sábado, 19 de dezembro de 2020


19 DE DEZEMBRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Aquarius

O filme Hair está na minha lista dos "10 mais", não por ter atuações inesquecíveis ou um roteiro fora de série, mas pela sua atmosfera, bem ao estilo "um novo mundo é possível". Eu era uma adolescente quando assisti pela primeira vez e virei uma hippie incurável - ao menos na alma, e a alma é tudo o que importa.

Não há quem não reconheça sua música de abertura. Aos primeiros acordes, nossa pulsação acelera, e acelera mais, até que entra a voz da cantora Ren Woods: "When the moon is in the seventh house/and Jupiter aligns with Mars...". É a conjunção cósmica que inaugura a era de Aquário. Mesmo não acreditando em astrologia, não me deixe aqui sozinha, permaneça no texto. Vamos dar as mãos e let the sunshine in (quem não é meio hippie?)

Dizem que a partir deste 21 de dezembro, as vibrações astrais serão alteradas e os tempos sombrios se vão. Claro que nada será perceptível no primeiro minuto, nem no segundo (provavelmente em alguns anos), mas é científico e inegável: a incivilidade do planeta está por um fio. De minha parte, tenho pressa em testemunhar esta transição, então não vou colocar uma flor no cabelo e esperar sentada. Quero dar um empurrãozinho. O "paz e amor" tem que ser pra já.

Nosso passatempo preferido tem sido detonar uns aos outros. Nunca fomos tão bélicos, agressivos, insuportáveis. Materialismo, consumismo, desrespeito ao meio ambiente, estresse, competitividade, tudo culminando neste 2020 pavoroso. Chega. Sai a tensão, entra a harmonia. Valores mais humanistas, um olhar mais pacífico para a vida. Espero que não estejamos destreinados para a delicadeza.

O vento começará a soprar a favor, então que a gente aproveite para varrer os destroços e construir uma sociedade mais coletiva, aberta e do bem. Vamos usar a tecnologia para nos unir, não para disparar mentiras e ofensas. Valorizemos aqueles que produzem ideias novas e arte de qualidade. Aqueles que desenvolvem vacinas, energia limpa, fórmulas contra o desperdício. Aqueles que impulsionam um novo progresso, não mais relacionado a poder, hierarquia e dinheiro, e sim a uma evolução espiritual e fraterna. Caramba, o mundo é um só e é de todos.

Estou viajando na maionese? Não acho. Esgotamos nossa capacidade de ser egoístas e autocentrados. Tem gente à beça precisando de soluções, não de mais problemas. Há um limite para a ganância. É natural que os astros se realinhem no céu e tragam uma onda de simplicidade, fazendo com que as pessoas parem de ostentar e cultivem sua essência primária. O ego implora por uma trégua.

Não é apenas um desejo meu, mas uma perspectiva real a ser comemorada. A Era de Aquário inicia nesta segunda-feira. Primeiro dia da semana. Primeiro passo rumo a um 2021 menos pesado e a um futuro mais solar. Pode crer.

MARTHA MEDEIROS

19 DE DEZEMBRO DE 2020
MONJA COEN

UM NATAL SEM

Natal sem presentes. Natal sem presença. Natal sem vacinas. Para quem é cristão e costuma fazer festa de Natal com parentes e ou amigos, preparem-se: tudo virtual.

Uma infectologista sugeriu o seguinte: quer fazer festa de Natal? Ok. Quinze dias antes, fique em isolamento total em casa. Nem mesmo receba alimentos, pacotes de fora. Nos dias que antecedem o Natal, faça um teste eficaz de covid.

Se estiver tudo bem, vá à festança. Lembre-se de manter a máscara bem ajustada, nada de beijos, abraços. Distância mínima de dois metros. Na hora de comer, quando tiram as máscaras, comam em silêncio absoluto, longe um dos outros, ninguém fica de frente para ninguém. Melhor comer de frente para uma parede. Acabaram de comer e de beber, recoloquem as máscaras e podem falar baixo, sem cantos e gritos, com as máscaras bem colocadas.

Terminada a festa, retornem às suas casas. Todos devem tomar banho - inclusive os que receberam convidados -, lavar as roupas na máquina com muito sabão, ficar mais 15 dias em isolamento e tornar a fazer o teste da covid. O mesmo para o Ano-Novo.

Será que vão conseguir?

Tenho uma sugestão para a passagem do ano. A partir das 23h, estarei em meditação. Se quiserem participar, procurem nos meus sites.

Cerca de 15 minutos antes da meia-noite, iremos ler um texto do século 13 sobre os 108 obstáculos ao despertar, que, na verdade, são 108 portais à mente Buda. Exatamente à meia-noite, nos cumprimentaremos virtualmente com as mãos unidas e desejaremos uns aos outros um bom ano.

É o que podemos fazer neste momento.

Vacinas? Ainda faltam decidir, aprovar, organizar as aplicações.

Será que em 2021 serão capazes de vacinar a população toda do planeta? Talvez em 2022 continuemos. Sempre de máscaras, com distanciamento social, isolamento, lavando muito bem as mãos, trocando de roupas e apreciando uma nova maneira de nos relacionarmos.

Sinto muito pelos adolescentes que querem cantar e dançar, beber e se abraçar, ficar. Teremos de organizar bailes funks com máscaras e álcool gel. Beijinhos, só na nuca... Sugestão do governo da Argentina há alguns meses. Pois, que assim seja.

Ao invés de impedir, xingar, brigar, dizer que são burros, vamos nos lembrar da nossa adolescência e criar causas e condições para que não se contaminem e não contaminem as pessoas com quem residem. Deixe perto da porta um saco de lixo, setas apontando para o chuveiro, um sabonete gostoso, toalhas limpas, roupa limpa. Assim como alguns pais dão preservativos para os filhos antes de saírem para as baladas, agora também urge dar máscaras, álcool gel, roupas fáceis de lavar quando voltarem e a sugestão argentina: "beijos na nuca". Aliás, no Japão a nuca é considerada área de grande sensualidade e beleza. Um beijinho na nuca causa mais arrepios que em outras partes do corpo.

Vamos cuidar de nossos jovens para que sejam livres com responsabilidade. Gritos, brigas, insultos, policiais batendo e matando não resolvem o problema.

Está na hora de cuidar, de respeitar, de amar.

Se Natal é celebração do nascimento de Jesus e se Jesus ensinou a querer bem e respeitar, vamos reconhecê-lo em cada criatura e tratar a todos como ao grande mestre do amor.

Feliz Natal - que vem vindo.

Preparem-se. Mãos em prece

MONJA COEN


19 DE DEZEMBRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

GERMES, ASMA E ALERGIA

A genética tem grande influência na suscetibilidade à asma e aos quadros alérgicos. Se um dos pais apresenta uma dessas doenças, os filhos correm mais risco de desenvolvê-las; quando são os dois pais, a probabilidade aumenta.

Nos últimos 50 anos, entretanto, o aumento dramático do número de casos nos países ocidentais sugere que o ambiente tem importância crucial. O impacto da exposição ambiental ficou claro quando estudos conduzidos na Europa Central mostraram que crianças criadas em contato com vacas leiteiras ficavam relativamente protegidas contra asma e alergias. A proteção foi atribuída ao contato com germes que estimulariam a resposta imunológica, embora os mecanismos envolvidos permanecessem obscuros.

Para esclarecê-los, um grupo da Universidade de Chicago comparou a prevalência de asma e alergias em duas populações americanas que vivem apartadas do resto da sociedade: a dos amishes que emigraram para os Estados Unidos nos séculos 18, e a dos huteritas que o fizeram no século 19.

