sábado, 22 de julho de 2023


22 DE JULHO DE 2023
BRUNA LOMBARDI

A MEMÓRIA DAS ÁRVORES

Sim, eu sou daquelas que abraçam árvores. Já abracei magníficas sequoias de 2 mil anos, de troncos de diâmetros gigantes, e senti como nós, pequenos e humanos diante do poder, da força e grandeza dessas criaturas, sabemos tão pouco. Lembramos de quase nada e vivemos perdidos numa dura floresta de valores distorcidos.

A ignorância que derruba, desmata e destrói um planeta passa por ele sem entender nada.

As árvores respiram por nós, limpam o ar para que a gente viva, nos dão sombra, flores e frutas, beleza incondicional e mostram provas de resistência contra o desgaste. As árvores sabem, profundas conhecedoras do tempo. Conhecem todas as histórias. Tem a memória das eras.

Desde criança eu atravessava parques e enchia os bolsos de musgos e liquens e pequenas folhas. Caminhava por alamedas e observava tudo o que as árvores deixavam cair nas calçadas. Pulava as florzinhas para não pisar nelas. Sentia que elas protegiam o mundo e até hoje olho árvores como as guardiãs que elas são. Respeito tudo o que testemunharam.

Continuo com essa relação instintiva e passional e hoje estudo maravilhada a rede de comunicação que existe entre as árvores.

Elas, assim como todos os seres vivos, interagem. Estão conectadas. A tecnologia, infinitamente anterior e superior à nossa, age feito uma internet subterrânea. Debaixo da superfície existe uma massa de ramificação formada por um conjunto emaranhado de infinitas colônias de fungos. Existe um processo de troca permanente, uma simbiose constante que se renova há mais de 130 milhões de anos.

O ciclo biológico dos fungos faz parte da sustentação e é fundamental para a transformação no nosso meio ambiente. Seu crescimento ininterrupto se adapta e se alastra em tudo, formando uma verdadeira rede por baixo da terra.

Essa internet da natureza é a rede de comunicação mais antiga e mais ativa que existe e é chamada Micélio. Ela é formada por filamentos microscópicos de um conjunto de fungos multicelulares. Essa rede poderosa ajuda toda a mata, na sustentação e absorção de nutrientes.

Para descobrir esse mundo novo, assistam ao imperdível documentário Fantastic Fungi, na Netflix. É uma jornada desse mágico e misterioso mundo medicinal que reside no substrato da terra. Paul Stamets, um micologista americano, mostra que o Micélio possui propriedades que podem renovar o nosso planeta e é tão fabuloso que pode trazer soluções para salvar o mundo.

Existe uma linguagem inteligente na natureza. Existem provas científicas do poder de sua medicina. Existe um mundo invisível mágico e misterioso que preserva a essência das coisas e se comunica. Essa conexão profunda e silenciosa entre todos os seres vivos passa por todos os elementos.

É preciso compreender e respeitar esse mistério do qual somos parte e tentar entender a linguagem secreta de todas as coisas. Essa grande comunicação só se torna possível quando temos consciência disso tudo. As árvores conversam entre si com a memória dos tempos. E nós, estamos escutando?

BRUNA LOMBARDI

22 DE JULHO DE 2023
J.J. CAMARGO

O INESGOTÁVEL PESADELO DAS MEMÓRIAS

O velho colono italiano, tratando de ajudar o conterrâneo que enfrentava uma separação litigiosa, deu-lhe uma recomendação, sabedoria pura: "Compadre, xingue o quanto puder, diga o que tenha vontade, mas nunca escreva nada, porque isso um dia vai se voltar contra você!".

A modernidade abolindo o hábito de escrever cartas, deu a impressão de ter resolvido a inconveniência desse tipo de delação. Mas que nada! O vídeo com o requinte de som e imagem estava a caminho para desmascarar os hipócritas, trazendo a eles o constrangimento de não ter como desmentir.

E então a ameaça potencial de algum indiscreto ter guardado (com propósito espúrio, por certo) alguma bobagem que escrevemos num momento pouco inspirado ficava rondando na expectativa de que algum injuriado pudesse, sabe-se lá por qual razão, desopilar.

Sempre penso nisso vendo filmes antigos de espionagem, quando, com frequência, repete-se a cena desesperada da queima de arquivo, quando uma célula terrorista era descoberta. Com a chegada da era digital, economizou-se a cremação rica de poluentes e passamos à prática asséptica e ecológica dos hackers.

Enfim, não importando qual recurso tecnológico tenha sido usado, foi sacramentada a morte do desmentido. Cabendo à vítima desavisada e aos seus envergonhados herdeiros dar o destino que quiserem ao cadáver, porque na essência permanecerá o que a memória virtual arquivou. E para sempre, porque o tempo da destruição tranquilizadora do computador foi em seguida ridicularizado pela criação debochada da "nuvem", uma denominação genial de um recurso cibernético que, mesmo com a dificuldade de entendimento de alguns políticos, já traz, no nome, uma informação implacável: ela não pode ser alcançada.

Permanece no plano "terrestre" a chance última de alegar que o que foi dito foi surrupiado de outro contexto, virou rotina, muitas vezes com cheiro de desespero, especialmente depois que surgiram os habilidosos editores do mal, capazes de mudar a ordem das palavras, dando-lhes a aparência de verdade absoluta.

Se isso não bastasse, ainda assombram os prodígios de inteligência artificial, que criou a possibilidade de ensinar o robô a reproduzir o tom de voz de alguém falecido e, através de depoimentos gravados em vida, ter acesso aos seus pensamentos políticos ou filosóficos, "ressuscitando-o" de tal maneira que consiga "dialogar" com seus velhos conhecidos, sem que esses possam reconhecer o embuste. Em resumo, estamos a caminho da fraude cibernética inalcançável.

Voltando ao italiano do início da crônica, até o xingamento oral exige cuidados, tais como local deserto e olho vivo. Afinal, como saber que não há um gravador ligado ou um desocupado de celular em punho?

Então, só restará a possibilidade restrita de apelar para o foro que, muito adequadamente, é chamado de privilegiado. Pelo menos, enquanto isso não for considerado uma ameaça a algum peculiar estado de direito.

J.J. CAMARGO

22 DE JULHO DE 2023
FLÁVIO TAVARES

OS SONHOS

Os sonhos, sonhos são - diz um poema, referindo-se a desejos, devaneios e aspirações. Mas há, também, os sonhos noturnos, aqueles em que rememoramos pessoas e situações ou que nos sugerem invenções ou até os números da futura Mega-Sena acumulada?

Noites atrás, sonhei longamente com Samuel Wainer, que me levou ao jornalismo e foi o ícone renovador da imprensa no Brasil. Até o surgimento de Wainer, primeiro com a revista Diretrizes e, mais tarde, com o jornal Última Hora, a imprensa brasileira era inócua, tímida e atrasada, dando mais importância ao que hoje chamamos de "acontecimentos sociais" do que à realidade em si das cidades, do país e, até, do mundo.

Wainer fez no jornalismo brasileiro uma "revolução" no bom sentido do termo. Seu jornal, surgido no Rio de Janeiro, era editado simultaneamente em sete capitais, inclusive Porto Alegre. Em 1962, Samuel Wainer me tirou do RS e me levou a Brasília como colunista político dos seus sete jornais.

Antes, em 1954, ele esteve preso por alguns dias, num episódio que teve traços nazistoides e antissemitas, provocado pela antiga "grande imprensa", que se sentia "prejudicada" pelo êxito dos jornais de Wainer.

