sábado, 17 de fevereiro de 2024


17 DE FEVEREIRO DE 2024
BRUNA LOMBARDI

O AVESSO DO AMOR

Às vezes o coração empedra. Endurece de um jeito como se uma argamassa de dor e raiva misturadas virasse cimento. Um cimento que secou cheio de marcas, de quem não prestou atenção e pisou em cima, riscou, fez um estrago. Empedrou e agora ninguém mais repara nisso.

Amor machuca, a gente sabe, mas sabe de um jeito errado porque o que machuca é o avesso do amor. É o desamor, a falta, a ausência dele. O lugar onde ele não existe. Em cada espaço que o amor não habita, outras coisas crescem. O que o amor não ocupa logo é invadido por um descontrole de sentimentos distorcidos, uma espécie de ferro em brasa que fere devagar e parece que nunca cicatriza.

Até que um dia chega uma dessas chuvas que a gente gosta de tomar porque lavam a alma, limpam o espírito e molham o coração de um jeito que umedece. E dessa umidade começa a brotar coisa, musgo, mato, flor.

Já não é pedra mais, nem cimento marcado, é a natureza que brota inesperada de um lugar que parecia impossível de tão árido. Um sopro de vida aparece e se enfeita. A palpitação da expectativa. Alguma coisa se vislumbra, um fio frágil de esperança.

A beleza da vida é que todo dia ela recomeça e surpreende. Basta uma brecha, uma fenda, uma fresta e de repente a beleza entra. Quem andava desencantado olha para o olho de alguém e percebe que nem tudo está perdido. E aquilo que se perdeu aos poucos vai sendo esquecido. Encontramos novas trilhas, caminhos que inventamos, possibilidades.

Porque a vida é possível, apesar de tudo. Pode parecer difícil e improvável quando uma porta se fecha, quando te arrancam o chão. Quando durante tanto tempo tecemos sentimentos duros e nos cobrimos com eles para esconder um coração despedaçado. Usamos um escudo de defesas para que nunca mais nossa vulnerabilidade seja atingida.

Desmanchar isso não é simples e nunca parece seguro. Temos medo. Precisamos nos proteger. A gente sabe que nosso coração não vai resistir se for machucado de novo. Escolhemos o desamor como se fosse um lugar fora de perigo, como se nos deixasse mais fortes.

Mas é uma contradição a gente tentar usar o desamor como um abrigo para nos proteger, se foi justamente o desamor que nos feriu. Sem perceber, estamos nos entregando ao nosso pior inimigo. Estamos nos tornando aquilo que combatemos.

Não podemos deixar que a vida nos transforme naquilo que não somos. Viemos para trazer essa força amorosa para a vida e não para ter medo dela.

Precisamos de muita luz para vencer a escuridão do mundo. Quando um coração magoado se fecha, é uma luz que se apaga. Uma energia que deixa de brilhar, e todo o campo se torna mais sombrio. Se a gente se machucar ou machucar alguém, sofrer ou causar sofrimento, essa é a matéria de viver. É inevitável. Toda dor é um rito de passagem. A gente se recupera, e as marcas que ficam são nossa história.

Viemos distribuir abraços e acolhimentos, lágrimas e risadas, viemos experimentar, vivenciar, entrar de peito aberto nas emoções. Viemos pra olhar um arrebatador fim de tarde e acreditar na força do Universo. Ocupar tudo com amor para que o avesso dele não se instale. Vencer o desamor é um ato de resistência.

BRUNA LOMBARDI

17 DE FEVEREIRO DE 2024
J.J. CAMARGO

O BAÚ DAS MEMÓRIAS

"A memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas, e graças a este artifício conseguimos suportar o passado." (Gabriel García Márquez)

As pessoas que significaram tanto para tantos precisam ter as memórias preservadas, agora que já não estão mais aqui. E as histórias que construíram com perspicácia, ironia e bom humor precisam ser armazenadas no bazar das letras definitivas para que o tempo, esse triturador de memórias, não alcance destruí-las.

Sempre louvei o que o grande Juarez Fonseca fez com a memória de Mario Quintana (1906-1994), que, eternizado na sua poesia, ainda mereceu o bônus do Ora, Bolas! O Humor de Mario Quintana (L&PM, 2006), um livro maravilhoso, que chegou à quinta edição com 130 histórias, encarregadas de transferir para o leitor o humor agridoce do nosso poeta maior.

Creio que o posfácio da biografia de Paulo Sant?Ana (1939-2017), por ter sido essa criatura genial que a ninguém conseguiu ser indiferente, merece que se reúnam episódios de sua genialidade/loucura, para deleite dos que não tiveram o privilégio do convívio.

Fui para Paulo Sant?Ana um dos muitos médicos que fracassaram na tentativa de fazê-lo abandonar o fumo, mas guardo dele a melhor das lembranças pelo jeito carinhoso com que cuidava dos amigos, que sabíamos serem muitos, mas não exatamente quantos. De qualquer maneira, os 29 convivas recrutados por ele para comemorar seus 73 anos estavam muito orgulhosos com o significado do convite.

Antes de ter uma coluna regular no jornal, recebi dele a oportunidade de publicar no seu espaço sagrado, um verdadeiro canhão que durante décadas ocupou a penúltima página de ZH e encantou duas gerações. Uma tarde, ao final de uma consulta, lhe agradeci a generosidade de conceder tal visibilidade a um escriba ocasional, e ele, com seu sorriso enviesado, debochou: "E nunca te ocorreu que eu pudesse estar sem assunto naqueles dias?".

Em 2008, ele aceitou prefaciar o Não Pensem por Mim (AGE), meu primeiro livro de crônicas.

Quando cheguei para a sessão de autógrafos, ele já estava lá. Eu disse: "Obrigado Sant?Ana, que bom que vieste!". Ele respondeu: "Não vim por ti. Ocorreu-me que não era justo que teus leitores, ao lerem o maravilhoso prefácio, não tivessem o autor para autografar!".

Minha história preferida foi contada pelo insuperável Radicci, num almoço de confraternização dos cronistas do jornal: na virada do século, a RBS contratou um CEO de renome para sua gestão. O recém chegado quis logo conhecer o Sant?Ana, uma lenda da crônica gaúcha, e pouco conhecido fora daqui. O encontro começou com uma rusga: "O senhor não pode fumar aqui!". Sant?Ana retrucou: "Mas eu fumo na sala do Nelson!". "O senhor pode fumar na sala do Nelson, mas na minha sala o senhor não vai fumar!".

E então, veio o xeque-mate: "Meu caro, não me leve a mal, mas o senhor recém chegou e tem coisas que ainda não sabe: nesse edifício, todas as salas são do Nelson!".

Difícil não se render à velocidade mental de Paulo Sant?Ana, e injusto expor o seu legado ao esquecimento.

J.J. CAMARGO

17 DE FEVEREIRO DE 2024
CARPINEJAR

Inesperado cartaz no toalete

Eu estava prestes a começar uma palestra. Faltavam 15 minutos para subir ao palco. Meu camarim foi improvisado na própria Secretaria de Educação, no segundo andar do prédio. Pedi para ir ao toalete e perguntei onde era à comissão de professores que me recebeu festivamente.

Ao entrar no lavabo, ao trancar a fechadura me comprometendo com tudo o que havia lá dentro, reparei num cartaz em cima da privada: "se for fazer o número 2, desça ao banheiro de baixo".