Os amishes fugiram da Suíça por ocasião da Reforma protestante e formaram as primeiras comunidades no estado de Indiana. Por razões semelhantes, os huteritas saíram do Tirol e se estabeleceram em Dakota do Sul. Desde então, os casamentos intracomunitários mantiveram esses grupos reprodutivamente isolados. Curiosamente, a prevalência de asma e alergias entre os amishes é significativamente mais baixa do que nos huteritas.

O estilo de vida de ambos é semelhante em diversos aspectos que afetam a incidência das duas enfermidades: famílias numerosas, dietas ricas em gordura e leite não-pasteurizado, índices altos de vacinação, baixa prevalência de obesidade, amamentação prolongada, exposição mínima ao tabaco e à poluição e tabus contra animais domésticos no interior das casas.

Há uma diferença, no entanto: enquanto os amishes se dedicam à agricultura tradicional, os huteritas vivem em comunidades agrícolas industrializadas.

Foram estudadas 30 crianças em idade escolar de cada grupo. A prevalência de asma foi de 5,2% entre os amishes e de 21,3% entre os huteritas. Quadros alérgicos ocorreram em 7,2% e 33%, respectivamente. Os pesquisadores coletaram amostras de poeira das casas dos participantes, prepararam culturas e isolaram os lipopolissacarídeos presentes nas membranas externas das bactérias encontradas.

Em laboratório, colocaram esses lipopolissacarídeos em contato com linfócitos dos dois grupos: os dos amishes produziam maiores quantidades dos mediadores característicos da imunidade inata. Em seguida, testando camundongos portadores de asma alérgica, os autores demonstraram que a poeira das casas amishes foi capaz de suprimir a indução de fenômenos inflamatórios nas vias aéreas dos animais.

Os achados comprovam que a exposição à poeira das fazendas em que as crianças têm contato com os estábulos ativa a imunidade inata e provoca respostas imunológicas alternativas que previnem a emergência de asma e de outros processos alérgicos.

DRAUZIO VARELLA



19 DE DEZEMBRO DE 2020 
MONJA COEN 

UM NATAL SEM 

Natal sem presentes. Natal sem presença. Natal sem vacinas. Para quem é cristão e costuma fazer festa de Natal com parentes e ou amigos, preparem-se: tudo virtual. Uma infectologista sugeriu o seguinte: quer fazer festa de Natal? Ok. Quinze dias antes, fique em isolamento total em casa. Nem mesmo receba alimentos, pacotes de fora. Nos dias que antecedem o Natal, faça um teste eficaz de covid. Se estiver tudo bem, vá à festança. Lembre-se de manter a máscara bem ajustada, nada de beijos, abraços. Distância mínima de dois metros. 

Na hora de comer, quando tiram as máscaras, comam em silêncio absoluto, longe um dos outros, ninguém fica de frente para ninguém. Melhor comer de frente para uma parede. Acabaram de comer e de beber, recoloquem as máscaras e podem falar baixo, sem cantos e gritos, com as máscaras bem colocadas. Terminada a festa, retornem às suas casas. Todos devem tomar banho - inclusive os que receberam convidados -, lavar as roupas na máquina com muito sabão, ficar mais 15 dias em isolamento e tornar a fazer o teste da covid. 

O mesmo para o Ano-Novo. Será que vão conseguir? Tenho uma sugestão para a passagem do ano. A partir das 23h, estarei em meditação. Se quiserem participar, procurem nos meus sites. Cerca de 15 minutos antes da meia-noite, iremos ler um texto do século 13 sobre os 108 obstáculos ao despertar, que, na verdade, são 108 portais à mente Buda. Exatamente à meia-noite, nos cumprimentaremos virtualmente com as mãos unidas e desejaremos uns aos outros um bom ano. É o que podemos fazer neste momento. Vacinas? 

Ainda faltam decidir, aprovar, organizar as aplicações. Será que em 2021 serão capazes de vacinar a população toda do planeta? Talvez em 2022 continuemos. Sempre de máscaras, com distanciamento social, isolamento, lavando muito bem as mãos, trocando de roupas e apreciando uma nova maneira de nos relacionarmos. Sinto muito pelos adolescentes que querem cantar e dançar, beber e se abraçar, ficar. Teremos de organizar bailes funks com máscaras e álcool gel. Beijinhos, só na nuca... Sugestão do governo da Argentina há alguns meses. Pois, que assim seja. 

 Ao invés de impedir, xingar, brigar, dizer que são burros, vamos nos lembrar da nossa adolescência e criar causas e condições para que não se contaminem e não contaminem as pessoas com quem residem. Deixe perto da porta um saco de lixo, setas apontando para o chuveiro, um sabonete gostoso, toalhas limpas, roupa limpa. Assim como alguns pais dão preservativos para os filhos antes de saírem para as baladas, agora também urge dar máscaras, álcool gel, roupas fáceis de lavar quando voltarem e a sugestão argentina: "beijos na nuca". 

Aliás, no Japão a nuca é considerada área de grande sensualidade e beleza. Um beijinho na nuca causa mais arrepios que em outras partes do corpo. Vamos cuidar de nossos jovens para que sejam livres com responsabilidade. Gritos, brigas, insultos, policiais batendo e matando não resolvem o problema. Está na hora de cuidar, de respeitar, de amar. Se Natal é celebração do nascimento de Jesus e se Jesus ensinou a querer bem e respeitar, vamos reconhecê-lo em cada criatura e tratar a todos como ao grande mestre do amor. Feliz Natal - que vem vindo. Preparem-se. Mãos em prece

MONJA COEN


19 DE DEZEMBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

OS NATAIS DO FUTURO

A chamada segunda onda, subestimada por quem acha mais fácil negar, já chegou

Que a sustentação prolongada do distanciamento social esticou a corda da tolerância da população geral, varreu a racionalidade e virou o fio da prudência, não se pode negar sem o rótulo de alienado.

O desconforto generalizado produzido pela solidão compulsória extrapolou o comportamento judicioso que permitia, em condições normais, projetar o futuro, mesmo em detrimento da alegria no presente.

Sempre me pareceu irracional reter em casa quem dependia da rua para sobreviver, mas não são esses necessitados que lotam os bares e, sem nenhum tipo de proteção, desfilam um destemor patético, que ameaça menos a eles, por serem jovens, e mais aos seus pretensos amados. Esses velhinhos simpáticos e carentes, que aprenderam a temer a rua, mas nem imaginam o risco de quem vem de lá.

A chamada segunda onda, subestimada por quem acha mais fácil negar, já chegou. Com força. A expectativa de que fosse menos intensa, por encontrar uma população maior de imunizados pela doença, não se confirmou. A detecção de casos de coronavírus com mutações, reconhecidos em pacientes de Nova York, sugere fortemente que este vírus, ardiloso na propagação, também tem lá os seus mecanismos de adaptação em busca de sua própria sobrevivência.

Vários pneumologistas, munidos de dados que associam a liberação desprotegida dos cidadãos e o aumento exponencial de novos casos, preveem curvas perigosamente ascendentes de incidência da doença, em todas as regiões do país. Com ênfase nos grandes centros em que as aglomerações são naturalmente mais densas, eles anteveem janeiro e fevereiro de 2021 como os períodos mais críticos desde o início da pandemia. E esse risco será tão maior quanto menos entendamos que é razoável sacrificar este Natal, para que estejamos vivos para curtir os muitos que ainda virão.

Apesar de todos os especialistas advertirem que na produção de vacinas, por ser um processo complexo, nunca se cogita acelerar a técnica em detrimento da segurança, o que mais se ouve é a reclamação pela demora de liberação dos protocolos internacionais indispensáveis à disponibilização de novos medicamentos, terapêuticos ou preventivos, como são as vacinas.

