sábado, 25 de julho de 2020


25 DE JULHO DE 2020
OPINIÃO

O dilema da governabilidade

A aprovação do projeto que tornou o Fundeb permanente e ampliou a participação do governo federal no bolo de recursos mostrou como é difícil remar contraamaré da demagogia. O debate se tornou uma divisão entre os que "ligam para a educação" e aqueles que "não ligam", no típico monopólio das virtudes de quem quer, no fundo, encerrar o debate antes de ele começar.

É verdade que o governo Bolsonaro não entrou na polêmica,equando o fez já era tarde demais. Por meio do Ministério da Economia, ainda tentou passar alguns destaques para impedir o tamanho do rombo, mas em vão. Após uma vitória acachapante dos que desejavam mais verba da União, o presidente ainda tentou fazer do limão uma limonada, tentando se apropriar da "conquista".

Como apenas uma meia dúzia de deputados votou contra, e eram justamente da base mais fiel de apoio ao bolsonarismo, o presidente acabou afastando a deputada Bia Kicis da vice-liderança do governo. Ela reagiu de forma elegante, mantendo seu apoio e sua confiança no presidente, e destacando que é preciso se aproximar mesmo do Congresso para ampliar a base, mas que ela preferiu votar de acordo com sua consciência.

Trata-se de um dilema legítimo.OPoder Executivo não pode nem deve governar sozinho, e o Congresso, mal ou bem, foi eleito, ainda que por um sistema que demanda reformas urgentes, como o voto distrital. Para aprovar as reformas estruturais mais relevantes, comoatributária e a de Estado, será preciso contar com votos. É necessário, portanto, contemporizar, priorizar as pautas mais importantes e viáveis.

O Fundeb era um caso perdido.Apressão foi muito grande. Não há nada mais permanente do que um programa temporário de governo, e ninguém teria coragem de propor uma mudança radical no sistema de ensino brasileiro, que é um retumbante fracasso, e não por falta de recursos federais. Precisamos formar melhor os professores, descentralizar a decisão, enfrentar a doutrinação ideológica, resgatar a disciplina em sala de aula etc. Nada disso mudará com o Fundeb, que só garante mesmo os salários dos professores.

Bolsonaro, ciente da derrota, seguiu a onda. Mas Bia Kicis, Paulo Martins e outros poucos é que estão certos!

RODRIGO CONSTANTINO

sábado, 18 de julho de 2020



18 DE JULHO DE 2020
LYA LUFT

A surpresa da cor

Hoje, mais uma brincadeira com meus amados leitores, mas malandragenzinha boa, nada malévola como tantas que fazemos. (Eu, pessoalmente, odeio essas.) Aqui vão textos que vocês possivelmente não conhecem ou não vão reconhecer. Mas espero que gostem. Ao menos, mais ou menos.

Ah solidão de exílio escolhido, ah frios grotões de sombra e susto, ah trilhas de nostalgia de mim... ah esses meus passos infindos, ah orfandade, ah cálidas fezes, ah caudas inquietas e fantasmas tristes, ah vida esquartejada, ah chão de passarinhos mortos... ah maldita, ah venerada amante morte malefício e sorte, ah compassiva mãe, floresta escura, enfim.

O tempo rasteja no telhado depois de se fazerem filhos e dívidas, e as dúvidas brotarem nas frestas. O tempo trança bordados no rosto e manchas na mão, mas a gente não muda: ainda chove no escuro e um pássaro começa a cantar, um amigo morre antes dos 40 anos, e nossa mãe, com quase cem, nem está nem se ausenta.

Como tudo o mais, o tempo não tem explicação: corrói e transfigura, expande ou empobrece, conforme a escolha de cada um, ou suas tragédias. (Eu, com medo e susto, escolho a multiplicação.)

Foi meu pai quem plantou esse álamo no meu jardim. Podou seus ramos, e desde então seus dedos se multiplicaram, sua voz se perpetuou em folhas depois de cada inverno.

E quando o vento perpassa os altos ramos do álamo generoso, o tempo se dá por vencido, a dor recolhe suas asas: meu pai conversa comigo, andando pela calçada entre o meu coração e a sua morte.

A parte dura desta humana lida é dizer sim na hora do não, escolher mal entre silêncio e grito, entre a noite e a explosão do dia. Ceder quando devíamos negar, dizer vai em lugar de pedir que fique, partir quando era bom amar, fechar-se em vez de resgatar a vida.

Sermos tão incertos e indecisos, perdendo o trem, a hora, o agora: mas a gente tinha pressa, queria acertar, estava aflito, e não sabia.

O rumor de uns passos enérgicos, a voz me chamando no jardim, na sala rosas com nomes secretos, e um perfume igual ao dela. Legou-me sua alegria inesquecível, o amor à vida, e algo do perfil. Não sua beleza: essa ficou nos retratos.

Nada lhe significo mais: quando me vê enxerga outros rostos, mais reais do que eu na sua filha. É minha mãe e não é, vive e não vive, na clausura da mente enevoada. Mas eu, a cada visita, espero o impossível: que ainda uma vez o seu olhar me alcance, e por um momento ela ame, nesta mulher, a sua filha.

Apesar do medo, escolho a ousadia. À certeza das algemas, prefiro a dura liberdade. Voo com meu par de asas tortas, sem o tédio da comprovação. Opto pela loucura, com um grão de realidade: meu ímpeto explode o ponto, arqueia a linha, traça contornos para os romper. E não mistura as tintas, porque deseja a surpresa da cor.

LYA LUFT

18 DE JULHO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Obrigada aos meus dias ruins



Se mordomia fosse mais importante pra mim do que liberdade, teria morado na casa dos meus pais até casar. Se depois de 17 anos de casados, eu e meu marido não tivéssemos reavaliado nossa escolha e nos separado, não teríamos vivido outras importantes relações amorosas. Se depois de uma década trabalhando em agências de propaganda eu não tivesse perdido o entusiasmo pela publicidade, não teria me arriscado a escrever para jornais. Se depois de duas décadas escrevendo para jornais eu não tivesse sentido o tédio batendo à porta, não teria arriscado ter um canal no YouTube e escrever um roteiro de cinema. Que sorte eu não ter sido feliz pra sempre.

Tenho muito a agradecer aos meus dias ruins. Foram os choros silenciosos, abraçada ao travesseiro, que me colocaram contra a parede: "por que você está se submetendo a essa dor?". Ter ido atrás da resposta me fez movimentar a vida e trocar de planos.

Quando meu coração esteve apertado, não agendei exames cardíacos: recorri à poesia. Se compus alguns versos bem escritos, devo às angústias das paixões mal concluídas.

Cada vez que fui rejeitada, desenvolvi a humildade e reforcei meu lado bom.

Ando serena há bastante tempo, desde que aprendi que a felicidade instagramável é uma busca utópica e meio babaca: como ser feliz num país em desconstrução e com uma desigualdade indecente entre seus habitantes? Como ser feliz, se além do país à deriva, ainda temos que nos acostumar agora com novas regras de conduta social? E, saindo do geral para o pessoal: insônias, dívidas, desilusões, discussões. Como?

O único jeito que conheço: desenvolvendo desde cedo o que se chama hoje de inteligência emocional, um guarda-chuva de múltiplos significados, mas que pra mim se resume a usar a finitude a nosso favor. Vamos morrer - não agora, não de covid-19 (sou otimista), mas um dia, aquele dia que otimismo nenhum adia. Então, qual o sentido de obstruir ainda mais a vida? As pessoas fazem drama por bobagem, são competitivas, se acham melhores do que são, executam tarefas de forma relaxada, não assumem seus erros, não cuidam de seus afetos e reclamam, reclamam, reclamam. A cada manhã recebem o novo dia com pedras na mão.

