sábado, 19 de setembro de 2020


 

19 DE SETEMBRO DE 2020

LYA LUFT

Podemos escolher

Quando os assuntos espiam nos cantos da casa e do mundo e não sabemos o que escolher. Os otimistas tão raros hoje em dia? Os pessimistas maioria, ou os pavorosos? Lembrei de um filme de Woody Allen em que ele definia os humanos em duas turmas: "Os horríveis e os miseráveis".

Por muito tempo achei graça sempre que lembrava da frase. Mas houve fases em que a comicidade me pareceu menor, até grosseira. E hoje? Onde estamos, a que ponto chegamos no meio de uma pandemia que destrói pessoas, famílias, economias, enquanto muitos ainda dão risada e sacodem a cabeça como se nós, os preocupados, fôssemos uma tropa de imbecis, coitados, apavorados, que acreditam na imprensa a serviço do sistema, seja lá o que isso significa.

Não estou entre os apavorados, mas confesso que esse vírus, que há meses me prende em casa, me deixa pensativa e um pouco melancólica. A doença se politizou em muitos lugares do mundo, ou em todos, e a dor serve para jogos e manipulações. Mas eu quero mudar de assunto, virar a chave, abrir outra porta: a que dá para o nevoeiro de uma manhã, por exemplo, que mergulha o mundo numa nuvem maravilhosa da qual, aqui e ali, espia a ponta escura de uma árvore.

Ou admirar alunos e professores, que com difícil disciplina dão aulas, estudam, trabalham, no conforto de casa sim, mas com todas as limitações da ausência física. Sem esquecer de todos aqueles incontáveis, que mal têm água para lavar as mãos, quanto mais internet para aulas online.

Também posso pensar em todo o tesouro de afetos que tantas décadas de vida acumularam na minha alma; nas curiosidades e belezas que vi e vivi nas viagens longas ou num cantinho do jardim onde um carrinho de mão muito velho se enfeita de mil cores dos vasos floridos que a gente inventou de botar ali.

Mas também posso abafar por momentos as notícias tristes ou trágicas ligando para alguma amiga querida, ou conversando com a família no Whats, ou curtindo um livro que me apaixona, ou simplesmente ficando quieta, olhos fechados, ouvindo uma música que me encanta, ou em silêncio sentindo a tranquila, profunda respiração da vida - que é enigma e não cessa de produzir beleza, apesar dos desastres humanos.

LYA LUFT

19 DE SETEMBRO DE 2020

MARTHA MEDEIROS

Vai, amor 

É difícil, mas essa hora sempre chega: a de abandonar, deixar partir. Quando começa, confiamos que tudo será cristalino e empolgante. Fazemos o nosso melhor e acreditamos que nada, nenhum outro irá superá-lo. As ideias deslizam, o olhar brilha, mal controlamos o sorriso no rosto: está dando certo. Está funcionando. Você não sabe direito aonde irá chegar, mas já sente o imenso prazer em debulhar suas emoções sem pudor, dividir suas reflexões, abusar da argúcia, do humor, e se congratula: está correndo melhor do que o esperado.

Aí acontece.

De uma hora para outra, a magia embesta de falhar. Acho que foi quando você se levantou para buscar um copo d´água na cozinha. Ou talvez você não devesse ter tido o ímpeto de interromper o que está fazendo para descer até a garagem, só porque havia esquecido a máscara no console do carro. Você volta para o apartamento e ele não parece mais o mesmo. Como é que uma impressão muda tão rápido? Você não deveria ter se mexido, saído do lugar, mas ninguém pode ficar refém de uma atenção plena. Telefones tocam, uma amiga chama, alguém distrai você com outro assunto, e quando você tenta retomar de onde estava, ele já não se parece com o jeito que era.

A noite cai e você vai dormir, descansar. É provável que tenha sido apenas um pressentimento que sumirá ao amanhecer.

Mas o dia amanhece, e a realidade se sobrepõe às ilusões. Nada se mantém com o frescor do início, você já deveria saber. É mais uma relação que, como todas, dará trabalho. Você usará uma palavra que não caiu bem e terá que voltar atrás. Você insistirá, teimosa, numa ideia que não será bem compreendida. Você se sentirá desestimulada e cogitará não levar a história adiante, pensa em começar algo totalmente diferente, mas depois repensa: já chegou até aqui, investiu tanto tempo, vai dar tudo certo no final. E insiste mais um pouco.

Você gostaria que fosse perfeito, mas a perfeição é uma medida só almejada pelos tolos, você sabe perfeitamente disso, você, inclusive, declara isso aos sete ventos, por que então essa insistência em tentar corrigir até os detalhes insignificantes? Ele se tornou quem é, por mais que você ainda tente mudá-lo. E ele precisa ir ao encontro de outros olhos, você não pode mais retê-lo. Acabou. Aceite. Deixe-o partir.

É mais ou menos assim, caro leitor, que me relaciono com cada texto que escrevo. Chega a hora em que é preciso abandoná-lo, ou perderei o prazo de entrega para o jornal. Não é fácil, sempre fica no ar a sensação de que eu poderia ter me esforçado mais. E só no fim de semana seguinte, quando o reencontro alheio a mim, em meio a outros, é que descubro onde foi que eu errei.

MARTHA MEDEIROS

19 DE SETEMBRO DE 2020

CLAUDIA TAJES

O prazer saiu da fogueira 

"O prazer vem diretamente de Deus, não é católico, nem cristão, nem nada ligado a isso, é simplesmente divino." Pode parecer que o autor da frase é Caetano Veloso, que sempre pensou a favor da liberdade.

Ou, quem sabe, de algum filósofo progressista - para não dizer esquerdista e correr o risco de um cancelamento. Ou, ainda, um ator desbundado (palavra bem anos 1970), uma atriz feminista ou, simplesmente, um/uma artista. Nos dias que correm, se há atividade enxovalhada, desrespeitada e desconsiderada, é a arte.

Se você escolheu uma das alternativas acima, a resposta está er-ra-da. Quem acaba de dizer que o prazer sexual vem de Deus, e mais, que os cristãos devem aproveitá-lo, é o Papa Francisco.

Caiu o queixo? Pois foi o Santo Homem em pessoa quem falou.

Em um livro de entrevistas que saiu agora mesmo na Itália, o Papa que gosta de futebol - argentino, por supuesto - surpreendeu a turma conservadora nos costumes com uma ideia que passa longe dos conceitos da Inquisição. Alguns bem caros, ainda hoje, para a turma conservadora nos costumes. Além de tirar o prazer sexual da fogueira, o Papa também liberou a boa mesa da culpa. Pena que justo no momento em que ficou mais difícil sustentar uma mesa farta, com a especulação e o preço dos alimentos. Ir ao supermercado virou uma experiência de terror.

"O prazer de comer serve para manter uma boa saúde, da mesma forma que o prazer sexual serve para embelezar o amor e garantir a continuidade da espécie." Francisco, que não é o Buarque de Holanda, concluiu: "O prazer de comer e o prazer sexual vêm de Deus".

Claro que a ala medieval não curtiu as declarações do Papa, assim como não tem gostado de outras atitudes dele. Por exemplo, o fim do segredo pontifício sobre crimes de pedofilia dentro da Igreja. Ou a publicação de um manual para os eclesiásticos com diretrizes sobre o procedimento a seguir "na delicada tarefa de levar adiante corretamente os casos de abuso sexual contra menores que impliquem religiosos quando são acusados". Essa é uma ferida que a Igreja não pode mais ignorar.