Agora, ele reapareceu em meus sonhos, e com tanta presença que, ao me despertar, fiquei a pensar até que ele estava ainda vivo e presente no dia a dia. Só minutos depois, percebi que ele falecera na década final do século passado.

Tratou-se, penso eu, da mostra de que os sonhos do sono, mesmo que não modifiquem o passado, podem nos afiançar desejos melhores para o futuro. E nisto, o correto jornalismo é fundamental, pois os fatos formam opiniões e convicções.

Dias atrás, este jornal noticiou dois dados estarrecedores pela brutalidade que representam: de um lado, a informação de que, em nosso Estado, os acidentes de trânsito provocam uma morte a cada cinco horas.

De outro lado, noticiou que o benemérito Instituto de Cardiologia se vê obrigado a um corte mensal de R$ 16 milhões a R$ 18 milhões para poder zerar o déficit operacional.

Não consigo entender o que é pior e mais brutal - se os acidentes do trânsito que mata, ou o corte dos gastos do Instituto de Cardiologia que salva vidas!

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

22 DE JULHO DE 2023
CONSELHO EDITORIAL

A PRIMEIRA VAIA A GENTE NUNCA ESQUECE

Durante uma recente confraternização com os profissionais da Rádio Gaúcha, para celebrar os 100 meses ininterruptos de liderança absoluta de audiência na Grande Porto Alegre, relembrei um episódio marcante para mim, por ter visto uma crítica ser transformada em uma vaia pessoal. Desde já, esclareço que não sou contra críticas. Pelo contrário, acredito que também cumprem o papel de ajudar pessoas e empresas a evoluírem.

Nos anos 1980, durante uma longa greve do magistério, eu estava numa reunião no Palácio Piratini, quando claramente o então governador Pedro Simon - que respeito e admiro muito - manifestou desconforto com a cobertura jornalística que a Rádio Gaúcha e outros veículos da RBS vinham fazendo do movimento. Na saída, um dos manifestantes gritou no megafone: "Olha lá, o Sirotsky da RBS!". Imediatamente, uma vaia retumbou na Praça da Matriz. De volta à RBS, compartilhei o que tinha ocorrido com o comitê editorial à época, e concluímos que a relevância dos fatos justificava a dimensão da nossa cobertura.

Na mesma linha, quando o Grêmio disputou o Mundial de Clubes, em Tóquio, a RBS fez uma das maiores coberturas esportivas até então. Nem todo mundo gostou: disseram que foi dado grande destaque porque os acionistas da empresa eram torcedores do Grêmio. Pois bem. Quando chegou a vez de o Internacional ir ao Japão disputar o Mundial, houve igualmente uma grande mobilização do esporte da RBS. Uma parte do público considerou aquela cobertura exagerada e de maior proporção do que a realizada para o Grêmio. Todos nós sabemos o significado que Grêmio e Internacional têm para nós, gaúchos...

Durante o seu governo, Jair Bolsonaro recusou pedidos de entrevista dos veículos da RBS. Recentemente, o ex-presidente esteve em Porto Alegre e aceitou conceder uma entrevista para a Rádio Gaúcha. Parte do público criticou a RBS por considerar demasiado espaço para Bolsonaro. Dias depois, o presidente Lula falou ao microfone da Gaúcha. Muitos ouvintes enviaram críticas, insatisfeitos com o grande espaço dado ao atual presidente.

Receber críticas e elogios é natural no nosso dia a dia, e os encaramos como oportunidade de reflexão e aprimoramento. No entanto, também é verdade que, com serenidade e respeito, não devemos nos submeter a pressões apaixonadas, seja de qual público for.

Jamais me esqueci daquela vaia, porque ela é um lembrete de que o compromisso maior do jornalismo profissional é com os fatos e sua relevância, levados ao público com qualidade, independência e pluralidade. É impossível agradar a todo mundo o tempo todo. Afirmo com segurança que manter esse compromisso define a preferência do público, como mostra a sólida audiência da Rádio Gaúcha que celebramos nos últimos dias.


22 DE JULHO DE 2023
CENSO 2022

Onda de migrantes estimula abertura de novos negócios Na Fronteira Oeste, economia provoca redução populacional

A onda de migrantes aquece a economia local. Após a prefeitura criar a "sala do empreendedor" para auxiliar quem deseja abrir um negócio, mais de 300 microempresas individuais (MEIs) foram abertas nos últimos seis anos. Se, quatro anos atrás, o município arrecadava R$ 5 mil ao mês em imposto com MEIs, agora o valor subiu para R$ 100 mil mensais.

- Há oportunidade de trabalho em cidades vizinhas. Quando as grandes empresas crescem, há necessidade de mais funcionários e de empresas terceirizadas que vão contribuir para as grandes companhias. Em Araricá, estão surgindo muitos ateliês. É só passar em Araricá que você vê que há várias empresas chegando e se instalando. Além disso, é uma cidade menor, com aluguel mais em conta e com boas escolas. Isso atrai as pessoas - diz Luiz Paulo Grings, presidente da Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Sapiranga, Araricá e Nova Hartz.

A migração pendular - quando uma pessoa mora em uma cidade e trabalha em outra - é comum no Brasil, um país onde o aluguel consome grande parte da renda, observa o geógrafo e demógrafo Ricardo Dagnino, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Este é um dos motivos para cidades ao redor de capitais terem crescido no Brasil como um todo. Viver em uma cidade mais barata e trabalhar em outra localidade torna- se opção para muitos.

- É importante pensar que quem emigra geralmente não emigra sozinho. O chefe da família vai e leva as crianças junto. Então o pai que resolve se mudar para Araricá e trabalha em outra cidade acaba fazendo uma pequena viagem até o trabalho, mas sabe que a família estará bem protegida em Araricá - explica Dagnino.

Enquanto Araricá, no Vale do Sinos, foi a cidade que mais cresceu em população entre os censos demográficos de 2010 e 2022, Uruguaiana, na Fronteira Oeste, foi a que mais encolheu: em 12 anos, o número de habitantes caiu 6,6% - de 125.435 moradores para 117.210.

O êxodo não é exclusivo do município: a região sul gaúcha e a Fronteira Oeste como um todo encolheram nos últimos 12 anos. Uruguaiana, aliás, já havia perdido população entre 2000 e 2010 (cerca de mil pessoas a menos entre os dois levantamentos).

Mesmo a criação do campus com cursos da área da saúde da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) em Uruguaiana - incluindo Medicina, Farmácia, Enfermagem e Fisioterapia - não foi capaz de segurar a população.

O isolamento geográfico do município e a menor oferta de empregos explicam a saída de habitantes, diz o geógrafo e demógrafo Ricardo Dagnino, professor da UFRGS. É necessário percorrer grandes distâncias até chegar a outras cidades grandes da região - cerca de duas horas de carro até São Borja ou Alegrete, por exemplo.

- Se, por um lado, Araricá está entre Porto Alegre, Serra e Litoral, a cidade de Uruguaiana está isolada na Fronteira Oeste, que perde população há décadas. É uma região de agricultura de latifúndio, de pecuária e de mecanização que não demanda tanta mão de obra como o Vale do Sinos, onde há fábricas que demandam muitos trabalhadores. Se não tivesse a Unipampa, será que não seria pior (o êxodo)? O lugar oferece faculdade e atrai pessoas. Mas, depois da faculdade, o que a política pública oferece para permanecerem ali? Se não tiver emprego, a pessoa vai atrás em outro lugar - diz o demógrafo.

