio. O cara era solteiro, não a rechaçaria de jeito nenhum. Além disso, ela estava sedutora naquela minissaia, qualquer homem a desejaria. Oh, não! NÃO!

Ele ligou para o celular dela. Em vão - estava fora do ar. Começou a mandar mensagens: "Te amo. Volta pra casa, por favor. Vamos conversar". Enviou mais de 20 mensagens. Ela nem sequer leu. Ele caminhava de um lado para outro da casa feito um tigre na jaula, sem saber o que fazer. Finalmente, correu para a garagem, pegou o carro, saiu, cantando pneu. Não tinha ideia de onde ela podia ter ido. Não havia bares abertos, a cidade estava sob isolamento. Ela devia ter ido à casa de alguém. Mas quem? Decidiu rodar a esmo pela cidade, para ver se encontrava o carro dela. Foi o que fez. Percorreu praticamente todos os bairros, rondou motéis, foi ao Centro, e nada. Nada. Se ao menos soubesse onde morava o rato de academia...

Depois de horas, voltou para casa com a tênue esperança de que ela tivesse retornado. Entrou correndo, chamando por seu nome, foi ao quarto. Nada... Ela estava se vingando naquela hora. Bem naquela hora. Imaginou-a nos braços do fortão, imaginou-a sendo possuída, gemendo:

- Meu marido não faz assim...

CRISTO! Atirou-se na cama de bruços. E chorou. Chorou feito uma adolescente rejeitada.

- Eu sou um corno! - uivava. - Um corno!

Ele não dormiu naquela noite. Ela, sim. Dormiu um sono sereno, acordou bem disposta, tomou um banho e sentou-se à mesa do café. Olhou para os pais, que a encaravam com certo estranhamento:

- Não contem pra ele que dormi aqui, certo? - Certo - concordou a mãe. - Certo - concordou o pai.

Então, ela voltou para casa. Chegou perto das 10 horas. Abriu a porta e o viu de pé, no meio da sala, descabelado, com olheiras, roto como um mendigo. Ele caiu de joelhos a seus pés.

- O que você fez? - berrou. - O que você fez?

- Me vinguei - ela disse e, antes de rumar para dentro da casa, acrescentou: - e não me pergunta nada, se quiser que eu fique. Nunca mais quero falar nisso.

Ele obedeceu. Nunca mais perguntou nada sobre aquela noite. Mas a vingança ainda dói. Como dói.

DAVID COIMBRA


23 DE MAIO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

O NOVO DITADOR

A quarentena gerada pela covid-19 leva a rever velhos filmes e, neles, encontrar a realidade atual. Assim ocorreu com O Grande Ditador, em que Chaplin antecipou o terror paranoico de Hitler em 1940, quando os crimes do nazismo ainda se escondiam.

A pandemia da época era o fanatismo antijudaico, que assassinou 6 milhões de pessoas. Mas o discurso final do filme (feito pelo barbeiro judeu que foge do campo de extermínio vestido de militar) critica a mesma arrogância vil que hoje tentam nos impor.

"A cobiça - diz num trecho - envenenou a alma dos homens, criou muralhas de ódio e nos faz marchar rumo à miséria e ao morticínio. Os desalmados sobem ao poder prometendo uma vida livre e bela num mundo novo, mas só mistificam e jamais cumprem o que prometem. Lutemos por um mundo em que a ciência e o progresso levem à ventura de todos".

Aqui, agora, quando a pandemia ataca a esmo, do alto do poder renegam a ciência e substituem o progresso pelo atraso. A ideia fixa de Bolsonaro de que a cloroquina é "solução" à covid-19 só tem paralelo no absurdo de entregar o Ministério da Saúde a um general de intendência, que (por melhor intenção que tenha) desconhece as artimanhas do contágio e da doença.

Ainda mais extravagante foi a exclamação do presidente em rede social: "A direita toma cloroquina, a esquerda toma tubaína", um refrigerante barato do Sudeste do país. É grosseiro e ridículo fazer da pandemia uma tosca "disputa ideológica", mas (no contagioso absurdo atual) Bolsonaro teve publicamente um adepto - nada menos do que Lula da Silva.

O ex-presidente "agradeceu à natureza por criar o coronavírus", pois - disse ele - assim se vê que saúde é assunto de Estado. Este torneio de crassa ignorância entre os dois personagens mostrará que - em política - somos prisioneiros do horror?