Enquanto isso, no Brasil, autoridades como a ministra Damares e suas ideias carolas e retrógradas ganham cartilhas. O ministro da Educação, um pastor que já defendeu castigos físicos para as crianças, vai a um evento de prevenção ao suicídio pregar que os jovens se matam porque, sem religião e sem propósitos, viram zumbis existenciais. E o próprio presidente, não que surpreenda, não deixa passar a oportunidade de repetir que família é marido, esposa e filhinhos. Fraquejadas são admitidas, mas só eventualmente.

Voltando ao Papa, que é mais interessante. Ele já defendeu, por exemplo, que a comunidade LGBT seja respeitada e acolhida na igreja. Já chamou o capitalismo de "ditadura sutil" e pediu atenção para o aquecimento global. Sobre a pandemia, insiste que pessoas são mais importantes que a economia. É um líder espiritual humano, enfim, mesmo que isso pareça uma contradição em termos. O que não deixa de ser incomum em época de moralistas de fachada.

As novas declarações do Papa estão em um livro que reúne uma série de entrevistas feitas pelo jornalista Carlo Petrini. Na obra, Francisco critica a rejeição à noção de prazer que a Igreja vem difundido ao longo dos séculos, "uma interpretação errada da mensagem cristã" que "causou enormes danos, ainda perceptíveis em alguns casos". "A Igreja condenou os prazeres desumanos, grosseiros, vulgares, mas, por outro lado, sempre aceitou os prazeres humanos, sóbrios, morais", na interpretação dele.

O livro, que se chama TerraFutura: Conversas com o Papa Francisco Sobre Ecologia Integral, não tem previsão de lançamento no Brasil. Ecologia integral. O que Francisco deve pensar quando vê a Amazônia e o Pantanal em chamas?

Deus - mas o Deus do Papa, esse que é tolerante e justo - defenda a nossa natureza. Porque o homem, esse está passando a boiada. E com muito prazer.

CLAUDIA TAJES

 

19 DE SETEMBRO DE 2020

LEANDRO KARNAL

DUAS LIVRARIAS E UMA CIDADE

A cidade era famosa pela população ordeira e leitora. Na rua principal, duas livrarias alimentavam a avidez do povo de Santa Cruz com ideias impressas. Eram separadas por poucos metros e, talvez, por milhares de quilômetros. Explico-me.

A livraria Cruzador Aurora sempre apostou no discurso engajado Colocou cartaz dizendo que ali não se admitia racismo ou misoginia! A trilha sonora interna tocava Violeta Parra. A cada semana, a vitrina anunciava uma promoção: "Compre seus autores aqui, 10% do lucro será dirigido para quilombolas". Alunos de humanas e algumas ovelhas desgarradas das engenharias compravam e davam preferência por levar os livros em sacolas feitas por comunidades com materiais orgânicos. Todos os clientes recebiam a atenção especial de um grupo simpático de vendedoras, vendedores e "vendedorxs". Uma severa política de cotas no RH privilegiava mulheres negras nas contratações. Transgêneros e imigrantes também encontravam abrigo trabalhista. O espaço tradicional era quase um soviet harmônico, uma república feliz no coração de uma Woodstock que nunca se encerrava.

A outra, oposta, era a livraria Ordem e Progresso. Livros bem encadernados, obras completas de Plínio Salgado, grandes romances clássicos, best-sellers de denúncias contra ONGs e contra a esquerda. Na entrada, em destaque, o cliente era apresentado ao Livro Negro do Comunismo, um libelo contra regimes vermelhos. Metros adiante, na rival, exibia-se, com o mesmo destaque, O Livro Negro do Capitalismo.

Desejava adquirir algo sobre Von Mises e suas ideias econômicas? Sempre havia boas ofertas na Ordem e Progresso. Faltava-lhe algum volume de Marx ou Foucault? A rival era seu destino. As Veias Abertas da América Latina? Encabeçava a lista dos mais vendidos na rubra. Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano era avidamente consumido pela outra.

As duas ilhas conviviam quase sempre de forma tranquila. Tinham seu público. Uma não roubava clientes da outra. Viviam em dois planetas distintos, cada qual com seu sol, como o de Krypton era vermelho e o da Terra sempre seria amarelo.

A partir de 2013, a tensão entre as lojas aumentou. Por um gesto extraordinário de marketing, a Aurora (como era conhecida pelos fãs) conseguiu uma palestra de Judith Butler. Foi a declaração de guerra. Cartazes, acusações recíprocas, fake news, manifestações: os grupos elevaram o tom quase às vias de fato. A vingança veio um mês depois: a Ordem e Progresso (não tinha apelido porque seus leitores detestavam informalidades) convidou Roger Scruton, um ano antes do falecimento do britânico. A cenografia antípoda se repetiu. "Vai para Cuba, comunista safado" era jogado ao sol de outono. "Fascista lambedor de coturno", vociferava o grupo oposto.

A pequena cidade de Santa Cruz oscilava entre os dois núcleos comerciais. Famílias inteiras eram devastadas porque se descobria que uma parte comprava no reduto "conservador" e outra na "vanguarda dos povos". Natais foram estragados. Grupos de WhatsApp eram feitos a partir da opção de compra. Quase toda família tinha um só com os parentes que frequentavam uma livraria e outro com os leitores que estavam na outra. Não se permitiam trânsfugas. Quem decidisse ler outra coisa ou dizer que amava Machado de Assis apenas, sem ideologias políticas, sem panfletos, era apupado como "isentão"!

A cizânia era tão venenosa, que o juiz local decidiu convidar os donos dos estabelecimentos para uma conversa franca. Não era possível transformar a rua principal de Santa Cruz em uma fronteira armada da Guerra Fria. "Basta", bradou dr. Sanderson Turlan. Aproveitou-se de uma queixa formal, decidiu assumir um papel moderador. Pediu a presença do delegado como testemunha para o choque de duas placas tectônicas bibliográficas.

No dia do encontro, com pontualidade de fazer corar um calvinista de Zurique, entrou um simpático senhor de meia-idade. A roupa e os modos anunciavam dinheiro sólido. "Sou o proprietário", anunciou com voz de barítono. "De qual delas?", perguntou o juiz sob olhar atento do delegado. "De ambas", ele respondeu com serenidade. Houve prolongado silêncio na sala de móveis austeros. "Como assim?", disseram, quase ao mesmo tempo, os dois. Estavam atônitos! O desconhecido arrumou os óculos e narrou que o mercado estava polarizado. Apostar em um segmento era invalidar o outro.

Assim, com promoções aparentemente rivais, ele conseguia atender as duas torcidas e manter um excelente capital de giro. Havia momentos (como no governo Lula) em que uma livraria "bombava". Em outros, como nos anos Bolsonaro, fortalecia-se o plantel da outra. "Nunca sabemos quem estará no poder, assim, decidimos apostar nos dois setores." "Qual seu nome, meu senhor?", perguntou o delegado. Sou Joseph Itadesco, disse o homem pigarreando em um lenço de tons alaranjados e com borda vermelha.

Nunca tivera partido, afirmava. Era a favor do país.

A audiência informal foi encerrada. Não havia crime em ter duas lojas e os impostos estavam em dia. O zeloso empreendedor agradeceu e se retirou. Já na porta, voltou-se e anunciou uma terceira livraria: a Rosa Cálida. Ela venderia apenas livros de autoajuda e romances espíritas e declararia, desde a porta, sua absoluta neutralidade política. Por que brigar se você pode optar agora por três projetos distintos? Esperança tem CNPJ?