Tenho também meus momentos em preto e branco, mas não desapareço de mim. Se for uma incomodação pontual, leio um livro, vou dar uma caminhada, espero o dia terminar. Se for mais grave, tento terapia, converso com amigos, faço mapa astral, ritual xamânico, troco os móveis de lugar, troco os pensamentos de lugar. Me desacomodo. Uso a instabilidade para inaugurar uma estabilidade nova em folha, outra versão da mesma vida. O meu "pra sempre" nunca foi feito de linhas retas nem de velocidade constante, e é por isso que minha sorte tem durado um bocado.

MARTHA MEDEIROS

18 DE JULHO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Faça como o Queiroz: fique em casa

A manchete não é minha, é do Sensacionalista, o jornal online que trabalha em cima do acontecido para criar notícias que não são verdade, mas são verdadeiras. Se ficou confuso, aí vão alguns dos exemplos:

Black Friday: Brasil faz queima total de reservas indígenas.

Coronavírus finalmente assume o governo.

Mulher que atacou fiscal no RJ é convidada para ser Ministra da Saúde.

Bares do Leblon registram pico da curva da estupidez.

Volta do futebol pode fazer coronavírus ter prorrogação.

O Sensacionalista faz humor a partir da desgraça brasileira - o que, é triste dizer, não tem nos faltado nesses dias estranhos. Estranha também é a atitude do Facebook, que ameaça punir a página por "conteúdo falso". Alguém precisa explicar ao Mark, o Zuckerberg, a diferença entre humor e fake news. E que as fake news, praga dos grupos da família do WhatsApp, muitas delas paridas no malfadado Gabinete do Ódio, não têm graça nenhuma. Enfim, enfim, reflexões da pandemia.

Mas o Sensacionalista, e o Queiroz, entraram na coluna por conta da estimativa de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que colei do informativo Matinal: até agosto, Porto Alegre deve ter 27 mil pessoas infectadas pelo coronavírus. Destas, 300 poderão ser internadas em UTIs e 200 precisarão de respiradores. O estudo recomenda a criação de 50 a cem novos leitos para atender os pacientes. 

E quem não quer acabar nessa estatística, só vê um jeito de se ajudar - e ajudar todo mundo: ficar em casa. Já cansou, a rua chama, os prejuízos se acumulam, as perdas são enormes e é fácil falar quando se tem um emprego, e pode-se trabalhar na mesa da sala sem depender de vendas, encomendas, pedidos. Ainda assim, apelando mais uma vez para o fiapo de resistência que resta, ficar em casa é fundamental para retomar a vida ali na frente.

Algumas coisas vão ter que mudar, quando o mundo voltar. Uma delas: as diaristas precisam urgentemente ser reconhecidas e respeitadas. Sabe aquela ideia de não valorizar quem limpa a sua casa? Foi-se esse tempo. É trabalho para descadeirar um brutamontes. Não é só o pó que acumula de um dia para o outro, são as sujeiras pesadas que brotam do nada, na umidade das pias, na intimidade dos banheiros, nos pisos, nas janelas. Pagar pouco, pechinchar, tratar como serviço de segunda categoria? Madame que continuar agindo assim - existem muitas, infelizmente - merece nunca mais conseguir uma diarista.

Um disco com vários climas para dias de solidão, de desassossego, de vontade de dançar com a vassoura, de se perguntar: e agora? Letrux, uma das maravilhosas da casa, lançou Aos Prantos no dia 13 de março, com a agenda de shows fechada. Mas quem fechou foi o Brasil. Ela conta: "Existe algo de muito misterioso em lançar um disco e não viver de cara a catarse do palco. 

Guardamos, estamos guardando. Vivemos a catarse da audição, da escuta, que é mágica, mas de outra ordem. É o primeiro disco em que consigo ouvir minha voz e não me criticar, consigo até apreciar. Eu amo esse disco. Tenho até medo de quando for o primeiro show, é tanto acúmulo de tanta coisa, que vocês se preparem pra um maremoto de espetáculo". Tem sido uma das trilhas sonoras da quarentena. Aos Prantos. O título não poderia ser mais adequado.

E assim, dentro de casa, à moda do Queiroz, julho vai chegando ao fim.


CLAUDIA TAJES


18 DE JULHO DE 2020
LEANDRO KARNAL

AMIZADE E CASAMENTO

No filme My Fair Lady, o pernóstico professor interpretado por Rex Harrison canta um dueto com seu amigo Pickering: A Hymn to Him (letra de Alan Jay Lerner e música de Frederick Loewe). A obra é uma reclamação masculina sobre como os homens seriam "fáceis" e as mulheres, "complicadas".

A letra fala de mulheres que reclamam de coisas banais como a falta de flores, do companheiro tomar uns drinques, de sair com os amigos. Esposas repetiriam comportamentos de suas mães (ah, as sogras!) e tornariam chata e cheia de cobranças a vida de seus "pobres" maridos. A personagem insiste: "Por que as mulheres não podem ser como nós?". Em outras palavras, levar a vida mais "na flauta" (meu Deus, alguém ainda sabe o que significa a expressão?), serem mais agradáveis conosco e pararem de implicar a cada falta, deslize ou comportamento errático. Como complemento implícito, a amizade entre homens, sem cobranças, calcada no companheirismo livre de ressalvas, seria o modelo perfeito da canção. Homens são companheiros, vivem juntos a boa vida, não se importam com pecadilhos dos amigos, pois partilham deles.

A amizade, historicamente, foi pensada como um sentimento dos mais nobres e... própria do gênero masculino. Cícero escreveu um tratado sobre isso. Para o romano, conhecedor de larga tradição de se pensar o tema desde a Grécia antiga, mais do que mera afeição, a amizade seria uma espécie de pacto objetivo baseado na fidelidade e na confiança, um acordo inquebrantável se verídico. Logo, a amizade só poderia existir entre iguais, entre homens bons, pois implicaria palavra. E palavra dada não se quebra se foi empenhada por pessoa honrada. Também na Antiguidade, Epicuro (a quem Cícero criticava) escreveu que a amizade não pode ser vinculada à utilidade, pois seria algo isento, prazeroso. Devia ser fluido o compromisso entre amigos, agradável, baseado em boas conversas, em trocas equilibradas, não em troca de favores e cobranças.

Séculos mais tarde e esse eco da velha amizade voltava a ser motivo de textos muito bem escritos, como o ensaio sobre a amizade de Michel de Montaigne. Tendo seu falecido amigo Étienne de la Boétie como inspiração, Montaigne declama as virtudes de uma amizade pautada na filia, no amor entre iguais, almas que se reconhecem num relacionamento verdadeiro, isento, elevado. Chora a morte do companheiro de uma vida. Sor Juana Inés de la Cruz louvou a amizade elevada que tinha com a vice-rainha do México. Maquiavel alertou sobre a falsa amizade, aquela feita por interesse. Os moralistas modernos seguiram o florentino.

De lá para cá, outro fenômeno correu em paralelo. O mundo burguês, industrial, criou o homem de escritório, aquele cuja moral estava ligada ao mundo de fora da casa. Junto disso, passamos a casar por amor, por escolha, não mais por contratos arranjados. Em matrimônios tradicionais de outrora, a convivência entre cônjuges seria um dever, a prole era linhagem e o controle sobre o corpo feminino levou à tentativa de "domesticação" da esposa. 

O mundo antigo já fazia isso, mas sobre outras chaves lógicas. Nos séculos 19 e 20, a mulher encarnou a "rainha do lar", já idealizada por Rousseau no seu Emílio. Virou imperatriz da moral e dos bons costumes, responsável por manter filhos, empregados e maridos na linha. Afinal, no lar, o "maridão" precisava ser lembrado que o mundo imoral e competitivo dos negócios tinha que ficar do lado de fora. A casa era um templo. Com o casamento por amor, nasceu a mulher que cobrava o marido por amor, por dever de ensinar seus filhos.