A tempestade da covid-19 interrompeu e mudou o fluxo da vida em todos os sentidos, como jamais ocorreu no mundo moderno. Ainda hoje, a ciência não sabe com exatidão se os vírus devem ser pesquisados como seres vivos ou como partículas inorgânicas. Vem daí um dos entraves à descoberta da vacina ou, até, do medicamento que imobilizaria o novo coronavírus.

Como fazer, porém, para que aqueles que se empoleiram no poder entendam que devem confiar nos mais aptos, naqueles que sabem que só a indagação e a pesquisa nos fazem encontrar caminhos na vida?

Fora disso, estaremos presos entre a cloroquina e a tubaína, e a ignorância será o grande ditador.

P.S. O arquiteto Milton Flores da Cunha Matos, que nos deixou dias atrás, foi o homem-núcleo da cultura e do debate político da Capital e do Estado nos anos 1960, ao fundar e manter o Teatro de Equipe. Por tudo o que foi em vida, sua morte deixa de luto o Rio Grande.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

23 DE MAIO DE 2020
ARTIGOS

NÃO FALTAM ESPAÇOS PÚBLICOS NA CAPITAL

Para qualquer um que saia de casa no final de semana (ou que acompanhe a cobertura deste jornal) é perceptível a lotação de espaços públicos, como a orla do Guaíba. No entanto, não precisaria ser assim, pois agora temos espaços públicos de sobra.

O cenário de pandemia torna perceptível o exagero no espaço que destinamos para o trânsito e estacionamento de carros, agora vias ociosas. Normalmente, mais de 90% do espaço viário é ocupado por carros que correspondem a apenas um terço dos deslocamentos, sendo os outros dois para viagens em transporte coletivo, a pé ou de bicicleta.

Qualquer porto-alegrense também deve reconhecer a impossibilidade de manter o distanciamento social nas estreitas calçadas da cidade. Em um momento onde os parques estão com aglomerações, e o trânsito de veículos nas vias - espaços públicos da mesma forma - se tornou mínimo, adaptações deveriam ser pensadas de forma a refletir a nova realidade. 

Vilnius, na Lituânia, está transformando suas ruas em praças, dando espaço para que restaurantes e cafés instalem mesas para voltar a operarem de forma segura. Seattle e Oakland, nos EUA, estão fechando dezenas de quilômetros de vias para tráfego de veículos para que as pessoas possam circular mantendo o distanciamento social. Bogotá, Cidade do México, Berlim, Milão e Nova York estão expandindo suas calçadas e redes cicloviárias para permitir acesso seguro aos espaços públicos, além de serem uma alternativa à aglomeração nos transportes públicos.

Em Porto Alegre, o corredor de ônibus da Terceira Perimetral já abria para o lazer nos finais de semana, por ter demanda reduzida de veículos: agora esse conceito é aplicável para a cidade inteira. Essa crise deve ser vista como uma oportunidade para nos conscientizarmos e repensarmos o uso que estávamos fazendo dos nossos espaços públicos, que não estão em falta, mas espalhados pela cidade aguardando um redesenho mais humano.

Arquiteto, urbanista, editor do site Caos Planejado contato@caosplanejado - ANTHONY LING

23 DE MAIO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

O PAÍS PRECISA SE REERGUER

É indiscutível que, com a irrupção do novo coronavírus, a prioridade é cuidar da saúde e levar o socorro mais imediato aos trabalhadores e empresas que perderam renda e receita com a pandemia. Dar a devida atenção às medidas de curtíssimo prazo, porém, não significa esquecer de começar a planejar melhor o país para os brasileiros, assim que a crise sanitária começar a arrefecer. É neste contexto de economia de joelhos e finanças públicas agonizantes que se acentua a necessidade de se começar a pensar em profundas reformas que deflagrem uma espécie de reconstrução do Brasil.

Esta janela de oportunidade foi percebida, por exemplo, pelo Equador, onde o governo apresentou uma série de medidas, como redução de salários e de jornada do funcionalismo público, corte de gastos considerados supérfluos e eliminação de uma série de estatais ineficientes e acumuladoras de prejuízos, uma conta que acaba dividida com toda a população. No Brasil, durante as discussões que envolveram o pacote de ajuda a Estados e municípios, governadores mostraram bom senso ao apoiar a intenção do presidente Jair Bolsonaro de vetar a possibilidade de aumento para o funcionalismo. É este tipo de consenso que o Brasil precisa construir mais vezes.

