Escritora, poeta e patrona da 71ª Feira do Livro de Porto Alegre - "Hoje, há uma infantilização da sociedade. Tudo é ?não pode?"
Uma das maiores escritoras contemporâneas do Brasil, Martha Medeiros é a patrona da 71ª Feira do Livro de Porto Alegre. Em entrevista a ZH, a porto-alegrense de 64 anos relembra a relação com o evento e analisa o cenário atual da literatura no país.
Isabella Sander - Como é a experiência de ser a patrona da Feira do Livro? Demorou para vir o convite?
Sempre imaginei que fosse acontecer um dia. Todo mundo diz que demorou, mas foi no momento exato, porque é um ano muito especial para mim: completo 40 anos desde o lançamento do meu primeiro livro. Houve época em que a Feira elegia 10 candidatos e depois escolhia um. Cheguei a participar dessa seleção, mas não gostei, parecia competição entre colegas. Achei que não combinava com o espírito da feira. E, naquela época, estava muito envolvida com filhos e não teria como me dedicar da forma que um patrono precisa. Agora é outro momento. Tenho uma carreira mais sólida e me sinto mais preparada e merecedora. Então, veio na hora certa.
És a nona mulher a ocupar o papel de patrona da Feira do Livro. Ainda é difícil uma mulher chegar a esse posto?
Acho que isso está mudando. Não adianta chorar pelo atraso, porque claramente as coisas estão se transformando. Tenho a impressão de que, daqui para a frente, virão muitas outras mulheres, até porque há muitas escritoras excelentes, talentosas, representativas da literatura. O mercado editorial deve muito às mulheres. Há muita produção feminina hoje no país inteiro. É o momento de a mulher colocar sua voz depois de tanto de literatura feita por homens falando sobre mulheres. Isso mudou. Claro que ainda é preciso equalizar, mas não vou ficar lamentando o passado. Isso tem a ver com a velha estrutura patriarcal, mas está mudando.
Falaste que, quando foste convidada antes, estavas envolvida com a maternidade. E agora estás também nessa função de cuidadora.
É outro tipo de maternidade. Meus pais não são meus filhos, claro, mas o papel é esse de cuidado. Isso me surpreendeu, porque sempre imaginei que, depois dos 60, com as filhas criadas, seria a hora de botar a mochila nas costas e viajar. Eu adoro liberdade, adoro viajar. De repente vem esse susto, que nem deveria ser um susto, porque é natural que os pais envelheçam. Mas a gente entra na vida de roldão e acha que está tudo certo. Aí precisa puxar o freio de mão e voltar para dentro de casa, cuidar dos outros. Tem um lado bom nisso, de união familiar, mas é complicado, porque também estamos envelhecendo. Também estou envelhecendo e não tenho mais tantos anos de energia total. Então, a gente vai negociando com a própria vida. Este, para mim, foi um ano de dedicação total à família e ao trabalho. Isso também sou eu.
Qual foi a tua relação com a Feira do Livro ao longo da vida?
A Feira era o meu parque de diversões. Estudava no Bom Conselho, na Ramiro Barcelos, e lembro de sair a pé pela Independência até o Centro para ir à Feira. Economizava a mesada para comprar um livro escolhido com muito cuidado. Sempre foi um momento mágico, porque já gostava de ler e escrever. Era um evento que aguardava o ano inteiro. Depois, quando comecei a publicar poesia, virei autora da Feira. Lembro da minha primeira sessão de autógrafos, em que caiu um temporal e quase ninguém apareceu. De repente, surge o Ruy Carlos Ostermann, que pediu meu autógrafo. Fiquei emocionada, porque ele era uma figura admirada, e eu, uma jovem desconhecida. Foi um gesto generoso e, por isso, hoje quero fazer o caminho inverso: estimular quem está começando.
Quem te ajudou no início?
A Tânia Carvalho foi a primeira pessoa que me chamou para um programa de entrevistas, em 1985. Eu gaguejei do começo ao fim, mas nunca esqueci. Ela é uma grande jornalista, e me dar aquele espaço foi importante. O Luciano Alabarse também foi fundamental: ele deu um livro meu de presente para o Caio Fernando Abreu, que depois me procurou e escreveu a orelha de um livro meu. Era uma época sem internet, tudo acontecia no boca a boca. Um lia, indicava para outro, e assim eu fui crescendo devagar, com o olhar generoso de quem já era mais experiente.
Temos visto censura a obras literárias. O que pensas disso?
De fato, há uma onda de censura, especialmente de livros infantis, sob o pretexto de proteger. É absurdo. A história de O Avesso da Pele, do Jeferson Tenório, por exemplo, foi um absurdo. Escrevi uma crônica sobre isso. É reflexo da ascensão da extrema-direita. O mundo está mudando rápido, muita gente está ganhando voz: mulheres, negros, pessoas LGBTQIA+. Antes, esses grupos ficavam em guetos. Agora estamos tentando incluir todo mundo, e isso é necessário, não é benevolência. É reparação. Mas há quem não suporte perder privilégios e reaja tentando manter o próprio posto. Daí vêm as tentativas de censura, de regressão. É uma reação careta a um momento mais democrático.
Vivemos uma época careta?
Sim, muito. E é curioso, porque já tivemos momentos mais libertários. O que se via na TV, como TV Pirata, Armação Ilimitada, tinha mais liberdade. Claro que havia piadas erradas, o que felizmente está mudando, mas nada era perseguido. Hoje, há infantilização da sociedade. Tudo é "não pode". Criança não pode ver isso, não pode ouvir aquilo. Cresci ouvindo o que meus pais ouviam: Beatles, Janis Joplin, e lendo os livros que havia em casa. Agora parece que se trata todo mundo como criança.
Mas há também patrulhas vindas da esquerda, não?
Existe patrulha, sim. Às vezes é chata, mas necessária. Claro que me policio, às vezes digo algo numa conversa e penso: "Não poderia dizer numa entrevista". Mas é assim que o mundo muda. É incômodo, mas precisamos nos habituar a não usar certos termos.
Alguns pesquisadores têm discutido a ideia de que estamos priorizando o conteúdo em detrimento da forma na literatura. O que pensas disso?
Acho pretensioso alguém determinar o que é ou não é literatura.
O que é literatura para ti?
Escreveu e publicou, é literatura. Pode ser boa ou ruim. Literatura é intenção por escrito que pode ser bem ou malsucedida. O que define se deu certo ou não é a conexão com o leitor. Não existe literatura sem leitor. Se ninguém ler Grande Sertão: Veredas, não existiu. Literatura é o que conecta, o que provoca alguma reação, seja de encantamento ou de rejeição. Essa história de que Itamar Vieira Junior ou Elena Ferrante não seriam literatura é absurda. É apenas tentativa de polemizar.
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