Com as várias vacinas em diferentes estágios de acreditação, e considerando-se que, segundo se anunciou, serão necessárias duas doses em dois meses, provavelmente consumiremos o primeiro quadrimestre do ano novo até a chegada do nosso sonhado novo normal.

Por sermos um país continental, a distribuição das vacinas, quando disponíveis, terá as inevitáveis dificuldades logísticas para atender todos os 166 milhões de brasileiros temerosos de adoecer, já excluídos os 22% que anunciaram em pesquisa recente que não desejam ser imunizados, exercendo um direito constitucional.

Então que sejam vacinados todos os pacientes da população de risco, incluindo-se aí os profissionais da saúde, para que eles possam continuar prestando o melhor atendimento possível aos que, em nome do livre arbítrio, se sentem estimulados a desafiar a morte.

J.J. CAMARGO


19 DE DEZEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

O argentino que odeia a neve

Circula pelo mundo misterioso das redes um engraçado vídeo de um argentino de Santa Fé. Trata-se de uma difamação da neve. Ele se mudou para Toronto, no Canadá, em agosto, alto verão no Hemisfério Norte. O vídeo é a leitura do diário do hermano. Ele começa se dizendo aliviado por ter fugido do calor, da umidade e dos mosquitos de sua terra natal, e narra com certa emoção as belezas da vida canadense. Até que chega dezembro, cai a primeira neve e ele fica enfeitiçado pela beleza da paisagem. Mas, enquanto o longo inverno avança, ele vai se irritando com o trabalho que a neve dá: ter de limpá-la da calçada, ter de removê-la de cima do carro estacionado na rua, ter de vestir roupas quentes para se locomover. Finalmente, o argentino volta correndo para os mosquitos de Santa Fé.

É hilário o vídeo. É verdadeiro: a neve exige trabalho e infraestrutura. Mas também é injusto. A beleza da neve é tamanha, que o prazer estético que ela oferece compensa toda a atribulação.

Agora mesmo, bem sei, neva na Nova Inglaterra. Tenho recebido vídeos das ruas brancas, das pessoas sorridentes dentro de suas botas, de suas luvas, de seus gorros, ao lado de bonecos de neve.

Vivi seis invernos no norte do mundo. E o frio, embora muitas vezes tenha me impressionado, nunca me assustou - ah, eu sou gaúcho! Já a neve sempre me encantou.

Lembro de um sábado em que houve forte nevasca o dia inteiro. À noite, parou. Eu, a Marcinha e o Bernardo estávamos em casa, jantando. Do lugar à mesa em que havia me instalado, podia ver a grande porta envidraçada que se abria para a nossa sacada. A porta, obviamente, era feita de vidros duplos, para nos proteger do gelado ar exterior. Mas nunca colocamos cortina, então podíamos ver o cenário lá fora. E o que vimos nos surpreendeu. Tomei meu cálice de vinho, aproximei-me da porta e olhei: a neve branca cobria as ruas. Era tão alta, que tapava os bancos da praça ali ao lado. Os galhos nus das árvores agora estavam "vestidos de noiva", como descreve aquela bela canção gaúcha. Só que a lua imensa no céu dava outro tom ao manto de neve: a luz da lua tornou tudo amarelo-escuro, quase dourado. Foi tão bonito. Depois daquele dia, sempre que nevava eu esperava anoitecer para ver a cidade pintada da cor que Van Gogh amava.

Mas houve outra noite de neve que foi ainda mais especial. Havia passado o dia fora, no centro, e perto das 22h tomei o trem para voltar para casa. Parei a quatro ou cinco quadras de distância. Fui avançando com as minhas fiéis botas Ugly, debaixo da minha touca de esquiador. Nevava. Flocos do tamanho de moedas de um real flutuavam pelo ar e se estendiam com preguiça no chão. A neve macia se acumulava em meus ombros e batia de leve em meu rosto. 

Não sentia frio, apenas sentia a neve. Estava sozinho na rua e olhei para um parque que se encompridava à minha esquerda e para as casas iluminadas pelos abajures à direita e me deu uma alegria... Foi uma sensação de bem-estar que me tomou conta do peito, porque a neve caía e não havia ninguém por perto, eu era o único protagonista daquela história que se passava naquele momento, naquele cenário. A liberdade que me dava a minha breve solidão, o prazer do afago da neve, aquilo me encheu de uma alegria que me deu vontade de cantar. E cantei. Sozinho, na rua de uma cidade distante da minha terra natal, cantei. No escuro da noite, em meio ao branco da neve, fui muito feliz.

DAVID COIMBRA

19 DE DEZEMBRO DE 2020
ARTIGOS

ENIGMAS DA EXISTÊNCIA E A RENOVAÇÃO DA ESPERANÇA

DOM JAIME SPENGLER - Arcebispo de Porto Alegre | ascom@arquipoa.com

RABINO GUERSHON KWASNIEWSKI - Sociedade Israelita Brasileira | sibrapoa@gmail.com

No princípio Deus criou a luz (Gn 1,3). Ela permitiu ordenar o resto das obras da criação. O contraponto à luz é a escuridão, sinônimo de caos, temor, contaminação, doença, morte, angústia, indiferença e insegurança. O ano de 2020 foi marcado pela noite escura que se abateu sobre nós à causa do surgimento de um vírus ágil e perigoso.

O ano 2021 será o ponto de inflexão de toda uma geração no caminho de esperança de mais vida para todos. O tempo presente requer o resgate urgente de valores e virtudes, qual caminho para fazer frente aos diversos fundamentalismos e radicalismos que limitam a liberdade, cerceiam direitos e ameaçam a vida nas suas diversas expressões.

Fazemos parte de uma comunidade mundial que navega na mesma barca, onde o mal de um prejudica a todos, a solidariedade de um repercute no todo e ninguém pode se salvar sozinho. Assim, a possibilidade de contar com uma vacina contra a covid-19 surge com uma das maiores bênçãos do novo ano, mesmo para aqueles que rejeitam a fé.

A aurora de um novo ano estimula a renovação da solidariedade criativa e ousada, com cuidado e discernimento, para desenvolver vigorosamente um novo tempo para, juntos, cooperarmos na construção de uma sociedade mais fraterna e justa.

A tradição judaica (Avot 4:1) ensina que a palavra Ashir - rico - é um acróstico das palavras: ain (olho), shinaim (dentes), iadaim (mãos) e raglaim (pés). Podemos, assim, compreender a tarefa comum de cuidar da saúde do ser humano na sua totalidade: "Espírito, alma e corpo" (1Ts 5,23).

A pandemia está expondo a nossa fragilidade e a necessidade de desenvolver a obra do cuidado. Ela está deixando marcas profundas em várias dimensões da existência humana. Desvelou novas formas de aprendizagem e de trabalho, limitou relações, exigiu criatividade, impôs sofrimento e dor, forjou expectativas, mas também despertou a solidariedade!

Unamos as nossas preces para que no ano entrante possamos comemorar a vida, com saúde, fé, esperança, respeito e solidariedade.


19 DE DEZEMBRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

O BOM SENSO DEVERIA BASTAR

Instado a se posicionar sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por 10 a 1, na quinta-feira, que a vacinação contra a covid-19 pode ser obrigatória no país. Mas essa obrigatoriedade amparada pela Constituição, ressaltaram de forma correta e cristalina os ministros, não significa forçar a todo custo os cidadãos a receberem uma dose do imunizante. O entendimento da Corte foi de que o poder público pode impor medidas restritivas e sanções para quem se negar a se vacinar. Como perder o direito a um benefício ou a impossibilidade de frequentar certos ambientes, o que aliás não é exatamente uma novidade no Brasil.