Potencial

Presidente da Associação Comercial e Industrial de Uruguaiana, Luís Kesller reconhece que faltam empregos para jovens no município, mas diz que há potencial a ser explorado.

- Esse fenômeno (de perda populacional) é de toda a Metade Sul. O agro é forte aqui e não emprega muito com as novas tecnologias. Faltam incentivos para instalação de indústrias de maior valor agregado. Estamos trabalhando na duplicação da BR-290. Se finalizar, poderia favorecer a geração de empregos. Uruguaiana é uma das cidades com maior cruzamento de estrangeiros, o que poderia ser aproveitado para turismo e também feiras ou eventos culturais. Isso tudo gera emprego. Tem oportunidades, só não estamos ainda conseguindo acertar a mão.

A reportagem tentou entrevistar o prefeito de Uruguaiana, Ronnie Mello (PP), desde a terça-feira, mas ele não quis se manifestar. Em entrevista a ZH no início do mês, o prefeito discordou dos resultados do IBGE e afirmou que não houve redução tão grande da população. Ao mesmo tempo, reconheceu o fenômeno de migração em busca de melhores oportunidades de emprego em outras cidades.

- Pessoas saíram da região da fronteira para buscar oportunidades. Temos de fazer o dever de casa e corrigir, oferecer condições de inserção no mercado de trabalho. É o que estamos fazendo - disse Mello.

A redução de habitantes detectada pelo IBGE implicará menor repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Por isso, a prefeitura informou que agentes comunitários estão compilando informações para checar as estatísticas do instituto.

"Transparência"

Sobre suspeitas acerca da formulação do Censo, o IBGE emitiu nota na qual afirma que a pesquisa é "transparente" e que seguiu "rigorosamente recomendações, parâmetros e protocolos para censos de população, definidos pela Divisão de Estatística das Nações Unidas e de acordo com os Princípios Fundamentais das Estatísticas Oficiais".

O IBGE também acrescenta que introduziu inovações tecnológicas e que "do alto de sua reputação, está entregando à sociedade um Censo com qualidade e confiabilidade indiscutíveis. Sem dúvida, trata-se do Censo mais tecnológico e com maior monitoramento e análise em tempo real da história dos Censos, realizados há 150 anos no Brasil".


22 DE JULHO DE 2023
CENTRO HISTÓRICO

Descartada a implosão do Esqueletão

Após três meses, a empresa STE apresentou à prefeitura de Porto Alegre o relatório final relativo à demolição do Esqueletão. O documento tem mais de 500 páginas e traça os cenários possíveis para desmonte da estrutura localizada no Centro Histórico.

A Secretaria de Planejamento e Assuntos Estratégicos (Smpae) não antecipa quais propostas de demolição do imóvel de 19 andares foram sugeridas pela empresa. Mas a reportagem descobriu que a implosão foi totalmente descartada. Havia risco de que o uso de dinamites pudesse impactar prédios vizinhos.

O estudo traz informações sobre o impacto de cada uma das alternativas sugeridas, o prazo de demolição para todas elas, a possibilidade de reutilização do material demolido e um plano de descarte dos materiais.

Técnicos da secretaria já deram início à análise do material. A prefeitura pretende anunciar em agosto qual proposta será adotada. Concluída essa etapa, uma nova contratação será realizada para definir quem irá fazer a demolição.

- Não se trata de uma área isolada, longe de outras edificações. O Esqueletão está encravado em meio a outros prédios. O modelo a ser escolhido precisa garantir a segurança dos trabalhadores envolvidos na demolição, da comunidade do bairro e daqueles que transitam no entorno - destaca o titular da Smpae, Cezar Schirmer.

Custo

Uma avaliação prévia apontou que a demolição irá custar aproximadamente R$ 3 milhões, quase o mesmo valor gasto pelo governo gaúcho na destruição dos escombros do prédio de 14 andares da Secretaria Estadual da Segurança.

A Justiça autorizou a demolição do imóvel em 18 de abril. Um laudo do Laboratório de Ensaios e Modelos Estruturais (Leme), da UFRGS, apontou que, se nada for feito, o Esqueletão vai cair.

- A demolição do Esqueletão não apenas afasta os riscos à coletividade, como viabiliza a requalificação urbana - destaca a procuradora Eleonora Serralta.

Segundo a prefeitura, os mais de 50 proprietários do prédio têm cerca de R$ 3 milhões em dívidas de IPTU. E, em setembro de 2021, a Secretaria Municipal da Fazenda (SMF) avaliou o imóvel, que tem área superior a 13 mil metros quadrados, em cerca R$ 3,4 milhões.

A estrutura está inacabada desde a década de 1950. Em 2018, um laudo preliminar da prefeitura apontou que o imóvel corria risco crítico de desabamento. Na ocasião, o Ministério Público chegou a pedir a sua demolição.

O Esqueletão também já havia sido interditado pela prefeitura em pelo menos duas ocasiões, nos anos de 1988 e 1990. Também houve uma interdição judicial em 2019. Em 2021, os últimos moradores deixaram o local.

JOCIMAR FARINA


22 DE JULHO DE 2023
POLÍTICA +

Novo contesta a compra de Audi

Um dia após a coluna informar sobre a compra de cinco automóveis por R$ 1,79 milhão pelo Tribunal de Justiça (TJ) do Rio Grande do Sul, o deputado estadual Felipe Camozzato (Novo) acionou o Ministério Público e o Tribunal de Contas do Estado pedindo a suspensão ou a anulação da aquisição dos carros. As representações foram encaminhadas às instituições na sexta-feira.

Como mostrou a coluna, o TJ-RS comprou cinco automóveis Audi, modelo A4 S Line, com valor de R$ 358 mil a unidade.

Camozzatto alega nas representações que a Lei de Licitações "veda expressamente a aquisição de bens de luxo pelos poderes públicos".

TJ-RS dá novas explicações

Diante da polêmica sobre a compra de cinco automóveis Audi no valor total de R$ 1,79 milhão, o Tribunal de Justiça divulgou no final da tarde de sexta-feira uma nota de esclarecimento.

A nota diz que "a compra dos automóveis Audi, modelo A4 S Line, híbrido, se deu após licitação pública, com a participação de outras empresas, vencendo o menor preço". Não havia no edital a exigência de que os carros fossem Audi.

O desembargador Antônio Vinicius Amaro da Silveira explicou à coluna que outras empresas se candidataram, mas ofereceram preços maiores ou o veículo não se enquadrava nas exigências do edital.

Dinheiro da venda da Corsan

No processo de privatização da Corsan, o Estado cedeu ações para os municípios que aceitaram assinar os termos aditivos para extensão do prazo do contrato. Dos 307 com contratos válidos, 76 aceitaram a proposta. Desses, 50 optaram por vender suas ações em conjunto com o Estado no leilão vencido pela Aegea. Nesta sexta-feira, receberam o dinheiro da venda das ações.

Em solenidade no Centro Administrativo foram repassados R$ 192,7 milhões aos 50 municípios que decidiram vender as ações junto com as do governo do Estado.

Os valores mais expressivos ficaram com os municípios de Canoas (R$ 25,7 milhões), Santa Maria (R$ 20,1 milhões), Passo Fundo (R$ 15,2 milhões), Rio Grande (R$ 13 milhões), Gravataí (R$ 14 milhões), Alvorada (R$ 11 milhões) e Viamão (R$ 11 milhões).

Os outros 26 municípios que decidiram permanecer como acionistas poderão alienar as ações (equivalentes a R$ 20,9 milhões) em Oferta Pública de Aquisição.

