domingo, 17 de fevereiro de 2008


DANUZA LEÃO

Tentando ser feliz

Basta que a filha da faxineira esteja com problemas -o marido a deixou com os três filhos, que a felicidade acaba

DIZEM QUE a felicidade se baseia num tripé: amor, saúde, dinheiro -não necessariamente pela ordem. Mas as coisas não são assim tão simples. Nada é simples.

Digamos que na sua vida pessoal tudo esteja correndo às mil maravilhas. Mas basta que a filha da sua faxineira esteja com problemas -o marido sumiu e a deixou com três filhos, sem dinheiro, ela não pode nem arranjar um emprego porque não tem com quem deixar as crianças-, que sua felicidade acaba. Se não acaba, fica, pelo menos, bem abalada.

A cada vez que ela te atormenta com o aspirador você vê, no seu rosto, os sinais da preocupação. Sabe a razão pela qual ela deixou de sorrir, o olhar ficou triste.

E não dá para ficar indiferente a uma pessoa que você vê todos os dias, nem para pedir para ela passar o vestido com que você vai sair à noite, sobretudo não dá para reclamar se a carne estiver muito salgada.

O que é uma carne salgada, diante de tantos problemas? E na sexta-feira, na hora de pagar pela semana de trabalho, quando você pensa em quanto gastou no cabeleireiro ou numa sandália de que nem precisava, dá para ser feliz? Não, não dá.

E tem seu amigo que está mal de grana, sua tia que está velhinha e de quem você gosta tanto, mas que vê pouco porque o tempo é curto para ler os jornais, fazer Pilates, ir ao cinema, saber dos cartões corporativos do governo, se vai ganhar Hillary ou Obama. E o remorso?

Dá para ser feliz sentindo não só um, mas vários remorsos? Não conheço ninguém que cumpra com todas as coisas que deveria, seja por fraqueza, preguiça, egoísmo, ou apenas porque prefira não pensar.

Não pensar nas tragédias alheias para se proteger e assim poder ser feliz não deixa de ser uma teoria. Mas a vida dos outros -e sobretudo a dos mais próximos- sempre nos diz respeito, e para sermos totalmente felizes seria preciso que todos que nos rodeiam também o fossem.

E se isso acontecesse, não se poderia nunca mais ler os jornais nem ligar a TV nos noticiários. O pior mesmo é quando alguém de quem você gosta muito suspeita estar doente.

Se a intimidade for grande, você vai acompanhar todas as etapas, desde o primeiro médico, que pede vários exames, ao preço de cada um deles -que vão ser pagos com dificuldade e que demoram a ficar prontos.

Depois dos resultados, é preciso ir a pelo menos mais dois outros médicos, para ouvir o diagnóstico: vai ser mesmo preciso operar.

São muitos os sentimentos pelos quais passa quem participa do problema; da preocupação à pena, da solidariedade à raiva. Até raiva, raiva de quem está os fazendo sofrer.

E nos dias que antecedem a cirurgia você não sabe se fala só disso -pois naturalmente é só no que o outro está pensando-, ou se fala bobagens, para distrair.

E evita, de todas as maneiras, dizer "é preciso ter fé", pois seria admitir que a coisa pode ser feia, o que o outro não pode saber que você acha, e nisso não quer pensar.

Chega o dia da cirurgia, e acorda atrapalhada; não consegue fazer nada direito, esperando por um telefonema, por vários telefonemas, para saber como as coisas se passaram.

E quando ouve que foi tudo bem e pensa que já passou, vê que a agonia ainda não acabou: falta o resultado dos exames pós-cirurgia, que só ficarão prontos em sete dias.

Aí você descobre que não está sofrendo só por ela, mas por você mesma e por sua própria vulnerabilidade, coisa na qual nunca havia pensado. E ainda há quem pretenda ser feliz.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 16 de fevereiro de 2008


Diogo Mainardi

Esperei Godot. E ele apareceu

"Eu sei que o caso da Telecom Italia é uma pauleira. Mas alguns fatos precisam ser esclarecidos. O mais urgente é o seguinte: o nome do presidente foi citado nos autos de um tribunal italiano"

Eu sei que o caso da Telecom Italia é uma pauleira. Eu sei que há uma série de interesses empresariais em jogo. Mas alguns fatos precisam ser esclarecidos.

O primeiro e mais urgente é o seguinte: o nome do presidente da República foi citado nos autos de um tribunal italiano. Ninguém pode fazer de conta que isso é uma bobagem.