A compulsoriedade neste tema, entretanto, deveria ser secundária e, em muitos países, é uma discussão que até inexiste. É ainda uma controvérsia que, em pleno 2020, idealmente até seria extemporânea. Deveria bastar o bom senso. Os contrários à obrigatoriedade alegam que seria uma questão de liberdade individual. Não é o caso, por tratar-se em primeiro lugar de questão de saúde pública, de interesse de toda a coletividade e, portanto, acima de posições pessoais ou crenças. Quem não se vacina pode acabar transmitindo para outra pessoa que responsavelmente foi para a fila da imunização, uma vez que fármacos do gênero não têm 100% de eficácia. Resumindo, nem todos ficam imunes. É uma decisão, portanto, que coloca em risco a vida de outras pessoas.

A dificuldade no Brasil está na desconfiança despropositada de parte da população em relação às vacinas contra a covid-19, justo em um momento em que o país voltou a registrar a marca soturna de mil vítimas fatais diárias e se aproxima das 200 mil mortes. Nesta frente, é necessária uma abrangente campanha de conscientização para alardear a segurança dos produtos - depois de aprovados pelas autoridades sanitárias - e combater a desinformação que grassa no país. Oferecer um coquetel de informação correta e medidas indiretas que funcionem como motivadores para um dever que é cívico, portanto, pode ser a fórmula para o país alcançar uma imunidade abrangente na população, capaz de debelar a pandemia. Mas, outra vez, lamenta-se que a consciên- cia não baste. Em alguns casos, há apenas a ignorância, sem viés ideológico, e para esses uma ação informativa tende a ter bom efeito, aumentando a parcela da população que decida se vacinar por discernimento e livre vontade.

O Brasil dispõe de um reconhecido programa de vacinas, e muitas, para crianças e adolescentes, são obrigatórias. As sanções se materializam em dificuldades para serem matriculados em instituições de ensino e creches e em multas. Também são pré-requisito para famílias receberem benefícios sociais do governo. Diversas nações, zelosas com a saúde pública, obrigam que viajantes tenham certas vacinas para o ingresso em seu território. Não será surpresa se a grande maioria dos países impuser a mesma condição em relação à covid-19. 

O turismo, de grande importância no Brasil, é um dos setores mais afetados pela pandemia. Se a intenção for voltar a atrair visitantes estrangeiros, desincentivar a vacinação não será uma boa estratégia. Apenas com imunização em massa será possível minimizar a circulação do novo coronavírus e recuperar as rotinas de todas as atividades. A Lei 13.979, sancionada em fevereiro pelo próprio presidente Jair Bolsonaro - que agora dá declarações no sentido contrário - determina a possibilidade de vacinação compulsória como estratégia de combate ao novo coronavírus. Mas o juízo e o sentimento de solidariedade deveriam ser suficientes.

 



19 DE DEZEMBRO DE 2020
+ ECONOMIA

Menos individualismo e corporativismo

Simone Leite se prepara para deixar a presidência da Federasul no final do ano, quando entrega o cargo a Anderson Trautman Cardoso.

- Tenho ouvido que foi mais fácil suportar 2020 graças à parceria da Federasul. Ajudamos a fortalecer empresários que esmoreciam, ao mostrar que as dores deles eram as dores de vários. Foi uma espécie de terapia - diz.

Simone detalha que recebeu a entidade com déficit de R$ 4 milhões e está entregando com superávit de R$ 1,2 milhão. Para 2021, seus maiores compromissos serão com marido, filho, pai e mãe.

Isolamento

"Tenho trabalhado muito em casa, também na empresa e, nas quartas-feiras, na Federasul. Aumentei as horas trabalhadas, fico conectada em casa das 7h às 22h. Reuniões virtuais são mais produtivas e, apesar das dificuldades, foi um ano muito intenso. A empresa ficou fechada por 10 dias no final de março e, no início de abril, retomamos as atividades seguindo todos os protocolos sanitários."

Leitura e lazer

"Com a família em casa, passamos a ver mais séries e filmes juntos. Estou terminando de assistir The Crown. Passamos mais tempo na fazenda, o que dá liberdade, especialmente para atividades ao ar livre, sem máscara. Meu filho Zenon e meu marido aprimoraram a culinária. A leitura atual é Catarina, a Grande: Retrato de uma Mulher, mas também muitos artigos, jornais."

Combate ao coronavírus

"Reafirmo a crença de que a política muda nossa vida, para o bem e para o mal. Decisões políticas equivocadas interferem na vida das pessoas. Milhares de gaúchos ficaram sem renda, muitas empresas fecharam as portas. Superação foi a palavra de ordem de 2020, considerando a proibição ao trabalho e às liberdades individuais. O mais importante é ter equilíbrio entre saúde e economia, diálogo e bom senso de toda a sociedade, incluindo poder público. O novo ano traz a esperança da vacina e oportunidade para a estabilidade econômica, a ampliação do emprego e da renda."

Aprendizado

"Os principais foram capacidade de adaptação, resiliência, a importância do diálogo e da empatia. Também que a tecnologia nos aproxima e permite a todos o acesso ao conhecimento. Muitos eventos promovidos pela Federasul, antes restritos a poucos, agora estão disponíveis para todos."

Reflexões

"Tempos difíceis exigem o melhor de cada um. Podemos errar, acertar, mas não podemos nos omitir como líderes e empreendedores. Precisamos ter humildade para reconhecer equívocos e coragem para enfrentar desafios. Pensar coletivamente favorece as relações pessoais e profissionais. A cultura do individualismo e do corporativismo gaúcho está mais evidente neste ano, na minha opinião. Esse é o motivo do atraso do Estado e nosso grande desafio."

MARTA SFREDO

19 DE DEZEMBRO DE 2020
+ ECONOMIA

Poesia nas férias

Antes de sair de férias, na sexta-feira o ministro da Economia, Paulo Guedes, deu asas, literalmente, à poesia:

- Você precisa bater a asa da recuperação econômica e, ao mesmo tempo, a asa da saúde, da vacinação em massa. Só é possível sustentar a recuperação econômica à medida que tenhamos retorno seguro ao trabalho, que exige a vacinação em massa.

Na véspera, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmara:

- Se houver atraso de vacinação que implique mobilidade menor porque o número de casos está alto, obviamente vai ter impacto na atividade econômica.

Será que os dois desenharam esse jacaré para o chefe?

foi o recuo nas vendas de varejo entre 16 de março e 30 de novembro, com base em notas fiscais emitidas no Estado.Foi o único setor em queda: no atacado, o valor subiu 0,6%, e a indústria, 2,4%.

MARTA SFREDO

sábado, 12 de dezembro de 2020


12 DE DEZEMBRO DE 2020
LYA LUFT

Aquela casa

Casas, nuvens, mar: três temas frequentes nas minhas telas. Onde se vê que sou apenas uma escritora que às vezes pinta: me agrada a surpresa das cores quando as misturo ou simplesmente boto o pincel numa e noutra, para ver o que dá.

Como na literatura, não sou exemplo para jovens que comecem a pintar... ou a escrever. Pouca disciplina, muito prazer, arte como contraponto ao tédio. Também com Lou Borghetti, cuja perda prematura ainda me dói, fui péssima aluna: queria pintar minhas fantasias, e receber dela as sábias orientações sobre "quem sabe mais luz aqui", "talvez mais um tom ali", e fim. Ela, como eu, se divertia com isso, e a primeira coisa que disse em nossa primeira aula foi: "Senhora escritora, pincel não se segura como se fosse caneta", e rimos juntas. A amizade, especial, estava selada.