LEANDRO KARNAL

 

19 DE SETEMBRO DE 2020

COM A PALAVRA - Marco Nanini - Ator, 72 anos

Lineu tinha a integridade que está faltando no Brasil

Eternizado como o Lineu do seriado "A Grande Família", vai receber o Troféu Oscarito no Festival de Cinema de Gramado, que começou nesta sexta-feira e vai até o dia 26

De 2001 a 2014, Marco Nanini foi o paizão (ou o "popozão") Lineu de A Grande Família. Era um personagem sério e centrado, mas de coração enorme. Em 2019, chegou aos cinemas Greta, dirigido por Armando Praça e estrelado por Nanini. Em uma atuação visceral e com cenas delicadas de sexo, o ator foi bastante elogiado por esse drama sobre um enfermeiro gay e solitário. Até o início de setembro, Nanini estava no ar em Vale a Pena Ver de Novo pela novela Êta Mundo Bom! (2016), no duplo papel de Pancrácio e Pandolfo.

Agora, aos 72 anos, vai receber o Troféu Oscarito no Festival de Cinema de Gramado. A homenagem é entregue a grandes nomes do cinema nacional. Seja em filmes, na televisão ou no teatro, Nanini tem uma carreira exitosa, com mais de 50 anos. Em entrevista a ZH, ele falou sobre seu trabalho, sobre A Grande Família, sobre a pandemia e sobre o estado das coisas no país.

Você vai receber o Troféu Oscarito no Festival de Cinema de Gramado. O que significa para você esse reconhecimento?

É muito interessante. Esse troféu vem de um festival muitíssimo importante, que nos dá muita visibilidade. Já fui algumas vezes ao festival, fiquei meio à parte, apenas observando como era. Agora estou me sentindo bastante honrado e homenageado com esse troféu.

Até recentemente, Êta Mundo Bom! estava no ar pelo Vale a Pena Ver de Novo. Na novela, você se destacou vivendo Pancrácio. Como foi fazer um personagem tão querido, com tantos recursos e disfarces?

O personagem me foi oferecido pelo Walcyr Carrasco logo após o término de A Grande Família. Eu li a sinopse e gostei do papel. Só pedi algumas coisas técnicas para poder desenvolver o personagem. Cada disfarce do Pancrácio era gravado num dia inteiro. Só ele. Senão, tinha que ficar mudando de maquiagem. Comecei a interpretá-lo e logo caiu no gosto do público. Era uma figura muito do bem. Ainda tinha aquela magia da teatralidade dos personagens que ele encarnava para poder pedir dinheiro. Êta Mundo Bom! tinha um elenco muito interessante. A começar pelo Sérgio Guizé (Candinho), que é um ator extraordinário. O mesmo vale para a Eliane Giardini (Anastácia), que é fantástica. Tinha muita gente lá me apoiando. Era uma relacionamento excelente. Foi tudo muito bom, graças a Deus.

Você já comentou em mais de uma oportunidade que a rotina de gravação era puxada para interpretar o Pancrácio, que ainda teria o acréscimo do irmão gêmeo Pandolfo.

Depois que entrou o irmão gêmeo, eu tinha que fazer os dois ao mesmo tempo. Não era sempre, mas às vezes os dois se encontravam. Daí tinha de interpretar os dois personagens no mesmo dia, pois dependia de um efeito especial. De qualquer maneira, todo o trabalho foi muito divertido. Era uma novela muito leve. Eram personagens muito gostosos de fazer. Terminou tudo feliz.

No final de 2019, Greta chegou aos cinemas. você se entregou ao personagem em uma interpretação bastante elogiada. Como foi se conectar com esse texto?

Eu gosto muito de conviver com a equipe que vai fazer o papel comigo. A atuação é uma arte de conjunto. Você não vive sozinho em cena. Mesmo quando está fazendo um monólogo, você depende muito dos outros. Gosto de trabalhar assim, coletivamente. Em Greta, o diretor Armando Praça me visitou em casa e me explicou como era o projeto. Fiquei com uma impressão muito boa dele no primeiro encontro. Depois que li todo o roteiro, vi que era um papel muito bacana para o momento que eu vivia. Pronto, aceitei e fui. Cheguei lá e tive um período de ensaio com a equipe, que foi muito profundo. E o Armando é um diretor de muito bom gosto. Tive a coragem e a liberdade que ele me propiciou. Não tive nenhum problema para fazer as cenas de nudez, pois eram todas muito bem cuidadas e adequadamente iluminadas. Achei que seria bacana eu fazer um personagem mais velho, um drama. Era um momento que eu estava me recuperando de um problema na coluna, mas deu tudo certo. Nos organizamos de modo que não fosse muito puxado.

Como foi fazer as cenas de nudez e sexo?

Súper tranquilo. Era uma equipe muito respeitosa e profissional. Eu brinquei com o Armando que o máximo que ele estava fadado a fazer era enquadrar a minha barriga, pois estava muito grande (risos).

Greta é um filme LGBT+ sobre uma faixa etária que raramente é protagonista no cinema. É um retrato da solidão de uma pessoa com idade avançada. Como é seguir em atividade com mais de 70 anos?

Para quem gosta e tem vocação, é muito bom poder trabalhar com mais de 70 anos. Estou agora com 72, mas eu costumo contabilizar que estou no percurso dos 73, pois estou chegando lá. Quando eu completar 73, passo a contar que estou no percurso para os 74 (risos). Eu não acreditava que ia chegar nessa idade. Sequer achava que ia passar o milênio. Sempre imaginava quando era jovem como seria a passagem de milênio. Pensava: "Poxa, dever ser uma loucura isso". Mas foi uma decepção enorme, pois ninguém ao meu redor sabia quando começava exatamente o milênio, se era dia 31 ou 1º de janeiro. Me decepcionei com as festividades (risos). De qualquer maneira, não imaginava que ia chegar, mas passei e muito. Na minha infância, as pessoas morriam muito mais cedo.

em 2019, a Ancine cortou o apoio financeiro para a participação de Greta no Festival Internacional Queer Lisboa. A agência justificou que houve um corte de R$ 13 milhões nas despesas gerais. Haveria uma ajuda de custo de R$ 4,6 mil para a produção dos longas participarem do evento. Como você avaliou esse corte na época? Foi um boicote?

Foi um tipo de boicote. Foi um tipo de censura. No final, a produção do filme conseguiu uma ajuda participar do festival.

No ano passado, o governo Bolsonaro suspendeu um edital com séries LGBT+ para TVs públicas. Você teme que a censura atinja a produção audiovisual e artística no Brasil?

Claro, com esse governo que está aí tudo é possível. Hoje li um artigo do Ruy Castro dizendo que todo mundo esperava que o Bolsonaro fosse dar um golpe, mas que ele próprio é o golpe. Está sendo uma loucura isso na política. Muitos cargos ocupados por militares, que não são especializados. Uma coisa Moral e Cívica (disciplina escolar instituída durante a ditadura) demais. Se não houver reviravolta, nosso destino é terrível. É muito desagradável ver a violência que se forma contra negros e pobres. Muito desagradável para pessoas como eu, que gostam de discutir a democracia, que gostam de discutir ideias. Há um cerceamento e uma obscuridade que fomos no meter.

Na sua avaliação, a que se atribui essa obscuridade?