Todos os gastos gerados pela pandemia, aliados à queda da arrecadação, vão aprofundar o buraco fiscal de União, Estados e municípios. É inimaginável, neste sentido, manter uma porta aberta para reajustes irresponsáveis, exatamente para aqueles que, em regra, já são privilegiados em relação aos trabalhadores da iniciativa privada, que enfrentam o desemprego, o risco de demissão e a redução de jornada e salário. 

Mas é preciso ir além, retomando assim que possível a proposta de reforma administrativa para diminuir esta abissal diferença de remuneração que existe hoje entre as duas classes de assalariados. O dinheiro do contribuinte, que hoje banca benefícios a granel para grupos favorecidos e praticamente imunes à crise, precisa ser mais bem distribuído, o que significa levar serviços mais dignos à grande maioria dos brasileiros.

Reforma tributária, segurança jurídica, desburocratização e distensionamento de relações trabalhistas são apenas algumas das outras necessidades sobre as quais o país precisa se debruçar para diminuir o custo Brasil, facilitar a retomada da economia, melhorar a competitividade em relação a outras nações mais modernas e retomar o caminho do desenvolvimento. Para avançar nestes e em outros temas, porém, é preciso amainar as tensões políticas reinantes no Brasil, trocando a beligerância pela união, mesmo que circunstancial, em torno de reformas que beneficiarão a todos. Neste sentido, deveria se esperar que Jair Bolsonaro abandone de vez a sua propensão ao conflito e, como foi observado na reunião de quinta-feira com os governadores e os presidentes da Câmara e do Senado, ajude a construir uma mínima concórdia que dê chances reais de o Brasil se reerguer.



23 DE MAIO DE 2020
DIÁRIO DO FRONT

Uma rotina de altos e baixos

Três profissionais da Saúde da Capital contam, a convite de GaúchaZH, suas experiências e desafios no combate à covid-19

Projeto de GaúchaZH que apresenta os desafios e a superação de três profissionais de saúde na linha de frente do combate à pandemia de covid-19, o Diário do Front também contempla cenas da vida privada dos participantes. Enfermeira intensivista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Isis Marques Severo, 40 anos, costuma incluir o filho, João Miguel, três anos e nove meses, em seus depoimentos.

Dias atrás, quando ela almoçava com o menino e o marido, o pequeno propôs:

- Vamos brindar, gente? Os três ergueram os seus copos com suco. - Saúde! - disse João Miguel. Isis aproveitou para refletir:

- Saúde é pelo que mais agradecemos e também o que pedimos todos os dias.

Também participam do Diário do Front o infectologista André Luiz Machado da Silva, 43 anos, do Hospital Nossa Senhora da Conceição, e a médica intensivista Roselaine Pinheiro de Oliveira, 53, do Hospital Moinhos de Vento.

A íntegra dos depoimentos pode ser acompanhada no site gauchazh.com. O programa Gaúcha +, que vai ao ar na Rádio Gaúcha, também destaca os relatos dos profissionais, sempre de segunda a sexta-feira, a partir das 16h05min.

Roselaine Pinheiro de Oliveira 53 anos, médica intensivista, chefe do Serviço de Medicina Intensiva Adulto do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre

"O filho encostou a cabeça no vidro e chorou compulsivamente"

Tratar pacientes com covid-19 tem proporcionado uma experiência especialmente importante com relação ao manejo não só do doente, como dos familiares. Lembro-me bem de um paciente que, logo no início da internação, recebeu a primeira visita do filho.

Diante daquele quadro de uma pessoa que foi surpreendida por uma doença infecciosa viral grave, o filho, quando olhou o pai, da porta do boxe, encostou a cabeça no vidro e chorou compulsivamente.

Fui ali para ver o que estava acontecendo. Durante quase cinco minutos, não consegui abordá-lo. Esperei, deixei que ficasse naquele momento de total introspecção, tristeza e desespero. No momento em que julguei necessário, perguntei se ele queria sentar. Ele disse que não queria ficar sentado. Depois, me apresentei, disse que eu era uma das médicas do CTI. Conversamos um pouco. Esse paciente foi melhorando. Reencontrei o filho dele na semana passada. Aí, conversamos em uma outra condição.