O governador Eduardo Leite repetiu que a decisão de privatizar partiu da necessidade de atender ao novo marco regulatório que prevê a universalização do saneamento até 2033, objetivo incompatível com a capacidade da companhia enquanto era operada pelo Estado em razão da falta de recursos e das travas burocráticas. Com o saneamento público, o RS alcançou 20% de esgotamento sanitário.

ROSANE DE OLIVEIRA

22 DE JULHO DE 2023
MARCELO RECH

Teia de erros

Embora em graus distintos de gravidade, os erros a que se assiste no caso da agressão à família do ministro Alexandre de Moraes em Roma são o retrato de um Brasil que escreve uma história já feia por linhas tortas. Vamos a eles:

1) A viagem - A rádio Band News revelou que o fórum do qual o ministro Moraes participou na Itália foi organizado por uma faculdade de Direito pertencente ao Grupo José Alves, de Goiás. O grupo é dono da Vitamedic, que ganhou uma fortuna com a ivermectina e cujo diretor-executivo chegou a depor na CPI da Covid. O grupo e outros foram condenados pela Justiça Federal a pagar R$ 55 milhões por "danos morais coletivos à saúde" por promover fake news sobre a pandemia. Nem o grupo e nem o STF informaram quem pagou as despesas de Moraes e família. Se o ministro sabia quem estava por trás do fórum, foi uma temeridade. Se não sabia, foi ingenuidade. O STF precisa urgentemente de um novo código de conduta para acabar com essas sombras à reputação da Corte.

2) A exposição - O ministro Alexandre de Moraes é um alvo evidente, e, por isso, autoridades brasileiras deveriam ter se coordenado com seus pares italianos para garantir a integridade de uma pessoa pública que está sob risco constante. Astros dos esportes e da música, bem como ex-presidentes e outros potenciais alvos, entram e saem de aviões virtualmente anônimos. Faltou prevenção, portanto.

3) A agressão - A violência contra o ministro e familiares evidencia que conta bancária não é sinônimo de educação. A estupidez de atacar personalidades em restaurantes e aeroportos é incentivada por fanáticos, mas não é exclusividade de extremistas de direita - a jornalista Miriam Leitão, por exemplo, já foi hostilizada em locais públicos por radicais dos dois polos ideológicos. Punir, de acordo com as leis, quem comete crime é o caminho para inibir os fanáticos e restabelecer um mínimo de civilidade nas relações sociais.

4) Busca e apreensão - O Supremo Tribunal Federal autorizou a Polícia Federal a vasculhar dois endereços dos acusados em Santa Barbara d?Oeste. Por mais execrável que tenha sido o episódio no aeroporto de Roma, a PF não pode servir de guarda pretoriana de quem quer seja e revirar casas de suspeitos sem que fique evidente a relação com o caso. Isso é coisa da Rússia de Putin.

5)Lula - Contanto que valha para todo o espectro ideológico, é louvável que o presidente se solidarize com pessoas agredidas. Mas chamar os acusados de "animais selvagens" é uma classificação típica de extremistas, além de politicamente incorreto, porque carimba a fauna nativa com pecha negativa.

Em resumo, mais um suco não tão puro de Brasil.

MARCELO RECH

22 DE JULHO DE 2023
INFORME ESPECIAL

Banho de floresta

Há quatro anos, realizei um antigo sonho. Comprei, com a família, um sítio no interior do Rio Grande do Sul, no alto de uma escarpa, em uma área antes usada para plantar tabaco e extrair pedra grês. Foi a melhor decisão que tomei, em especial, pelo que viria depois.

Os vizinhos ficaram surpresos quando souberam que, ao contrário do costume local, não pretendíamos erguer uma casa à beira da estrada nem botar o mato abaixo. Optamos por construir um quiosque ao pé do morro, o mais longe possível da civilização, em meio às árvores. Exceto por um trecho destinado a uma pequena plantação, deixamos a natureza agir e fazer o seu trabalho. Foi a segunda melhor decisão, em especial, você já sabe, pelo que viria depois.

Costumo dizer, olhando para trás, que a floresta regenerada (na foto que ilustra esta página) me salvou da pandemia. Nos momentos mais difíceis, sempre que possível, foi lá que me refugiei. O ar puro, as plantas ocupando espaços e retomando seu curso natural e o som dos bichos - pássaros e macacos - funcionaram como ansiolíticos. É assim até hoje. Exagero?

Pode até ser, mas, no Japão, esse papo é coisa séria. Do outro lado do planeta, a contemplação do verde é uma terapia introduzida no sistema de saúde desde a década de 1980 e tem até nome: "shinrin-yoku", traduzido como "banho de floresta". Fiquei sabendo disso ao ler uma entrevista na Folha de S.Paulo, com o psicólogo Marco Aurélio Carvalho, diretor do Instituto Brasileiro de Ecopsicologia.

O "banho" nada mais é do que caminhar em meio à natureza e contemplá-la. De preferência, longe do telefone celular.

Descobri que, em 2018, o New York Times, um dos mais respeitados jornais do mundo, já havia tratado do tema, com um título bem sugestivo: "Take a Walk in the Woods. Doctor?s Orders". Isso mesmo: ouça o médico e dê uma voltinha na floresta. Não precisa ser a amazônica, que fique claro.

Tudo isso, desconfio, nossos antepassados já sabiam, e não é necessário voltar no tempo para tirar a prova. Lembro de uma madrinha que abraçava a árvore na frente de casa. A gente achava graça, mas ela é que estava certa. Se é para ser taxado de louco, que seja abraçando plantas no quintal.

No fundo, isso deveria servir para darmos mais atenção às áreas verdes, inclusive nas nossas metrópoles. É por isso que a recente discussão envolvendo o corte de árvores no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, erguido sobre um aterro, em Porto Alegre, é boa para a cidade.

Fora os excessos e a contaminação política (a eleição municipal vem aí), o assunto está pautando entrevistas e reportagens e, no mínimo, fazendo com que as pessoas pensem sobre o tema, quase sempre secundário no cotidiano da urbe - em geral, estamos mais preocupados com o trânsito do que com o meio ambiente, o que é uma lástima.

Nunca é demais lembrar: nem todo mundo tem a sorte de poder "fugir" para o sítio.

INFORME ESPECIAL

sábado, 15 de julho de 2023



15/07/2023 - 16h12min
Fabrício Carpinejar

Cadeados abertos 

Você pode até se apaixonar no encontro inicial, mas amar não. Não acredito em amor à primeira vista. Ele é parcelado em incontáveis vezes. Você não ama alguém só de olhar. Você passa a amar fechando os olhos, na revisitação da saudade.

Amor exige intimidade, espaço interior. É um encantamento que surge da lealdade, da antiguidade do laço. É um magnetismo por tempo de convivência. Você pode até se apaixonar no encontro inicial, mas amar não. Amar é mérito. Amor é reconhecimento, amor é admiração, amor é conjunto da obra, amor é o lucro na soma de defeitos e virtudes do outro.

Por outro ângulo, confio que pode existir amizade à primeira vista. Foi assim com meus melhores amigos: Zé, Dudu, Mário, Vinicius, Diogo, Bruno, Nilson…

É uma atração do caráter, dos princípios, do modo de vida. Você vê de cara que a pessoa presta. Ela melhora as suas ideias, a sua percepção do mundo, valoriza a sua presença desde o aperto fundador de mãos.