Acompanhei o inquérito contra a Telecom Italia por dois anos. Esperando Lula. E, como Godot, ele nunca aparecia. Na semana passada, recebi uma cópia de um despacho emitido no finzinho de 2007 pelo Ministério Público italiano.

Na página 33, pode-se ler um trecho do interrogatório de 5 de maio de 2007 de Giuliano Tavaroli, um dos diretores da empresa. Ele declarou:

"Sendo um homem do presidente Lula, (Mauro) Marcelo, depois de assumir o cargo no serviço secreto, nos garantiu seu apoio institucional, uma vez que (Daniel) Dantas era um inimigo do presidente Lula".

Como é que é? Apoio institucional? Lula pode ser inimigo de quem ele quiser. Daniel Dantas que se dane. Mas a suspeita de que isso teria motivado uma oferta de apoio institucional a uma empresa em detrimento de outra precisa ser contrastada. Por mais temerário que seja o acusador.

Aos fatos. Em meados de 2004, o delegado Mauro Marcelo foi nomeado para chefiar a Abin, depois de ter trabalhado como guarda-costas de Lula na campanha eleitoral de 2002. A escolha de seu nome para ocupar o cargo na Abin foi feita pessoalmente pelo presidente.

De acordo com os autos do tribunal italiano, o relacionamento de Mauro Marcelo com a Telecom Italia era de perfeita intimidade. Interrogado sobre o assunto, Fabio Ghioni, especialista em computadores contratado pela empresa, declarou que o chefe da Abin era "fornecedor de Jannone no Brasil, e por este era remunerado". Ghioni referia-se a Angelo Jannone, diretor da Telecom Italia.

O apoio institucional do lulismo à Telecom Italia é mencionado novamente em outra passagem do despacho. Está na página 13. No interrogatório de 19 de abril de 2007, Giuliano Tavaroli foi indagado sobre os 25 milhões de euros pagos pela empresa a Naji Nahas, sem que houvesse, de acordo com o procurador, "a menor evidência documental de um serviço efetivamente prestado".

Tavaroli respondeu: "Naji Nahas era conhecido por suas ligações com os aparatos institucionais, como o ministro da Fazenda brasileiro". Isso mesmo: Antonio Palocci.

Tavaroli relatou também que a mala cheia de dólares a respeito da qual falei duas semanas atrás serviu, em parte, para subornar parlamentares.

O interesse dos procuradores italianos pelo Brasil é meramente incidental. O foco de seu inquérito é a arapongagem da Telecom Italia na própria Itália; o Brasil só entra de passagem. Se a gente quiser indagar mais sobre o assunto, o jeito é trabalhar. Quem já está fazendo isso é o Ministério Público brasileiro.

O documento em que Godot finalmente aparece está em poder da nossa magistratura. Ele também pode ser consultado por qualquer um na internet: http://www.divshare.com/download/3785247-d05.

Ótimo sábado. Feliz fim de semana.

Ponto de vista: Lya Luft

Falta de educação e velocidade

"Os motoristas americanos e europeus impressionam pela educação. Não por serem bonzinhos ou melhores do que nós, mas porque temem a lei"

Os anjos da morte estão cansados de nos recolher, a nós que nos matamos ou somos assassinados no tráfego das estradas, cidades, esquinas deste país.

Os anjos da morte estão exaustos de pegar restos de vidas botadas fora. Os anjos da morte andam fartos de corpos mutilados e almas atônitas. Os anjos da morte suspiram por todo esse desperdício.

Ilustração Atômica Studio

Não sei se as propagandas que tentam aos poucos aliviar essa tragédia ajudam tanto a preservar vidas quanto as intermináveis, ricas e coloridas propagandas de cerveja ajudam a beber mais e mais e mais, colaborando para uma parte dessa carnificina. Mas sei que estou no limite.

Não apenas porque abro jornais, TV e computador e vejo a mortandade em andamento, mas porque tenho observado as coisas em questão. Recentemente, dirigindo numa auto-estrada, percebi um motorista tentando empurrar para o canteiro central um carro que seguia à minha frente na faixa esquerda, na velocidade adequada ao trajeto.

Chegava provocadoramente perto, pertinho, pertíssimo, quase batia no outro, que se desviava um pouco lutando para manter-se firme no seu trajeto sem despencar.

Logo adiante, pára tudo, um acidente grave. O motorista do carro assediado, um senhor de cabelos brancos, desce, vai até o carro do imbecil agora parado à sua frente, fala, gesticula, numa justa ira.