- Você se lembra daquela primeira vez? - perguntei.

- Foi horrível - ele respondeu, explicando que não recordava dos detalhes.

Tivemos uma conversa bem mais tranquila. Ele já estava sorrindo.

Me preocupa bastante que as pessoas estejam com medo de ir para o hospital por causa da covid-19. Os hospitais estão preparados para atender todos os pacientes. Pessoas doentes, com suspeita ou não de covid-19, têm que receber atendimento. Os hospitais estão preparados. Imagine alguém que tem outra doença e não vai ao hospital - essa pessoa pode falecer.

A covid-19 realmente é muito grave, abala muito, como abalou esse filho de que falei aqui, mas existem outras doenças também. É muito importante passar essa mensagem."

André Luiz Machado da Silva 43 anos, infectologista do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre

"Acredito que sofreremos com mais casos por um período maior"

Ontem foi um dia muito triste para o Brasil. O país registrou mais de mil óbitos por covid-19 em 24 horas. Mais precisamente, 1.179 mortes. Juntou-se a apenas outros quatro países (EUA, França, China e Reino Unido) que alcançaram essa triste marca em um único dia. Isso demonstra que a doença está em plena atividade. Apesar dos cálculos matemáticos e das tendências estatísticas e epidemiológicas apontarem o pico para os próximos sete dias, e a partir daí a estabilização da curva até julho - antes de uma diminuição no número de casos -, acredito que sofreremos com mais casos por um período maior. O Brasil vem disponibilizando mais testes diagnósticos, e, consequentemente, mais pessoas serão diagnosticadas com essa doença. Em mortes, há tendência também de aumento. Temos que manter a etiqueta respiratória, a higienização das mãos, o uso de máscaras e, principalmente, o distanciamento social, na medida do possível. O Rio Grande do Sul vem trabalhando de uma forma muito lúcida o distanciamento controlado. Na minha opinião, isso está correto, mas não deve servir para que modifiquemos a nossa postura. É uma doença hostil, que nos surpreende. Não devemos baixar a guarda, mesmo que o nosso Estado apresente números bem abaixo do que é visto em outros lugares."

Isis Marques Severo 40 anos, enfermeira do Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre

"Alta de dois idosos em um final de semana é de se comemorar"

O quadro clínico dos pacientes com covid-19 se instabiliza muito rapidamente. São muitos pacientes graves, juntos, em uma unidade. Na nossa rotina normal, fora da pandemia, temos pacientes com essa gravidade, mas intercalados com outros vários em estado regular. Agora, estamos nos deparando com o aumento da quantidade de pacientes graves, a maior parte entubados, em ventilação mecânica, sedados, muitos com falência renal.

Temos percebido um aumento do número de pacientes internados de Porto Alegre, da Região Metropolitana e do Interior. Mas também já vimos pacientes vindos de outros Estados. A Enfermagem está reorganizando seus processos de trabalho, refazendo fluxos, capacitando toda a equipe para dar conta da pandemia. Temos um número elevado de novos profissionais no grupo sendo capacitados. São muitos desafios.

A melhor notícia do dia foi que minha paciente de 78 anos teve alta do CTI para a unidade de internação no final de semana. Outro paciente, de 77 anos, também foi transferido para a Enfermaria.

A alta de dois pacientes idosos em um final de semana é de se comemorar. E os dois estiveram em estado muito grave e em ventilação mecânica por bastante tempo. Hoje estão no quarto.

Quando cheguei em casa, almocei com meus amores. João Miguel, meu filho, falou:

- Vamos brindar, gente? Brindamos com suco, e ele disse:

- Saúde! Saúde é pelo que mais agradecemos e também o que pedimos todos os dias."

LARISSA ROSO

23 DE MAIO DE 2020
RBS BRASÍLIA

Só o vídeo não derruba Bolsonaro

Um show de horrores, baixarias, palavrões, falta de foco e a comprovação de que são poucos os ministros com qualificação no governo Jair Bolsonaro. O vídeo da reunião ministerial que teve o sigilo retirado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) mostra tudo isso e, ainda, que o presidente da República tinha intenção de interferir na Polícia Federal. Mas não derruba Bolsonaro.