Mas hoje quero escrever sobre o sobrado de meus avós maternos, na minha cidade natal, com aromas, climas, imagens cheias de segredos e sustos para a menininha que fui, embora para seus moradores fosse simplesmente "a casa".

No térreo, junto da calçada, três degraus de pedra e a porta que me parecia imensa, como a maior parte das coisas parece para uma menina pequena. Durante o dia, estava quase sempre aberta, pois à esquerda ficava o tabelionato de meu avô, antes dele um vestíbulo pequeno, tendo no chão os mais belos ladrilhos que jamais vi. Não saberia descrevê-los direito, nem reproduzir em pintura, mas em sonhos os vejo nítidos, tons verdes, castanhos, quase brancos, algo laranja no meio?

À direita, entrava-se direto na casa, a saleta do piano, a sala de jantar e estar, a copa, a cozinha e, descendo uma escadinha de pedra, o jardim. Antes, porém, o Rumpelkammer, acho que seria quarto de despejo. Havia ali tudo o que se encontraria num bom velho sótão.

Depois do tabelionato, com seus cheiros de papel e tinta, às vezes cigarro, à esquerda subia a escada de madeira, ampla, levando ao segundo andar, com lugares incríveis: por exemplo, o quarto que tinha sido de minha mãe, onde eu a imaginava menina, alegre, jogando bola de gude com os irmãos na calçada, e com uma imensa cabeleira - depois cortada porque o médico de família achava que parte da energia da magricela ia para os cabelos. Junto do quarto de minha avó, um terraço grande com uma larga balaustrada de concreto, onde ela me acomodava numa almofada, perninhas balançando sobre o vazio, eu bem segura pela cintura, avistando os morros azuis que rodeavam a cidade.

Logo embaixo, o jardim onde ela cultivava flores, orquídeas, uma pequena parreira com as mais doces uvas, todos os canteiros com beiradas de morangos. Na época das frutas, ela me dava uma cestinha e eu podia colher os mais vermelhos, me sentindo muito importante.

Outro dia assisti a uma palestra sobre felicidade, que, eu acho, é feita de momentos especiais. Ali, naquela casa, lembro intensa felicidade, euforia, expectativa e curiosidade com todos os segredos que - para mim, não para seus moradores - ela guardava. Hoje, o casarão foi derrubado, com um edifício em seu lugar. Nunca mais passei naquela rua quando fui à minha cidade, nunca mais tentei saber como se parecia, agora, a casa mais especial da menininha que fui.

LYA LUFT

12 DE DEZEMBRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Nosso caso de amor impossível

No começo, era apenas uma intuição de que tínhamos pontos em comum. Então, à medida que fui sabendo mais a respeito dele, confirmei que, de fato, havia sido uma falta de sorte nossos caminhos nunca terem se cruzado. Os 26 anos que separam nossas datas de nascimento jamais impediriam nosso amor: apesar da diferença significativa, a paixão não faz contas, acreditamos ambos.

Temos outras afinidades. Ele não foi um garoto prodígio, nem eu o gênio da escola. Ele era fascinado pelas estrelas de Hollywood, eu uma encantada pelos artistas de novela. Ambos amaram o cinema desde a primeira projeção de suas vidas. Ele não devorou todos os clássicos literários, eu menos ainda. Ele não se abala com fracassos ou com sucessos, e não dou muita trela para isso também. 

Ele não é de turma, festa, shopping, agito; sou menos bicho do mato que ele, mas compartilho essa queda pela quietude. Ele não acha divertido se hospedar na casa de ninguém, eu evito o que posso. O lugar que ele mais gosta é seu apartamento; eu gosto tanto do meu que sentirei saudade de 2020 quando acabar essa pandemia. Ele realiza seu trabalho de forma produtiva e objetiva, a fim de não perder sua reserva para o jantar; também nunca entendi a razão de se fazer hora extra, meu lazer é sagrado. Mesmo deixando de faturar mais? "Sim." Você acaba de ouvir nós dois dando a mesma resposta.

Mas ele não gosta de dirigir carros, e eu, adoro; ele não gosta de rock, e eu me assanho diante de uma guitarra; ele é considerado estranho, e eu pareço normal; as suas tiradas cômicas são brilhantes, e as minhas, inexistentes; ele tem um caso de amor com Nova York desde moleque, e eu só fui me apaixonar pela cidade seis anos atrás. É, almas gêmeas não existem, concordamos mais uma vez, e meu coração dispara.

Ora, por que me torturo? Ele nunca saberá sobre a minha existência, nem supõe que assisti a todos os seus filmes, que li todos os livros sobre sua vida e que Mia Farrow não teria a menor chance de ser minha amiga no Facebook. Lendo a autobiografia que ele recém lançou, ficaram claras as razões de ele ter sido inocentado das acusações de pedofilia que sofreu no início dos anos 1990, e isso me deixou mais à vontade para seguir prestigiando sua trajetória sem me sentir pressionada a "cancelá-lo". Ainda que todas as versões, de todas as histórias do mundo, tragam verdades e inverdades, continuo respeitando plenamente este mestre do cinema que duas semanas atrás completou 85 anos tentando não se deixar levar pela mágoa, enquanto lida com a dificuldade de escalar novos elencos - ficou para trás o tempo em que atores e atrizes davam um braço para receber um telefonema seu. Soon-Yi, continue fazendo Woody Allen feliz ou terá que se entender comigo.

MARTHA MEDEIROS


12 DE DEZEMBRO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Lalá, lalalalá

Lembra daquela musiquinha dos domingos, de um tempo sem celular e outras telas em que o único programa possível era ficar amontoado em família na frente da TV?

Sílvio Santos vem aí, lalá, lalalalá, Sílvio Santos vem aí.

O final do almoço sempre me apertava o coração. Era a certeza de que, lavada a louça, a televisão seria ligada e Sílvio Santos entraria sem cerimônia sala a dentro. As atrações do começo da tarde eram chatíssimas. Ninguém gostava, mas não ocorria desligar ou mudar de canal. Na época pré-controle remoto, o botão seletor parecia emperrado no Programa Sílvio Santos.

Enquanto o pai tirava um cochilo, a mãe e os filhos davam início à maratona. Todo mundo tinha lugar fixo, a força do hábito mais forte que a da gravidade, puxando uma para o seu canto no sofá, outro para a poltrona que deitava ou para a cadeira meio bamba, mas de estimação. Era uma época de aparelhos pequenos, quanto menor, mais nítida a imagem, dizia-se. Os míopes que colassem o nariz na tela.

Tudo começava com um jogo entre estudantes ou um quadro qualquer sobre São Paulo - que nos parecia tão distante quanto a Lua. A coisa só melhorava bem depois, com uma gincana de casais subcélebres e o Qual é a Música? O Show de Calouros sempre ficava pela metade porque, pelas tantas, a mãe mudava de canal.

Era hora do Fantástico.

Até hoje, a música do Fantástico me transporta a matérias assustadoras sobre doenças que eu, com certeza, um dia pegaria, mais o Uri Geller entortando colheres e ainda clipes pré-históricos com os maiores cantores e cantoras do Brasil - que então não me interessavam. Ninguém arredava pé até ser mandando para a cama. Quanta verdade há na frase de Millôr Fernandes: a aventura humana terminou quando a classe média inventou a poltrona.

E eis que, enfim, se revela a razão de Sílvio Santos entrar nessa coluna. É que passei a semana com a música do programa dele na cabeça, mas em uma versão mais atual. E mais esperançosa.

A vacina vem aí, lalá, lalalalá, a vacina vem aí.