Nunca tinha visto aquele tipo de advertência. Já havia lido os mais distintos lembretes nos melhores lavabos do ramo: "lave as mãos", "aperte a descarga antes de sair", "mantenha o ambiente limpo", "não jogue papel no vaso".

A explicação se mostrava inédita em minha vida. Não se tratava do caso ou de uma urgência, mas fiquei intrigado com a situação.

Passou um filme na minha cabeça: se fosse comigo, eu arriscaria fazer ali, sob pena de entupir a privada, ou enfrentaria o constrangimento de seguir para o térreo, com todo mundo sabendo minhas reais intenções no banheiro?

O que traz alívio para a nossa reputação é que ninguém tem ideia da nossa motivação ao ingressar no WC. Isso permite que as pessoas continuem se cumprimentando fervorosamente. O desconhecimento do que acontece no cubículo nos salva.

Ignorar a natureza das funções no recinto é um pacto social. Assim como não contar o tempo que se permanece em seu interior, se é rápido (número 1) ou demorado (número 2).

Eu fiquei pensando no dilema do vivente que entra desavisado em tal banheiro. Questiona onde é o próximo, diante do fracasso de seu projeto, suportando os olhares de censura, ou assume as consequências e reza para o encanamento colaborar?

Talvez o melhor fosse colocar o cartaz na porta, para assegurar uma escolha antecipada e consciente. Você ainda teria tempo de avistá-lo de longe, disfarçar, e somente recorreria ao banheiro quando se encontrasse já no piso inferior. Não mais seria vítima de alguma restrição.

Raciocinando com calma, o banheiro do segundo andar, para quem conhece ou frequenta o prédio, serve apenas para xixi. Ou seja, quem entra nele está predeterminado a atender a uma expectativa. Existe um consenso pacífico de seus usuários.

O trauma ocorre exclusivamente para as visitas. De acordo com essa perspectiva, resta-me concluir que a funcionária que me recomendou aquela porta jamais cogitou qualquer outro ato de minha parte, a não ser o básico. Considerou a minha condição de palestrante absolutamente inofensiva e amistosa.

O que eu não esperava era me deparar com a herança inconveniente de meu antecessor no vaso. Alguém havia burlado as regras e escapava impune. E eu, e eu não protegi a minha fama.

CARPINEJAR

17 DE FEVEREIRO DE 2024
FLÁVIO TAVARES

RESSACA DO CARNAVAL?

Parecem estar certos todos aqueles que afirmam que, no Brasil, tudo é imprevisível e nada surpreende, nem sequer o mais absurdo dos absurdos. Sim, pois é isso que a operação Tempus Veritatis, da Polícia Federal, vem revelando sobre as tentativas do então presidente Jair Bolsonaro de manter-se no poder, mesmo tendo perdido a eleição de 2022.

Não repetirei o que este jornal vem informando sobre o inquérito que, pela primeira vez na história do país, revela o que se esconde por trás dos biombos da política. Tudo está à mostra a partir da "delação premiada" do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do então presidente da República.

O ponto de partida veio de quem apenas cumpria o que Bolsonaro ordenava. Nada foi improvisado ao calor da campanha eleitoral quando tudo parece permitido para triunfar.

Já em julho de 2021 (15 meses antes da eleição), o então ministro da Defesa, general Walter Braga Neto, disse ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que "em 2022 não haveria eleições sem voto impresso". Surgia um dos cavalos de batalha com que o então presidente tachou de fraudulenta a eleição que não venceu.

A gravação da reunião ministerial de 5 de julho de 2022 encontrada no computador de Mauro Cid revela os planos e ações de Bolsonaro para impedir as eleições. Trata-se da primeira vez na história do Brasil em que o próprio chefe do governo busca impedir as eleições sem que, para tanto, exista um motivo ou um pretexto.

Em 1937, quando se instituiu o Estado Novo, havia um pretexto - o chamado Plano Cohen, só anos depois descoberto como falso, e que "revelava" uma chacina geral planejada pelos comunistas. Dois anos antes, em 1935, a intentona comunista fora derrotada e tudo o que se inventasse sobre o "perigo vermelho" era tido como verdadeiro.

Hoje em dia, porém, só os resquícios psicológicos da Guerra Fria levam a que se fale em "perigo comunista", como o fazia Bolsonaro.

Ou a continuidade de tudo o que agora aparece não terá sido antecipada ressaca do tristonho Carnaval em que queriam transformar o Brasil?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

17 DE FEVEREIRO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

A JUSTIÇA E A HORA DA VERDADE

A sobrevivência de uma democracia está em perigo quando existe a desconfiança prévia de parcela significativa da sociedade na Justiça. O Brasil atravessa esse momento tormentoso. As instituições do sistema judicial do país têm à frente um desafio histórico e devem estar à altura da ocasião para dissipar a névoa de descrença. 

A tarefa é demonstrar de forma categórica aos cidadãos que podem confiar na capacidade do Estado de fazer justiça com independência e subserviência apenas ao império da lei, observação de limites e autocorreção. Está em jogo a solidez de um dos pilares do contrato social e, portanto, da própria República.

A Operação Tempus Veritatis, deflagrada no último dia 8 de fevereiro pela Polícia Federal (PF), trouxe novas evidências que podem implicar o ex-presidente Jair Bolsonaro e membros de seu governo em uma trama para executar um golpe de Estado no país. Seria uma acusação gravíssima em qualquer tempo e contra qualquer figura pública. Mas o caso específico é investido de mais significados por envolver um líder político protagonista de uma polarização que talvez não tenha precedentes na história nacional.

A grande tarefa das instituições envolvidas, que poderão ser chamadas outra vez a se manifestar, como a própria PF, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Supremo Tribunal Federal (STF), é a de conduzir as suas atribuições de forma técnica, independente, isenta e de acordo com a lei. Até aqui, na situação pontual da Tempus Veritatis, seguem-se à risca os princípios formais. A PF fez as investigações e pediu para agir, a PGR assentiu e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, autorizou as medidas.

Para as futuras etapas do percurso legal aguarda-se igual rigor. A PF poderá decidir ou não por indiciamentos, baseada no conjunto de provas que reunir. O mesmo é esperado quando a PGR for instada a se posicionar acerca dos fatos apurados. Da mesma forma deve ser no momento posterior, ao chegar a vez de o STF apreciar o entendimento da Procuradoria, com a eventual abertura de processos criminais caso a denúncia seja aceita contra o cidadão tornado réu.

Ao longo de seu trajeto, o sistema processual penal brasileiro dispõe de mecanismos, fases e recursos para que eventuais equívocos possam ser corrigidos à luz de novos fatos trazidos à tona e pela revisão de teses relativas à interpretação das leis e da Constituição. Isso é salutar. Ao cabo, colabora para que se faça justiça - ou que chegue a "hora da verdade", tradução do latim do nome da operação da PF.

Algumas das premissas para o respeito ao devido processo legal são o amplo direito à defesa e a presunção de inocência. Outras condições são que os agentes do Estado encarregados das investigações, da acusação e do julgamento atuem de acordo com os ditames legais, de forma independente e apegados apenas aos fatos. Isso se torna ainda mais relevante pela constatação de que o atual PGR foi indicado pelo grande antagonista de Bolsonaro e alguns ministros do STF são percebidos por parcela da sociedade como parte da polarização. Essa percepção de contaminação política deve ser demonstrada incorreta pelos próprios apontados, com posicionamentos sóbrios e alicerçados somente na legislação e nos elementos probatórios produzidos nos autos.