Com base nas duas frases ditas ao longo do encontro sobre a sua insatisfação com o órgão de segurança, é até possível que o procurador-geral da República, Augusto Aras, nem mesmo apresente denúncia contra o presidente. Em determinado momento, Bolsonaro reclama, sim, com todas as letras, de que a PF não repassa informações e, em outro, diz que não está satisfeito com a segurança no Rio de Janeiro e que, se for preciso, troca todo mundo.

Intenção que é reforçada com a saída do ex-ministro Sergio Moro da Esplanada e a indicação de um amigo da família para comandar a PF. Mas, em Brasília, a aposta alta é a de que Aras encaminhará um pedido de arquivamento.

Entre a denúncia de Moro e a revelação do vídeo, houve tempo para a construção de uma narrativa de Bolsonaro que só convence o público fiel. E é isso que, hoje, interessa ao presidente: manter coeso os cerca de 25% a 30% do eleitorado que aprova o estilo do atual governo. O bolsonarista clássico gostou do que viu e ouviu. Em qualquer democracia séria, um ministro da Educação jamais poderia se referir a ministros do STF como Abraham Weintraub fez durante o encontro. E quem poderia levar a sério um ministro do Meio Ambiente que confessa: enquanto a imprensa só fala em covid-19, vamos fazer passar a simplificação de normas ambientais? Ricardo Salles disse isso. A ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, falou até em colocar governadores na cadeia. Tudo isso em meio a um desfile de palavrões.

Embora o tema oficial fosse medidas contra a pandemia, Bolsonaro se preocupou em cobrar fidelidade dos ministros, com recados direcionados a Moro. Apoio ao armamento da população e medidas contra o endurecimento dos governadores no isolamento social viraram prioridade. Aos gritos, o presidente exigia lealdade.

Dos presentes, o mais sensato foi o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que apelou à necessidade de um plano contra a pandemia, livre de dogmas. Em vão. Se é que existiu, a ata dessa reunião ministerial tem uma ou duas linhas sobre ações de enfrentamento ao coronavírus. Uma confusão que não surpreende quem acompanha a rotina na capital federal: é a cara do governo Bolsonaro.

CAROLINA BAHIA

23 DE MAIO DE 2020
RODRIGO CONSTANTINO

Monstros oportunistas

"Ainda bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus, porque esse monstro está permitindo que os cegos enxerguem, que os cegos comecem a enxergar, que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises", disse o ex-presidente Lula esta semana. A fala é monstruosa.

Em primeiro lugar, uma correção: há controvérsias se o vírus veio da natureza ou do regime chinês, e mesmo que tenha vindo da natureza, foi graças à ditadura comunista, ao perseguir jornalistas e médicos e ocultar fatos, que o troço virou uma pandemia, com a possível conivência da OMS.

Agora vamos ao que importa: Lula está festejando o "lado bom" de uma pandemia que já ceifou a vida de 20 mil brasileiros. Imaginem se essa fala fosse proferida por Bolsonaro: qual seria a reação da imprensa, dos intelectuais? Mas o bandido condenado pela Lava-Jato tem salvo-conduto para expor seu lado sociopata, como sabemos. O duplo padrão é escancarado.

O que o petista confessa é o que muito esquerdista pensa, mas não diz. A esquerda radical sempre olhou para crises como oportunidade para avançar com seu nefasto projeto socialista, concentrando poder no Estado. Lula não citou Roosevelt na fala por acaso: a metáfora de guerra sempre foi usada por socialistas, como a "guerra contra a pobreza", para justificar o aumento dos gastos públicos.

Mas Lula bate num espantalho: os liberais entendem que, durante a crise, o aumento se faz necessário. Tanto que o ministro Paulo Guedes vem fazendo exatamente isso. Os liberais, porém, entendem que o quanto antes voltarmos ao trilho da austeridade, melhor, enquanto a esquerda deseja um estado permanente de irresponsabilidade fiscal. O resultado dessas aventuras heterodoxas são conhecidos, e no Brasil levaram a 14 milhões de desempregados mesmo com os ventos favoráveis de fora, sem qualquer pandemia.

