
O que não serve mais
Para alguns nostálgicos, a casa da praia é a vida paralela dos objetos, especialmente em balneários menores, naquele imóvel conquistado com muito esforço e economia. Mesmo com a popularização do consumo, mesmo com a facilidade tecnológica, há pessoas que ainda fazem questão de conservar a simplicidade artesanal dos velhos tempos, numa postura vintage.
Tudo o que sobra, ou tem menos valor onde você mora, é levado para o litoral, numa arqueologia íntima. Você cai um patamar da sua faixa de poder aquisitivo de propósito. Desatualiza o seu Imposto de Renda. Esparrama a sua herança.
O sofá de segunda mão, manchado ou gasto, está lá. Os beliches estão lá. O liquidificador que mais espreme do que gira está lá. A televisão pequena está lá.
A louça da cozinha preserva o resto dos seus conjuntos: pratos que ficaram órfãos, copos de requeijão, talheres de cabos soltos. No armário, constam relíquias de pano: camisetas com propaganda política, maiôs e sungas desbotados, chinelo deformado com a tira arrebentada, bonés de empresas que já fecharam.
A pacata biblioteca lembra um sebo: revistas velhas de moda, fofoca ou turismo; guias de telefone; folhetins Sabrina, Julia e Bianca; palavras cruzadas iniciadas e nunca terminadas. É possível localizar um CD player ou até um videocassete na estante.
As gavetas guardam velas, fósforos e baralho de cartas. No armarinho do banheiro, destacam-se pomadas extintas, termômetro de mercúrio embrulhado em algodão e bronzeadores empedrados.
É como assistir, num passe de mágica, à sua rotina 20 anos antes. Aquele endereço é um túnel do tempo. É sua versão atrasada em duas décadas. Foi o jeito para mobiliar o espaço, remanejando bugigangas e eletrodomésticos que não combinavam com a sua nova decoração.
Em vez de jogar fora, joga para dentro do seu bunker praiano. Você realiza doações para si próprio. Os donativos são direcionados para uma estranha autocaridade.
Não deixa de ser um momento de fascinantes reencontros com o seu eu mais despojado. Há um susto saudoso. Você recorda o que um dia foi essencial depois de muito esquecer. É como esbarrar na rua com um namorado ou namorada da adolescência, demorando para reconhecer a paixão antiga.
Revê o ventilador barulhento, com a grade torta. Revê os lençóis do casamento. Revê a luminária do escritório desmontado. Regressa à pré-história de seus pertences, tornando-se retrô por necessidade.
Passa a usar aquilo que julgava ultrapassado: aerossol e incenso Boa Noite para matar mosquitos, espanador de pó, rodo de chuveiro. Volta, inclusive, a regar o jardim com mangueira, e a torneira mantém os elásticos coloridos das bexiguinhas.
Retoma a manufatura de outrora, o suor doméstico anterior aos êxitos profissionais. Varre sem robozinho ou aspirador de pó. Lava a louça sem máquina e enruga os dedos de frio na pia. Estende as roupas no varal sem secadora.
E jamais reclama do trabalho fabril, dá um desconto à existência operária pelo luxo de estar perto do mar. Não troca por nada o privilégio de sestear na rede com o marulhar das ondas.
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