O desafio, portanto, é ao fim chegar a uma decisão que, seja qual for, não deixe margem de contestações e alegações de perseguição, erro processual ou condescendência. Esse é o desfecho a ser perseguido. Será vital para a credibilidade da Justiça brasileira e, por conseguinte, para a longevidade da jovem democracia do país. Um dos três poderes da República, o Judiciário é peça essencial no equilíbrio de forças que compõem o sistema de freios e contrapesos da democracia. A descredibilização da Justiça cria o risco de uma instabilidade institucional capaz de abrir novas brechas para apetites autocráticos.


17 DE FEVEREIRO DE 2024
DIONE KUHN

CARTA DA EDITORA Ao lado dos leitores

Na noite da terça-feira, 16 de janeiro, Porto Alegre viveu uma das maiores tempestades dos últimos tempos, provocando prejuízos que são sentidos até hoje pela população, um mês depois. Desde os primeiros minutos da chuvarada que transformou o cenário da Capital, foi mais de uma centena de reportagens produzidas pela redação e publicadas em GZH e em Zero Hora, todas feitas pela perspectiva dos moradores atingidos.

Mostramos em tempo real a falta de luz e as vias bloqueadas, o trabalho de reconstrução da cidade, o drama de quem ficou dias sem luz e água e os protestos e a indignação dos consumidores que não se conformaram com a demora no restabelecimento dos serviços. Cobramos as providências das autoridades e ajudamos a apontar soluções para reduzir a gravidade dos danos em eventos futuros.

Jornalistas são sempre desafiados em situações como essa. Muitas vezes, sem saber a quem procurar para contar seu drama ou buscar informações, o cidadão recorre aos veículos de comunicação profissionais para obter respostas - ou simplesmente poder desabafar. Nessas horas, a agilidade, a objetividade e a precisão se impõem.

- Em casos extremos como esse, a importância do jornalismo profissional é ainda maior, porque não basta apenas mostrar a extensão dos estragos. É preciso se colocar no lugar do leitor para cobrar soluções dos órgãos responsáveis e discutir alternativas sobre o que é necessário mudar para que os problemas não tornem a ocorrer - diz Jaime Silva, chefe de reportagem da editoria de Notícias e um dos responsáveis pela coordenação da cobertura dos estragos provocados pela tempestade.

A foto que ilustra a capa desta edição mostra que, após 30 dias, moradores ainda convivem com os transtornos do temporal, com árvores bloqueando calçadas e provocando acúmulo de lixo. Em outra reportagem nesta mesma edição, entrevistamos autoridades e especialistas sobre o que é preciso ser feito para reforçar a prevenção e reduzir os danos provocados por esse tipo de evento climático. Os conteúdos estão nas páginas 16 e 17. E também podem ser acessados em GZH.

DIONE KUHN

17 DE FEVEREIRO DE 2024
MARCELO RECH

Coquetel da morte

Não são os desígnios divinos que produzem o massacre de mais de 33 mil mortos no trânsito a cada ano no Brasil. O levantamento divulgado esta semana que mostra o maior número de acidentes em Porto Alegre em cinco anos só confirma o coquetel tóxico que nos coloca num infame segundo lugar do ranking mundial de onde mais se morre no trânsito - 16 em cada 100 mil brasileiros por ano -, atrás apenas da Rússia do gelo e da neve traiçoeiros. No Brasil, o perverso somatório de causas começa pelo traço cultural da imprudência e do individualismo.

Depois de ter dirigido mais de 500 mil quilômetros pelo Brasil e cerca de 100 mil por Europa e Américas, algumas situações ainda me espantam por aqui. Por que raios muitos motoristas brasileiros ignoram a alavanca de pisca-pisca, aquele instrumento tão simples de usar quando se vai entrar em outra via, mudar de faixa ou parar no acostamento? Antecipar a manobra que se pretende fazer é regra primária de segurança no trânsito, mas só a prepotência de se imaginar dono da rua, ou a preguiça, pode explicar a incúria.

Outra: pedestres e ciclistas, além de motociclistas, são a parte mais frágil da cadeia de trânsito e, por isso, deveriam receber precedência, como ocorre no mundo civilizado. Mas, aqui, ai de quem não está encapsulado numa cabine. O pensamento geral parece ser de "eles que saiam da frente", mesmo que haja uma faixa de segurança bem à vista.

Já pilotei quase tudo que se move sobre terra e águas com exigência apenas de habilitação amadora. Na minha pré-história como repórter, testei motocicletas e escrevi muitas vezes sobre segurança em duas rodas. Por isso, sessentão ainda desfrutando são e salvo os prazeres da motocicleta, fico horrorizado com ao que assisto por aí. Sempre que topo com um motoqueiro enlouquecido ziguezagueando ou cometendo barbaridades, antevejo ali alguém com grande chance de morrer jovem.

A essas irresponsabilidades deve-se adicionar dois ingredientes trágicos: a manutenção capenga de veículos e a caótica engenharia de trânsito no Brasil. No primeiro caso, é preciso se acabar com o coitadismo que permite máquinas da morte circularem com freios, luzes e pneus carcomidos. É verdade que alguns donos de carros, motos, ônibus e caminhões teriam de mudar o ganha-pão, mas mães contariam com os filhos por mais tempo e haveria menos órfãos. É uma questão de prioridade para as autoridades.

No segundo caso, prefeituras e Estados devem aceitar que não podem inventar sinalizações e regras de trânsito, que não precisam de criatividade, mas de uniformidade. Aliás, se precisa também de sinalização clara, a começar pela pintura das faixas nas pistas. Mas talvez seja pedir demais a quem não consegue sequer tapar as crateras em ruas e estradas.

MARCELO RECH

17 DE FEVEREIRO DE 2024
INFORME ESPECIAL

Vera, 80 anos de vida

Perdi as contas de quantas vezes, ao longo da minha vida porto-alegrense, ouvi a mesma pergunta, nas mais variadas situações - no caixa do supermercado, na catraca do ônibus, em entrevistas e até na farmácia da esquina: foi (e é) sempre assim, desde os tempos da faculdade. Quando menos espero, vem a interrogação:

- És parente da Vera Bublitz? Ou, então, a mesma dúvida, de um jeito diferente:

- És bailarina? - Esta sabe dançar, hein?!

Quem lê a coluna já percebeu a minha queda pelas artes em todas as suas formas: amo teatro, música, canto, esculturas, pinturas, desenhos e? sim, dança, apesar de ser uma descoordenada incorrigível. Jamais acerto o ritmo, mas danço mesmo assim, sempre que posso, feliz e descompassada, pisando nos pés dos outros. Vera que me perdoe! Já digo logo: ela não tem nada a ver com isso.

Só fui conhecê-la em junho de 2019, quando levei meus pais, no meu aniversário, para assistir a um dos tradicionais espetáculos do Festival Internacional de Dança de Porto Alegre, promovido pelo famoso Ballet Vera Bublitz, no nosso Theatro São Pedro. Vimos a fundadora da companhia no Foyer, nos apresentamos e, claro, pedimos uma foto com ela.

Depois disso, não nos vimos mais, mas sigo acompanhando o trabalho dela e da família com admiração - ah, antes que me perguntem: não, eu também não vendo quadros nem tapetes finos, só para deixar claro, ainda que seja fã da Galeria Bublitz, outro espaço muito conhecido pelos apreciadores da arte na Capital.

Nunca escrevi sobre isso, justamente por ter o mesmo sobrenome - poderia soar, para alguns, como "propaganda em causa própria". Mas não tem nada disso, e a Vera merece.