Isso é tudo uma camiseta dos líderes do governo. Por exemplo, o aborto. Uma menina capixaba de 10 anos foi chamada de assassina por interromper a gravidez em decorrência de um estupro. Olha onde nós estamos? Não é possível, a menina teve que entrar no porta-malas do carro no hospital para fazer uma coisa que é determinada por lei. Há um moralismo cego que rege essa obscuridade. Abrir o jornal todos os dias e deparar com histórias como essa é para quem tem muito estômago. Todo dia tem uma novidade desagradável nesse setor.

Talvez esse tipo de reação possa ter se intensificado com a pandemia. Como tem sido o período de pandemia para você?

Eu sou grupo de risco. Então, me embuti da ideia de não sair de casa para nada (Nanini vive no Rio de Janeiro). Só saio para ir a um médico ou outro, mas daí me encho de máscara (risos). Estou confinado há muitos meses. Ainda bem que tem bichos aqui em casa, tem alguma planta, o que dá alguma alegriazinha. Não tem outro jeito, tenho que ficar aqui dentro. As informações são tão desencontradas também, você fica sem saber o que fazer.

Como assim?

Ministério da Saúde não existe, praticamente. Nenhum ministério mais existe direito. Governo diz que não é bem assim, que tem que tomar cloroquina. Ou seja, isso tudo confunde o cidadão. É uma confusão danada. Algumas autoridades usam o bom senso. Daí vem uma contraofensiva do governo federal, com uma desmoralização de quem está falando o certo. Há um descrédito do governo com a Organização Mundial da Saúde, de todos os protocolos do mundo inteiro que está empenhado em resolver essa situação. Mas aqui no Brasil é salve-se quem puder. O cidadão fica completamente desorientado. Ele tem que decidir por ele mesmo e Deus que proteja.

Com tantas notícias negativas circulando, o que te traz otimismo? Ao que você recorre para aliviar a mente?

Olha, é difícil esse tempo. O que atenua bastante para mim é ver a natureza, ver as coisas mais significativas do ser humano.

vamos falar um pouco sobre A grande Família. Há uma geração que cresceu assistindo ao programa. Uma reflexão recorrente entre esse público, que é comum ser repetida nas redes sociais, diz o seguinte: "Estou virando o Lineu de A Grande Família"...

(Interrompe em risos) Nunca tinha ouvido falar! Incrível!

Até hoje há um culto muito grande ao seriado, especialmente na internet. Até hoje é mencionada com bastante carinho, com cenas sendo revisitadas em memes. A que você atribui esse sucesso longevo de A Grande Família?

É muito difícil você atribuir a um fator específico para o sucesso. O programa sempre teve muita simpatia do público. A Grande Família já era sucesso em sua primeira versão, na sua versão setentista (foi ao ar pela TV Globo entre 1972 e 1975). Quando retornou, voltou com muita força. Nós tivemos um trabalho de preparação muito grande. Fazíamos o programa sempre com muita seriedade. Só terminamos quando ninguém mais aguentava, quando já estava no limite. Eu era pai, virei avô. Teve passagem de tempo. Para continuar, eu teria que ficar com cento e tantos anos. Não dava, tinha que terminar. Mas até o último momento a gente se dedicou muito ao programa, tínhamos muito amor por ele. Evidentemente, recebia também muito carinho do público quando saíamos para algum lugar, o que até dava vontade de ficar mais tempo nesse trabalho. Fui muito feliz com A Grande Família. Durou o que tinha que durar. Terminou tudo de comum acordo. Pronto. Estamos seguindo.

Você já se sentiu parecido com o Lineu no seu cotidiano?

De alguma maneira, você busca na sua fonte os sentimentos para o personagem. Todo mundo que chegava perto de mim dizia: "Ah, meu pai é igual ao Lineu!". Isso acontecia porque era característica, mesmo. Lineu não era um personagem que fazia rir toda hora. Ele era uma personagem de centro e circunstância. Lineu tinha principalmente toda aquela característica de integridade, que é o que está faltando hoje no Brasil.

Há uma cena do Lineu que vez ou outra é resgatada nas redes sociais. é o episódio que ele come um biscoito de maconha e fica ouvindo Roundabout, do Yes. como foi construir esse capítulo?

Esse tema era uma coisa que nós queríamos falar no programa. Mas não foi fácil, já que a televisão aberta chega a muitos lares. Então, a TV tinha isso de não deixar acontecer imediatamente. Com o passar do tempo, a gente conseguiu realizar esse episódio. Foi um capítulo muito bom. Lineu come o biscoito inadvertidamente. Ele não sabe que está ficando louco. Começa a fazer coisas que nunca imaginou. Foi muito legal. Era preciso de uma concentração muito grande porque nesse tipo de humor você não pode querer fazer graça. Você tem que fazer com verdade. A graça vem da situação. Isso a gente levava muito a sério. Quem fazia a graça pelo próprio personagem era o Agostinho (Pedro Cardoso). Então, sempre levávamos esses climas que a gente encontrava às últimas consequências. No caso aí, a pessoa mais séria comeu o biscoito de maconha e ficou doidão. Foi uma cena muito bem aceita.

Um exercício de imaginação: como você acha que o Lineu estaria se comportando na pandemia?

Acho que seria muito engraçado. Tomaria todas as providências possíveis de desinfestação de tudo. Ele seria quase um bedel (chefe de disciplina em escolas) em casa. Lineu ia levar muito a sério a quarentena.

Quais são os seus próximos projetos?

Eu estava esperando o meu momento de trabalhar, aí veio essa pandemia. Os teatros fecharam, e a TV foi muito afetada. A novela para que eu estaria reservado, de autoria do Gilberto Braga e da Denise Bandeira, vai entrar sabe-se lá quando. Está na fila. Há muitas produções paradas. Quanto ao teatro, estou estudando com o Fernando Libonati, meu sócio, sobre o que fazer e como fazer. Só achar o que fazer já era difícil, agora é preciso pensar como se pode apresentar o trabalho. Não é nada certo ainda. Com certeza não será uma live.

O formato de live não te atrai? Não, eu não me sinto à vontade. Sou muito tímido. Não sou dado a isso. Gosto de ensaiar, de fazer personagens. Não vejo lives. Adoro ver o Marcelo Adnet, por exemplo. Morro de rir! Outro que adoro também é o Pedroca Monteiro.

Como você acompanhou as tensões entre o Marcelo Adnet e o secretário especial da cultura, Mario Frias (o humorista parodiou uma campanha da Secretaria de Comunicação da Presidência e Frias o criticou)?

Que tristeza. Que coisa mais cafona, puxa vida! Como é que pode isso, ele é um artista. Agora vão proibir os caricaturistas de trabalhar nos jornais porque produzem críticas em seus desenhos? Isso não é possível, não pode acontecer em uma democracia. A Secretaria Especial da Cultura virou um abacaxi. Secretaria de nada. Cultura de nada. Só para atrapalhar. O que o Mario Frias vai fazer? Por enquanto está fazendo figuração, o que está dando certo.

Você chegou a conhecer o Mario Frias? Não, não conheci.

Mas a ex-secretária Regina Duarte sim, certo? Já trabalhei com ela, mas, sei lá, há 40 anos.

Regina Duarte passou por poucas e boas enquanto esteve na secretaria. Ela foi bastante criticada por conta de uma entrevista em que minimizava a ditadura.

Aquilo foi um absurdo também! Que entrevista infeliz foi aquela! Regina foi descartada também, foi humilhada. Eu, hein! Ela era uma pessoa diferente da entrevista quando você a conheceu?