Você não demora quase nada para reconhecer uma alma igual a sua, que sofreu a mesma estatura de experiências. Você tem consciência de que ela agrega valor ao seu cotidiano. Mal se conheceram e já conversam com uma cumplicidade inexplicável. Há uma confiança estabelecida logo no início do contato. 

Estão rindo pelas afinidades, estão se emocionando pelas dores parecidas, estão refletindo sobre projetos em comum. Você não demora quase nada para reconhecer uma alma igual a sua, que sofreu a mesma estatura de experiências. Basta virar a chave na ignição das palavras, e o motor das semelhanças liga imediatamente.

Tem certeza de que se verão sempre, tanto que o nome é salvo na hora na agenda do celular. A empatia chega antes da aparência.

Não sabe ainda quem é exatamente o outro em pormenores, mas já sente que aquela companhia é fundamental para enfrentar as provações do trabalho e da família. Ganhou um novo aliado, fortaleceu o seu exército contra a infelicidade. Vem uma certeza profética da longevidade da lealdade.

Você está amando um amigo à primeira vista. Como se voltasse à infância. Como se aquele desconhecido perguntasse a partir do alambrado de um campinho de futebol se cabe mais um na partida e você o colocasse em seu time, para jogar ao seu lado.

São desígnios do tempo, mensageiros postos em nosso caminho para tornar a nossa existência mais suportável. O amigo amado à primeira vista realiza a proeza da adesão, faz você se sentir realmente à vontade.

A impressão é que o conhece há muito tempo, que os defeitos dele não apresentam nenhuma gravidade de comportamento, que não vão prejudicar a estima mútua. Não nos esforçamos para dizer o que pensamos, não há sacrifício para sermos simpáticos, não precisamos fingir coisa alguma, dispensamos a bajulação adotada habitualmente para garantir aprovação.

Suas piadas fazem sentido, suas ironias são partilhadas, seus silêncios são respeitados. É um irmão perdido, devolvido pelo destino. As confissões tradicionalmente ásperas de repente acontecem com extrema fluência.

E lá estaremos falando de algo que nunca comentamos com ninguém. Os segredos não têm mais cadeados.



15/07/2023 - 05h00min
Juliana Bublitz

O que falta ao mundo é elegância

Não se trata de dinheiro nem de luxo, mas de saber se colocar no lugar do outro e agir com delicadeza

Se elegante é, também, saber estender a mão

O que falta ao mundo é elegância. Não estou falando de roupas caras - “de marca”, como se diz lá no Interior - e, muito menos, dos luxos, exageros e extravagâncias bizarras que povoam as redes sociais como se fossem ideais de vida. Nada mais deselegante. Não, não se trata de dinheiro nem de ostentação.

Elegância - a verdadeira - não se compra. Em entrevista a Tatá Werneck, o ator Tony Ramos definiu o conceito em três palavras: respeitar o próximo.

— As pessoas confundem elegância com a melhor roupa a ser vestida. Não, elegância é na alma — ensinou o veterano dos palcos, conhecido, justamente, pela delicadeza que dispensa a colegas e fãs.

Muito antes dessa entrevista e da explosão de agressividade e fúria na era das relações mediadas pelas telas, a jornalista Celia Ribeiro já apontava para o mesmo caminho. Impossível, aliás, escrever sobre esse tema sem lembrar dela. 

Recordo de Celia caminhando pela redação de ZH, com a bolsa no ombro, atendendo quem quer fosse, sempre gentil e pronta a ajudar. Era a fineza em pessoa.

Celia decidiu se aposentar em 2016, aos 86 anos, após seis décadas de jornalismo e milhares de páginas escritas. Seu livro Etiqueta na Prática foi um fenômeno de vendas. Ivan Pinheiro Machado, da editora L&PM, costuma dizer que ela “tirou a frescura" das velhas e mofadas regras de boas maneiras, transformando algo que servia apenas para diferenciar classes sociais em uma coisa completamente diferente. O foco era o bom convívio.

Celia dizia que o mais importante, sempre, deveria ser se colocar no lugar do outro. No fim das contas, essa é a essência. E o mais interessante de tudo: mesmo quando falava dos tais “bons modos”, ela nunca usou uma linguagem arrogante ou impositiva. Jamais.

— Elegância é também ser educado, socialmente agradável, mesmo sendo tímido, como é o caso do Luis Fernando Verissimo. Já a maior deselegância possível é a ostentação. Não existe nada mais deselegante do que ser deslumbrado — disse a jornalista, em uma conversa descontraída e franca com Claudia Laitano e Alice Urbim, publicada no caderno Donna à época de sua aposentadoria.

E é isso mesmo: ser elegante é ter a humildade de se olhar no espelho e incluir o outro no reflexo, o que, no fundo, só melhora a imagem de quem opta por esse modo de vida. É saber estender a mão e ter a capacidade de alteridade, reconhecendo que existem diferenças, sim, mas que a convivência é possível com respeito e empatia.

Curioso como algo tão óbvio possa estar tão fora de moda. A falta de diálogo, as críticas acintosas (geralmente tecidas no anonimato da internet), os arroubos de egolatria, a torcida do “quanto pior, melhor”, a polarização radical, tudo isso vai minando as relações e tornando cada vez mais difícil a vida em sociedade.  

Chegamos ao que parece ser mais uma encruzilhada entre civilidade e barbárie, em tempos de “desinteligência real”, como diz Celso Loureiro Chaves. Não sei você, mas eu quero estar do lado de Celia, o lado da elegância.


15 DE JULHO DE 2023
POESIA

O LIVRO

Quanto mais velho um poeta fica, mais se convence de que seu ofício resulta numa modesta produção de linguagem. O poeta, segundo penso, intervém na língua materna mediante três formas de intensificação verbal: a) dando ao Dicionário novas estruturas significativas; b) conferindo ao falar comum novos ritmos; c) atribuindo às frases, por meio de comparações e metáforas, significados inéditos.

Vejamos como o Houaiss define rosa. O primeira significado é: "flor de roseira". O dicionário, porém, não se detém no vocábulo em si, no seu grafismo ou na sonoridade da palavra. Interessa-se somente por seu valor informativo. Chega a registrar que existem 150 variedades de rosas. Como sexto significado, anota: "mulher formosa". O nono significado: "estado de satisfação do corpo ou do espírito, bem-aventurança, ventura". O décimo: "rosa dos ventos".

Do exposto vê-se que, no próprio Dicionário, já existem intromissões poéticas. Para chegar ao poema, todavia, a poesia exige que a palavra contenha também emoções pessoais do poeta, acompanhadas, eventualmente, de sentimentos e emoções coletivas. Drummond de Andrade relatou que uma empregada sua o surpreendeu com a seguinte expressão:

- Doutor Drummond, o televisor ia cair, mas eu peguei ele na flor do ar...

Como se vê, a moça alterou uma expressão já dicionarizada, pois na fala comum costuma-se dizer: "à flor dos lábios; na flor dos anos; ou flor de farinha". O Houaiss registra: "Fulano é uma flor de rapaz".

Sinto-me na obrigação de fornecer aos leitores pistas para que possam ler e interpretar com mais generosidade meus poemas da nova antologia, que retoma poemas selecionados de duas outras antologias, de 1986 e de 2001, com acréscimos de meu livro Adega Imaginária (2013). Os 115 poemas que aparecem com a menção "inéditos" são, de fato, inéditos. Devem seu lirismo às impressões de alguém que se sente submetido às pressões de uma sociedade consumista, tecnológica e informática.