O Reino Unido já está vacinando seus cidadãos desde segunda passada. A primeira a receber sua dose da Pfizer/BioNTech foi uma senhora prestes a completar 91 anos, Margaret Kennan, que passou o 2020 inteiro isolada. O segundo a ser imunizado foi, veja só, um cidadão chamado William Shakespeare, de 81 anos. Idosos e profissionais da saúde serão os primeiros vacinados, o que é justíssimo. Agora é esperar que todos os laboratórios disponibilizem suas vacinas para as compras de outros países. E que o Brasil não deixe o negacionismo vencer a saúde, para o mundo voltar o quanto antes para a gente.

A vacina vem aí, lalá, lalalalá, a vacina vem aí.

já que a bandeira é vermelha e aglomerar continua sendo a pior ideia, algumas sugestões de presentes de Natal que é só encomendar e receber no aconchego do lar. As gurias do Projeto Viajando em Casa inventaram caixas com experiências de viagem. Elas montam um kit lúdico e lindo com objetos típicos de um país, e a gente embarca na sala de casa. Informações pelo WhatsApp (51) 99971-2204.

Livros, sempre, e de pequenas livrarias como a Pocket Store, a Baleia, a Taverna, a Bamboletras, a Sapiens, a Erico Verissimo, a Traça, a Londres e muitas outras. Os Supridores, de José Falero, é a história de dois personagens da periferia, empregados de um supermercado, que um dia têm a chance de deixar de ser invisíveis. Segundo Bernardo Carvalho, um dos autores mais importantes do Brasil, "é um romance, único, cômico, sensacional". Pobre Poesia Perdeu a Palavra Nuvem pra Tecnologia, o primeiro livro de hai kais de Marcelo Pires, é leveza inteligente e tem aquele que pode ser o nosso lema para depois da vacina: E no fim/ eles viveram/ felizes para frente.

CLAUDIA TAJES

12 DE DEZEMBRO DE 2020
KARNAL

Um ano sem abraços

Historiador, professor da Unicamp, autor de, entre outros, "Todos Contra Todos: o Ódio Nosso de Cada Dia".

O senhor Clemente nascera em uma família católica. Suas irmãs, Piedade e Socorro, cresceram pias e bentas. Sempre foram as primeiras a chegar às missas diárias. Por vezes, é verdade, eram as únicas... Conheciam os padres todos pelos nomes, davam-lhes presentes, mimos, cercavam a igreja de cuidados, paninhos feitos à mão. Organizavam quermesses, campanhas de solidariedade, distribuição de agasalhos e cobertores. E, de tudo o que mais amavam na comunidade cada vez mais diminuta e envelhecida daquela velha paróquia, era o momento de confraternização da Paz de Cristo. 

Logo depois do Pai Nosso e de palavras de paz que invocam o Evangelho, as irmãs, sem conseguirem conter o sorriso, abraçam uma a outra e em seguida distribuem longos abraços e cumprimentos pelo resto da comunidade. Não adiantou o pároco João mostrar a elas recomendações do papa Bento XVI dizendo que isso era desnecessário: não precisavam varrer a nave toda em busca de gente para cumprimentar e desejar individualmente a "Paz de Cristo". Bastava, de coração, cumprimentar todo mundo com um aceno, um sorriso e saudar com algum toque apenas quem está a seu lado. "Não precisa, mas todo mundo gosta de um abraço!", respondeu Socorro, a mais nova, com 65 anos.

No oposto desse sentimento estava Clemente. Havia tempos não frequentava as missas. Dizia que era a idade que o impedia. Não era verdade. Seus 74 anos ocultavam uma saúde férrea, uma enorme disposição para o trabalho fora e dentro de casa. Acordava às 5h, caminhava, fazia uma rotina de exercícios, depois começava seu dia. Espartanamente, despachava do escritório que mantinha há 40 anos com orgulho. Terminava o expediente rigorosamente às 18h, voltava ao lar, jantava com a esposa, lia, assistia ao noticiário pela TV e retirava-se para dormir perto das 21h. Não tinha filhos, todavia sua esposa compensara com um minizoológico na modesta casa da Rua Melquíades Souza, 172, onde moravam desde o casamento que já acumulara muitas bodas. Havia papagaio, cacatua, toda a sorte de passarinhos. Muitos e diversos aquários, com tartarugas, peixes, até camarões de pequeno porte. Cachorros eram três, que se engalfinhavam com dois gatos por todo o dia. Havia até uma iguana esverdeada.

O segredo do pio senhor Clemente: na missa, tinha que dar abraços. Mania! Coisa horrível, pensava. Ele suava muito e tinha horror a pensar em estranhos espalhando seu suor pelas suas próprias costas em amplexos longos e que faziam as mãos subirem e descerem. Não sei se podemos chamar o senhor Clemente de misantropo. Talvez uma misantropia leve. Ele tolerava os seres humanos (excetuando seus sobrinhos), gostava das irmãs, amava a esposa (embora odiasse, em segredo, aqueles animais todos). Seu problema não era tão grave quanto daquelas pessoas que amam mais os livros do que seres humanos reais. Ele nem gostava tanto assim de livros. Lia textos devocionais, policiais baratos e romances açucarados. Nada mais. O que o irritava eram os abraços, gente o tocando. Coitado, nasceu no Brasil, onde abraçar e beijar é dogma de fé. Odiava afagos públicos.

Aí... Em março, o governo mandou todo mundo ficar em casa. Ele descobriu ser grupo de risco. Tinha, mais do que os outros, de ficar em casa, sem contato físico com ninguém. Podia ser fatal, caso contraísse o coronavírus. O mundo todo padecia com a doença, a economia cambaleava como se tivesse tomado um golpe no queixo. Espoucavam mortos e hospitais lotados. Ambiente desolador. A cidade de Sirilândia não foi particularmente afetada, porém o temor se instalou. As irmãs tiveram de, finalmente, ceder à internet. Tristes, assistiam à missa pelo computador. Quando outubro chegou, já se aventuravam fora de casa, cada dia com uma desculpa diferente: farmácia, supermercado, sacolão... A pressão sobre o padre João para retomar as atividades paroquiais era imensa.

Seu Clemente, no entanto, via tudo, em silêncio, como uma benção. Deus havia enviado um flagelo à humanidade, e ele rezava pelas almas dos falecidos e pela recuperação dos doentes. Outro segredo alegrava sua alma: era um júbilo não ver mais ninguém que não dona Iolanda, sua esposa. Claro, havia os bichos todos. Paciência. Já eram seis meses sem ter que tocar outra pessoa, ganhar ou fingir dar abraços! Com pesar, tinha que admitir para si mesmo que o problema do mundo era a solução de sua vida. A cada notícia de vacina, havia parte de sua consciência que pedia para que a medicina se equivocasse, que demorasse mais. Era errado, ele sabia, porém era o seu desejo inconfessado, um pecado interno que sobrepunha comodidade ao bem estar de todos. Para cada previsão de reabertura e retomada da vida normal, ele alertava para o perigo de uma segunda onda, ainda mais fatal. "Tenho idade, sabe como é, nem mesmo à missa eu consigo ir!"

Dezembro chegou e, com ele, a dúvida sobre o ano que vem. Todos sonhando com a volta da normalidade. Seu Clemente suspirando pela permanência do vírus por mais um semestre pelo menos: "Um ano sem abraços! Que sonho." Bons abraços para os esperançosos.