Nesta segunda-feira, ela completa 80 anos de vida em plena atividade, cheia de planos e de sonhos, com mil atividades programadas para 2024. É um exemplo a ser seguido, dentro e fora dos palcos. Não é pouco o que esta mulher construiu.

Fundado em 1979 em Porto Alegre, o Ballet Vera Bublitz é um patrimônio gaúcho. Ao longo de 45 anos (temos a mesma idade!), a companhia recebeu nomes internacionais da dança e projetou talentos para o mundo. É uma fábrica de bailarinos, uma potência que eleva o nome do Rio Grande do Sul e que prova, na prática, o valor da cultura e da economia criativa.

Vera e sua equipe têm vocação para brilhar e para fazer brilhar. Quando me perguntam se sou parente dela, digo que sim, com muito orgulho. Vai que um dia ela me ensine a dançar?

Qualquer coisa que fira a disciplina deve ser punida.

Marcelo Kanitz Damasceno

Comandante da Aeronáutica, ao defender "investigação completa" sobre militares suspeitos de participar da tentativa de golpe no país.

Cortou o cabelo?

Papa Francisco

Pontífice brincou sobre a cabeleira do presidente da Argentina, Javier Milei, ao recebê-lo no Vaticano, mesmo depois de ter sido chamado de "imbecil" pelo então candidato.

Nossa prioridade absoluta é estancar o crime em Caxias.

Sandro Caron

Secretário da Segurança Pública, sobre o salto no número de assassinatos em Caxias do Sul, que teve 29 homicídios em 45 dias de 2024.

A fala do presidente Lula equiparando as ações de Israel ao grupo terrorista Hamas são equivocadas e perigosas.

Claudio Lottenberg

Presidente da Confederação Israelita do Brasil, ao comentar a mais recente declaração do presidente da República sobre o conflito no Oriente Médio.

É frustrante. Desagradável. Todo mundo aqui vai sofrer muito com o que aconteceu.

Ramon Menezes

Técnico demitido da Seleção Pré-Olímpica de futebol, após a derrota que tirou o time dos jogos de Paris.

A União Europeia considera o regime russo o único responsável por esta trágica morte.

Charles Michel

Presidente do Conselho Europeu, sobre a morte de Alexei Navalny, opositor russo e principal adversário de Vladimir Putin, na prisão.

Críticas e elogios são uma passagem. O que resta na Quarta-Feira de Cinzas é o que somos na vida, nossa atitude, nossa voz, nossas escolhas, nossa evolução.

Paolla Oliveira

Atriz, fazendo um balanço da repercussão de sua passagem pela Sapucaí, com a surpreendente fantasia de onça-pintada.

Tanto a imagem da página ao lado quanto a obra à esquerda são de um pintor francês que ficou conhecido pelo fascínio pelo balé e por seus protagonistas. Há quem diga que Edgar Degas tenha deixado mais de 1,5 mil criações retratando bailarinas. Entre elas, está Dançarina no Palco (1877), do acervo do Metropolitan Museum of Art, em Nova York. Ela foi desenhada sobre um papel de 17 por 21 centímetros, com tinta guache e grafite.

INFORME ESPECIAL

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024


14 DE FEVEREIRO DE 2024
CARPINEJAR

Marinheiro de primeira viagem

Uma joia nostálgica de Porto Alegre está prestes a ser recuperada. Existe toda uma movimentação do empresariado para resgatar um marco da boêmia da capital gaúcha: o Encouraçado Butikin, agora com o novo nome Encouraçado Hall, com capacidade para 300 pessoas e privilegiando a boa música, mais na linha de bar de audição. Com reabertura prevista para o segundo semestre, ocupará outra vez o casarão 936 da Avenida Independência.

A danceteria foi uma passarela de grandes nomes da nossa MPB: Elis Regina, Vinicius de Moraes, Toquinho, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso, Cauby Peixoto. O colunismo social vivia lá dentro, entre espelhos e paetês dos anos 1960 e 1970. Se você queria ser visto, tinha que bater cartão no Encouraçado, com batismo inspirado no clássico filme soviético de Serguei Eisenstein, O Encouraçado Potemkin (1925).

A logomarca da casa, uma pequena sereia com boina da Marinha Imperial Russa, criada pelo cartunista Ziraldo, era o selo mais cobiçado nos convites VIP pela elite da cidade. Minha experiência com o lugar não é das melhores. Não que tenha brigado, não que tenha feito arruaça, não que tenha exagerado no álcool e provocado um vexame. A história é outra.

Pela primeira vez na vida (e a única), fui expulso de uma balada por seguranças, que me pegaram no colo e me deixaram literalmente sentado na escadaria do lado de fora. Adolescente no fim da década de 1990, queria conhecer o ponto tradicional da noite porto-alegrense.

Reuni a minha turma do colégio e parti para a expedição por dentro de um cenário adulto, que não saía da boca do pessoal mais velho da família. Só que eu tinha dinheiro contado para entrar. Não me restava nenhum trocado para gastar com consumação. Levei, portanto, por contenção econômica, um cantil metálico com uísque no bolso do casaco.

Dançava, ia para o canto e bebericava discretamente a minha poção caseira. Retornava para a pista, sempre recorrendo ao meu pit stop para a calibragem dos pneus, escondido nos alicerces do corredor que dava para o banheiro.

Lembro até que, naquela sexta-feira, o saudoso Tatata Pimentel entrevistava clientes nos bastidores. Eu me sentia importante, e malandro. Tentaria me aproximar da menina da escola de que eu gostava platonicamente. Tudo estava à minha feição. Ela não se mostrava acompanhada e reagia com um sorriso cativante aos meus passos de dança desgovernados.

Percebi que chegava o momento de tomar coragem e me declarar. Segui para emborcar o resto do uísque no meu cantinho. Quando levantei a garrafinha, um segurança a apanhou no ar. Disse que era proibido trazer bebida para o local. Não consegui me explicar. Três homens já me rodearam e me tiraram à força dali.

Gritei e esperneei, perdendo definitivamente qualquer pingo de credibilidade diante da desejada colega, que me viu sendo barrado da festa com olhar incrédulo. Depois do escândalo, assisti ao filme de Serguei Eisenstein. Descobri que eu guardava parentesco com o roteiro. Marinheiros faziam motim e despejavam líderes czaristas de um navio da armada imperial.

Meu império juvenil também ruiu no Encouraçado, e voltei para a minha realidade de proletariado. Terei uma segunda chance com a reinauguração. Espero não me vingar pagando uma rodada para todos. Espero me comportar. Não sei. Vamos ver como eu vou reagir ao meu trauma.

CARPINEJAR

14 DE FEVEREIRO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

GESTO QUE SALVA

Uma das tantas consequências danosas da pandemia foi a diminuição do número de transplantes de órgãos. Era natural que, em meio à emergência da covid-19, os hospitais mobilizassem o máximo possível de suas equipes e estruturas para fazer frente à avassaladora crise sanitária. Felizmente o quadro começou a se normalizar, restabelecendo a mais pessoas a esperança de vida ou melhora de seu estado de saúde.

Reportagem publicada na segunda-feira em Zero Hora mostrou que, no ano passado, a quantidade de transplantes de órgãos no Rio Grande do Sul voltou a níveis anteriores à pandemia. Segundo a Secretaria Estadual de Saúde (SES), foram 715 procedimentos de coração, rim, pulmão e fígado, um crescimento de 20% ante 2022 e um número semelhante ao de 2019, antes da eclosão da pandemia.