O problema é que são raros os astrofísicos, biólogos moleculares e físicos quânticos com vocação poética. Carl Sagan foi uma exceção. Morreu prematuramente aos 62 anos, em 1996. Para provar que foi poeta, cito-lhe o seguinte trecho: "(...) cada um de nós, do ponto de vista cósmico, é precioso. Se um ser humano discordar de vocês, deixem-no viver. Nas 100 milhões de galáxias, não encontrarão outro" (Cosmos. Lisboa: Gradiva, 1984, p. 91).

Considero-me um modesto imitador de dois poetas: Dante e Camões. Ambos enfrentaram idêntico problema: poetizar enigmas que estou enfrentando, os quais: o surgimento de um Cosmos, inaugurado por dois inovadores, Charles Darwin e James Clerk Maxwell, o maior físico teórico do século 19, precursor de Albert Einstein. A despeito de sua ciência, Maxwell foi profundamente cristão. Em meus poemas, tive de formular-me uma questão: "Será permitido a um poeta de hoje compor poemas inspirado nas descobertas que os cientistas têm feito, ou estão fazendo?". Dante, em sua Divina Comédia, aproveitou a ciência de seu tempo; Camões, na sua epopeia, fez o mesmo. Ocorreu-me, pois, abordar uma temática, até certo ponto insólita: a da Cosmologia Contemporânea.

Naturalmente, tento poetizar, ao mesmo tempo, aspectos que independem das ciências, ou seja, as revoluções que ocorrem no interior de nossos corações, que suspiram por mais ar e, sobretudo, por mais felicidade.

Não tenho a fantasia, muito menos a presunção, de comparar-me a Dante ou a Camões! Rogo a meus leitores que apenas leiam meus poemas "como poesia". Passados 700 anos da morte de Dante, o que resta de mais genial em seu poema é justamente a sua Poesia.

Deixo os cientistas à vontade para aplicarem seus olhos aos telescópios e aos microscópios. Venero as ciências. No que me diz respeito, imito Wal Whitman, que, depois de ouvir uma sábia conferência de um astrônomo, saiu de sua casa e foi contemplar o céu estrelado. Como o fazia, de resto, o filósofo Kant, que o contemplou muitas vezes em Könisberg.

Meus Melhores Poemas De Armindo Trevisan.

Ed. Invencionática/Bestiário, 280 páginas, R$ 72 em bestiario.com.br


15 DE JULHO DE 2023
LEANDRO KARNAL

A discussão é verdadeira. Altero apenas alguns dados para ocultar os participantes reais. Uma pessoa segura uma bolsa cara. Melhor seria dizer: caríssima. A amiga exclama e indaga: - Nossa, sua bolsa vale uns R$ 120 mil! Quanto você paga à sua faxineira?

- Pago o valor de mercado. O salário não é proporcional à renda do contratante. Se assim fosse, a funcionária que limpa a mansão da família Safra deveria receber US$ 70 mil por mês? O salário é fruto de um diálogo com o mercado, com minhas necessidades, com a realidade da funcionária e tem uma certa "lógica?".

- Mas... Você não se sente mal por isso? Há crianças passando fome...

- Sim, e essas crianças ficariam felizes também com o seu celular. Você deixaria de produzir bastante se não tivesse o aparelho. Ele é seu instrumento de trabalho. Graças a ele, você consegue contratar quatro pessoas para a sua casa e 12 para o escritório. Você gera muitos empregos, e as pessoas recebem pelo seu trabalho. Claro: você pode doar todos os móveis, computadores e bolsas. Pode enviá-los para uma área pobre de Bangladesh. Você condenaria aqui várias pessoas à fome, mas salvaria outras na Ásia.

- Sei lá! Mas você e eu estamos crescendo nos nossos negócios. Não seria bom ir aumentando os salários?

- Talvez, se todos concordassem em diminuir quando houvesse queda de receita. Há dois anos, durante a pandemia, perdi 30% da minha renda. Eu poderia chegar à empregada e dizer: "Vamos baixar seu salário?". Ela acharia ruim. Dividir lucros e assumir crises não seria um caminho irracional? Eu a mantive, pagando o mesmo valor, ainda que ela tenha deixado de vir por alguns meses. Faz parte de uma responsabilidade recíproca.

- Você me parece muito objetiva e capitalista. Acho apenas que poderia existir mais justiça social.

- O sistema está dado. Você deve pagar seus impostos previstos, honrar com os compromissos trabalhistas, respeitar as pessoas e oferecer o que é viável. Você é livre para fazer trabalhos voluntários ou doações para entidades assistenciais. Mas... a regra de ouro é nunca abraçar de tal forma o afogado que ele lhe arraste para o fundo. Isso expandiria a pobreza, não a riqueza.

- Porém, doar cestas nunca resolverá a fome.

- Doar minha bolsa também não. Se minha bolsa ou o valor a incomodam, por que você não faz uma artesanal em casa? Você é boa em costura. Isso estimula o criativo e até a sustentabilidade, mas... pode diminuir vagas de empregos. E, sim, pode vender tudo o que possui e dar aos mais necessitados. Você é livre!

- Já refleti. Lá no nosso escritório de advocacia, alguns pareceres custam uma fortuna. O trabalho é feito por muita gente; apenas eu e meu marido recebemos o grosso dos pagamentos, porque somos os proprietários. Sei que essa é a lógica da sociedade. Por vezes, parece que a gente está tirando das pessoas.

- O cliente procura vocês pela fama, rede de relações, capacidade gerada pelos conhecimentos, certeza de qualidade e o peso do seu sobrenome, com notório saber, ou seria por causa do estagiário?

- Ah, com certeza pela gente! - E os advogados que estão lá, assalariados, podem sair e abrir seus próprios escritórios, como vocês, não é?

- Sim, podem. Alguns se tornaram sócios minoritários. Outros fundaram uma empresa. Um foi para o Exterior e prospera. Alguns que ficaram são excelentes e causam aumento de produtividade. Estes nós fomos promovendo, aumentando a participação nos lucros do escritório.

- E outros foram ficando e apresentavam pouca iniciativa. Você nunca ofereceu sociedade a eles, não é?

- Verdade! Mas... sua ideia de meritocracia parece fazer um jogo de cada um por si e "que vença o melhor". Nada mais podemos fazer a não ser aceitar a miséria como um dado pétreo?

- Você pode me acusar de tudo, menos de idealista. Meu mundo é o real, e nossa chance de atingir um paraíso é limitada. Minha ação tem poder cerceado, e o custo de todo "admirável mundo novo" é muito alto. Prefiro reformar e melhorar o que temos, fazer o certo em vez de, em uma tacada, imaginar que o sistema pode ser derrubado hoje e amanhecer melhor, daqui a uma semana. Não acredito nisso. Minha experiência de vida me indica, até hoje, que as rupturas possuem valor muito alto, quase sempre excessivo.

- Sim, você já defendeu sua posição de conservadora não reacionária. Lembro-me da festa lá em casa: você não idealiza o passado, tampouco acredita que todos eram mais felizes. Logo, não é reacionária. Não crê que o paraíso esteja logo à frente e que possa ser atingido rapidamente. Logo, tem pouca identidade com o pensamento tradicional de esquerda. Você acredita que o presente seja uma negociação entre o que recebemos e o que legaremos. Apenas acho que tudo isso é muito teórico, coisa de europeu.

- Sim, a fonte é europeia, mas a esquerda também nasceu na Europa durante a Revolução Francesa. O anarquismo é europeu, o marxismo é europeu, o nacionalismo é europeu etc.