Olha, nunca tinha visto chegar a esse ponto. Mas ela era uma criatura mais conservadora, vamos dizer assim. Mas agora ela chegou a um ponto, dizer que não houve ditadura... Poxa, pelo amor de Deus, basta ler um pouco. Bom, que seja assim. Faça lá o que ela quiser.

 WILLIAM MANSQUE


 

19 DE SETEMBRO DE 2020

DRAUZIO VARELLA

FARINGITE POR ESTREPTOCOCO

O estreptococo do grupo A é responsável por 20% a 30% das faringites nas crianças e por 5% a 15% dos casos em adultos. Além de provocar uma doença aguda que evolui com febre e dor de garganta, a faringite por estreptococo está associada a complicações pós-infecciosas, como a glomerulonefrite que compromete a função renal e a febre reumática, que além de dores articulares, deforma as válvulas cardíacas.

Os sintomas de faringite geralmente são de início abrupto: dor de garganta, febre alta, calafrios, dores musculares e dor de cabeça. Nas crianças mais novas, podem surgir dores abdominais, náuseas e vômitos. Algumas vezes, aparece uma vermelhidão na pele, que poupa a face, fica mais intensa nas dobras de pele e chega a descamar na fase de convalescença, quadro que recebe o nome de escarlatina.

A dor costuma ser mais forte de um dos lados da garganta. Quando é intensa a ponto de impedir a deglutição e instala-se de um só lado da faringe, faz suspeitar da existência de abscesso no local, principalmente quando o quadro já tem diversos dias de evolução.

Tosse, coriza e conjuntivite associadas à dor de garganta não são sintomas típicos da faringite por estreptococo; quando presentes, sugerem infecção por vírus. A febre costuma durar três a cinco dias, e a dor de garganta diminui gradativamente de intensidade até desaparecer depois de uma semana.

O diagnóstico clínico é feito com base nos seguintes sinais e sintomas: temperatura acima de 38ºC, ausência de tosse, presença de linfonodos (gânglios) aumentados, amolecidos e dolorosos no pescoço, aumento do volume das amígdalas ou presença de uma camada esbranquiçada na superfície delas (exsudato). A confirmação laboratorial é obtida a partir da cultura da secreção local, colhida por meio da raspagem das amídalas com cotonete ou espátula. Como o tempo que o estreptococo requer para crescer em cultura é de pelo menos um a dois dias, existe um teste rápido que identifica certas proteínas da bactéria em alguns minutos.

Se a doença é autolimitada na maioria dos casos, vale a pena tratá-la com antibióticos? Embora a antibioticoterapia não afasta a possibilidade de glomerulonefrite, existem outras vantagens no tratamento. Estudos realizados já nos anos 1950 demonstraram que o uso de antibiótico reduz a incidência de febre reumática, a principal causa de comprometimento das válvulas cardíacas, principalmente em países como o nosso. Uma análise conjunta de nove desses estudos (metanálise) mostrou que a administração de penicilina por via intramuscular diminui a incidência de febre reumática em 80%, quando comparada à ausência de tratamento.

Os antibióticos reduzem o risco de formação de abscessos purulentos na faringe e nas amídalas e o aparecimento de otites médias. Além desses benefícios, há o da erradicação da bactéria. Sem nenhum tratamento, em 80% dos casos o estreptococo persiste na faringe por até seis semanas. Essa característica da infecção tem implicações importantes na transmissão, especialmente entre crianças em idade escolar. Quando a criança recebe antibiótico, as culturas se tornam negativas em 24 horas, período depois do qual estará autorizada a retornar à escola. Os antibióticos também encurtam a duração dos sintomas, principalmente quando administrados nas primeiras 24 horas.

A penicilina é o antibiótico de escolha. Na forma oral deve ser administrada durante 10 dias. A preparação injetável por via intramuscular de penicilina benzatina tem a vantagem de ser barata, aplicada em dose única e proporcionar níveis sanguíneos duradouros, adequados para a erradicação do estreptococo.

Se por alguma razão a penicilina não puder ser utilizada, existem outras opções: cefalosporinas, clindamicina, azitromicina, etc. O tratamento deve ser mantido por dez dias, com exceção da penicilina benzatina (dose única) e da azitromicina (apenas cinco dias).

DRAUZIO VARELLA

 19 DE SETEMBRO DE 2020

BRUNA LOMBARDI

A ARTE É FEITA DE MOMENTOS ROUBADOS

O artista espera quando o momento exato se ilumina e ele o rouba. Ele registra aquela imagem na sua memória, se apropria daquela emoção e a guarda em algum lugar da alma, onde se armazenam as coisas que nos marcam.

Mais tarde, quando finalmente está sozinho no seu espaço, ele usa sua criação e transforma aquela amálgama de sensações em algum coisa que parece próxima, íntima, parece que agora não será mais perdida. E cada momento roubado ganha magia, nova vida, novo significado.

Aquele instante de vida, que passaria despercebido pra maioria, agora vai se tornar permanente. Tem agora outra tradução, vira história, foto, quadro, música, poesia. Aquele momento que quase não se notaria de tão sutil, invisível, desimportante, agora se torna forte, grande, tem luz própria, desafia seu criador.

Aquela emoção ali guardada está segura, se redimensiona e ousa atravessar o tempo. Vai do passado onde aconteceu e foi capturada pelo artista, para o presente da obra e depois, em seguida, vai se projetar e continuar até encontrar seu público e através de cada um vai se multiplicar em milhares de novas sensações individuais.

Já não pertence ao artista que a criou, agora pertence a um futuro infinito, atingindo todos nós que teremos a emoção de vivenciar esse momento que nunca vimos. E não será mais um momento perdido.

Todo artista é uma espécie de Prometeu, que rouba o fogo sagrado dos deuses e o oferece aos mortais. O seu castigo é que todos os dias sua arte o devora e sua busca continua. Mas essa é também a sua benção. Distribuir generosamente sua alma é o trabalho do artista.

Ele rouba as emoções do mundo e nos devolve o que sem querer perdemos.

Às vezes, uma doce capacidade de observar o imperceptível, a delicadeza do olhar, uma sensação antiga, uma memória. Uma música ao longe, uma voz cantando pra ninguém. Um sabor, um cheiro, uma brisa no rosto, um gesto esquecido. Um trem que deixa uma estação, alguém acenando, alguém chorando, lugares onde pessoas deixaram um sentimento.

Alguém que espera alguém, um amor que não se revela, um abraço, um café, uma guitarra. Uma lembrança que nem é nossa, um amigo que não tivemos, a nudez de uma mulher que nunca conhecemos.

Atrás das janelas dos apartamentos, existem milhões de desejos, segredos e histórias que se escondem na cidade. Existem mistérios nas noites, paixão, dor, intimidade. Existem destinos. Em cada um a solidão e a solidariedade. Escolhas. O medo da impossibilidade e a esperança de que tudo é possível.

Todos os dias tecemos o fio da vida com essa realidade que nos embrutece, endurece nossos sentimentos, intoxica nossos pensamentos. A arte nos traz a beleza, o conhecimento, a sensibilidade que podem servir de contraponto e equilíbrio pra isso tudo,

Quando o artista rouba momentos da vida e os transforma, ele nos transforma a todos. Traz um novo significado ao que vemos, uma nova perspectiva. Nos faz lembrar que somos todos feitos da mesma matéria que são feitas as estrelas.

