
Um novelo de terror e suspense
A vida de uma mulher poderia ter sido poupada.
Se não houvesse sempre a flexibilidade do Judiciário em abrandar sentenças de homicidas condenados. Se não houvesse a progressão das penas por bom comportamento, até porque todo psicopata de mente perturbada é capaz de dissimular retidão, fingir arrependimento e persuadir qualquer psicotécnico de sua conversão. Se não houvesse a prática institucional das saidinhas. Se não houvesse a desculpa eterna da superlotação dos presídios e da ausência de vagas.
O homem que deixou uma mala no guarda-volumes da rodoviária de Porto Alegre com um cadáver feminino deveria estar preso. Não era para estar circulando normalmente entre nós. Não era para ver a luz do sol tão cedo.
Foi condenado em 2018 por matar a mãe Vilma Jardim, 76 anos - por ironia, no Dia das Mães - e concretar o corpo dela dentro de um armário num apartamento no bairro Mont?Serrat, em 2015.
Como ocorreu a soltura antecipada de alguém que assassinou uma idosa com 13 golpes de faca, a figura materna que o colocou no mundo, durante data comemorativa, sem precedentes, e friamente a escondeu no armário, com cimento?
Uma reincidência não se fazia temerária? Não se avaliou essa hipótese?
O publicitário Ricardo Jardim, 66 anos, recebeu o veredito de 28 anos de prisão por esse crime hediondo, mas progrediu para o regime semiaberto no ano passado e aproveitou o relaxamento da vigilância para abraçar as ruas e não aparecer mais para o pernoite prisional.
Nem portava tornozeleira eletrônica, numa brincadeira macabra com a impunidade e com a segurança de nossas existências.
Só cumpriu nove anos da sua sentença, contando desde a prisão em 2015. Saiu cerca de seis meses antes dos 40% do período total - na época de sua condenação, vigorava ainda o início da remissão por conduta carcerária após 40%. Já com a mudança recente na legislação penal, de julho de 2025, atos violentos de natureza semelhante não teriam a mesma sorte: dependeriam de 80% da pena cumprida para a progressão de regime.
Ele circulava livre e imperceptível pelos supermercados e farmácias, tomava café pelos bairros, mantinha aparência inofensiva, interagia em chats de relacionamento, com perfil ativo procurando parceiras, como se fosse um simpático e educado aposentado de boné e barba grisalha em busca do amor eterno.
Não duvido que eu tenha passado por ele e o cumprimentado. Tudo é possível.
A questão paradoxal é que ele facilitou sua identificação. Tanto que largou o tronco humano de sua namorada na rodoviária, um dos pontos mais frequentados da Capital, com amplo monitoramento por câmeras.
Para aumentar a complexidade do tabuleiro de xadrez, a cabeça da vítima não foi localizada. O suspeito dividiu os restos mortais entre a bagagem aberta na segunda-feira e outras partes encontradas no bairro Santo Antônio, na Zona Leste, em 13 de agosto. Intriga também a perícia nos cortes, no esquartejamento de modo asséptico, que sugere experiência na área da saúde, na truculência meticulosamente estudada para não permitir as impressões digitais.
Porto Alegre se depara com um novelo de terror e suspense que parece não ter fim. O que merece fim é dar liberdade para quem é historicamente perigoso. Não é que nossas leis são suaves, jamais são executadas com rigor, ao pé da letra.
Os homicídios são negócios lucrativos. Recebe-se de castigo o equivalente a uma pena perpétua, cumpre-se apenas um sexto dela e se ganha o perdão muito antes da própria velhice. O morto tem sempre mais tempo debaixo da terra do que o assassino na cela. _