Depois volta ao carro, em que a família o espera. Recomeça o tráfego, perco os dois de vista. Mas fica em minha memória um motorista boçal tentando fazer um inocente perder o controle do carro. Era inconseqüente por natureza, era um agressivo perigoso, ou estaria simplesmente alcoolizado às 8 da manhã?

Outro dia observei na televisão um motorista, apanhado a quase 200 por hora, sendo entrevistado ainda dentro do carro. Fiquei impressionada com seu sorriso idiota, o arzinho arrogante, o jeito desafiador com que encarou a câmera num silêncio ofendido, quando perguntado sobre as razões da sua insanidade.

Todo o seu ar era de quem estava coberto de razão: a lei e a segurança dos outros e a dele próprio nada valiam diante da sua onipotência.

Atenção: os jovens são – em geral, mas não sempre – mais arrojados, mais imprudentes, têm menos experiência na direção. Portanto, são mais inclinados a acidentes, bobos ou fatais, em que a gente mata e morre.

Mas há um número impressionante de adultos – mais homens do que mulheres, diga-se de passagem, porque talvez sejam biologicamente mais agressivos – cometendo loucuras ao dirigir, avançando o sinal, quase empurrando o veículo da frente com seu pára-choque, não cedendo passagem, ultrapassando em locais absurdos sem a menor segurança, bebendo antes de dirigir, enfim, usando o carro como um punhal hostil ou um falo frustrado.

Cada um se porta como quer – ou como consegue. Isso vem do caráter inato, combinado com a educação recebida em casa. Quando esse comportamento ultrapassa o convívio cotidiano e pode mutilar pais de família, filhos e filhas amados, amigos preciosos, ou seja lá quem for, então é preciso instaurar leis férreas e punições comparáveis.

Que não permitam escapadelas nem facilitem cometer a infração com branda cobrança. Que não admitam desculpas e subterfúgios, não premiem o erro, não pequem por uma criminosa omissão.

Precisamos em quase tudo de autoridade e respeito, para que haja uma reforma generalizada, passando da desordem e do caos a algum tipo de segurança e bem-estar. Os motoristas americanos e europeus impressionam pela educação.

Não por serem bonzinhos ou melhores do que nós, mas porque temem a lei, a punição, a cassação da carteira, a prisão, por coisas que aqui entre nós são consideradas apenas "normais", meros detalhes, "todo mundo faz assim".

Autoridade justa, mas muito rigorosa, é o que talvez nos deixe mais lúcidos e mais bem-educados: em casa, na escola, na rua, na estrada, no bar, no clube, dentro do nosso carro.

E os fatigados anjos da morte poderão, se não entrar em férias, ao menos relaxar um pouco.

Lya Luft é escritora

15/02/2008 - 23:21 | Edição nº 509

A internet em pessoa

Três mil internautas acostumados a se ver só pela web se encontram em carne e osso. A festa digital teve desde aulas de como fazer foguetes até shows de DJs

MARCELO ZORZANELLI

FESTA NA BIENAL



1. Rapaz se distrai usando a conexão de alta velocidade para conversar pela internet 2. Grupo de jogadores comemora uma vitória durante um campeonato de videogame 3.O ministro da Cultura, Gilberto Gil (ao lado de Marcelo Branco, diretor do evento), cumprimenta o pingüim, mascote do sistema operacional Linux

4. Um campuseiro manda um recado para casa 5. Um gabinete de PC em forma de caveira: nem dá para imaginar que há um computador ali dentro 6. Esfera giratória ligada a um visor tridimensional. Os sensores da esfera enviam sinais que permitem mover-se no ambiente virtual

Sob um calor que a arquitetura calcária de Oscar Niemeyer amplifica como nenhuma outra, aconteceu na semana passada a primeira Campus Party brasileira.

O evento é importado da Espanha, onde se consolidou como a meca dos amantes da tecnologia. No Brasil, ocupou os três andares da Bienal, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

Ali estiveram 3 mil “campuseiros” – aficionados de tecnologia que pagaram R$ 100 para passar sete dias acessando a internet a 5 gigabytes por segundo (625 vezes melhor que a conexão mais veloz disponível no país) e, se assim desejassem, dormindo em barracas. Mas não só isso.

Gente entre 12 e 50 anos discutia tendências tecnológicas, apresentava trabalhos acadêmicos e desenvolvia novas habilidades em palestras e oficinas. Cada um levou o próprio computador.