- Assim como essa sua bolsa, né, amiga? Posso pedir emprestada? E você, querida leitora e estimado leitor: qual é a sua esperança sobre bolsas e capitalismo?


15 DE JULHO DE 2023
CRISTINA BONORINO

INÉDITO

Em geral, buscamos o inédito. A novidade traz uma excitação, uma promessa de aventura, de novas experiências. Na maioria das vezes, é a força motriz para o trabalho que nós, cientistas, fazemos diariamente. Mas, de vez em quando, uma conjunção de fatores inéditos pode - e deve - causar preocupação. E sugerir cautela. Como na última semana, em que o planeta atingiu a maior temperatura média já registrada: 17.23ºC. E havíamos tido o junho mais quente já visto.

Nesta época do ano é verão no Hemisfério Norte e inverno no Sul. Normalmente é o período em que as temperaturas mais altas são atingidas no planeta - embora a gente jure que seja durante o verão em Porto Alegre. Mas mesmo nós sentimos o impacto dessas temperaturas aqui. Maio, junho e julho foram extremamente brandos, com dias quentes mesmo. E as ameaças de ciclones e chuvas foram realmente o problema neste nosso inverno.

Você deve ter ouvido falar que as temperaturas dos oceanos também têm alcançado picos inéditos. E o El Niño, um fenômeno recorrente que aquece o planeta em ciclos, retornou. Nunca antes tivemos o El Niño simultaneamente às temperaturas mais altas do planeta e os oceanos já tão quentes. Em abril, a temperatura média dos oceanos alcançou 21.1ºC - a mais alta já registrada. A elevação das temperaturas dos oceanos é maior no Hemisfério Norte - até porque ela é resultado de fatores muito conectados com a atividade industrial humana. Os oceanos absorvem esse calor gerado na Terra - sabemos como são brandas as temperaturas de áreas costeiras. Quanto mais quente, menos eles conseguem absorver o calor. E, com esse aquecimento, está o El Niño deste ano, esquentando mais os oceanos, empurrando correntes de ar equatoriais para o Oeste. Ele é equilibrado pelo La Niña, que traz águas mais frias e profundas para o Leste. E ano passado saímos de três anos de La Niña.

Em junho, o El Niño pode ter sido desencadeado por ventos anômalos que se originam no Pacífico Norte, como acreditam alguns cientistas, como a oceanógrafa Regina Rodrigues, da UFSC. E essa "manta" de água quente que cobre hoje os oceanos gera um calor que é preso pelo efeito estufa dos gases liberados pelas atividades industriais e urbanas. A conjunção inédita de fenômenos pode trazer temperaturas ainda mais altas - uma vez que o El Niño recém iniciou. Isso, claro, impacta todo o planeta. Mas em algumas áreas será mais crítico.

Há anos o cientista Carlos Nobre, hoje na USP, adverte sobre os impactos climáticos de diferentes percentuais de destruição da Floresta Amazônica. Segundo ele, se 20% da Amazonia for perdida, a temperatura global pode subir até mais 2.4ºC. Hoje, já foram perdidos 17% da floresta. Degelos massivos - e inéditos - na Groenlândia e na Antártica fizeram o nível dos oceanos subir gradualmente, afetando toda a vida marinha e as áreas costeiras. O que mais precisa acontecer para que leis e políticas públicas sejam modificadas em cada cidade do planeta?

CRISTINA BONORINO

15 DE JULHO DE 2023
FRANCISCO MARSHALL

QUERIDO DIÁRIO,

As intimidades do poder e da consciência formam um drama patético. Muitos acreditam na força e na verdade do que faço. Outros não, nem remotamente, e criticam. E eu? Devo examinar meus atos? Examinar e ponderar antes de decidir? Eleger princípios e finalidades? Estudar, avaliar e justificar democraticamente, ou passar a patrola e seguir adiante, colhendo os aplausos que já conheço? Ora! Que tonto quem acha que aquele que se serve da democracia deve defendê-la. Babaquice. Cheguei ao palácio, sou feliz, me bajulam e me acho bonito, o resto que se rale. Mas por que te digo isso, querido Diário? Não é melhor caminhar sem ouvir, sem olhar pra trás ou pra frente, apenas colher a glória, e vida que segue?

A água. Seria um bem precioso? Tó hydor, como disse Tales de Mileto (625-548 a.C.), o princípio essencial, ou tão somente um bem que podemos comercializar? Ainda melhor, um bem que amigos estrangeiros podem comercializar melhor do que nós, botocudos? A água, para matar a sede de milhões, ou para saciar a sede de lucros de alguns poucos, que logo terão ainda mais sede? A sede voraz por dinheiro, que sede linda, que move a humanidade, enquanto quem não tem mérito ou patrimônio, que morra de sede (kkk! Desculpe, Diário, acho que não sou tão ruim. Acho. Achas?). Ora! 

Qual a diferença entre um bem essencial e aqueles espelhos mágicos que os europeus teriam oferecido aos tupis deslumbrados? Naquele espelho eu me vejo lindo, mas o espelho das águas eu recuso: demasiado puro! A água, um bem ótimo para pôr no brique, especialmente porque não me pertence, pertence à terra e ao povo (kkk, já era: pertencia!), e eu não sou nem da terra, nem do povo, por que não vender esse bem, ?tão valioso?, para a elite de outro país?

A questão energética. Os recursos vitais. O valor estratégico. A crescente escassez global do bem natural, humano e social mais importante, a água. Gente! Esperam que eu leia relatórios, que compreenda a questão energética e que estude por que os que privatizaram as águas, em todo o mundo, ora correm para reverter esse erro? O que puder ser vendido, que se venda, seja pra quem for, desde que pague. E quero que paguem pelo que compraram. Muito obrigado.

O que temo mesmo, querido Diário, é o que sabes há muito: que descubram que sou completamente inepto e incapaz de administrar o que quer que seja. É muito difícil. É mais fácil usar minha voz de crooner para enganar a tolas e tolos do que para dizer ao povo o que bem sabes, Diário: que sou um incompetente e prefiro me livrar do desafio, entregar aos outros para resolverem o que não consigo. E pouco importa que eu entregue uma antiga e próspera empresa do povo, cor sana e sacro serviço, com estrutura técnica, monopólio, público consumidor cativo (meus concidadãos!), potencial imenso; pouco importa, eu sou e todos somos mesmo uns estúpidos, nada sabemos, os outros é que sabem."

Ah, o poder da ideologia liberal, que assassina a lucidez, manieta e cativa lacaios e perverte os destinos da humanidade. Eis o vero inimigo da democracia, que ora espouca champagnes sobre o leite derramado.

FRANCISCO MARSHALL

15 DE JULHO DE 2023
FLÁVIO TAVARES

COMENDO PLÁSTICO

Estamos nos alimentando de micropartículas de plástico contidas em peixes, mexilhões e ostras. Esta aterradora invasão de microplástico nos mares (e nos cursos d´água em geral) foi considerada como hipótese há dezenas de anos, mas agora foi confirmada em pesquisas científicas.

Os pontos essenciais da pesquisa, realizada pela Universidade Federal de São Paulo, foram publicados, dias atrás, na conceituada revista científica norte-americana Science of the Total Environment, o que lhe dá um caráter definitivo.

A incidência de microplástico no litoral paulista é uma das maiores do mundo. Em algumas áreas, foi encontrada uma média que variou entre 12 e 16 partículas de plástico por cada grama de tecido do animal marinho. Em alguns mexilhões, foram encontrados mais de 300 microplásticos por grama, número brutal que dá ideia da poluição aterradora dos cursos d´água.