Sabe-se que o episódio no ano passado envolvendo o apresentador Fausto Silva, beneficiado por um transplante cardíaco, ajudou sobremaneira a causa devido à ampla repercussão do caso. Mas ainda antes, tanto no Estado quanto no país, outras iniciativas tentaram despertar a consciência quanto à nobreza do gesto e à importância de as famílias conversarem sobre o assunto.

No final de 2021, por exemplo, oito entidades gaúchas de diferentes áreas, da medicina a atividades empresariais, lançaram a campanha Diga Sim à Doação de Órgãos. Constatava-se, à época, que cerca de 40% das famílias que perderam alguém não autorizavam a doação por desconhecer a vontade de quem partiu. Era a evidência de tratar-se de tema que deveria ser discutido com naturalidade, sem tabus. O mote da campanha era exatamente estimular que quem desejasse ajudar outra pessoa em caso de fatalidade comunicasse a vontade. Conforme a legislação brasileira, é da família a decisão de doar. Muitas vezes, é uma resolução que precisa ser tomada durante o choque de uma perda.

Há facilitadores, como o projeto Doar é Legal, do Judiciário do Rio Grande do Sul. No endereço doarelegal.tjrs.jus.br pode ser expedida uma espécie de certidão para reafirmar o propósito de ser doador. Mesmo sem validade jurídica, pode ser impresso, mostrado e postado em redes sociais, reforçando a intenção. No mesmo sentido, no portal da Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos (Adote), é possível se cadastrar como doador. O registro auxilia na identificação de possível compatibilidade e no convencimento dos familiares.

Um doador falecido pode ajudar até oito pacientes com coração, pulmão, fígado, rins, pâncreas, córneas, intestino, pele, ossos e válvulas cardíacas. São previstas ainda doações em vida de órgãos como rim, quando não se coloca a própria saúde em risco, ou medula óssea, quando há compatibilidade. Mas, no caso da morte encefálica do potencial doador, com um diagnóstico regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina e rigorosamente comprovado por exames, a decisão final passa pela família.

O governo gaúcho promete apresentar no próximo dia 26 o Plano Estadual de Transplantes do Rio Grande do Sul, com metas e previsão de capacitação e treinamento de equipes tanto para os procedimentos cirúrgicos como em relação ao acolhimento dos familiares do potencial doador. Aguarda-se que seja um programa capaz de diminuir a lista de espera por órgãos e córneas, uma angústia comum hoje a cerca de 2,6 mil pacientes no Estado.

OPINIÃO DA RBS

14 DE FEVEREIRO DE 2024
SEM ENERGIA NA UFRGS

Apagão provoca danos em pesquisas

A interrupção no fornecimento de energia no Campus do Vale da UFRGS, em Porto Alegre, por pouco mais de um dia, afetou pesquisas e levou vários professores e pesquisadores a ir às pressas durante o feriado ao local para tentar salvar, na escuridão, o que restou de animais, plantas e amostras.

A falta de energia desligou equipamentos, iluminações e refrigeradores na tarde de segunda-feira e foi restabelecida ontem.

Os investimentos compreendem cifras ainda em avaliação. A interrupção do fornecimento na linha de transmissão da CEEE Equatorial que atende o campus foi identificada por volta das 14h30min de segunda-feira, segundo a empresa. Conforme a CEEE, o motivo do problema foi a ruptura de dois cabos subterrâneos, ocorrida durante obra de escavação da empresa CPFL Energia, dentro do pátio de subestação da CPFL.

Em nota, a CPFL admitiu o erro: "Durante escavações para a obra de expansão da subestação Porto Alegre 6, houve a ruptura acidental de cabos, o que ocasionou a interrupção no fornecimento da linha de transmissão que atende a UFRGS. A empresa está empenhada em resolver a questão o mais breve possível".

O fornecimento foi restabelecido no fim da tarde de ontem, com um novo ponto de suprimento de energia. Em comunicado, a CEEE Equatorial disse que, "consciente da urgência da situação, não mediu esforços para o restabelecimento da energia, desde a última madrugada, trabalhando em conjunto com a universidade".

Em uma das pesquisas com perdas irreversíveis, morreram pelo menos cem frangos jovens devido ao calor. O Departamento de Zootecnia, onde os animais estavam, tem um gerador, mas não funcionou. Faltavam duas semanas para concluir a pesquisa sobre nutrição animal, que foi totalmente perdida. O prejuízo chega a R$ 150 mil.

- É um recurso que a gente consegue em colaboração. A gente vai precisar refazer o projeto agora do zero, sem esse recurso - conta Inês Andretta, professora da Faculdade de Agronomia.

Amostras

Há seis freezers no Laboratório de Ensino Zootécnico da faculdade com amostras e kits de análise que estavam descongelando aos poucos. Alunos e professores levaram as amostras para suas próprias casas na tentativa de salvá-las, mas muito foi perdido. Andretta estima perda de pelo menos R$ 250 mil apenas com kits de análise inutilizados.

A mestranda em Ciências Veterinárias Larise Lima, 38 anos, trabalha com zebrafish, espécie de peixe de pequeno porte muito sensível. A criação estudada por Larise vive em água destilada com reconstituição de sais, em temperatura controlada de 28ºC. Sua reprodução depende da exposição à luz por 14 horas ao dia, mas o cardume ficou mais de um dia na escuridão.

O ciclo reprodutivo dos peixes foi perdido, assim como um mês de trabalho da mestranda. Ela corre o risco de perder sua pesquisa de mestrado e ter que procurar parcerias com outras universidades. Os peixes também sofrem com a falta de oxigenação das bombas. Os menores conseguiram passar mais tempo sem a oxigenação. Nos tanques com peixes maiores, oito já haviam morrido, e os outros davam sinais de asfixia.

O prejuízo dos pesquisadores se estende para todas as faculdades do Campus do Vale e está na casa dos milhões de reais, diz o vice- diretor da Faculdade de Agronomia da UFRGS, Paulo Vitor Dutra. As perdas totais ainda estão sendo contabilizadas.

CAMILA PESSÔA

14 DE FEVEREIRO DE 2024
SUA SEGURANÇA

Quem são os generais que disseram não ao golpismo

Muito se comenta sobre os militares que conspiraram para dar um golpe de Estado e perpetuar Jair Bolsonaro no poder. Só na semana passada, 16 integrantes das Forças Armadas sofreram buscas por parte da Polícia Federal, por suspeita de tentarem abolir o Estado democrático de direito.

Teriam pregado contra a lisura das eleições, colocado sob desconfiança as urnas eletrônicas, insuflado multidões que pregavam a derrubada do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, estimulado atentados contra prédios públicos e bloqueios de rodovias.

Pouco se fala, no entanto, a respeito de generais que se recusaram a aderir ao golpismo. Aqueles que, mesmo não sendo simpatizantes do candidato petista, decidiram acatar o resultado do pleito e travaram dentro dos quartéis uma batalha silenciosa contra colegas que pregavam virada de mesa e cogitavam implantar estado de sítio no Brasil.

Para o leitor compreender, esse conflito entre legalistas e os que pregavam rebelião autoritária por parte de Bolsonaro, contra o resultado das eleições, aconteceu em todas as Forças Armadas, mas sobretudo no Alto Comando do Exército (ACE). Esse é o órgão que controla a maioria das tropas federais no Brasil. Além do comandante, inclui 15 generais quatro estrelas (topo da carreira), como o chefe do Estado-Maior do Exército, os comandantes militares de diferentes regiões brasileiras, os chefes de departamentos e do Comando de Operações Terrestres (Coter).