As áreas de interesse representadas na Campus Party foram muitas: astronomia, games, música, modificação de computadores, construção de robôs, redação de blogs, desenvolvimento de foguetes... A lista parece não acabar. Nem assim, o cardápio de atividades agradou a todos.

“Fiquei frustrado porque as palestras foram feitas para iniciantes”, disse o campuseiro Lázaro Mariano. “O que está sendo mais útil é a troca de arquivos de músicas, filmes e games”, disse Felipe Navas, que acampava perto de Lázaro.

“É como se estivéssemos dentro de uma rede torrent de compartilhamento de arquivos.” Este foi, a princípio, o maior desafio da Campus Party: fazer um evento que fosse mais que uma lan house gigante.

A solução começa a aparecer quando se acompanha Marcelo Branco, o diretor-geral da Campus Party. Rouco de tanto dar entrevistas, ele tentava raciocinar enquanto passeava ao longo dos balcões onde centenas de adolescentes batucavam os teclados de seus computadores multicoloridos.

Branco é um dos mais atuantes defensores do uso do sistema operacional Linux em detrimento de sistemas pagos, como o Windows, da Microsoft. Sua presença na Bienal guardava certa semelhança com a filosofia tecnológica que ele prega, a do código aberto.

Qualquer blogueiro que se aproximava conseguia trocar algumas palavras, e geralmente deixava alguma sugestão. Marcelo ouvia com atenção, processava a informação e tentava responder. “Estamos administrando o caos”, disse.

Marcada por um discurso de abertura em que o ministro da Cultura, Gilberto Gil, afirmou que é preciso “banda-alargar” o Brasil, a Campus Party pareceu obstinada em cumprir seu objetivo de não ser apenas um ponto de acesso à internet rápida.

“Conversei com as pessoas na versão espanhola e reparei que a maioria só estava lá por causa da conexão”, diz Alexandre Youssef, coordenador dos projetos de música da Campus Party Brasil.

“Aqui, vejo as pessoas participando das palestras e trocando conteúdo.” A forma cooperativa de tratar o trabalho foi uma das pautas mais exploradas na Bienal.

Até os DJs que apresentaram suas músicas projetavam a imagem da tela dos computadores para que todos soubessem o que eles estavam fazendo. Juliano Spyer, historiador da Universidade de São Paulo, deu uma palestra para a tribo dos blogueiros sobre o novo cenário da internet.

“A Wikipédia é um dos melhores exemplos de colaboração: cada pessoa participa quando quer, compartilhando informação para formar verbetes que se interligam para criar uma enciclopédia.”

Segundo ele, na nova internet, os indivíduos não têm uma tarefa definida e os processos estão em eterno aprimoramento. Spyer, que tem dez anos de experiência em projetos de comunidades on-line, disse que na Campus Party “ninguém é audiência, todos são participantes.”

CARA A CARA



Grupo de jovens que se conheceram pela internet, mas só se viram pessoalmente na Campus Party: “Alguns meses antes, a gente começou a trocar mensagens”

A tendência mais radical no campo das discussões sobre colaboração interativa é o BarCamp. Segundo André Avorio, auto-intitulado evangelista de BarCamp na Campus Party, este é um modelo de “desconferência”.

É o que ele chama de discussão horizontal, porque não há palestrantes em cátedras – qualquer um pode propor um assunto e opinar sobre o que é dito.

E se virar bagunça? “É o que todos me perguntam”, disse André. “O que organiza tudo é uma página colaborativa no estilo wiki (em que as pessoas podem modificar o que outras escreveram). Ali fica a agenda das discussões e um registro dos progressos.”

Um grupo de campuseiros levou mais longe a tendência de fomentar colaborações. Imprimiu camisetas com perguntas como “Os jogos eletrônicos são nocivos à saúde?”.

Na terça-feira, as camisetas diziam: “Para que serve um nerd?”. O administrador do site que criou a campanha, Kleberson Bezerra, disse que os nerds simplesmente “fazem o mundo girar”.

Preocupado em atualizar seu site, chamado Jornal de Debates, Kleberson mal tirou os olhos da tela para dizer: “E somos normais. Os nerds estudam muito, mas também vão para as baladas e ficam com as mulheres”.

Uma boa notícia para os neonerds, portanto, é que a participação feminina na Campus Party brasileira superou as taxas européias. Na Espanha, elas eram 2%. No Brasil, 22%Rola namoro? “Sim, e como”, disse Camila Frasquetti, uma campuseira que travou contato no Orkut, antes do evento, com pessoas que iriam à Campus Party.

