
Ponto de vista: Lya Luft
Cotas: o justo e o injusto
"A idéia das cotas reforça conceitos nefastos:
o de que negros são menos capazes e precisam de um empurrão e o de que a escola pública é péssima e não tem salvação"
O medo do diferente causa conflitos por toda parte, em circunstâncias as mais variadas. Alguns são embates espantosos, outros são mal-entendidos sutis, mas em tudo existe sofrimento, maldade explícita ou silenciosa perfídia, mágoa, frustração e injustiça.
Ilustração Atômica Studio
Muita dor nasceu disso. Casamentos foram proibidos, convívios prejudicados, vidas podadas. Hoje, essa diferença nem entra em cogitação quando se formam pares amorosos ou círculos de amigos.
Mas, como o mundo anda em círculos ou elipses, neste momento, neste nosso país, muito se fala em uma questão que estimula tristemente a diferença racial e social: as cotas de ingresso em universidades para estudantes negros e/ou saídos de escolas públicas.
O tema libera muita verborragia populista e burra, produz frustração e hostilidade. Instiga o preconceito racial e social.
Todas as "bondades" dirigidas aos integrantes de alguma minoria, seja de gênero, raça ou condição social, realçam o fato de que eles estão em desvantagem, precisam desse destaque especial porque, devido a algum fator que pode ser de raça, gênero, escolaridade ou outros, não estão no desejado patamar de autonomia e valorização. Que pena.
Nas universidades inicia-se a batalha pelas cotas. Alunos que se saíram bem no vestibular – só quem já teve filhos e netos nessa situação conhece o sacrifício, a disciplina, o estudo e os gastos implicados nisso – são rejeitados em troca de quem se saiu menos bem mas é de origem africana ou vem de escola pública.
E os outros? Os pobres brancos, os remediados de origem portuguesa, italiana, polonesa, alemã, ou o que for, cujos pais lutaram duramente para lhes dar casa, saúde, educação?
A idéia das cotas reforça dois conceitos nefastos: o de que negros são menos capazes, e por isso precisam desse empurrão, e o de que a escola pública é péssima e não tem salvação. É uma idéia esquisita, mal pensada e mal executada.
Teremos agora famílias brancas e pobres para as quais perderá o sentido lutar para que seus filhos tenham boa escolaridade e consigam entrar numa universidade, porque o lugar deles será concedido a outro. Mais uma vez, relega-se o estudo a qualquer coisa de menor importância.
Lembro-me da fase, há talvez vinte anos ou mais, em que filhos de agricultores que quisessem entrar nas faculdades de agronomia (e veterinária?) ali chegavam através de cotas, pela chamada "lei do boi". Constatou-se, porém, que verdadeiros filhos de agricultores eram em número reduzido.
Os beneficiados eram em geral filhos de pais ricos, donos de algum sítio próximo, que com esse recurso acabaram ocupando o lugar de alunos que mereciam, pelo esforço, aplicação, estudo e nota, aquela oportunidade.
Muita injustiça assim se cometeu, até que os pais, entrando na Justiça, conseguiram por liminares que seus filhos recebessem o lugar que lhes era devido por direito. Finalmente a lei do boi foi para o brejo.
Nem todos os envolvidos nessa nova lei discriminatória e injusta são responsáveis por esse desmando. Os alunos beneficiados têm todo o direito de reivindicar uma possibilidade que se lhes oferece.
Mas o triste é serem massa de manobra para um populismo interesseiro, vítimas de desinformação e de uma visão estreita, que os deixa em má posição.
Não entram na universidade por mérito pessoal e pelo apoio da família, mas pelo que o governo, melancolicamente, considera deficiência: a raça ou a escola de onde vieram – esta, aliás, oferecida pelo próprio governo.
Lamento essa trapalhada que prejudica a todos: os que são oficialmente considerados menos capacitados, e por isso recebem o pirulito do favorecimento, e os que ficam chupando o dedo da frustração, não importando os anos de estudo, a batalha dos pais e seu mérito pessoal. Meus pêsames, mais uma vez, à educação brasileira.
Lya Luft é escritora
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