LEANDRO KARNAL

12 DE DEZEMBRO DE 2020
COM A PALAVRA - LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA - Economista, 86 anos

A desigualdade é o problema fundamental do Brasil

Professor emérito da FGV, foi três vezes ministro nos governos Sarney e FHC. É também cientista político, cientista social, administrador e advogado

Com o bolso dos brasileiros pressionado pela inflação nas alturas, Luiz Carlos Bresser-Pereira assumiu, em 1987, o cargo de ministro da Fazenda no governo José Sarney. Trinta e três anos depois, o fantasma do descontrole dos preços não assusta mais. Mas a economia segue colecionando dificuldades, aprofundadas em 2020 pela pandemia. Aos 86 anos, Bresser-Pereira demonstra preocupação com o cenário atual. Professor emérito da Fundação Getulio Vargas (FGV), o ex-ministro é uma das principais vozes do desenvolvimentismo no país - a corrente defende a participação do Estado na economia. Ele conversou com ZH, por telefone, sobre os desafios brasileiros, incluindo o baixo crescimento dos últimos anos e a elevada desigualdade social. A seguir, veja os principais trechos da entrevista com o economista, que também integrou o governo Fernando Henrique Cardoso, no comando de outras duas pastas (Ciência e Tecnologia e Administração Federal e Reforma do Estado).

A pandemia de coronavírus atingiu em cheio a economia brasileira em 2020. Como o senhor descreve o cenário para a área?

O coronavírus causou uma profunda recessão, não apenas no Brasil, mas em praticamente todo o mundo. Talvez só a China e algum país pequeno não tenham recessão neste ano. O Brasil foi bastante atingido, mas não foi o campeão sob esse ponto de vista. É que houve grande gasto com o auxílio emergencial. Realmente, o auxílio sustentou a demanda dos mais pobres. Tem, portanto, papel importante para fazer com que a queda do Produto Interno Bruto (PIB) fique próxima de 5% neste ano, e não de 9%. Agora, do ponto de vista da saúde, o Brasil foi um desastre na defesa da vida. Não falhou completamente só o governo federal. Também falharam os brasileiros. Faltou o espírito de solidariedade. Faltou o espírito cívico e republicano que nos obriga a ter uma ação individual muito mais forte, não só se fechando em casa sempre que possível, mas também usando máscara e tudo o mais. Com isso, os resultados são muito ruins. Estamos entre os piores do mundo. Uma tristeza. Esse é o quadro do Brasil em 2020. Mas também é preciso voltar a olhar para o quadro do país em 2014.

Por quê?

Porque, naquele ano, com a violenta queda nos preços das commodities (matérias-primas), o Brasil entra em uma grande recessão, que se soma a uma crise fiscal. O governo Dilma Rousseff perdeu o controle da parte fiscal. Gastou muito mais do que podia. Então, houve uma recessão que durou até 2016. A recuperação dos anos seguintes foi incrivelmente baixa, coisa de 1% ao ano (crescimento do PIB). Na verdade, o Brasil não saiu da crise econômica. Continua assim. A taxa de câmbio, que se deprecia fortemente nas crises (o dólar sobe, na comparação com o real), depreciou-se também em 2014. Quando acaba uma crise, a taxa volta a se apreciar (o real se valoriza). Mas isso não ocorreu. A taxa de câmbio até está boa para a indústria (acima de R$ 5, incentivando exportações). Mas as empresas precisariam ter uma razoável segurança de que o governo vai ser capaz de manter essa taxa em nível satisfatório, perto de R$ 5 por dólar, no longo prazo. E isso as empresas não têm em absoluto. Há uma perda de confiança, não só internamente, mas também no Exterior. O Brasil viu uma saída de dólares muito grande nesses últimos anos, especialmente em 2020. Só não é mais preocupante porque temos um superávit em conta corrente (mais exportações do que compras em dólar), já que as importações também caíram muito.

O BRASIL HISTORICAMENTE CONVIVE COM A DESIGUALDADE SOCIAL. ECONOMISTAS MENCIONAM QUE O PROBLEMA TENDE A PIORAR APÓS A PANDEMIA E COM O FIM DE POLÍTICAS COMO O AUXÍLIO EMERGENCIAL. O QUANTO A SITUAÇÃO PREOCUPA?

Para mim, a desigualdade é o problema fundamental do Brasil. Nessa desigualdade, há um elemento racista também. Agora, como se enfrenta isso? A primeira coisa: não dá para diminuir a desigualdade sem crescimento. Como se reduz a desigualdade em período de crescimento? Há duas políticas fundamentais. Uma é desenvolver um Estado de bem-estar social (o Estado como agente da melhoria social e econômica). O Sistemas Único de Saúde (SUS), por exemplo, diminuiu a desigualdade de maneira profunda. Apesar de todas as limitações do SUS, o padrão de vida do povo melhorou de maneira respeitável. Uma coisa é o gasto social, que é muito eficiente. Sempre mostro a comparação entre o sistema de saúde americano e o dos países europeus. O sistema americano é quase todo privado. Entre público e privado, custa 17% do PIB. Nos países ricos da Europa, onde o sistema é público, custa 11% do PIB. Então, é preciso continuar desenvolvendo o Estado de bem-estar social. A outra questão é ter uma reforma tributária que torne progressiva a cobrança de impostos (ou seja, maior incidência tributária sobre grandes patrimônios). Temos de fazer isso no Brasil.

O senhor destaca que as dificuldades econômicas vêm de antes da pandemia. Levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV) indicou que o Brasil caminha para fechar esta década (2011-2020) com o pior desempenho econômico em pelo menos 120 anos. O resultado tão baixo está atrelado a quais fatores?

É preciso analisar o cenário no longo prazo. Tenho trabalhado muito sobre essas questões. O Brasil, desde os anos 1980, é uma economia semiestagnada. Por quê? O crescimento médio da renda per capita no Brasil, nesses 40 anos, foi de 0,8% ao ano. Enquanto isso, o crescimento nos países ricos foi de 1,7%, mais do que o dobro. Já o crescimento nos países em desenvolvimento foi de 3%. Ou seja, é quase uma estagnação no Brasil. O país era um dos que mais cresciam antes de 1980. Desde então, avança muito pouco. A década de 1980 foi de estagnação, assim como a atual. Todos sabem a causa. Houve uma grande crise com a dívida externa (nos anos 1980). O Brasil foi tentar crescer com endividamento externo, o que é um erro, e entrou em uma grande crise. Isso implicou em uma grande inflação. No início dos anos 2000, houve um certo crescimento devido ao boom das commodities, beneficiando o governo Lula. Mas, em seguida, até 2014, as taxas de crescimento continuaram muito baixas.

Por quê?

Uma causa direta foi o baixo crescimento do investimento privado, além de uma grande queda do investimento público. A variável fundamental para o desenvolvimento econômico é a taxa de investimento, com a incorporação, naturalmente, de progresso técnico. O investimento público caiu muito porque a poupança pública caiu muito. Isso já aconteceu nos anos 1980, por causa de uma crise fiscal. Eu já falava disso. A crise que surge em 1980 se mantém até hoje. O Brasil tinha uma espécie de poupança que financiava o investimento público. Era fundamental para o desenvolvimento. Já o investimento privado foi profundamente prejudicado pelo fato de que, nos anos 1990, o país fez a abertura comercial e financeira. Apoiei a abertura comercial à época, mas hoje não apoiaria, porque desmontamos, sem saber, mecanismo que neutralizava a doença holandesa (o termo define períodos em que o aumento das exportações de commodities valoriza a moeda local e causa perda de fôlego da indústria, que fica mais cara e menos competitiva em relação a concorrentes externos). O que neutralizava a doença holandesa eram tarifas aduaneiras muito altas. Eu, inclusive, como ministro da Fazenda, em 1987, achei que isso era protecionismo. Mas não era tudo protecionismo. Quando foi feita a abertura comercial, as empresas passaram a ter uma desvantagem competitiva. Só aprendi isso quando ajudei a desenvolver o modelo da doença holandesa, que poucos economistas usam. Outra questão é que a abertura financeira facilitou o aumento da taxa de juros para atrair capitais ao país. O governo teve mais uma vez a política equivocada de tentar crescer com poupança externa. O déficit em conta corrente provoca uma entrada adicional de capitais em relação à saída. Essa entrada aprecia a taxa de câmbio no longo prazo (real sobe ante o dólar). Há uma desvantagem competitiva muito grande para as empresas. Agora, como isso pode ser resolvido? Em primeiro lugar, é preciso ter um diagnóstico.