O menu de lasanha de microondas e refrigerante quente não ajuda a criar o clima de romantismo (vinho está fora de questão, já que bebidas alcoólicas não são permitidas na Campus Party).

Mas a afinidade está garantida: “Aqui é o único lugar onde nossas piadas são entendidas”, diz Camila.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008



CRIME PERFEITO

Continuo a minha luta napoleônica para desvendar os paradoxos do sistema universitário público brasileiro.

Trata-se do crime perfeito. Os mais ricos ficam com a maioria das vagas dos cursos mais valorizados.

Eles têm o álibi ideal: o mérito. Mas por que eles são os melhores e não outros? A resposta é uma auto-absolvição automática das elites majoritariamente brancas: nenhum indivíduo isolado pode ser penalizado por acontecimentos históricos.

A culpa coletiva e estrutural do passado é rechaçada em nome dos direitos individuais do presente. Os benefícios são mantidos. No paradoxo do crime perfeito a sociedade, incluindo as vítimas, seria beneficiada pela meritocracia, de valor universal e indiscutível.

Nesse crime perfeito, os corpos desaparecem por proliferação. É o efeito denunciado por Jean Baudrillard.

São tantos os alijados que eles não têm rosto nem representam um problema particular a exemplo de um indivíduo específico que tenha perdido a sua vaga numa universidade em função de uma política de cotas.

Quando os corpos permanecem vivos e se multiplicam, não há cadáver. Por extensão, não há crime. A esquerda é cúmplice desse crime perfeito.

Por princípio, ela não pode defender que os ricos sejam obrigados a pagar pelos seus estudos, pois teme com isso favorecer a privatização das universidades públicas. Limita-se a pregar a universalização do ensino público, algo que a elite dominante aceita e empurra para o futuro.

É o cobertor curto: se os ricos tiverem de pagar, saem da universidade pública, que corre o risco de se tornar uma favela. Se ficam, não pagam.

O paradoxo da esquerda é esperar que a elite altere uma situação que não a incomoda e que lhe traria prejuízos: arcar com a conta inteira.

A perfeição desse crime é tamanha que a esquerda acaba por ajudar a sustentar cursos de universidade pública para ricos, enquanto a universalização não vem, com base num critério, o mérito, pelo qual o privilégio se transforma em direito adquirido. A conivência da esquerda vem de uma chantagem.

Sigamos novamente esta pista de um sistema em que os ricos paguem e os pobres não. O contra-argumento imediato é de que se instalaria uma universidade para ricos e outra para pobres, como acontece em boa parte do ensino básico.

Por que não se poderá manter um ensino público para pobres do mesmo nível do ensino privado ou público para ricos? Porque sem o interesse dos ricos, cujo poder de pressão e sedução é maior, os governos não teriam como bancar as instituições dos pobres.

Sem charme nem recursos, elas seriam desvalorizadas no mercado de trabalho. Golpe fatal. Se os impostos não eliminam pedágios, não seria o caso de impor taxas gradativas nas universidades públicas?

Os ricos adoram dizer que não existe almoço gratuito. Salvo nas universidades públicas, onde estudam sem pagar nos cursos mais procurados.

No crime perfeito, não há culpado, a vítima teria vantagens, o cadáver sai andando, o acusador sente-se na obrigação estratégica de não reclamar certas penalidades e a reprodução infinita do ato é considerada uma maneira de evitar um mal maior. Tudo se justifica.

Qualquer tentativa das vítimas de virar o jogo resulta num crime imperfeito, passível de condenação imediata. No crime perfeito, o combate à desigualdade concreta é um atentado à igualdade formal. O refém é incitado a contrair a síndrome de Estocolmo.

juremir@correiodopovo.com.br

Ótima sexta-feira, excelente fim de semana e um sensacional Planeta Atlântida para todo mundo.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008



14 de fevereiro de 2008
N° 15510 - Nilson Souza


Primeira leitura

Alguns amigos, e até mesmo um incauto editor, já me sugeriram que passasse para o formato livro a seleção destas crônicas semanais. Pode ser até que venha a mudar de idéia, mas até hoje não me senti tentado a fazê-lo.

E não é por falta de vaidade - seria muita pretensão de minha parte achar que estou livre deste sentimento tão humano e tão comum entre os escribas de todos os calibres. O que me impede de cometer tal descalabro é uma conjugação de autocrítica com timidez e medo de trapacear.

Gosto de escrever, mas nem sempre gosto do que escrevo. E certamente me sentiria um fraudador se colocasse à venda, como novidade, uma edição de textos já publicados neste espaço.