BRUNA LOMBARDI

 

19 DE SETEMBRO DE 2020

J.J. CAMARGO

PARA ONDE VAMOS COM ESSA PRESSA?

Era previsível que houvesse algum prejuízo para uma geração condicionada a viver no embalo da instantaneidade.

Esta forma acelerada de convívio, por quem ainda nem teve tempo e oportunidade de entender o que se perde com a pressa sem bagagem, induz os jovens a confundir informação com sabedoria e cria a sensação curiosa de que tudo o que é novo, sim, vale a pena, e que aqueles veteranos que aprenderam antes estão ultrapassados, porque nada mais é como pareceu àqueles olhos cansados de nostalgia. Por conta dessas mudanças, o mundo passou a ser chamado, convenientemente, de moderno. Sem nenhuma certeza que isso queira dizer, melhor.

Se você nasceu lá pela metade do século passado e cultivou com carinho suas preferências musicais e literárias, responderá com naturalidade à qualquer pesquisa que pretenda determinar seu ranking das obras memoráveis. E sem pensar muito, porque as lembranças que tocaram o fundo da alma dormem na ponta da língua.

Repita a experiência com uma galera jovem, e ela só lembrará das músicas deste semestre, o que convenhamos talvez seja uma sorte, por não desperdiçar córtex cerebral com aquela enxurrada de mau gosto.

Um dia desses, na espera por uma live, um grupo de estagiários quis saber o que eu consideraria valer a pena nas tardes frias e chuvosas dessa infindável quarentena. Estimulado pela curiosidade deles, assumi que colocar o celular no modo avião e durante duas horas me dedicar a reler os Funerais de Mamãe Grande de Gabriel García Márquez, e a ouvir a Aracy Balabanian recitando, como ninguém, textos de Clarice Lispector como Tentação ou Felicidade Clandestina (meu preferido) tinha sido o melhor de uma semana de emoções amordaçadas pelo confinamento. Ninguém comentou nada, o que é sempre ruim para um professor carente. Pior foi a intuição do que eles estavam pensando: mas que tipo esquisitão! Foi estranha a reação deles, como se introspecção fosse tempo desperdiçado.

Se essa superficialidade afetiva ficasse limitada à interação, por exemplo, com seus grupos de WhatsApp, tudo bem, os amigos são feitos também para suportar as nossas chatices, mas não, a ansiedade de ter tudo agora, e antes do que o colega, sem o tempo mínimo de elaboração e triagem do que é relevante, está comprometendo-lhes a capacidade cognitiva. A comprovação dessa sequela mental do mundo líquido, em que nada tem consistência nem durabilidade, se revela na incapacidade de redigir um texto que expresse algum sentimento ou emoção, e muito especialmente, na fugacidade e no descompromisso das relações amorosas.

Quando esse comportamento é transferido para a discussão do futuro profissional, e eu sempre provoco o assunto, porque tenho algumas premissas inarredáveis sobre construir uma carreira baseado no prazer de fazer o que se faça, seja lá o que for, lá está ela outra vez: a instantaneidade, como protagonista de todas as escolhas, muitas delas com exigências tão discrepantes, que revelam não haver nenhuma convicção, só pressa.

Mas é deprimente que a principal preocupação, aos 20 anos, seja o jeito de ficar famoso mais rapidamente, como se houvesse uma fórmula que dispensasse esforço, trabalho e persistência.

E penso na depressão que será a descoberta de que o sonho da instantaneidade milagrosa era uma fraude, por ignorar que a pressa de ir só tem sentido se antes for definido aonde se quer chegar. E com que gana.

J.J. CAMARGO

19 DE SETEMBRO DE 2020

DAVID COIMBRA

Seis caras vindo em minha direção

Lá adiante, na calçada, vinham seis caras bem na minha direção. Seis caras grandes. De imediato, lembrei de uma noite em que estávamos voltando de uma festa no Gondoleiros, eu e os amigos do IAPI. As festas no Gondoleiros eram as melhores, principalmente as comandadas pelos Discocuecas - os Discocuecas eram o Pretinho Básico da época.

Vivíamos a era dos Embalos de Sábado à Noite. "Discoteque", dizia-se. Criaram-se mitos em torno da discoteque depois do filme do Travolta. Mulheres sinuosas. Prazeres mundanos. Loucuras. Para nós, guris do subúrbio, a vida acontecia em meio às luzes estroboscópicas da discoteque. O problema é que estávamos sempre do lado de fora, a não ser quando conseguíamos furar as festas do Gondoleiros. Caso daquela noite.

Foi mesmo uma noite divertida, inclusive conseguimos dançar com algumas gurias e o Plisnou, se não me engano, até beijou uma delas, o que, naquele tempo, se tratava de uma façanha.

Então, alta madrugada, umas quatro ou cinco horas, por aí, nós começamos a viagem de volta para casa. Tomamos um ônibus que nos deixou na boca da Industriários, perto do bar Amarelinho, e por ali tocamos. Caminhávamos devagar, porque o Fernando Araújo estava se recuperando de um acidente de carro e precisava se mover apoiado em um andador.

Aí, pouco antes de chegarmos ao Alim Pedro, vimos que, a duas quadras de distância, vinha um bando de, sei lá, algo que nos pareceu uns 30 ou 40 sujeitos. Eles gritavam e corriam em nossa direção e, por Deus!, alguns levavam TOCHAS nas mãos. Tochas! O que era aquilo?

"Vamos correr!", propôs o Jorge Barnabé, sensatamente, uma vez que nós éramos seis e, eles, dezenas. Se estivessem mal intencionados, não teríamos chance.

"Vamos correr! Vamos correr!", concordamos. Menos o Fernando, com aquele andador:

"Eu não vou correr".

Olhamos melhor. Era um grupo formado por negros. Velhos cronistas diriam que eram negros altos, fortes e espadaúdos. Todos podiam jogar na zaga do Guarany de Bagé. Eram o dobro do nosso tamanho. Transformariam nossas caras em xis-búrguer, se quisessem bater em nós.

"Vamos correr!", insistiu o Amilton Cavalo.

"Vamos! Vamos!"

"Eu não vou correr", repetiu o Fernando, e acrescentou uma frase imortal: "Me deixem apanhar descansado".

Diante desse apelo, nos comovemos. Mas advertimos:

"Nós vamos ficar contigo, Fernando. Mas, se nós apanharmos deles, depois tu vai apanhar DE NÓS".

Pois os caras vieram, fazendo alarde, com aquelas tochas nas mãos. Vieram e vieram e vieram... Nós nos encolhemos na calçada. Eles chegaram, por fim. E... passaram por nós como se não existíssemos. Nem nos olharam. Por que iam dar bola para aqueles ratos?

Pois foi no que pensei quando vi aqueles seis caras vindo em minha direção, dias atrás. Não porque temesse ser espancado ou assaltado ou qualquer coisa do gênero, e sim porque eles estavam sem máscara. Nenhum usava máscara e um deles, um gordo, tossia. Cristo! Olhei para os lados, procurando uma rota de fuga. Não havia saída. Os carros zuniam pelo leito da rua, não tinha como atravessar, nem desviar. E eles já estavam perto, cada vez mais perto.

Observei com mais atenção: mais um tossia. Um que puxava uma perna. Já deviam ter contaminado uns aos outros e agora respiravam impunemente, exalando coronas pelo ar. Li que o corona é bem leve e fica flutuando por algum tempo, depois de voar da boca de um infectado. Ele pode boiar no oxigênio por até 20 metros, mesmo ao ar livre. Li isso.