Que tipo de diagnóstico?

Não só economistas liberais, mas também desenvolvimentistas não falam sobre a doença holandesa. Continuam acreditando que é possível crescer com endividamento externo. São crenças absolutamente falsas. Economistas liberais não se incomodam com o fato de o investimento público ter caído, porque não seria a função do Estado investir. É uma bobagem. O Estado deveria investir no setor de infraestrutura e em setores não competitivos. O resto, claro, deve ser feito pelo setor privado. Quando há competição, o privado é muito mais eficiente. Os liberais não se interessam pelo investimento público. Já os desenvolvimentistas antigos se interessam, gostariam de que houvesse. Mas, ao mesmo tempo, dizem que é preciso manter a demanda agregada. Adotam o que chamo de keynesianismo vulgar: promover déficit público o tempo todo, algo crônico. Além disso, mas com razão, dizem que é preciso voltar ao Estado de bem-estar social. Essa foi a grande coisa que fizemos depois da transição democrática de 1985. Realmente, passamos a investir muito mais em educação e saúde. O SUS é a grande realização da democracia brasileira instalada em 1985. Agora, isso custa caro. Ou seja, temos de financiar o Estado de bem-estar social e, ao mesmo tempo, apresentar uma poupança para financiar investimentos. Parece que nem a esquerda e nem a direita estão dispostas a fazer isso no Brasil, o que é uma tragédia. Com a covid-19, governos emitiram moeda para financiar políticas. O Brasil não usou esse financiamento monetário. Isso traz um custo muito grave para o país, porque a dívida pública, que já estava alta, vai para 100% do PIB. Então, precisamos pensar em como financiar investimentos públicos por meio do financiamento monetário, com o acompanhamento cerrado do Conselho Monetário Nacional (CMN), que só liberaria recursos desse tipo quando não houvesse claramente ameaça de inflação.

Na visão de críticos à ideia, a emissão de moeda poderia gerar alta na inflação. O senhor não vê esse risco, então?

Continuo achando que é por aí o caminho. Houve, de fato, um pequeno aumento na inflação recentemente, mas não foi causado pela emissão de moeda. Emissão de moeda não causa inflação. O que aumentou a inflação foi o auxílio emergencial no país. Cresceu a demanda por alimentos, elevando os preços. É uma inflação passageira. Não creio que tenha vindo para ficar. Nem tudo é ruim na economia brasileira.

Por quê?

O bom é que a taxa de juros, que era absolutamente escandalosa, permitindo transferência de recursos para rentistas, caiu para nível civilizado (a Selic está no menor patamar histórico do país). Isso permitiu que a taxa de câmbio se depreciasse (alta do dólar na comparação com o real), até um pouco demais. O problema todo é a sustentação disso. Até que ponto o Banco Central vai manter a taxa de juros baixa? Até que ponto a taxa de câmbio ficará competitiva? Na teoria do Novo Desenvolvimentismo, que venho elaborando, há uma ideia de que você deve manter as contas equilibradas, tanto a fiscal quanto a externa. Além disso, a teoria propõe que se administrem cinco preços macroeconômicos. O que se faz, desde a criação dos bancos centrais, é administrar a taxa de juros e a taxa de inflação. São os dois preços macroeconômicos. Agora, há outros três preços fundamentais: a taxa de salários, a taxa de câmbio e a taxa de lucro. Numa economia capitalista, o fundamental para a indústria é uma taxa de lucro satisfatória. Ora, para você ter uma taxa de lucro satisfatória, você precisa que sua taxa de salários não cresça mais do que a produtividade. Os empresários sabem disso. Tem outra coisa: a taxa de câmbio precisa estar competitiva. Se não estiver, será mais fácil importar produtos, atingindo o lucro das empresas no Brasil. É preciso que o governo realmente procure manter a taxa de juros relativamente baixa e que busque manter a taxa de câmbio competitiva.

O que é uma taxa de câmbio competitiva?

É aquela que faz as indústrias com a melhor tecnologia existente no país serem competitivas.

Analistas esperam melhora na economia brasileira em 2021, apesar das incertezas geradas pela pandemia. Qual é a avaliação do senhor para o próximo ano?

É muito preocupante o cenário para o próximo ano. É muito difícil fazer qualquer previsão. A pandemia não está resolvida, e nada indica que vai estar até o final do ano. Até termos uma vacina para todos, vai demorar. Dessa forma, o auxílio emergencial vai precisar ser retomado, não com R$ 600, mas com R$ 300. É importante. Isso representa um déficit público enorme, o que é péssimo, mas há uma questão de sobrevivência das pessoas e de manutenção da economia. Os países ricos fizeram políticas muito inteligentes, criaram subsídios para as empresas. De qualquer forma, se for mantido o auxílio, a economia se equilibra do ponto de vista macroeconômico. É claro que a dívida continuaria aumentando, e precisamos encontrar solução para isso. Temos de pensar na emissão monetária também, além de sermos responsáveis fiscalmente. Acho a responsabilidade fiscal extremamente importante. Não vejo contradição entre responsabilidade fiscal e emissão de dinheiro, quando a emissão é muito bem controlada. O Estado precisa retomar o investimento. É fundamental. Os projetos do governo para privatização são os mesmos há vários anos. Quando o setor privado não é competitivo, o Estado é melhor do que o setor privado. O setor privado é insuperável quando é controlado pelo mercado, que só funciona quando há competição, e competição da boa. Inventar competições artificiais, como no setor elétrico, não dá. Os resultados são muito ruins.

Como é possível enfrentar o problema do alto endividamento público no país?

A primeira coisa é manter a taxa de juros baixa, como no restante do mundo. Quando o país tem taxa de crescimento superior à de juro, a dívida pública vai caindo em relação ao PIB. Segundo, é preciso ter responsabilidade fiscal. Terceiro, usar com muito cuidado e controle a emissão monetária para termos investimento público. É uma coisa controlada, pequena, mas bem importante. O Brasil precisa abandonar o regime liberal e voltar a ter um Estado desenvolvimentista. Desenvolvimentista e responsável.

O senhor foi ministro nos governos de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. Há algum desafio no Brasil atual que guarde semelhança com os períodos em que o senhor atuou no setor público?

Eu entrei no governo Sarney no meio de uma crise brutal, o colapso do Plano Cruzado. A inflação era de 15% ao mês. O país estava quebrado, em moratória internacional. Estados e empresas também estavam assim. Durante o ano de 1986, houve um período em que as vendas de empresas e as receitas de Estados aumentaram muito. Eles também aumentaram as despesas, aí quebraram. Peguei o governo nesse quadro, com alta inflação e crise da dívida externa. Nem uma coisa nem outra está aí hoje. O que temos é uma estagnação de longo prazo na economia. É um regime de política econômica neoliberal, em vez de desenvolvimentista. É a incapacidade de pensarmos com a própria cabeça. Agora, o desenvolvimentismo pode resolver questões se for bem governado. Se for mal governado, não resolve. Precisamos de bons governos, e nem sempre temos tido. Nos últimos 10 anos, foi um desastre.

Ou seja, o "desastre" ocorreu a partir do governo Dilma?

Do governo Dilma em diante, foi um desastre. 

LEONARDO VIECELI