Além disso, teria que assinar autógrafos. Já fiz isso uma vez, numa obra conjunta, e morri de vergonha. Não fui acometido em momento algum pela síndrome dos escritores famosos, que referem seguidamente o sintomático branco cerebral na hora de lembrar o nome de amigos e conhecidos.

No meu caso, o pânico era tão grande, que eu colocava o primeiro nome que me vinha à cabeça. Porém, como devia estar tremendo, a dedicatória ficava tão ilegível que ninguém voltou para reclamar.

O mais incrível dessa história é que o livro que escrevi na ocasião - em co-autoria, repito - acabou sendo o mais vendido da Feira naquele ano, levando o diabinho da vaidade a estufar o peito dentro do meu. Mas passou rápido como um calafrio.

Meu senso de realidade se encarregou do exorcismo. Desde então, só voltei a freqüentar filas de autógrafos pelo lado mais confortável, o de quem busca a firma alheia e tem tranqüilidade para bater papo com os companheiros de espera.

Ainda assim, aquele fatídico livro me proporcionou uma gratificação inesperada. Meses depois do seu lançamento, um senhor desconhecido me procurou no meu local de trabalho, apresentou-se, pediu que eu fizesse uma dedicatória para o filho de 11 anos e confessou:

- Esse foi o primeiro livro que ele leu do início ao fim.

Naquele instante, me senti uma espécie de J. K. Rowling, a autora de Harry Potter, que promoveu o milagre de levar milhões de pré-adolescentes à leitura obsessiva dos seus calhamaços de 600 páginas. Eu mesmo - confesso - li quatro da série e ainda pretendo ler os demais.

Então fica combinado assim: no dia em que eu tiver uma inspiração semelhante e me sentir em condições de escrever uma obra capaz de resgatar jovens do feitiço dementador da internet, prometo que supero todas as resistências internas e me coloco voluntariamente à disposição dos caçadores de autógrafos. Que modéstia, hein?

Com sol brilhante e muita gente bonita na praia, que tenhamos todos uma excelente quinta-feira.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008



12 de fevereiro de 2008
| N° 15508 - Liberato Vieira da Cunha


O mundo não vai desabar por isso

O instante decisivo de tua vida chega quando percebes que podes fazer dela tudo o que quiseres. É quando descobres, de repente, que podes te tornar uma médica famosa ou uma advogada eminente; uma engenheira respeitada ou uma arquiteta audaciosa; uma professora admirada ou uma economista acatada.

Todos os caminhos se abrem diante de ti. É tua a embriagadora liberdade da escolha. Podes ser também uma poeta, uma pintora, uma seresteira, uma romancista, uma pianista, uma viajora.

É então que entra em cena, sem ser convidada, essa palavra que atende por destino. Por circunstâncias variadas, a médica, a advogada, a engenheira, a arquiteta, a professora jamais conquistam seus títulos e seus canudos. Já a poeta, a pintora, a seresteira, a romancista, a pianista, a viajora, ofícios para os quais não se requer diploma, naufragam em profissões dispersas e indesejadas.

Por que te falo tudo isso?

Talvez por haveres me contado que estás indecisa entre manhãs, tardes e noites às voltas com livros e cursinhos e o teste de múltipla escolha de tuas inclinações mais íntimas.

Pois tu, neste momento, és a senhora de teus caminhos. O que decidires agora condicionará de algum modo tua jornada sobre a Terra.

Mas preferência não é renúncia.

Conheço pelo menos um médico que é excelente poeta; um engenheiro que é aplicado pintor; um economista que é imbatível no violão.

Pois a vida não é exclusão; é soma.

Vamos supor que elejas a arquitetura e, em meio a um projeto, te surpreendas sonhando com um concerto.

Vamos dizer que optes pelo giz e pelo quadro-negro e, em meio a um teorema, te pegues devaneando com um soneto.

Vamos fingir que te fixes num tribunal e, em meio a uma sentença, embarques numa viagem.

O mundo não vai desabar por isso.

O mundo só vai desabar se não seguires o que manda o teu coração.

Uma ótima terça-feira, ainda que com muita chuva e promessa de temporais por aqui.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008


MOACYR SCLIAR

Lágrimas da cebola & outras lágrimas

Desde então ela se proibiu de chorar. Mas descobriu que, pelo menos, poderia verter lágrimas. Descascando cebolas

Cientistas da Nova Zelândia e do Japão criaram uma cebola "antilágrimas". Eles anularam, no alimento, a atuação de um gene responsável pela gênese da enzima que causa este efeito.