Estremeci.

Quase que podia ver aqueles seis tipos rodeados por nuvens pestilentas de coronas. E eu teria de passar entre eles. O vírus maldito ia se impregnar no meu rosto, ia colar na minha roupa, nem adiantava eu estar de máscara, como estava, porque ele ia se infiltrar por meus olhos, grudar em meus cabelos, até pelos ouvidos me invadiria. Oh, Deus!

Eles se aproximando e se aproximando. Tossiam. E tinham uma aparência de contaminados. A maior cara de contaminados, se você quer saber. Estávamos a dois ou três metros de distância, quando tomei uma decisão. "Vou reagir!", disse para mim mesmo. E girei nos calcanhares e corri. Corri covardemente. Confesso que corri. Não iria repetir o Fernando. Não iria me infectar descansado. Porto Alegre já foi mais segura, francamente.

DAVID COIMBRA

19 DE SETEMBRO DE 2020

ARTIGOS - Secretária da Cultura do Rio Grande do Sul | gabinete@sedac.rs.gov.br

GAÚCHOS SEM FRONTEIRAS

"O sertão é dentro da gente", escreveu Guimarães Rosa, mineiro de Cordisburgo. Internalizar o território, as vivências, é uma capacidade da alma humana. Os criadores nos ajudam a revelar aquilo que não percebemos a olho nu. "Por maior que tu sejas, Rio Grande, caberás sempre dentro de mim", cantou Paixão Côrtes, sintetizando o que sentimos por nossa terra querida.

O fronteiriço escritor bilíngue Aldyr Garcia Schlee se dedicou, durante toda a vida, ao estudo do léxico de João Simões Lopes Neto, nos deixando em sua vasta obra a tradução da cultura pampeana sul-rio-grandense, consolidada no seu dicionário, o qual pode ser acessado em www.dicionariopampeano.com.br

Para concretizar seu dicionário, Schlee se debruçou sobre expoentes da literatura platina e descreveu milhares de verbetes, buscando traduzir-se e traduzir- nos. O mundo do gaúcho teve suas características ligadas à sociedade que aqui se estabeleceu, seus modelos econômicos e culturais, sua rebeldia. E sempre os contrastes: as derrotas e as vitórias. Precisamos compreender este mundo em sua complexidade, incorporando diferenças e uma visão plural do passado. Dar voz àqueles ainda não ouvidos, como fizeram Simões Lopes Neto com o vaqueano Blau Nunes, Guimarães Rosa com seu Riobaldo e Schlee com seus personagens rejeitados da sorte.

No universo pampeano, Schlee afirma que as linhas divisórias separaram impérios, países, mas não foram empecilho ao surgimento de uma cultura comum, evidenciada nos modos de ser e fazer e na recriação linguística.

Valho-me de algumas das contribuições de Schlee. Palavras vivas no vocabulário de hoje, contrastes que nos definem. Farrapo: trapo, andrajo, pedaço de pano cheio de fiapos ou farpas. Nome dado pelos imperiais legalistas a cada um dos insurretos republicanos, no Rio Grande do Sul, durante a chamada Revolução Farroupilha (de 1835). Farroupilha: denominação dada pelos imperiais aos insurgentes sul-rio-grandenses. Façanha: proeza impressionante, ato de coragem, determinação que ultrapassa os limites habituais.

Em 2020, comemoramos os festejos farroupilhas com o tema "Gaúchos sem fronteiras". Muitos gaúchos estão distantes, em diferentes partes do mundo. A história, a força de nossos mitos e da nossa memória compõem um patrimônio interior que nos leva a crer que o Rio Grande é dentro da gente.

BEATRIZ ARAUJO

19 DE SETEMBRO DE 2020

FLÁVIO TAVARES

NOVAS FAÇANHAS

Todo 20 de setembro nos remete à Guerra Farroupilha e ao Hino Rio-Grandense para que "sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra". Hoje, porém, ser fiel à tradição do que fomos não é pilchar-se ou dançar a chula nem sequer construir a bela réplica do barco de Garibaldi, mas defender a integridade e o estilo de vida livre e sã que fez surgir a gesta de 1835.

No século 19, o tacão do Império nos aviltava. Hoje, somos ultrajados pelos que degradam a natureza e, assim, nosso modo de viver.

Mas continuamos a resistir. Um dos exemplos concretos (de fato, modelo a toda a Terra) é a mobilização do povo dos oito municípios do Alto Camaquã para impedir a abertura de uma mina de chumbo, cobre e zinco, que degradará a região melhor preservada do bioma Pampa. Gente de fora (a paulista Votorantim e a Iamgold, do Canadá) quer explorar por 20 anos a região das Guaritas, que reúne a mais bela paisagem do Pampa, com suas elevações rochosas encontradas apenas ali em todo o planeta. Trata-se de um dos 21 "territórios montanhosos inigualáveis" reconhecidos pela World Famous Mountain Association (WFMA), que, em apenas 20 anos, seriam só imensos buracos, contaminando o ainda límpido Rio Camaquã com metais pesados (que atacam o sistema nervoso) e chegando à Lagoa dos Patos.

Na Serra do Sudeste, a indescritível beleza das "Guaritas" se complementa em ativa pecuária e agricultura familiar, além do belo artesanato em lã, pele e doces da região do Alto Camaquã.

A mineração só deixou tragédias por lá. Em 1981, vazou mercúrio da mina da Cia. Brasileira de Cobre, em Caçapava, matando peixes e gado. Sugiro ver (pela internet) o filme documentário Dossiê Viventes - O Pampa Viverá, do diretor Tiago Rodrigues e roteiro de Ingrid Birnfeld, para conhecer, de um lado, a beleza das Guaritas e, de outro, o horror que os habitantes de Bagé, Caçapava, Camaquã, Encruzilhada, Lavras, Piratini, Pinheiro Machado e Santana da Boa Vista repudiam, numa nova façanha, como a do hino.

Uma sanha mais cruel que a do Império hoje rodeia certos "empreendimentos", contrariando os alertas da ciência, da ONU e do Papa sobre a degradação do planeta.

Como se não bastasse o horror de pretender explorar carvão à beira do Rio Jacuí, em área de banhados (onde se cultiva arroz orgânico), a 15 quilômetros da Capital, e que poluirá o Guaíba, há outras insânias. Em São José do Norte, querem extrair 600 mil toneladas de titânio e zinco, contaminando com metais pesados a faixa entre a Lagoa dos Patos e o mar. Em Lavras, querem explorar fosfato a céu aberto, contra a opinião dos ruralistas. Derrotar o horror é a nova façanha.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

 

19 DE SETEMBRO DE 2020

OPINIÃO DA RBS

A DOENÇA DA CORRUPÇÃO

A descoberta e o desmantelamento de inúmeros esquemas de corrupção nos últimos anos no país, como os desnudados pela Lava-Jato e outras operações, parecem não ter surtido um efeito pedagógico a ponto de inibir novos malfeitos e a continuidade de outra série de crimes contra o erário. Tampouco as condenações exemplares de figurões da política e do mundo empresarial, antes vistos como intocáveis, tiveram o condão de intimidar as comunhões espúrias de larápios de colarinho branco operando dos dois lados do balcão. É assombroso que diversos casos de corrupção brotem e vicejem em vários governos espalhados pelos país, como se houvesse certeza da impunidade.