Aos homens, lembrando-lhes de se comportarem no ambiente familiar, de terem limites diante de convidados e das crianças, nada mais seria cobrado. Lavar pratos ou simplesmente recolher a louça da mesa? Imaginem! Lavar ou colocar roupa no varal? Jamais! Educação dos filhos, que remédios tomam e que lições trazem da escola para o lar? Não cabem na agenda do homem. Responsabilidades vistas como menores, comezinhas, domésticas, banais, além da moral, boas maneiras e educação: mundo no qual reinaria a mulher, perfeita esposa. 

Se o marido tiver sucesso no seu mundo dos negócios, da competição, das ideias, dos grandes ideais, a mulher contrataria outra (ou muitas outras) mulher para fazer as tarefas domésticas no seu lugar. O marido, estressado, cansado de tantas cobranças e competição em seu mundo, ou exaltando suas vitórias, encontraria no convívio de iguais um mundo no qual falar abertamente o que se pensa, ser mal-educado, despreocupado, pensar com pesar ou leveza os problemas do universo. Por que as mulheres não podem ser como nós?

Soma-se a isso a noção romântica de que casamento por escolha é a culminância do amor e a canção se explica. As histórias de amor do século 20 terminam onde o casamento começa, param com um prosaico e potencialmente desastroso "viveram felizes para sempre". Mas há toalha molhada na cama, tubo de pasta apertado errado, homem se esquivando de agir em casa, mulher cobrando. 

A amizade parece ser tão superior ao casamento porque revive todo o trajeto da camaradagem viril, de Cícero ao My Fair Lady. Crescemos quando percebemos que confiança, problemas, leveza, amargor, lealdade e cobranças permeiam todo afeto. Abrace a vida, com amor e amizade sinceros, e com os problemas todos que derivam disso. Se alguma relação foi apenas leve e positiva, há o risco de não ser uma verdadeira amizade ou um genuíno amor. Importante sempre: ter esperança nos homens e nas mulheres.

LEANDRO KARNAL


18 DE JULHO DE 2020

FRANCISCO MARSHALL


GENOCÍDIO BRASILEIRO


Sempre que pensamos algo importante, aparecem palavras gregas ou latinas. Por vezes, são palavras fecundas, como isonomia e democracia, ou como liberdade, que conhecemos da flâmula mineira: libertas quae sera tamen, ou liberdade, ainda que tardia. E como tarda! No extremo oposto da inspiração bela, todavia, aparecem os horrores da História, e, com eles, esta palavra tenebrosa que ora vemos à nossa frente: genocídio. O assassinato de um povo. Examinemos, antes dos fatos, as palavras, gregas e latinas, seus significados possíveis - pois o que seria de nós sem a potência das palavras?

Genocídio é um neologismo (junção de palavras) consagrado, porém espúrio. Um neologismo puro une só palavras gregas, como autonomia, ou só latinas, como aeronave. O sufixo -cidio indica, em latim, assassinato, mas o prefixo genos é grego e refere família ou linhagem. Uma das palavras gregas para povo é ethné, de onde temos a etnologia, estudo de tribos, povos ou nações. A palavra grega para assassinato é phonía, mas não a utilizamos em português. 

O termo grego para o que ora ocorre seria etnofonía, assassinato de um povo. Podemos usar a palavra consagrada, genocídio, com duas ressalvas: primeiramente, que genos refere famílias e linhagens - neste caso, especialmente negros, índios, pobres, mulheres e homossexuais, ou a mistura desses componentes, com risco letal ampliado. Segunda ressalva: essa palavra não deveria sequer existir, que se dirá ser utilizada para descrever a situação atual do Brasil.

O Genocídio do Negro Brasileiro é o título do livro de Abdias do Nascimento (1914-2011), de 1978, reeditado em 2016, ano em que Tarsila Flores publicou o capítulo de livro Genocídio da Juventude Negra no Brasil. É farta a documentação estatística e analítica do quadro mórbido do racismo brasileiro, em que a sociedade agride mortalmente o povo negro. Isso reverbera no quadro atual da pandemia, em que negros morrem em quantidade desproporcional. Não bastassem a letalidade do racismo e a do coronavírus, acrescenta-se a chaga que ora cresce com estímulo oficial, a violência policial, vitimando ainda mais negros e negras. Passou da hora de todos gritarmos BASTA!

Chega-se então à crise sanitária. Por que a mortandade brasileira na pandemia deve ser designada genocídio? Há dois fatores objetivos: a soma das numerosas e persistentes negligências do governo federal no combate à pandemia, resultado de opções inaceitáveis, desdenhando ciência, prudência e eficiência, e a morbidez do presidente que ganhou votos ensinando crianças a fazer arminha e prometendo matar a oposição, um tipo sem compaixão, líder de um necrogoverno, genocida. Um dia, um tribunal decidirá se é genocídio culposo (sem intenção) ou doloso (com intenção) para dosar penas, mas estas terão de alcançar todos os responsáveis, fardados ou não, pela catástrofe sem precedentes em que sucumbem dezenas de milhares de compatriotas.

Não viveremos com liberdade em uma democracia enquanto houver racismo, e ninguém está a salvo enquanto perdurar o genocídio brasileiro.

FRANCISCO MARSHALL


18 DE JULHO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

A máscara

Sete razões que justificam a revolta de quem vê, nas ruas, gente sem proteção contra o vírus
Médico, cientista e escritor | drauziovarella.com.br

Dizem que Deus limitou a inteligência dos homens para que não invadissem Seus domínios. Por que diabos não estabeleceu limites também para a ignorância?

É revoltante ver tanta gente sem máscara pelas cidades. Qual é a dessas pessoas? Não sabem que há uma pandemia? É por que não acreditam em vírus, seres minúsculos que os olhos não enxergam?

Andar sem máscara no meio dos outros revolta as pessoas de bom senso, pelas seguintes razões:

1) Em 50 anos de medicina, vi chegar diversas epidemias, mas nenhuma em que o microrganismo provocasse tal variedade de apresentações clínicas: até 40% dos infectados permanecem sem desconfiar que carregam o vírus. Entre os demais, o quadro vai da tal "gripezinha" oligossintomática, a uma doença grave que evolui com insuficiência respiratória, intubação, ventilação mecânica e, eventualmente, morte.

2) Nesse cenário, prezado leitor, você considera a obrigatoriedade da máscara um desrespeito à sua liberdade? É mesmo? Medidas sanitárias que proíbem esvaziar os intestinos nas ruas também devem ser revogadas? Você reivindicaria no prédio em que mora, o direito de urinar no elevador?

3) Embora a mortalidade seja mais alta entre os que fazem parte dos chamados grupos de risco (mais de 60 anos, pressão alta, diabetes, obesidade, etc.), também morrem jovens saudáveis, com peso corpóreo na faixa da normalidade. Você decerto acha que só acontece com os outros.

4) Você é defensor convicto do isolamento vertical, em que crianças voltam para a escola e os jovens podem se expor à vontade, desde que os mais velhos fiquem em casa? Que ideia brilhante. Incrível como Alemanha, França, Itália, Noruega e a Nova Zelândia não pensaram nisso. Não seria por que crianças e jovens podem ter irmãos obesos, pais e avós?

5) Quem sabe, você é um daqueles iluminados que diz: "E daí? Se eu pegar o vírus, o problema é meu". Não é apenas seu. Mesmo se tiver a sorte de ficar assintomático, você garante que não será um transmissor ambulante que levará sofrimento e morte aos mais vulneráveis?

6) Se, por acaso, você for daquelas pessoas meio azaradas que pegam o vírus e acabam nos hospitais, quem arcará com as despesas? Sua família? O SUS? O plano de saúde? Em qualquer caso, cairá nas costas de alguém a conta da sua irresponsabilidade.