Um dos diretores da pesquisa, Colin Eady, disse que a descoberta pode acabar com um dos maiores "problemas" da cozinha: o fato de que cortar uma simples cebola nos faz chorar. Folha Online, 1º de fevereiro de 2008.

DE UMA COISA Aracy sempre teve certeza: cozinha e tristeza governavam sua vida. À cozinha estava destinada desde muito criança: de família pobre, não conseguiu completar os estudos.

A mãe, doente, não podia tomar conta da casa, e o pai decidiu que ela, a filha mais velha, assumiria esta função.

E aí era aquela rotina: acordar às cinco da manhã, preparar o café para o pai e os irmãos, antes que eles saíssem para o trabalho na roça, depois limpar a casa, lavar a roupa, dar comida para a mãe.
À noite estava tão cansada que, depois de lavar os pratos do jantar, caía na cama direto.

Será que minha vida vai ser só isso, perguntava-se, angustiada. Temia que sim: moça pobre, feia, sequer sonhava com um namorado, mesmo porque nunca tinha tempo para namorar. E quando pensava no triste futuro que a esperava tinha vontade de chorar.

Só que não poderia chorar. O pai, os irmãos não admitiriam isso, essa demonstração de fraqueza.

Da única vez em que ela prorrompeu em prantos, enquanto servia o jantar, eles ficaram irritados: o que é isso, Aracy, chorar não adianta nada, chorar não melhora as coisas, faz como a gente e agüenta firme. Desde então ela se proibiu de chorar. Mas descobriu que, pelo menos, poderia verter lágrimas. Descascando cebolas.

Cebola não faltava no sítio: o pai e os irmãos gostavam muito, tinham até uma pequena plantação do vegetal. De modo que, quando ela se sentia triste, tudo o que tinha a fazer era preparar uma salada de cebolas.

As lágrimas corriam-lhe livremente pelo rosto, mas não se preocupava sequer em enxugá-las; se o pai ou um irmão lhe perguntava a respeito, tudo o que tinha de fazer era incriminar a cebola: essa coisa faz a gente chorar.

O tempo passou. Os pais faleceram, os irmãos seguiram cada qual o seu caminho e Aracy acabou casando com o carteiro da região. Era um bom homem, muito gentil; viviam bem e tiveram três filhos, mas a vontade de chorar continuava perseguindo Aracy.

Era como se a tristeza a tivesse impregnado, passando a fazer parte do seu modo de ser. O marido não se irritava por vê-la chorando; mas ficava tão triste, e Aracy gostava tanto dele, que logo voltou às cebolas.

O marido e os filhos nem gostavam muito de cebola, mas comiam para agradar à mãe. Afinal, se ela derramava copiosas lágrimas preparando a salada, eles tinham de mostrar que o sacrifício valia a pena.

Recentemente Aracy ficou sabendo que cientistas -esses cientistas, sempre inventando coisas- haviam descoberto uma cebola que não faz chorar.

E esta notícia a deixou triste, tão triste que teve de correr para a cozinha e descascar uma cebola (daquelas antigas e boas cebolas) para chorar um pouco.

Mas a pergunta agora não sai de sua cabeça: como chorar quando as cebolas não provocarem mais lágrimas?

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

sábado, 9 de fevereiro de 2008


Diogo Mainardi

Psiu. Recebeu Marcos Valério?

"Há algo que caracteriza tanto os encontros secretos na Granja do Torto quanto as compras na padaria Cirandinha:
a falta de mecanismos de controle sobre os atos do presidente.

Ninguém pode conferir se ele recebeu Valério na Granja do
Torto. A mesma nebulosidade cerca os gastos do Planalto, sobretudo no que se refere aos saques em dinheiro vivo"

Ninguém perguntou diretamente a Lula se ele recebeu Marcos Valério na Granja do Torto. Eu pergunto:

– Psiu. Recebeu Marcos Valério na Granja do Torto?

Duas semanas atrás, Delúbio Soares foi interrogado. O defensor de Marcos Valério encaminhou-lhe algumas perguntas. Numa delas, ele insinuou que seu cliente teria acompanhado Delúbio Soares à Granja do Torto, para encontrar-se com Lula.

De acordo com o Ministério Público, isso só pode ser interpretado como um recado de Marcos Valério à turminha do PT. E o recado é o seguinte: cuidado, porque eu posso entregar o presidente da República.