O caso mais emblemático é o do Rio de Janeiro, Estado que passa a impressão de ser tristemente amaldiçoado por uma peste que contamina todos os seus governantes mais recentes e os leva inexoravelmente à perda de mandato ou para a cadeia. Ao menos, após flagrados, tiveram de prestar contas à Justiça ou ainda estão por sofrer consequências. Antes de Wilson Witzel, afastado pelo Judiciário e às vésperas de sofrer impeachment, cinco de seus antecessores foram presos. Sérgio Cabral está atrás das grades desde 2016 e Moreira Franco, Anthony Garotinho, Rosinha Matheus e Luiz Fernando Pezão recorrem em liberdade.

Diante de tantos exemplos nefastos pregressos, é preciso entender como e por que no Rio de Janeiro - que é espécie de caixa de ressonância de todo o Brasil - se mantêm estruturas arraigadas de corrupção que contagiam todos os poderes e se espalham rapidamente por boa parte do organismo do Estado. No Rio, os desvios endêmicos vêm desde as facilidades vendidas pela corte portuguesa, em um sistema de trocas que privilegia os amigos do poder e permite a convivência da contravenção e agora do crime organizado e das milícias com a política. As suspeitas avançam para a administração municipal da cidade do Rio de Janeiro, atingem ex-prefeitos, vereadores, deputados estaduais e membros do Tribunal de Contas.

De rachadinhas a assassinatos, o grau de deterioração do Rio, um Estado que está no coração de todos os brasileiros e amantes do Brasil, deve servir de alerta permanente sobre os tentáculos da corrupção e do crime mimetizado nas estruturas públicas. Extirpar esse câncer da vida fluminense e impedir que o mau exemplo se repita no país, onde já há sinais preocupantes de metástases, é um dever e uma obrigação moral urgente de todas as instituições sérias do país, independentemente de onde se localizem. Mas nenhuma solução de longo prazo será possível se a sociedade não repudiar de fato a corrupção, inclusive aqueles pequenos delitos e irresponsabilidades do dia a dia, e der em uníssono cartão vermelho àquela politicagem que, apenas mudando o figurino para iludir os eleitores a cada pleito, se adonou do Estado.

19 DE SETEMBRO DE 2020

SOPRO DE OTIMISMO

Alívio somado a desafios para estimular indústria

O aumento na capacidade de conexão do sistema elétrico traz alívio a empresários do Estado. Na visão deles, as novas linhas de transmissão e subestações podem representar o pontapé inicial para o desenvolvimento de todo o setor eólico nos próximos anos.

Ou seja, com a elevação no potencial de geração de energia, o Rio Grande do Sul teria mais condições de atrair, por exemplo, empresas que montam equipamentos usados em parques eólicos, incluindo aerogeradores. Mas, para isso, ainda há desafios no radar.

- É importante que haja uma política pública de estímulo à fabricação de aerogeradores no Estado - diz Ricardo Pigatto, presidente do conselho de administração da Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa (Abragel).

Para estimular o desenvolvimento do setor, o governo estadual aposta em uma combinação de fatores. Um deles é o lançamento, junto ao BRDE, de linha de crédito voltada a projetos de energia eólica, aponta o secretário do Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos Júnior.

O secretário acrescenta que mudanças no código ambiental do Estado, sancionadas em janeiro, buscam facilitar a instalação de empreendimentos. Lemos ainda menciona que a reforma tributária proposta pelo Piratini pretende incentivar negócios ao simplificar a cobrança de impostos.

- Se conseguir movimento de expansão e investimentos em energia eólica, o Estado terá capacidade de se apresentar a fabricantes, para que as empresas tenham pontos de montagem em locais estratégicos do Rio Grande do Sul - analisa o secretário.

Tendência

Nos últimos meses, o consumo de energia, gerada por diversas fontes, sofreu redução com a crise do coronavírus. Apesar de a pandemia ainda espalhar incertezas, a tendência é de reação na demanda em 2021, o que também pode beneficiar o segmento eólico, frisa Guilherme Sari, presidente do Sindicato das Indústrias de Energias Renováveis do Rio Grande do Sul (Sindienergia-RS).

- O ano de 2020 é bastante complicado, mas 2021 tende a ser um período de retomada. Esperamos um aumento natural no consumo de energia - afirma o dirigente.

Em razão das novas linhas de transmissão e subestações, Sari projeta maior interesse de empreendedores pelo setor eólico no Estado. Segundo ele, já existem movimentos nessa direção.

O mais recente, diz o dirigente, é a compra de parques eólicos que pertenciam à Eletrobras em Santa Vitória do Palmar e Chuí, no sul do Estado. A Omega Geração é a responsável pela aquisição. Anunciado no fim de julho, o acordo foi fechado por R$ 1,5 bilhão, incluindo a absorção de dívidas da estatal.

- Isso mostra o olhar de investidores para cá. Há um interesse de empresas em ampliar o portfólio no Sul. Todos estão na expectativa de que as obras de transmissão sejam finalizadas - pontua Sari.


19 DE SETEMBRO DE 2020

J.R.GUSSO*

Duas classes de brasileiros

Todos os dias, ou quase isso, o público recebe provas e contraprovas de que há dois Brasis vivendo no mesmo espaço, na mesma época e sob a mesma Constituição, mas com direitos diferentes entre os seus habitantes. Uns são cidadãos de primeira classe; formam cerca de 5% da população e têm empregos na máquina do Estado. Os outros 95% são de segunda classe; têm de sobreviver à custa do seu próprio esforço e pagam pelo sustento, pelos benefícios, pelos privilégios e pela segurança dos primeiros. Sua vida, entre outras coisas, é muito mais arriscada.

O mais recente demonstrativo dessa realidade é o que está acontecendo com os funcionários da Volkswagen em São Paulo e no Paraná. Ninguém pode nem sequer pensar, por dois minutos que seja, em congelar os salários do funcionalismo. Não se trata de reduzir, mesmo com redução de horas trabalhadas, e muito menos de mandar alguém embora – trata-se apenas e tão somente de não aumentar os salários, e assim mesmo só por um período limitado de tempo, enquanto durar a devastação econômica da covid-19. Não pode: a lei não deixa, mesmo porque isso aí é ideia “fascista, contra a democracia e contra as instituições”.

Já os sindicatos de trabalhadores da Volkswagen, cujos associados fazem parte dos 95% de cidadãos de segunda categoria mencionados acima, acabam de aceitar uma proposta para ganhar menos em troca de uma garantia temporária de emprego.

Ao contrário dos sindicatos de professores públicos (que, por sinal, ameaçam fazer greve contra a reabertura das escolas), de juízes de Direito, de empregados dos correios etc. etc. etc, as organizações de cidadãos privados não se podem dar ao luxo de escolher suas condições de trabalho; vivem no mundo real da economia, e adaptar-se a ele é uma questão de sobrevivência. Não têm quem pague os seus boletos, nem garanta os seus empregos até a aposentadoria, com vencimentos integrais.

A Volkswagen, que já teve na casa dos 40 mil funcionários aqui no Brasil, está hoje com 15 mil, por conta do avanço da automação e de condições de mercado. Pode ainda cortar um terço disso. Também não tem escolha: ou reduz ou vai à falência, num país que já produziu mais de 3,7 milhões de veículos num ano, menos de 20 anos atrás, e que em 2019 ficou abaixo de 3 milhões de unidades. 

Esta é a vida como ela é, no Brasil que vive fora da reserva ecológica do funcionalismo público, protegida por todas as leis e por todos os direitos.

*Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes

J.R. GUZZO*