7) Desculpe, mas não te incomoda pegar o vírus por um capricho pessoal e expor ao contágio seus familiares, os amigos e os profissionais de saúde que vão atender no hospital um egocêntrico como você?

Quando a epidemia chegou, já sabíamos que havia quatro medidas de prevenção com eficácia comprovada nos países que nos antecederam: testagem, isolamento social, higiene das mãos e uso de máscaras.

É evidente que caberia ao Ministério da Saúde a coordenação de um esforço nacional, em conjunto com os governadores e prefeitos, para acompanhar a disseminação da doença, equipar e preparar o SUS da melhor forma possível e orientar a população para impedir a falência dos serviços de saúde.

Nessa hora crucial, no entanto, não dispúnhamos de testes para identificar os infectados e os que haviam adquirido o vírus no contato com eles, para que pudéssemos isolá-los de modo a interromper a transmissão em cadeia.

Para complicar, a autoridade máxima da República concluiu por conta própria que a fome seria mais mortal do que o coronavírus, condenou o isolamento, menosprezou a gravidade da doença, propôs que saíssemos às ruas de peito aberto, promoveu aglomerações políticas, eximiu-se de qualquer responsabilidade em relação às mortes, adotou a cloroquina como arma de combate e fez questão de exibir o rosto sem máscara.

Ao ultrapassarmos 60 mil mortes, está evidente que a volta das aglomerações promove o colapso do sistema de saúde e aumenta o número de óbitos de forma tão direta, que várias cidades têm sido forçadas a decretar a volta do confinamento, depois da abertura do comércio.

Não é o isolamento social, mas o coronavírus, o causador da crise que fará o PIB brasileiro regredir a níveis de uma década atrás. Em pleno surto epidêmico, imaginar que a população irá às compras para ativar a economia é pensamento mágico.

Há poucos dias, ao som de um sanfoneiro aprendiz, com a emoção de quem lê um extrato bancário, o presidente manifestou pela primeira vez solidariedade às famílias dos que perderam a vida. Antes tarde.

DRAUZIO VARELLA


18 DE JULHO DE 2020
JJ CARMARGO

O punhal da palavra

As piores frases para se começar uma conversa. Uma das experiências mais ricas que se pode enfrentar no mundo encantado da dialética é a dissecção das frases, em qualquer idioma, assumindo que nenhum instrumento de corte pode ser tão afiado quanto a palavra.

Se não bastasse a gravidade do que se diga, ainda se pode atormentar o interlocutor com o jeito de dizer, onde a linguagem corporal pode ser o camaleão do serial killer da comunicação, e tudo de um jeito angelical, como convém aos dissimulados. Os sádicos, na tendência espantosa de tornar pior o que já está péssimo, se servem de metáforas, verdadeiros punhais que brilham sedentos aos olhos atônitos da vítima, que daria tudo para ter certeza do que realmente está sendo dito. E o cérebro mediano, estarrecido pela ameaça latente, mas ainda incerta, finge sorrir para aparentar firmeza, e tudo o que se vê é o medo da notícia, que agora já aperta a garganta de terror. Se não fosse tão vergonhoso, ele choraria.

Há uns quatro anos, a New Yorker publicou uma pesquisa feita em rede social para determinar qual seria a pior frase para se iniciar uma conversa. Uma relação de 10 sentenças foram oferecidas como sugestão, e os leitores do semanário puderam votar. Com mais de 75% dos votos, a frase selecionada foi: "Eu posso ser sincero com você?". Em tese, estamos todos de acordo que nada de bom poderá vir depois desta introdução. Em termos gerais, a vitória por goleada se justifica. Mas também é verdade que existem frases, em situações específicas, que mereceriam, pelo menos, uma menção honrosa:

O chefe da seção interpelando o funcionário novato: "Não é que eu não confie em você, mas você poderia me explicar...".

O paciente pergunta ao médico se o caso dele é muito grave e ouve uma resposta preocupante: "Eu só espero que o senhor tenha um bom plano de saúde!".

A esposa, na incontrolável necessidade de discutir a relação, anuncia ao maridão, com frases silabadas, que: "Nós precisamos ter uma conversa". Se este primor de amabilidade conjugal for acrescido do adjetivo "séria", já pode ser classificada como ameaça de morte.

O patrão, preocupado com o desequilíbrio financeiro da empresa, convida o funcionário mais antigo para um inesperado primeiro cafezinho depois de décadas, e meio constrangido dispara: "Estamos numa fase de contenção de despesas e preciso que você me ajude a te ajudar!".

O marido, depois de mais uma sessão de bate-boca, anuncia que não está mais aguentando aquele casamento e que o melhor é ir cada um para o seu lado. E a esposa, com o mórbido olhar de superioridade de quem sabe do que está falando, antecipa: "Por mim, tudo bem, mas eu sei dos meus direitos!".

O guarda de trânsito, colocado estrategicamente logo depois da sinaleira, com um ar de falsa curiosidade: "O elemento é daltônico?".

Nesta altura da crônica, me dei conta de que a lista é infindável, e poderíamos inaugurar uma pesquisa, por e-mail, de diferentes frases, vividas ou ouvidas, que tenham, por cinismo, deboche ou crueldade, condições de serem classificadas como AS PIORES. Os interessados poderão se servir do endereço no alto da página. A pesquisa pretende apenas aprender um pouco mais sobre as múltiplas formas de anunciar o que ninguém quer ouvir, mas tantas vezes ouve, simplesmente porque não podemos escolher o que os outros são capazes de dizer. E, claro, os colaboradores terão a confidencialidade preservada.

J.J. CARMARGO

18 DE JULHO DE 2020
ARTIGOS

MUITO MAIS DO QUE UMA VACINA

O primeiro semestre de 2020 passou e levou muito de todos nós. Planos, experiências e as condições de vida com as quais estávamos acostumados. Rápido, silencioso e doloroso, levou também a nossa saúde, mental e física, por vezes em definitivo. Mas a tristeza nos fez seguir adiante, com a missão de encontrar saídas para uma crise global de saúde nunca antes sentida na contemporaneidade.

Os efeitos de tudo isso têm intensidades diferentes em cada um. Embora isso nos preocupe do ponto de vista social, chama atenção a forma com que nos aproximamos enquanto seres humanos. Sim, a vida foi posta em jogo. E quando nos vimos impactados por um turbilhão de fatos negativos, não conseguimos recorrer como gostaríamos àqueles que amamos. O abraço entrou em compasso de espera.

Viver a experiência de enfrentar uma pandemia dentro de um complexo hospitalar é algo que não se esquece. Além da batalha contra a covid-19, as demais doenças não param. O reflexo está nos rostos do dia a dia, que carregam medo, insegurança e incerteza. Mas não é só isso. Também emerge dos ambientes clínicos um chamado ainda maior à vida. Está nas mãos, mentes e sobretudo corações dos profissionais da saúde, que na assistência, no atendimento clínico ou na pesquisa se tornam ainda mais fundamentais. Nesses momentos, percebemos que juntos somos mais fortes.

Se os primeiros meses do ano foram de luta, o último semestre nos encoraja a colher o resultado de tanto esforço. É tempo de se fazer presente, reunir forças e alimentar a esperança de que podemos alcançar nosso resultado. Nosso ponto de partida é a testagem da vacina contra o coronavírus, que se iniciará nas próximas semanas em nosso centro de pesquisa. Estaremos em sintonia com todos, sobretudo os gaúchos, para que em breve seja possível retomar o normal que conhecemos.

Sabemos que essa luta tem diversas frentes. Por isso, até que a vacina seja eficaz e possa ser distribuída, precisamos seguir com todos os cuidados de prevenção e distanciamento, sempre refletindo sobre como as nossas atitudes podem impactar o outro. Por mais que muitas vezes a vida esteja sob cuidado dos médicos, até chegar a eles, a responsabilidade é de todos nós.