Investigações da Polícia Federal apontam que o então chefe do Coter, general Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira, era um dos mais inflamados defensores da continuidade do governo Bolsonaro a qualquer custo. Em mensagens interceptadas pela PF, Theophilo teria cogitado empregar o Comando de Operações Especiais (Copesp, integrado pelos chamados "kids pretos" ou tropas especiais) para realizar operações de contrainteligência que impedissem a posse de Lula.

Dentre as medidas cogitadas, estava a prisão de autoridades como o próprio presidente eleito e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, visto como maior empecilho para os planos dos derrotados nas urnas. Só que para isso queria ordem explícita do próprio Bolsonaro, algo que até agora não surgiu nas evidências apresentadas pela PF.

Parte das ações de contrainteligência sugeridas por Theophilo, segundo a PF, foram realizadas pelo major reformado do Exército Ailton Gonçalves Moraes Barros, gaúcho radicado no Rio. Em mensagens trocadas com o general da reserva Walter Braga Netto (então chefe da Casa Civil e candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro em 2022), Barros sugere "entregar aos leões" a cabeça do então comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes. Gomes é chamado de "cagão" por Braga Netto por se recusar a aderir ao plano de impedir a posse de Lula.

HUMBERTO TREZZI

Torre de Babel revisitada

A Torre de Babel não deu certo. Os homens, reunidos num objetivo de alcançar o céu por uma edificação, foram castigados por Deus pela soberba - no sentido de orgulho, arrogância, audácia e insolência. Por isso, perdemos a língua única e nunca mais nos entendemos.

Isso é do tempo em que Deus pegava pesado conosco. Mas vale a lição, o desmedido não Lhe agrada. E nada de atalhos, o céu é para depois da morte e para quem teve vida virtuosa.

De qualquer forma, estar perto do céu segue como sinal positivo. Espigões fascinam. Morar no alto é prestígio. Estar acima dos outros marca poder.

Faz pouco, a Justiça Federal suspendeu, até julgar o mérito, que seja construído um edifício de mais de 40 andares na Duque de Caxias. Com sua altura, faria sombra à Catedral e ao Palácio Piratini. Esteticamente seria como um pé de milho num jardim de flores, destoando do entorno.

Mas minha questão é o simbolismo que revela a hierarquia dos poderes. Antigamente, a edificação mais alta de uma cidade era a igreja. Depois foram os prédios públicos que exibiram imponência. Agora é a vez da iniciativa privada, no caso as construtoras, dizer quem manda no pedaço e quem vai ficar à sombra.

Dias atrás, o Cais Mauá - agora emasculado de seus guindastes - ficou nas mãos de uma parceria público-privada. O governador Leite disse que se sentiu seguro com a proposta vencedora deste leilão de um só concorrente. Mas não sabemos se é a mesma segurança que teve quanto à Equatorial, que assumiu a CEEE-D.

Em 2010, no governo Yeda Crusius, passamos por algo semelhante com o cais, que não deu em nada. Agora uma nova aposta, com um pessoal que ninguém sabe quem é e o que já fez. Ilustrações do futuro projeto preveem torres de prédios na parte norte do lote.

No ano passado, aquele lugar inundou duas vezes. Que sentido tem construir onde a natureza anda pedindo a devolução do seu espaço? Esses eventos meteorologicamente anormais tendem a se repetir, talvez com mais força e frequência.

Nós não somos a Holanda, que vitalmente necessitava vencer as águas. Porto Alegre tem espaço, menos no Centro, que sofre com engarrafamentos também porque o acesso é apenas por um lado, o Guaíba limita 180 graus de acesso.

Espero estar errado, quero o melhor para a cidade, mas a construção dessas torres me soa um arrogante desafio às águas e ao bom senso. Torres de Babel de que Porto Alegre não precisa, nem merece.

MÁRIO CORSO

14 DE FEVEREIRO DE 2024
INFORME ESPECIAL

Uma tradição centenária em Encruzilhada do Sul

Há mais de uma centena de anos, Encruzilhada do Sul, no Vale do Rio Pardo, se mantém como o último bastião, no Rio Grande do Sul, de uma tradição que não morre: o Bumba meu Boi.

O município define-se como o único a preservar o costume no Estado - se você é noveleiro(a), viu uma amostra da festa na novela Renascer, da Globo. Por aqui, a festividade se repete desde 1920 na cidade gaúcha e foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial de Encruzilhada em 2023.

Neste ano, a farra está marcada para o próximo sábado, a partir das 20h. Não tem nada mais popular e democrático: qualquer pessoa pode participar. O cortejo vai percorrer as principais ruas e terá o seu ápice na Praça Doutor Ozy Teixeira, no Centro, onde adultos e crianças esperam para "brincar" com o boi e dar "tchau" ao Carnaval.

O Bumba Meu Boi é uma festa do folclore popular do brasileiro, que gira em torno da lenda sobre a morte e ressurreição do animal. Nestes folguedos, são realizados cortejos e até competições entre agremiações. É bonito de ver.

Talvez você não conheça Ivan Pacheco (no detalhe), porque ele não está nos holofotes. Ele e sua equipe ficam atrás das câmeras. Editor de imagem de GZH e de Zero Hora, Ivan é o líder do nosso timaço de fotojornalistas. E é um baita fotógrafo.

Antes de assumir o cargo, há um ano, ele trabalhou para algumas das principais publicações do Brasil, morou na Europa e correu o mundo fotografando. Quando viu a série "Lugar para visitar no RS", fez questão de me procurar (com fotos belíssimas, é claro) para indicar um local especial: a Praia da Capilha (foto), no Extremo Sul.

- É um oásis de tranquilidade. Vale muito passar um dia lá, desconectado de tudo - recomenda Ivan, que esteve no local com a companheira, Mônica Garcia, natural de Pelotas.

Foi dela a ideia de ir até o vilarejo de 1,4 mil habitantes no 4º distrito do Taim, a 80 quilômetros do centro de Rio Grande, entre a Lagoa Mirim e a BR-471. Ali fica a linda praia de água doce, que tem areia fina e clara e muita história para contar.

Nas ruas de terra do povoado, ainda é possível ver pescadores reformando redes. Há algumas casas, além de bares, mercadinhos e de um estacionamento para motorhome.

- Gostei muito do sossego e do banho, que é maravilhoso - ressalta o fotojornalista.

É bom levar cadeiras, guarda-sol e tudo mais, já que não se trata de um grande balneário e, portanto, não tem a mesma infraestrutura de praias mais conhecidas. No caso do Ivan, o casal levou petiscos e bebidas para passar o dia inteiro. Se você tem filhos, ele avisa que a lagoa tem água rasa por um longo trajeto, sem ondas ou repuxo.

- Vale muito ir com a família toda - reforça Ivan.

JULIANA BUBLITZ

sábado, 10 de fevereiro de 2024


10 DE FEVEREIRO DE 2024
MARTHA MEDEIROS

Sem samba não dá

Caixa de fósforo vira pandeiro, as palmadinhas marcam o ritmo e dá vontade de se levantar. Eu, que nunca fui dessas cadências, de repente me ponho a mexer os quadris, desajeitada, feito uma gringa com vontade de chegar lá.

Da infância vem a memória de Benito de Paula, cantando triste e bonito, "ensaiei meu samba o ano inteiro, comprei surdo e tamborim, gastei tudo em fantasia, era só o que eu queria, e ela jurou desfilar pra mim". Eram os retalhos de cetim de algum Carnaval que não terminou bem.

