sábado, 1 de novembro de 2025



01 de Novembro de 2025
MARCELO RECH

As histórias de todos

Sou um leitor atento de obituários. Não, não tenho curiosidade mórbida, que provavelmente é até abaixo da média normal das pessoas. Minha relação com os obituários não tem a ver com a morte, mas - e é bom recordar isso nestes dias de Finados - com o reconhecimento à vida daqueles que se foram e, sobretudo, pela crença de que pessoas comuns sempre terão trajetórias e histórias únicas que merecem ser compartilhadas.

Um obituário é uma notícia. Por vezes, sobretudo quando informa o passamento de alguém de quem não se ouvia falar há tempos, pode até ser a mais marcante de uma edição. Mas essa não é uma notícia qualquer. Quando os obituários de ZH foram criados, há umas três décadas, advogou-se que a tarefa de redigi-los seria considerada um rito de passagem. O obituarista deve demonstrar uma combinação de obsessão com precisão absoluta e uma sensibilidade adicional para lidar com familiares e amigos enlutados. Quem escreve obituários com estas duas virtudes está, portanto, preparado para missões jornalísticas de larga envergadura.

Um obituário bem escrito segue padrões mínimos. Deve trazer a idade, local de nascimento, falar de eventuais mudanças de cidade, vida profissional, parentes próximos, incluir descrições sobre sua personalidade e, se a família concordar, a causa da morte, como parte da informação sobre aquela pessoa. Em personalidades públicas, passagens negativas não devem ser omitidas, mas o obituário não é uma peça crítica: é, antes de mais nada, uma homenagem ao retratado e um legado para a família, os amigos e a sociedade. No Rio Grande do Sul, previsivelmente, muitas vezes ficamos sabendo pelo obituário da fama de um churrasqueiro familiar e sua paixão futebolística.

Nenhum outro jornal elevou o obituário à condição de jornalismo de ponta como The New York Times. Há um bom número de livros que os compila e disseca seu estilo. Um deles é A Última Palavra, que reúne uma coletânea da seção, uma das mais lidas e prestigiadas do diário. "A história de pessoas comuns que levaram vidas incomuns", resume sua apresentação. No principal jornal dos EUA, o obituário ascendeu à categoria de arte jornalística exatamente porque extrai em textos memoráveis a riqueza da vida de pessoas como um vendedor de cachorro-quente que fez ponto por décadas numa esquina de Nova York.

Cada obituário é, no fundo, uma pequena biografia à espera de ampliação. Quando leio que alguém dedicou a vida à família, algo aparentemente tão banal, imagino a extraordinária vivência dessa pessoa e as histórias por serem contadas de alegrias, tristezas, frustrações e pequenas e grandes conquistas. São elas que fazem a vida de todos nós, afinal. 

MARCELO RECH

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