Diretor-geral do Hospital São Lucas da PUCRS leandro.firme@pucrs.br
LEANDRO FIRME


18 DE JULHO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

NÓS, OS MACACOS...

A grande habilidade dos macacos é imitar o que veem. No horror do contágio da covid-19, estamos aprendendo a ser decadentes símios ao imitar o desnecessário e piorá-lo até.

O presidente do Brasil imita o presidente dos EUA, trata a peste com desdém e as mortes crescem. E, se não bastasse a pandemia em si, para tratar dela, abandonamos o idioma português e adotamos o inglês.

Colonizar a linguagem é sinal de servilismo, num exibicionismo que nos faz meros macaquinhos incapazes de criar, apenas repetindo o que ouvimos.

Em vez de "bloqueio total" ou "fecha tudo", dizemos "lockdown", como se a língua nacional não soubesse se expressar por si própria. Ou "drive-thru" para as provas médicas feitas "na direção do carro". Já antes, em vez de "telentrega", alguns diziam "delivery". Agora, não há "trabalho no lar" ou "em casa", mas "home office", como se esse tal de "ofício de homem" fosse coisa de macaco imitando humano.

Será que substituir o português pelo inglês nos salva da pandemia?

Os meios de comunicação, em especial a TV e o rádio, são responsáveis diretos por essa progressiva dissolução do idioma. Esquecem que o poeta Fernando Pessoa (mesmo alfabetizado em inglês na África do Sul) dizia com orgulho: "Minha pátria é a língua portuguesa".

Nós, porém, desprezamos a língua materna e nos tornamos servos de um colonialismo tão opressivo quanto no tempo do Brasil Colônia, pois espolia e rouba nossas raízes culturais. E nos faz simples bonecos de ventríloquo, sem raciocínio ou iniciativa, repetindo sons sem saber o significado.

Por que preocupar-se com isso, porém, se há males piores?

A covid-19 coroa o horror, mas outros absurdos evitáveis ampliam o desastre. Na Amazônia, o governo federal vai dar "títulos de propriedade" a grileiros que invadiram uma área equivalente à soma dos Estados do Rio de Janeiro e de Sergipe e nela devastaram florestas.

Os ex-ministros da Fazenda e presidentes do Banco Central a partir do governo Sarney alertaram o presidente da República sobre a urgência de implantar "desmatamento zero" na Amazônia, e, assim, evitar um boicote mundial ao nosso comércio. Duas dezenas de grandes investidores internacionais advertiram o presidente Bolsonaro de que abandonariam o país devido ao descaso na preservação do meio ambiente.

As mudanças climáticas nos ameaçam mais do que a covid-19, mas fingimos não saber. E passamos a infestar o que nos rodeia, como, aqui, na pretendida mina de carvão a céu aberto, à beira do Rio Jacuí, a 12 quilômetros de Porto Alegre, que poluirá o ar e fará do Guaíba um lago podre, deixando a Capital sem água. E daí??

Bonecos ou macacos, nos diferenciamos deles, porém, por ver o crime.

FLÁVIO TAVARES

18 DE JULHO DE 2020
ARTIGOS

FAKE NEWS E VINGANÇA

O polêmico projeto para regular as redes sociais no Brasil (PL 2.630/2020), mais conhecido como projeto das fake news, no texto em que está, não pretende combater as notícias falsas em sua essência. No seu âmago, o projeto aprovado em açodada votação remota no plenário do Senado - e que agora está sob análise da Câmara - busca, sim, colocar em marcha a vingança de figuras poderosas da República contra críticas políticas que recebem de cidadãos e eleitores conectados à internet.

A canhestra proposta se traduz num duro golpe contra a liberdade de expressão garantida pela Constituição. A impropriedade fica evidente quando se sabe que já existem na legislação penal brasileira meios para vítimas se defenderem dos abusos de calúnia, injúria e difamação cometidos online. Na prática, o que se quer é a instalação de grande e permanente vigilância sobre manifestações e conversas de pessoas nas suas comunidades virtuais.

Os protestos da sociedade confirmam o aspecto extremamente autoritário do projeto pouco discutido e sem respaldo no Brasil contemporâneo e democrático. É de se estranhar que dispositivos que interferem na rotina de 140 milhões de usuários cotidianos das redes sociais no país fossem aprovados sem audiências públicas e sem debates presenciais. A população merecia mais respeito do Legislativo.

Com normas previstas também para serviços de mensagem, o projeto fixa condições para provedores atuarem, exige identificação e monitoramento de usuários e facilita retirada de conteúdo. Assim, não só a opinião do cidadão corre risco, mas também seus dados pessoais. Como se não bastasse esse regramento de censura e insegurança sem paralelo em democracias, o texto ainda amplia a chance de perseguição com um conselho para decidir o que é ou não fake news.

Nenhum parlamentar pode ser a favor da mentira e do ódio, mas também não pode concordar com barreiras que contrariem o próprio sentido de ser das redes sociais, que é a liberdade para todos se manifestarem. É por isso que se esperam correções dos deputados e, assim, o monstrengo possa ser reavaliado pelos senadores, de preferência na volta das sessões presenciais. Só assim, com responsabilidade para com o público inconformado pelo rumo das coisas, será possível barrar os abusos iminentes num retrocesso movido pelo fígado.

LASIER MARTINS


18 DE JULHO DE 2020

O PRAZER DAS PALAVRAS


Fostes tu


A pergunta vem de uma colega, professora de Português, que pede para não ser identificada: "Professor, estou numa saia-justa. A coordenação de nossa cadeira produziu uma aula de atividades sobre a música Dinamarca, do Gilberto Gil e do Milton Nascimento, que eu amo de paixão. Contudo, só ao preparar a aula em casa foi que notei que eles erram a conjugação do TU. Na letra, eles se dirigem todo o tempo a um capitão de navio usando a segunda pessoa, mas lá pelas tantas escrevem "Depois do dia em que tu partistes". Fui conferir na música e é assim mesmo que eles cantam, com aquele S no fim. E agora? Se um aluno perguntar, digo que isso é licença poética ou admito que os compositores erraram mesmo?"

Cara colega, há muito venho usando aqui uma distinção que, apesar de jocosa, tem valor universal: há duas atitudes básicas no que se refere ao idioma que usamos - ou pertencemos ao bloco dos despreocupados ou ao bloco dos aflitos. Os primeiros não têm consciência da linguagem que utilizam; contentam-se em usá- la, trinando como os pássaros, e vivem muito bem com isso, desde o primeiro choro até o silêncio final.

Os outros, ao contrário, numa atenção (e tenção) constante, jamais deixam de se preocupar com a observância daquilo que se convencionou chamar língua padrão. Trazem o olho e o ouvido sempre ligados, abrem o dicionário, consultam a gramática, inquietam-se quando o corretor automático sublinha alguma coisa no seu texto - e até destinam alguns minutos à leitura destas colunas, em que eu, aflito em tempo integral, converso com os demais membros da tribo.

Nos pontos em que a linguagem popular se afasta muito do que é considerado correto pela língua padrão, o aflito, ao contrário do despreocupado, assume uma atitude tensa, de autovigilância constante, por considerar - e com toda a razão - que qualquer desses erros considerados clássicos vai prejudicar sua imagem social ou profissional, ou mesmo manchar o seu cartaz nos sites de relacionamento (é só perguntar às frequentadoras do Tinder, por exemplo, a decepção que sentem quando o possível galã espanca impiedosamente o idioma...).

Pois é exatamente nesses pontos de gelo fino que pode ocorrer, entre os aflitos, uma curiosa maneira de errar, chamada de ultracorreção ou hipercorreção pelos linguistas. Ficamos tão ansioso por evitar um erro para o qual fomos alertado que terminamos aplicando a regra onde não devia ser aplicada, corrigindo o que não era para corrigir. No fundo, estamos cometendo um erro novo ao tentar evitar um erro velho.