O estrago causado pelo esquerdismo em tempos de paz, aliás, é análogo ao causado por catástrofes naturais ou guerras. A Venezuela que o diga: quem precisa de uma pandemia quando se tem o socialismo? A destruição pelo monstro oportunista é certa!

RODRIGO CONSTANTINO



23 DE MAIO DE 2020
CARTA DA EDITORA

Conversar com números

Há duas semanas, falei neste espaço sobre a importância de o jornalismo focar cada vez mais em soluções e citei como exemplo a reportagem que tínhamos feito naquela edição sobre os caminhos para a retomada das atividades econômicas no Estado, sem que isso comprometesse a saúde da população. Hoje quero destacar uma outra face da nossa profissão que, em meio a uma pandemia, ganha relevância ainda maior: o jornalismo de dados. No passado, lidar com números era tarefa de repórter especializado em economia e finanças. Essa realidade mudou faz tempo nas redações. Atualmente, são muitos os profissionais da RBS que sabem "conversar com os números", como costumamos dizer na Redação Integrada.

Veja que interessante o que diz o repórter Marcelo Gonzatto, há 23 anos em ZH e que desde o início da cobertura do coronavírus está mergulhado em dados relacionados a UTIs, leitos hospitalares, óbitos e infectados:

- Dados são ainda mais relevantes em períodos como uma pandemia, em que a doença se confunde com posicionamentos políticos e ideológicos. Os números ajudam a encontrar bases mais sólidas para analisar o que está ocorrendo e planejar o futuro, reduzindo o alcance de "achismos" e interesses particulares.

Em duas recentes reportagens, Gonzatto mostrou que casos de covid-19 avançam três vezes mais rápido no Interior do que em Porto Alegre e que europeus também flexibilizaram o distanciamento social, porém realizaram mais testes e tiveram quedas maiores de casos da doença do que o RS. O repórter só chegou a essas conclusões após estudar os números que estavam disponíveis e compará-los.

O repórter Marcel Hartmann, há três em ZH e outro especialista em destrinchar planilhas, salienta que dados não são só números, mas registros públicos de realidades:

- Ainda que o jornalismo de dados dependa do nível de transparência de um governo, uma vez que eles são compilados e informados por órgãos oficiais, o repórter, quando tem os números em mãos, consegue levá-los para especialistas de fora do governo avaliarem e confrontarem, em muitas vezes, as declarações do governo.

A editoria de Imagem de ZH e GaúchaZH, responsável por deixar essa numeralha fácil de visualizar e compreender, também preparou um painel onde é possível acompanhar informações sobre a situação do coronavírus no RS. Produzido por Bruna Lora, Felipe Nunes Ribeiro e Rodrigo Zembrzuski e sob a coordenação da editora Milena Schoeller, o painel permite que o assinante consulte os mais variados dados do Estado. Acesse por esse endereço e confira: gauchazh.clicrbs.com.br/especiais/painel-coronavirus/index.html.

Ao transformar números em reportagens, ajudamos o nosso leitor a entender melhor o momento em que estamos vivendo e a projetar o que vem pela frente.

DIONE KUHN

sábado, 16 de maio de 2020



16 DE MAIO DE 2020
LYA LUFT

Se este mundo fosse meu...

Neste estado de entressono em que nem velamos nem dormimos, alinhavei há pouco o texto abaixo, que agora arrumo como quem arma um brinquedo muito amado.

Se este mundo fosse meu, eu reinventaria a vida. As pessoas seriam mais tranquilas e pacientes - não demais, ou seriam moles e sem graça.

Se este mundo fosse meu, eu mudaria os amores, que seriam menos controladores, menos inseguros, menos egoístas e jamais cruéis. Não perfeitos, pois seriam amores humanos com todos os nossos jeitos e carências.

Se este mundo fosse meu, não haveria terras sem gentes nem gentes sem terras mas todos teriam um lar para viver, florestas para passear, campos para correr ou plantar, ruas para se encontrar, árvores para admirar. Mas ninguém tentaria tirar a terra do outro, pois haveria espaço de sobra para cada um.

Se este mundo fosse meu, haveria mais música e cantos do que gritos e xingamentos, mais palavras ditas com afeto, ou com sabedoria, com alegria. Mas haveria também segredos e prantos e chamados e confidências, porque, mais uma vez, seríamos apenas humanos... mas sem hipocrisia nem perversidade.