Da adolescência, uma lembrança clássica. São quatro da tarde e ainda não almoçamos. Atracamos de barco em uma pequena enseada catarinense e, de biquíni e calção de banho, entramos cantando Trem das Onze, de Adoniran Barbosa, em um restaurante de pescador. Somos 10 e o bloco é bem recebido, com a condição de não parar de cantar. Vieram os peixes, a cerveja e ficamos lá até a hora do jantar.

"Faz caringundum, faz caringundum" - e eu ainda sou aquela foliã.

Como é que é, my friend, Charles? Oba, oba, lá vem ela, estou de olho nela. O que é que quero mais, se eu sei que a vida é breve e linda? Alegrando os meus dias com seu samba funk, ele ainda era apenas Jorge Ben. Benjor, só quando fiquei maior.

E o Rio de Janeiro continuava sendo, o Rio de Janeiro fevereiro e março, alô, alô, Realengo. Para contrabalançar o entusiasmo de Gil, eu abria alas para um Chico Buarque sussurrante: "eu faço samba e amor até mais tarde, e tenho muito sono de manhã", mas acho que samba, mesmo, só havia no título da canção, ou também pode ser samba aquilo que não se dança?

O mestre da elegância: "eu sou assim, quem quiser gostar de mim, sou assim". Na voz de outro, poderia soar besta, nunca na de Paulinho da Viola. Enquanto isso, uma turma alegre batucava em algum sítio baiano, "besta é tu, besta é tu" e eu achava a maior graça. Por que não viver, se não há outro mundo?

"Ela é meu treino de futebol, ela é meu domingão de sol, ela é meu esquema". Ela quem? Virei uma adulta que ora sonhava em ser musa inspiradora, ora se compadecia com a dor de Luiz Melodia: "mais um Carnaval que passou, mais uma vez minha escola não ganhou". E aí?

"E aí, a gente vai passear, e aí, a gente vai namorar, e depois...". É Seu Jorge me seduzindo, me fazendo trair as guitarras. Não fosse os Beatles, teria sido eu uma cabrocha?

Ainda sou do rock e o samba é um infiltrado na minha playlist. O Cabide, de Mart´nalia, pergunta se tenho atitude e se vou encarar, e a resposta é o Amor em Jacumã, de Lucas Santtana, que me faz tentar mexer os quadris, outra vez, e chegar lá. Mas cheguei apenas até aqui, nesta tentativa acanhada de jogar confete no Brasil e de mostrar que não sou uma filha totalmente perdida: também acho, Caetano, que sem samba não dá. E salve Beth Carvalho.

MARTHA MEDEIROS

10 DE FEVEREIRO DE 2024
CLAUDIA TAJES

Maria Claudete

Alguém que se chama Maria Claudete usou meu e-mail para se cadastrar na 99, o aplicativo de transporte. Maria Claudete paga todas as corridas em dinheiro, logo, não está me trazendo prejuízo. O transtorno, se posso chamar assim, é só receber as mensagens do aplicativo me informando de todos os passos dela.

Maria Claudete foi na rua das casas, número zero. Maria Claudete foi na loja tal. Maria Claudete fez uma parada antes de chegar ao seu destino.

No começo achei que Maria Claudete era eu, depois lembrei que meu nome é Maria Claudia. Minhas amigas me chamam de Claudete, daí a confusão que fiz entre eu e mim mesma. A outra diferença é que não uso o 99 - e agora é que não vou usar mesmo. Tentei tirar o meu e-mail da conta da Maria Claudete, mas para isso é preciso baixar o aplicativo. Só que o meu e-mail está associado a uma conta que já existe. Se tento me cadastrar, a 99 manda a mensagem: este e-mail já está em uso.

Estamos ligadas para sempre, Maria Claudete e eu.

Nos últimos tempos, ando pensando que ela é uma irmã perdida e que resolveu usar desse expediente para se reaproximar. Sei lá, vai que descobriu que o meu pai a teve fora do casamento ou, melhor ainda, a minha mãe. Quem sabe a minha mãe, muito jovem, viveu uma aventura proibida, engravidou, foi obrigada a se desfazer da filha e agora estamos aí, Maria Claudete e eu, dividindo o mesmo e-mail, já que não conseguimos crescer juntas.

Mas às vezes também penso que Maria Claudete pode ser só falcatrua, e que nem se chama Maria Claudete. Talvez nem seja Maria, o nome dela é Rosângela ou Márcia. Porque não faz sentido. Sabendo-se que basta entrar no Google e criar um e-mail, por que ela usa o meu?

Maria Claudete foi ao parque.

Maria Claudete foi às compras.

Maria Claudete foi dançar.

E se Maria Claudete for uma líder de facção, se além do meu e-mail, tem meus dados e está envolvida em compras de armas y otras cositas que me arrepiam só de aventar? Ou se for uma patriota que pegou meu e-mail para me zoar? Pior que eu sei onde ela mora, porque Maria Claudete vai e volta e acaba sempre no mesmo endereço. Será prudente bater lá?

Maria Claudete foi ao mercado.

Maria Claudete foi à praça.

Maria Claudete foi rezar.

Enquanto não resolvo a situação, se é que um dia vou resolver, já que precisaria ter o meu e-mail para falar com a 99, eu fantasio. É Carnaval e mal não faz. Maria Claudete me rendeu uma crônica, quem sabe não pensamos, ela e eu, em um livro? Já nos vejo na contracapa, Maria Claudete e Maria Claudia, separadas no nascimento e unidas pelo gmail.

Só te peço uma coisa, Maria Claudete: juízo. Olha lá o que vai aprontar pela cidade. Não tenho nada a ver com a tua vida e não me importaria com teus passeios, não fosse obrigada a saber de cada um deles. Por isso é que te imploro para cuidar da nossa reputação. Nós temos um e-mail a zelar.

CLAUDIA TAJES

10 DE FEVEREIRO DE 2024
CARPINEJAR

Meu par de asas

Quem nunca sofreu ao perceber, em alguma saída amorosa, que o desodorante venceu? No meu primeiro encontro com Beatriz, escolhi uma roupa inadequada. Mesmo com a brisa, com o frescor do entardecer, exagerei na precaução.

Apareci com casaco de lã, um casaquinho verde de vó, que destoou do vestido floreado, de meia-estação, com os ombros à mostra, da minha companhia: um jardim exalando pólen, só faltava a escolta das abelhas.

Quando fui me livrar do calor do tricô, eu já estava com duas pizzas debaixo dos braços. Só faltava a escolta das moscas. Senti a asa tarde demais. Não tinha como voltar para casa, não tinha como remediar no toalete.

Falhei com o figurino em nosso primeiro jantar romântico. Logo numa ocasião decisiva, em que certamente iríamos nos abraçar, nos aproximar antes pelo corpo do que pelas palavras.

Sabendo disso, comecei a suar ainda mais. Não poderia tirar o casaco, que aquelas rodelas ficariam visíveis a olho nu. Parecia que havia tomado algum medicamento sudorífero. Talvez fosse o nervosismo. Talvez fosse o novo desodorante que experimentava e não testara, com sua ilusória promessa de 72 horas de resistência à transpiração.

Durante a conversa, eu lembrava um títere de cordas quebradas. Não levantava os braços, encurtados pelo medo, ajustados na cadeira, encolhidos e presos à cintura. Para um descendente de italiano, que fala pelas mãos, fui vergonhosamente censurado, o equivalente a ser amordaçado.