Este é exatamente o caso da letra de Dinamarca, onde aparece um desses pontos "minados" de nosso idioma: o uso do TU. Este pronome pode tornar-se uma armadilha fatal para recém-chegados, como é o caso de Gil e do Milton Nascimento, que usam você desde que nasceram. Ao escolherem aqui o tratamento na segunda pessoa, vieram pisando em ovos, cautelosos, cientes (ambos têm sólida formação escolar) dos perigos que isso implica - e erraram por excesso de cautela.

A desinência característica da segunda pessoa do singular é sempre o S (partes, partirás, partirias, partisses, partias), exceto num único tempo, o pretérito perfeito, em que este S é cedido à segunda pessoa do plural: tu fizeste, vós fizestes; tu partiste, vós partistes. Ora, aqui no Sul criou- se uma combinação alternativa do pronome tu com a forma verbal do você (tu vai, tu foi, tu é), usada naturalmente pelos despreocupados mas evitada pelos aflitos enquanto não obtiver a chancela dos guardiões da língua-padrão.

E é nesse exato momento que ataca a hipercorreção: esforçando-se em falar certo, o pobre aflito muitas vezes se esforça demais e dá tanto impulso para montar no cavalo que vai cair do outro lado. Para não dizer *tu foi, *tu veio ou *tu disse (o asterisco assinala as formas condenadas pela gramática), ele acaba saindo com *tu fostes, *tu viestes, *tu dissestes, também erradas. Acho que deves explicar isso tintim por tintim aos teus alunos sem arranhar o talento do Gil e do Milton Nascimento; afinal, a boa intenção dos aflitos sempre serve para atenuar um pouco os seus pecados.

CLÁUDIO MORENO


18 DE JULHO DE 2020
RESTRIÇÕES EM PORTO ALEGRE

"Próximo passo é lockdown"

Nelson Marchezan foi enfático em pronunciamento: se não cair a circulação de pessoas, Capital pode parar na próxima semana

Após ouvir de gestores de hospitais que há pouca margem para novas ampliações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) em Porto Alegre, em reunião realizada na sexta-feira, o prefeito Nelson Marchezan admitiu a possibilidade de a Capital adotar lockdown nos próximos dias caso o índice de isolamento social não aumente e force diminuição no ritmo de internações de pacientes graves.

Marchezan argumentou que a maior parte dos administradores de hospitais informou estar "no limite" do atendimento, com dificuldades para conseguir novos profissionais habilitados, equipamentos e medicamentos, a exemplo de anestésicos. Isso poderia exigir a imposição de medidas ainda mais rigorosas de restrição à circulação "na semana que vem", afirmou o prefeito quase ao final da live iniciada pouco depois das 17h.

A intenção é adotar essa medida com uma mínima base de apoio social, incluindo população, imprensa e representantes do empresariado. Por isso, na reunião com os gestores hospitalares, pediu que eles ajudem a conscientizar as pessoas sobre a gravidade do atual estágio da pandemia. Em seguida, se reuniu com líderes de entidades empresariais para detalhar a situação e preparar o caminho para eventual lockdown.

A avaliação é de que não há como continuar acompanhando o ritmo de hospitalizações pelo coronavírus desde que a covid-19 passou a ganhar força na primeira quinzena de junho - mesmo com acréscimo superior a 220 vagas de terapia intensiva. Na sexta, havia 748 leitos operacionais na cidade, contra 525 disponíveis no final de março. Segundo Marchezan, Porto Alegre é hoje a segunda capital com maior proporção de vagas de UTI por habitante.

O problema é que, apenas ao longo da última semana, o avanço na demanda por UTIs foi de 24% em um cenário já sobrecarregado. Na tarde de sexta, havia um recorde de 260 pessoas com covid-19 sob tratamento intensivo, e em meio a uma ocupação geral de 88,8%. Essa quantidade supera o teto intermediário de 255 leitos previstos para covid no plano de contingência, e projeções indicam que o limite máximo de 383 pode ser ultrapassado no dia 30 de julho se a atual velocidade do vírus se mantiver.

No momento, mesmo sob a vigência de decretos que restringiram o funcionamento de setores econômicos como comércio e indústria, além de impor limitações à circulação como o bloqueio de parques e de parte do vale-transporte, o índice de isolamento entre a população segue em patamares insuficientes para cortar as linhas de transmissão do coronavírus.

A taxa de isolamento em Porto Alegre ficou em 47,8% na quinta- feira, enquanto a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) entende que o mínimo necessário para reduzir a velocidade de contágio seria 55%.

Gre-Nal

Marchezan argumentou que a situação atual justifica o veto ao clássico Gre-Nal marcado para a próxima quarta-feira.

- É por isso que tivemos de dizer não à realização dos jogos do Campeonato Gaúcho em Porto Alegre. Qual cidade gaúcha ou brasileira não iria gostar de ter um Gre-Nal no seu território? Mas essa não é uma mensagem adequada ou respeitosa à situação que estamos impondo aos profissionais da saúde e a todos os trabalhadores e empresários da cidade - justificou Marchezan, que ainda apelou para que as pessoas fiquem em casa. - Ou diminuímos a circulação a ponto de conter a proliferação do vírus, ou os médicos terão de decidir quem vai viver e quem vai morrer.

MARCELO GONZATTO*


18 DE JULHO DE 2020
REFORMA TRIBUTÁRIA NO RS

Como o ICMS pode gerar renda

Piratini promete distribuir a famílias que ganham até três salários um valor anual que chegará a R$ 450 milhões a partir de 2023

Em tentativa de tornar mais justo o sistema tributário estadual, o governo Eduardo Leite propõe a devolução de ICMS para 1,1 milhão de famílias de baixa renda no Rio Grande do Sul - 30% do total. Inédita no Brasil, a iniciativa é defendida no Palácio Piratini como forma de corrigir o efeito regressivo do imposto (ou seja, que onera mais quem ganha menos), mas será preciso convencer os críticos de que a operação é viável e de que não se traduzirá em ônus aos demais contribuintes e a setores estratégicos.

Se a proposta for aprovada como está na reforma tributária, o governo planeja iniciar a restituição em 2021, começando por famílias com até um salário mínimo e ampliando o alcance de modo gradativo até 2023. A reposição terá valor fixo mínimo de R$ 30 mensais e poderá ser ampliada de acordo com o consumo, com limites preestabelecidos.

Em 2021, a Secretaria da Fazenda estima devolver R$ 150 milhões aos mais pobres - a título de comparação, o Estado arrecadou R$ 36,5 bilhões em ICMS em 2019. A meta, até 2023, é triplicar o valor revertido, atingindo núcleos familiares de até três salários mínimos.

Para bancar o ressarcimento, o governo pretende criar o Fundo Devolve ICMS, que será alimentado com contribuições de setores contemplados por benefícios fiscais. O principal deles deve ser o agronegócio, o que preocupa representantes do segmento.

- A reforma é necessária e a ideia da devolução de ICMS a partir da criação de um fundo é positiva. Está em linha com a literatura e segue as melhores práticas internacionais. A questão é como isso será financiado. A conta não pode pesar sobre um setor, e nós já avisamos o governador que vamos propor alterações - afirma Antônio da Luz, economista-chefe da Federação da Agricultura do Estado (Farsul).

Questões

Há dúvidas, ainda, sobre outros dois aspectos: como as classes média e alta vão reagir à proposta, e como será a operacionalização da medida. Além de envolver grande número de pessoas, há o risco de fraudes, como se viu no caso do auxílio emergencial, pago pela União.