Se este mundo fosse meu, não haveria mães sem filhos nem filhos sem mães... e pais também. Porque arrancarem alguém assim do nosso lado é um horror que ninguém merece.

Se este mundo fosse meu, eu deletaria a mentira, a hipocrisia, a pobreza, a miséria, a fome e o abandono. Mas deixaria umas mentirinhas inocentes para depois a gente rir junto, tipo "claroooo que eu ainda te amo!". E deixaria alguma necessidade, alguma ambição e desejos para que sempre houvesse vontade de melhorar.

Se este mundo fosse meu, eu inventaria viagens para conhecer todos os lugares do mundo como em mil tapetes mágicos que nunca se chocariam nos ares porque seríamos espertos demais.

Se este mundo fosse meu, eu desinventaria a solidão e a morte. Pois todos teríamos ao menos um amor e várias amizades, e em lugar de adoecer e morrer, quando velhinhos mas ainda lúcidos e firmes, iríamos nos desvanecendo devagar, cada vez mais leves e transparentes, sem agonia ou desespero - porque todos saberiam que essa separação seria só transitória.

E, se este mundo fosse meu, seríamos no fim como fiapos de nuvens e novelos de cores pairando, girando ou voando em pura beleza, reflexos de luz e formas móveis, pelo espaço afora ou perto dos que nos amam. Se este mundo fosse meu, seria em tudo maravilhoso e bom.

LYA LUFT



16 DE MAIO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Na dúvida, não compartilhe

A notícia vazou e percorreu todas as salas de aula: Fulana, da sétima série, estava grávida. Uma garota de 13 anos, em plenos anos 1970. Os pais já haviam sido chamados pela direção. Os comentários variavam de "pobre inocente, não sabia o que estava fazendo" até "começou cedo na safadeza". A garota sumiu uns dias, os ânimos serenaram e a verdade finalmente apareceu: colegas rivais haviam espalhado o boato. Uma brincadeirinha.

Boatos costumavam circular em locais restritos. Colégios, clubes, escritórios, no máximo pelas ruas do bairro: o prejuízo das vítimas era localizado. Vítimas? Exagero. Boato não feria nem matava, diziam. Eu discordava em silêncio. Boato feria e matava, sim. Era um golpe baixo que ficava sem punição e que não deixava cicatrizes visíveis - alguém enxerga a alma destroçada dos outros?

Nunca imaginei que esta perversidade se sofisticaria. Hoje o boato ganhou um nome em inglês, seu alcance é ilimitado e o estrago não é pequeno: viramos, todos, seres manipuláveis - quando não manipuladores. Ninguém escapa do abjeto universo das fake news.

Água quente mata o coronavírus. Cartório registra primeira criança com o nome Alquingel. Governo russo solta leões na rua para forçar as pessoas a ficarem em casa. Se a notícia parece plausível ou se é completamente insana, tanto faz. Em segundos estará infestando as redes e transformando a todos em idiotas: os que propagam a desinformação e os que nela acreditam.

Ingerir vinagre engana bafômetros. Facebook doará um real para cada curtida que você der neste site. Sim, sim, não custa tentar, vá que. Porém, passando adiante essas falsidades, vamos criando, com pretensa boa-fé, um mundo fictício.

Até que você lê um texto ridículo atribuído a Arnaldo Jabor, e repassa sem checar se é do Jabor mesmo. Ou assiste a um vídeo do Fabio Assunção dizendo coisas que não batem com o perfil dele, mas você ignora as evidências de que é apenas um clone e posta o vídeo no seu grupo de WhatsApp. O mundo fictício que você está ajudando a criar já não é mais fruto da sua boa-fé, mas da má-fé de quem está manipulando a sua inocência ou sua ignorância através de uma indústria cibernética de disseminação de mentiras.

As fake news podem ter seu alcance reduzido se nos habituarmos a checar tudo o que for suspeito. O material veio mal escrito? Não traz a data em que o pretenso fato aconteceu? É passível de montagem? Então, verifique sua autenticidade em sites como Boatos.org, Catraca Livre, E-Farsas, Aos Fatos e Agência Lupa. Uma busca rápida no Google funciona também. Mantenha-se honesto e resista ao impulso do compartilhamento irresponsável. Você é bacana demais para difundir asneiras ou, pior ainda, virar cabo eleitoral de criminosos.