A pesquisa fixou-se agora no estuário de Santos, no litoral paulista, mas vai estender-se a outros Estados, inclusive o Rio Grande do Sul. Fico pensando no que deverá ser encontrado na bacia de Rio Grande e no Guaíba, onde (além de plástico) costumam jogar móveis e estofados velhos e outras quinquilharias já inservíveis. Assim, pergunto-me da possibilidade de serem encontrados entre nós também microrresíduos de tecido de pano em peixes?

Além do plástico (deteriorado pela água e, assim, transformado em microrresíduos), soma-se, aqui no Rio Guaíba, a aterradora contaminação por resíduos industriais e domésticos, inclusive fezes.

Mais do que tudo, em nosso Estado, basta já a contaminação do Rio dos Sinos (e dezenas de arroios), onde os curtumes lançam imensa quantidade de resíduos químicos da curtição do couro?

Pela primeira vez, a Assembleia Legislativa demonstra interesse concreto pela preservação do meio ambiente e mostra que sustentabilidade não é algo a esmo, como folha ao vento. O Legislativo decidirá sobre um projeto do então deputado Edegar Pretto (hoje presidente da Conab) que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos nas lavouras do Rio Grande do Sul.

É uma mostra da transformação de meras palavras sobre sustentabilidade e meio ambiente em ações concretas para assegurar nosso futuro.

FLÁVIO TAVARES

15 DE JULHO DE 2023
OPINIÃO DA RBS

FALTOU COMPOSTURA

Foram lastimáveis a postura e a incontinência verbal do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso ao discursar na abertura do 59º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), na quarta-feira, em Brasília. Reagindo a vaias em um evento com alta carga ideológica, Barroso enumerou batalhas travadas para assegurar a liberdade de expressão, como os apupos direcionados a ele. "Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas", disse o ministro.

Não bastasse a questionável conveniência da presença de um ministro do STF no palanque de um encontro do gênero, Barroso fez uma manifestação de cunho político. Assim, desgarrou bastante do comportamento adequado para um membro da Corte. O Supremo julgou nos últimos anos várias causas relacionadas ao "bolsonarismo" e ao próprio governo Jair Bolsonaro. Em breve, enfrentará novos processos contra o ex-presidente. A sociedade espera de seus juízes que decidam de maneira imparcial, conforme as leis e a Constituição. Ao proferir as infelizes palavras, Barroso alimentou as teses de que o STF faz ativismo político e Bolsonaro seria um perseguido.

Barroso assume em outubro a presidência do STF. Até fevereiro do ano passado, também comandou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no qual exerceu um papel importante na defesa das urnas eletrônicas contra a campanha de desinformação movida por Bolsonaro e seus apoiadores. Não se ignora que, nos últimos anos, o STF e o TSE formaram uma trincheira na defesa da democracia e do reconhecimento da lisura das eleições. Os atritos não foram banais, incluindo ataques pessoais rasteiros aos ministros. 

O 8 de janeiro foi o resultado também dessas insistentes incitações. É natural que, na intimidade, antipatias sejam nutridas. Mas um ministro do Supremo, ainda mais às vésperas de assumir a alta Corte do país, deveria demonstrar o equilíbrio e a moderação esperados para alguém que ocupa postos de tamanha relevância. Com o episódio, o próprio STF, tragado pelo redemoinho da polarização, é atingido pela margem criada para alimentar desconfianças.

Foi hábil e preciso o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ao fazer reparos ao comportamento de Barroso. "A presença do ministro em um evento de natureza política, com uma fala de natureza política, é algo que reputo infeliz, inadequado e inoportuno", disse. Pacheco avaliou ainda que seria necessário um esclarecimento ou retratação. Caso contrário, a manifestação poderia ser lembrada como causa de impedimento ou suspeição em julgamentos. Barroso, em seguida, publicou nota tentando se explicar e apaziguar a situação, dizendo que referia-se ao extremismo violento de uma minoria. Tarde demais.

Devotos de Bolsonaro pediram o impeachment do ministro pela declaração. Trata-se de um exagero. O episódio, no entanto, deveria servir de alerta definitivo para Barroso e pares que também costumam se exceder e falar sobre temas sobre os quais deveriam se abster. O mesmo ministro, em novembro do ano passado, em Nova York, soltou um "Perdeu, mané!" para um bolsonarista que tentava abordá-lo. A pacificação que o país aguarda também necessita de comedimento verbal dos membros mais loquazes do Supremo. Melhor seria se o próprio STF estabelecesse novos limites e normas de conduta para seus integrantes.


15 DE JULHO DE 2023
MARCELO RECH

Honra ao mérito

Vamos supor que você, felizardo, faturou uma bolada de R$ 10 milhões na Mega-Sena. Precavido, você não quer torrar tudo e incinerar a sua sorte. Mas se a bufunfa ficar guardada debaixo do colchão, ela vai se desvalorizar em algo como 0,5% ao mês, que é uma inflação corriqueira média no Brasil. Ou seja, por deixar seu rico dinheirinho parado, você queimaria R$ 50 mil a cada 30 dias.

Então, você sabe que é preciso botar o dinheiro para trabalhar. No Brasil de juros nas alturas, se você investir em uma aplicação sonolenta, um CDB meia-boca, espere ganhar em torno de 1% ao mês - R$ 100 mil limpinhos, sem incomodações e sem levantar um dedo. Mas você precisa se resguardar da inflação. Então, saca a metade dos R$ 100 mil e reinveste o restante no mesmo CDB. Sobram R$ 50 mil. Com o equivalente a US$ 10 mil no bolso todo mês, você e família viveriam despreocupados em qualquer lugar aprazível do planeta.

Mas não, você quer empreender. Você monta um negócio no Brasil, uma rede de 10 restaurantes, por exemplo. Você gasta uma pequena fortuna para equipar as unidades: mobiliário, cozinhas modernas, uma decoração bacana. Para fazer a máquina andar, você dá emprego a, digamos, cem pessoas - 10 por restaurante, sem contar os indiretos, como as equipes de segurança, limpeza e manutenção periódica de equipamentos e instalações.

Você paga 10 aluguéis, impostos insanos de toda ordem, uma salada de siglas em taxas sobre os cem salários, vale-alimentação, vale-transporte e, como você se preocupa com os funcionários, assistência de saúde. Você também desembolsa um ervanário pesado a fornecedores de alimentos, horas extras, cursos de treinamentos e segurança, contadores, advogados, publicidade, influenciadores e sabe-se lá mais o quê. Cada quê anterior é um problema em potencial.

Você também trabalha ou fica angustiado sete dias por semana, 12 meses por ano, porque negócio fechado é dinheiro que não entra. Os fiscais fiscalizam o tempo todo - e assim deve ser, já que você lida com pessoas e alimentos. Clientes reclamam de qualquer coisa e detonam todo o seu esforço nas redes sociais.

Você corre o risco de assaltos e tem de lidar com furtos, arrombamentos, danos, desvios, atrasos e desperdícios. Ex-funcionários entram na Justiça. Outros ex-colegas depõem a favor deles, que logo depois vão depor para os ex-colegas também. Você gasta uma dinheirama em ações trabalhistas, com o pagamento de juros, com golpes de aproveitadores e com fornecedores que recebem, não entregam e desaparecem.

Você poderia estar na praia de papo pro ar, mas insiste em empreender e gerar empregos no Brasil. Tem alguma medalha pra isso?

MARCELO RECH