- A Receita Estadual já trabalha com menos da metade do contingente de pessoal. É praticamente impossível levar adiante algo assim sem estrutura adequada. Além disso, a proposta beneficia apenas um estrato social. Talvez fosse melhor, nesse momento, concentrar a reforma na simplificação e modernização do sistema - pondera Marcelo Ramos de Mello, presidente da Associação dos Auditores Fiscais da Receita Estadual (Afisvec), que reivindica a nomeação de 150 profissionais na área.

Esforço

Secretário da Fazenda no governo Yeda Crusius, Aod Cunha discorda das ressalvas. O economista considera "justo pensar no alívio dessas famílias" e, embora reconheça as dificuldades de implantação, avalia que não há empecilhos à mudança.

- Isso não deve ser colocado como obstáculo intransponível. A gestão pública precisa se debruçar sobre o tema. Também diziam que era impossível fazer o Bolsa Família e o programa foi implementado - destaca Aod.

À frente da Receita Estadual, Ricardo Neves Pereira garante que, no conjunto de ações previstas, haverá "redução da carga tributária para todas as famílias". Ele também afirma que os setores chamados a colaborar com o fundo serão compensados de outras maneiras.

- O que estamos propondo é o melhor caminho dentro do que era possível fazer. A carga tributária é redistribuída com pequena contribuição dos vários segmentos. E, no caso do setor produtivo, a contribuição voltará na forma de investimentos em infraestrutura agropecuária, inovação e em consumo. Projetamos vários cenários e esse é o que tem o menor impacto na sociedade, com elementos que estimulam a economia e recolocam o Rio Grande do Sul no patamar de competitividade esperado há anos - diz Pereira.

JULIANA BUBLITZ

18 DE JULHO DE 2020

PELA VIDA

Parques tecnológicos desenvolverão respiradores


Os quatro principais parques tecnológicos de Porto Alegre e Região Metropolitana receberão financiamento do governo do Estado para pesquisar e desenvolver respiradores de baixo custo, que possam ajudar a salvar vidas em meio à batalha contra o coronavírus.

Um consórcio formado pelos parques Zenit (da UFRGS), Tecnosinos (Unisinos), Tecnopuc (PUCRS) e Feevale Techpark receberá R$ 150 mil para adequar seus laboratórios e criar peças e equipamentos hospitalares.

A rede de instituições foi selecionada em um edital lançado em abril e com resultados definidos no final de junho. A proposta do projeto, capitaneada pela Secretaria Estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia (SICT), é que estes centros aproveitem o conhecimento reunido nas startups e nas oficinas 3D e de prototipagem para criar ventiladores de baixa e média complexidades. Os equipamentos poderão ser utilizados em UTIs para complementar o tratamento de pacientes com covid-19 submetidos aos respiradores de alta complexidade.

- É um movimento importante porque une a força do setor tecnológico do Estado para buscar soluções para a área da saúde em um momento que se precisa ampliar a produção de respiradores - explica o titular da SICT, Luís Lamb.

A fase de pesquisas nos parques irá durar 12 meses. Depois que forem desenvolvidos os protótipos, as universidades deverão firmar parcerias para iniciar a produção em massa dos respiradores. Estes deverão ser implementados, inicialmente, nos hospitais universitários.

Outra frente de trabalho será desenvolver as válvulas de duplicação, usadas nos equipamentos de tratamento de pacientes em fases menos críticas da covid-19.

- Um dos avanços deste projeto é a redução de dependência do Brasil em peças, componentes e equipamentos do exterior - afirma a diretora do Tecnosinos, Susana Kakuta.

ERIK FARINA

18 DE JULHO DE 2020
RODRIGO CONSTANTINO

Patota do selo azul

Walter Duranty foi um jornalista que atuou como chefe do escritório de Moscou do New York Times por 14 anos após a vitória bolchevique. Suas "reportagens" enalteciam o regime comunista, e ele chegou a ganhar um Prêmio Pulitzer em 1932. Mas seus textos eram uma fábrica de mentiras e deturpações, para colocar a ditadura soviética sob uma luz favorável.

Esse caso é um dos mais escandalosos, mas nem de perto o único. O NYT sempre teve forte viés de esquerda, apesar de se vender como imparcial. Não há nada de novo, portanto, na denúncia feita pela editora de opinião Bari Weiss, que pediu demissão do jornal expondo o ambiente asfixiante e persecutório mesmo para moderados de centro na redação do Times.

Weiss alegou sofrer forte bullying dos colegas por conta de suas opiniões. Ela era chamada de "racista" e "nazista" só por não rezar totalmente a cartilha do politicamente correto. Seus pares pressionavam o jornal para demiti-la, e faziam isso abertamente em redes sociais. Ela lamenta a covardia dos chefes, que em privado elogiavam sua coragem, mas nada fizeram contra os ataques.

Para Weiss, o Times perdeu de vista seus princípios, traiu seus padrões, virou as costas para o público, deixando-se levar pelas redes sociais. De que adianta o compromisso com a verdade se alguém pode prosperar lá dentro só demonizando Trump? Essa questão mostra como o viés ideológico tem falado mais alto do que a busca pelos fatos. E, como se viu, não é de hoje.

Não obstante, muitos ainda fingem que o NYT é um jornal muito sério e imparcial, negando-se a enxergar a realidade. Um dia depois da carta de Weiss, um vídeo do youtuber Felipe Neto foi publicado na página do jornal, distorcendo os fatos para disseminar uma narrativa partidária contra Trump e Bolsonaro, responsabilizados pelas mortes por coronavírus.

Chamo de "patota do selo azul" essa turma, em referência ao selo de verificação do Twitter, que também possui claro viés ideológico. O problema dessa postura é que há a internet hoje. As mentiras e distorções não resistem ao ambiente de maior transparência. Por isso, aliás, querem censurar as redes sociais...

RODRIGO CONSTANTINO

sábado, 11 de julho de 2020



11 DE JULHO DE 2020
LYA LUFT

Sem assunto

Alguém vai pular e dizer: ué, essa doida começa a escrever dizendo que não tem assunto?

Pois é, meus leitores, meus amados amigos imaginários (nem todos me amam de volta), eventualmente se começa assim o dia, o livro, o trabalho, o roteiro nas ruas, o artigo novo. Se temos assuntos demais, escolher o quê? A pandemia tão espantosa sobre a qual já nem se sabe o que dizer exceto "se cuida, usa máscara, evita grupos maiores, fica em casa se puder"? Ou os desgovernos pelo mundo, com alguns líderes bizarros que levam muita gente a atitudes ruins?

Não sei, ainda não achei direito o assunto desta coluna, mas, isso eu sei, ele está dentro de mim como um passarinho no seu toco de árvore ou ninho, esperando que eu me distraia pra voar e pousar aqui, no teclado do meu computador.

Claro que não é sempre assim: na maioria das vezes, eu sento aqui com ideia clara do que vou escrever, ou dois, três assuntos para escolher na hora. Mesmo não sendo dos escritores mais disciplinados e organizados, dos respeitáveis que escrevem certo número de páginas por dia mesmo sem ter assunto algum, não sou totalmente caótica.

Porque também trabalho com arte - literatura é arte, gente... - precisa certa arrumação para que palavras e frases não saiam voando feito um bando de morcegos atabalhoados. Aliás, corrijo: parece que os bichinhos famigerados voam em absoluta ordem com seus radares pela noite onde tudo enxergam e sentem. Ao contrário de nós, tantas vezes andando às cegas, nos debatendo, esperneando, errando o caminho e teimando em ficar naquela direção... às vezes, sim, voltando pro rumo melhor quase sem acreditar que, sozinhos ou com ajuda, enfim vamos em frente para algum tipo de destino.

Talvez eu esteja falando em destino. Esse novelo estranho que se arma quando somos concebidos, e se desenrola a vida inteira, às vezes amarrado em nossos tornozelos e nos fazendo cair, e por fim acaba, último milímetro de fio, no chamado último suspiro.