Não me diferenciava de um androide, com movimentos mecânicos e contidos. Um Robocop de tricô. Vivia o pânico de empestar o ar. De não passar despercebido pelo faro apurado do sommelier.

Meu constrangimento foi aumentando porque ela inventou de mudar de lugar. Estava de frente e veio caprichosamente para o assento ao meu lado. Se eu pudesse, partiria diretamente para a sobremesa, pediria a conta, dispensaria o vinho e a delicadeza, a gentileza e a mesura: apenas sairia correndo dali para o banho. Aboliria aquele dia da minha vida, recomeçaria do zero.

Não dizia nada com nada. Ria de apreensão, precariamente escutando Beatriz de tanto que me via vítima da aparência. Tentava pensar o pior para melhorar a realidade: mais grave do que asa seria estar de mau hálito. Beatriz, então, beijaria a asa na boca. Pelo menos, minha boca permanecia perfumosa de Halls preto.

Ela estranhou que não a cortejava, não a seduzia, não fantasiava esperanças.

Até que me perguntou à queima-roupa: - Tudo bem entre nós?

Como saída para a minha falta de iniciativa, restou-me explicar que queria ir com calma, conhecê-la devagar. Ela suspirou: - Você é um anjo.

Beatriz me comoveu com a sua ingenuidade. Desconhecia que as minhas asas eram outras, a verdade era outra. Acreditou que eu representava um homem sério, bem-intencionado. Hoje somos casados. Quem diria que minhas asas me levariam a voar tão longe no relacionamento?

CARPINEJAR

10 DE FEVEREIRO DE 2024
FLÁVIO TAVARES

OS VÁRIOS CARNAVAIS

Costuma-se dizer que, no Brasil, o ano só começa após o Carnaval. Para muitos talvez seja certo, para outros é simples ideia que pouco ou nada significa. É incontestável, porém, que o Carnaval é a grande festa popular, imortalizada na marchinha que diz "a gente trabalha o ano inteiro/ para fazer a fantasia/ de rei, de pirata ou jardineira/ pra tudo acabar na quarta-feira".

Sim, pois as humildes pessoas do povo são as que mais "brincam" o Carnaval, economizando em tudo para virarem carnavalescos. Na quarta-feira de cinzas, nas igrejas, passa-se cinza na testa para mostrar que a folia acabou.

Pessoalmente, dou pouca atenção à festa, vendo nela quase uma imposição de ser alegre e alegrar. Mas há um desfile carnavalesco que se transformou na oitava maravilha do mundo, a rivalizar com as outras sete já conhecidas - o desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro.

Existe por lá até um sambódromo que, nos meses sem Carnaval, transforma-se em curso de alfabetização. Em Porto Alegre e demais cidades do RS, não há sambódromos, mas o Carnaval se festeja também.

Lembro-me de 2014, quando a Imperadores do Samba homenageou Luis Fernando Verissimo dedicando-lhe o enredo do desfile. Cada ala da escola representava personagens do escritor, como o inigualável Analista de Bagé.

Revivia-se ali nossa literatura, numa homenagem musical e dançante a um dos seus escritores. Há variados carnavais, mas todos convergem em alegria, até mesmo aqueles impostos só pelo calendário.

Soa carnavalesca a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, determinando que a Procuradoria-Geral da República investigue a ONG Transparência Internacional por apropriar-se de recursos públicos no Brasil. A decisão ocorreu seis dias após a Transparência Internacional criticar a decisão de Toffoli suspendendo as provas e multas bilionárias aplicadas às empresas Odebrecht e J&F nos acordos de leniência da Operação Lava-Jato.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

10 DE FEVEREIRO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

CONSCIENTIZAÇÃO CONTRA A DENGUE

O país vive um período de explosão de casos de dengue e todas as previsões indicam que o quadro tende a se agravar nos próximos meses. O início da vacinação pode ser a esperança de maior controle no futuro, mas, por enquanto, com a quantidade de doses disponíveis muito aquém da necessidade, é preciso reforçar a importância de a população se engajar nos esforços para conter o avanço da doença.

A colaboração esperada da população é especialmente cuidar para não deixar água se acumular em recipientes em suas residências. É onde a fêmea do mosquito Aedes aegypti, transmissor da enfermidade, põe seus ovos e onde as larvas se desenvolvem. Conforme o Ministério da Saúde, cerca de 75% dos focos do inseto estão dentro das casas. Mesmo assim, a ajuda de agentes preparados para o enfrentamento à dengue é essencial.

Em entrevista ao Atualidade, da Rádio Gaúcha, na sexta-feira, o secretário de Saúde de Porto Alegre, Fernando Ritter, lamentou a grande resistência de moradores da Capital em receber os agentes comunitários de saúde e de combate a endemias. São profissionais, lembrou o gestor, treinados para identificar os criadouros em pontos nos quais muitas vezes os donos das casas não percebem, mesmo quando têm a boa vontade de procurar. A grande maioria dos criadouros do Aedes aegypti é encontrada em pequenos recipientes - como garrafas, pneus, vasos de plantas e até tampinhas.

Essa desconfiança, é possível supor, deve se repetir em outras cidades gaúchas e mesmo no restante do país. É natural que cidadãos tenham receio de abrir as portas de seus lares a pessoas que não conhecem por medo de serem vítimas de crimes. No caso de Porto Alegre, os agentes estão identificados com o colete azul característico e crachá. É possível ainda ligar para o número 156, da prefeitura, para checar a identificação do funcionário.

Espera-se, da mesma forma, que as demais cidades se esforcem para explicar a importância do trabalho dos agentes e informem como a população pode ter a tranquilidade de que se trata de agentes públicos. A tarefa de combate à dengue, portanto, depende também de um esforço para levar informação, conscientização e esclarecimento às comunidades. Outra recomendação a ser reforçada é a importância de procurar serviços locais de saúde assim que surgirem sintomas compatíveis, como febre alta e dores de cabeça, atrás dos olhos e nas articulações.

O Ministério da Saúde iniciou na quinta-feira a distribuição das primeiras doses da vacina contra a dengue, mas o Rio Grande do Sul não está entre os Estados contemplados por não preencher os critérios definidos pela pasta para decidir as prioridades. Por enquanto, o público-alvo é o de crianças entre 10 e 14 anos, escolhido também por métricas técnicas. O laboratório japonês Takeda, fabricante do imunizante Qdenga, conseguirá entregar neste ano ao governo federal somente 6,5 milhões de doses, muito abaixo da necessidade.

Uma notícia promissora, para o futuro próximo, é a vacina de dose única do Instituto Butantan, prestes a ter os ensaios clínicos finalizados para ser submetida à aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e depois disponibilizada para a população pelo SUS. O fármaco do Butantan, no entanto, deve começar a ser aplicado somente em 2025. A proteção contra a doença foi incluída no ano passado no Programa Nacional de Imunizações (PNI).

Na sexta-feira, o painel do Ministério da Saúde indicava 395 mil casos prováveis de dengue no país até a quinta semana epidemiológica, quatro vezes mais do que igual período do ano passado. O calor dos últimos meses, associado ao grande volume de precipitações em algumas regiões, facilita a proliferação do mosquito. Assim, neste momento, a principal estratégia para impedir uma escalada ainda maior da doença é a prevenção à multiplicação do Aedes aegypti. A tarefa de combate à doença depende também de um esforço para levar informação e esclarecimento às comunidades

OPINIÃO DA RBS