Somos essa duplicidade: destino e escolhas. Não somos inteiramente inocentes, bem que seria bom, alguém ser o culpado de tudo, não nós, com nossa teimosia, arrogância, ignorância, precipitação ou apenas fragilidade, porque somos umas frágeis criaturas mesmo quando gritamos e batemos pé. Talvez, quando mais frágeis, mais gritamos e nos debatemos. Porque o comecinho da sabedoria de vida, que em geral vem com a idade - mas à vezes nem com ela aparece - e é tranquila e discreta quando se afirma.

Destino, sim: às vezes a vida parece uma tragédia grega, vemos isso não só na nossa particular, mas em milhares neste mundo, com gente morrendo, vários de uma família, com essa Peste ainda enigmática que nos assola. Outras vezes, por exemplo, quando nos recusamos a nos cuidar, a nos preservar, a praticar alguns pequenos incômodos como usar máscara ou ficar em casa se não é essencial sair: aí, meus amados, a escolha é nossa, e não é tragédia: é ignorância.

E não é que tive assunto?

LYA LUFT

11 DE JULHO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

A vida e o tempo

As pessoas têm reclamado da quantidade de vida que estão desperdiçando durante o isolamento social. A sensação é de que 2020 já era, foi um ano morto. Há quem inclusive faça piada dizendo que não trocará de idade, manterá a do ano passado, até que possa festejar seu aniversário de novo.

É natural acreditar que a vida é o que acontece enquanto estamos ocupados. Ao cumprir inúmeras tarefas, utilizando todas as horas do dia com atividades práticas, parece que conseguimos manter a morte a distância - brincando de Deus, nosso hobby.

Mas aí vem essa crise sanitária que nos paralisa e nos joga na cara, diariamente, um número preocupante de óbitos. Manter a morte a distância não está mais relacionado com agitação, e sim com ficar paradinho dentro de casa, por mais que tanta gente não consiga compreender e tirar proveito disso.

Poderíamos ser menos obtusos se Filosofia fosse matéria escolar obrigatória, mas os alunos continuam tendo acesso apenas ao pensamento de seus ídolos, que certamente não são Aristóteles, Platão, Nietzsche ou Sêneca, que nunca gravaram uma live.

Nietzsche, por exemplo, dizia: "Aquele que não dispõe de dois terços do dia para si é um escravo". Deveríamos trabalhar oito horas e dedicar as outras 16 ao ócio, ao lazer, ao sono, à meditação. Tão lindo e tão irreal. Até início de março, gastávamos as 16 horas restantes em congestionamentos, farmácias, mercados, cartórios, bancos, lojas, consultórios, filas. Mas o cenário já não é este. Muita gente ainda precisa ir para a rua (pessoal da saúde dando expediente diário de 14h, 16h), mas eu e tantos outros estamos em home office e finalmente dispomos de dois terços do dia para fazer as refeições com mais calma, para ler, para "desperdiçar" com aquilo que equivocadamente chamamos de fazer nada.

Sêneca complementa: "Pequena é a parte da vida que vivemos. Pois todo o restante não é vida, mas somente tempo". Ou seja: nada está mais longe da vida do que o homem superocupado, que nunca se detém, não contempla seu passado, não desfruta o presente e está sempre de mãos vazias em relação ao futuro.

Filosofia em plena pandemia, sim. Temos que extrair algo bom desse período. Antes, sobravam só uns minutinhos para o que realmente valia a pena - telefonar para os avós, preparar um suco de laranja, contar uma história para uma criança. Mudou. Podemos adicionar mais plenitude a este tempo que parece não passar. Não há pressa nem excesso de compromissos. A tarefa mais urgente é prestar atenção aos nossos sentimentos internos, que ficavam sem ser observados. Os dias andam repetitivos? Pois eles têm tudo para ser mais vívidos do que aquela agenda empanturrada que, por ora, deixou de nos atazanar.

MARTHA MEDEIROS


11 DE JULHO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Memórias do corpo na quarentena

A gente, que tem casa e condições para sobreviver, se queixa da quarentena por razões bem diferentes daquelas de quem não consegue sequer sacar o tal auxílio emergencial - e são muitos os que não conseguem. Mães solo com filhos, conheço várias. Um amigo que passou todo o ano de 2019 sem emprego não teve direito porque, em 2018, ainda trabalhando, teve renda. Nossos governantes consideram que alguém nessa situação fica olhando para os contracheques passados e se alimenta deles, só pode.

No meio de tudo isso, a psicóloga e roteirista Gabriela Altaf, mineira de Juiz de Fora que vive há 22 anos no Rio de Janeiro, começou um projeto a partir, justamente, de um inesperado desemprego. Ela conta: "O programa de TV em que eu trabalhava foi suspenso por causa da pandemia. E Copacabana, o bairro onde eu e meus pais vivíamos, tinha o maior número de vítimas fatais pelo coronavírus. Decidimos ir para Juiz de Fora, passar a quarentena na cidade da nossa família. Assinei a rescisão do contrato pela manhã e, à tarde, chegamos em Minas, para ficar no apartamento onde meus avós, já falecidos, moravam".

Foi depois de higienizar e arrumar tudo, vendo uma pintura no banheiro da casa dos avós, que ela teve um estalo. "Era uma pintura que povoou a minha infância inteira. E que acionou uma série de lembranças do meu corpo de criança. Eu achava que aquela pintura fosse um portal para algum castelo e agora estava ali, no meio de uma quarentena, preocupada em ajudar meus pais e a fazer o possível para sairmos dessa vivos."

A pintura - que, no fim das contas, continuava a ser um portal, mas agora para uma possibilidade de sobrevivência na vida adulta - foi o ponto de partida para o projeto Memórias do Corpo na Quarentena. "Quis pensar quais seriam as memórias que os nossos corpos estariam arquivando neste momento. Saudades, lembranças, dores, superações, angústias? O que, para além do medo da contaminação, estaria sendo arquivado em nossas peles durante o período de confinamento?". Foi nesse momento que nasceu o documentário agora em produção.

"Bell Hooks, a autora feminista, pondera que transitar entre o silêncio e a fala é um gesto desafiador, que cura. Eu venho da Psicologia e a fala, para mim, realmente tem esse poder libertador. Quis, então, convocar as pessoas a falarem sobre seus corpos e sua relação com eles neste momento que estamos passando."

Gabi postou um convite no Instagram e, para surpresa dela, começou a receber relatos não apenas de amigos, mas de desconhecidos de dentro e fora do Brasil. "Eu estudo o corpo há quase 10 anos. Foi tema do meu mestrado, da minha primeira série de documentário, do meu primeiro curta-metragem. O projeto veio da necessidade de tentar transformar a tristeza pela demissão, e por tudo o que esse momento tem trazido, todas as mortes, todo o descaso e irresponsabilidade deste governo, em alguma ação que me ajudasse a não paralisar diante da tragédia. Era preciso canalizar a energia para tentar criar algum sentido no meio desse caos que é a pandemia e que é o Brasil hoje."

"Temos quase 70 relatos já, das mais diversas e impensáveis vivências. Desde as mudanças físicas - no cabelo, na menstruação, na pele, no intestino, às mais subjetivas...Tem a menina que, longe dos olhares de preconceito, descobriu que seu corpo gordo, como ela o descreve, ama dançar e passou a soltar a franga em frente ao espelho. Já Flávio, jovem gay, vive a casa na quarentena como prisão, pois, não sendo assumido para a família, narra como tem tido que controlar seu corpo, seus gestos mais espontâneos, para não dar pinta."

Além de documentário, Memórias do Corpo na Quarentena também vai ser um livro, com renda revertida para as famílias afetadas pela covid-19. Gabriela já está em busca de uma editora parceira para entrar na empreitada.

Quer mandar um relato? É só entrar no Instagram @memoriasdocorponaquarentena. E deixar o seu corpo falar.

CLAUDIA TAJES