– Psiu. Como foi o encontro com Delúbio Soares e Marcos Valério na Granja do Torto?

O assunto já ficou caduco. Os mensaleiros fazem parte do passado. Agora a gente quer ser informado sobre as compras na padaria Cirandinha pagas com o Ourocard presidencial, um caso que promete animar a segunda metade do mandato lulista, assim como os mensaleiros animaram a primeira.

Entretanto, há algo que caracteriza tanto os encontros secretos na Granja do Torto quanto as compras na padaria Cirandinha: a falta de mecanismos de controle sobre os atos do presidente.

Ninguém pode conferir se ele recebeu Marcos Valério na Granja do Torto. Isso significa também que ninguém poderia saber se ele está sendo chantageado ou achacado por causa desse encontro.

A mesma nebulosidade cerca os gastos do Palácio do Planalto, sobretudo no que se refere aos saques em dinheiro vivo. A rigor, nada impediria que os membros do governo tivessem sacado dinheiro vivo para financiar atividades da campanha eleitoral, inclusive o dossiê dos sanguessugas.

– Psiu. Psiu. PSIU. Como é o pastel da padaria Cirandinha?

Lula está perto da aposentadoria. Eu já consigo imaginá-lo daqui a alguns anos, em sua cobertura no ABC paulista, num dia qualquer. Acorda. Liga a TV. Desliga a TV. Chega a pedicure. Come dois pratos de estrogonofe.

Demite a empregada doméstica. Desmonta o aparelho de ar condicionado. É incapaz de remontá-lo. Dá os retoques finais em seu tratado sobre o atomismo de Demócrito. Compra uma grelha antiaderente por telefone. Come dois pratos de nhoque.

Mergulha de trampolim em sua piscina cheia de moedinhas. Demite o motorista. Chega Delúbio Soares. Despede-se de Delúbio Soares. Olha o que acontece nos apartamentos vizinhos com um telescópio. Dorme no sofá.

Apesar de Lula estar chegando ao fim, ainda dá para transformar a última fase de seu mandato em algo proveitoso. Se a imprensa o atazanar e se o Ministério Público perseguir os abusos de seu governo, talvez seu sucessor seja um tantinho mais contido.

É uma hipótese remota, mas é uma hipótese. Lula está perto da aposentadoria. E eu estou perto de me aposentar dele. Quando tudo acabar, quero comprar uma grelha antiaderente por telefone.


Diogo Mainardi

Psiu. Recebeu Marcos Valério?

"Há algo que caracteriza tanto os encontros secretos na Granja do Torto quanto as compras na padaria Cirandinha:
a falta de mecanismos de controle sobre os atos do presidente.

Ninguém pode conferir se ele recebeu Valério na Granja do
Torto. A mesma nebulosidade cerca os gastos do Planalto, sobretudo no que se refere aos saques em dinheiro vivo"

Ninguém perguntou diretamente a Lula se ele recebeu Marcos Valério na Granja do Torto. Eu pergunto:

– Psiu. Recebeu Marcos Valério na Granja do Torto?

Duas semanas atrás, Delúbio Soares foi interrogado. O defensor de Marcos Valério encaminhou-lhe algumas perguntas. Numa delas, ele insinuou que seu cliente teria acompanhado Delúbio Soares à Granja do Torto, para encontrar-se com Lula.

De acordo com o Ministério Público, isso só pode ser interpretado como um recado de Marcos Valério à turminha do PT. E o recado é o seguinte: cuidado, porque eu posso entregar o presidente da República.

– Psiu. Como foi o encontro com Delúbio Soares e Marcos Valério na Granja do Torto?

O assunto já ficou caduco. Os mensaleiros fazem parte do passado. Agora a gente quer ser informado sobre as compras na padaria Cirandinha pagas com o Ourocard presidencial, um caso que promete animar a segunda metade do mandato lulista, assim como os mensaleiros animaram a primeira.

Entretanto, há algo que caracteriza tanto os encontros secretos na Granja do Torto quanto as compras na padaria Cirandinha: a falta de mecanismos de controle sobre os atos do presidente.

Ninguém pode conferir se ele recebeu Marcos Valério na Granja do Torto. Isso significa também que ninguém poderia saber se ele está sendo chantageado ou achacado por causa desse encontro.

A mesma nebulosidade cerca os gastos do Palácio do Planalto, sobretudo no que se refere aos saques em dinheiro vivo. A rigor, nada impediria que os membros do governo tivessem sacado dinheiro vivo para financiar atividades da campanha eleitoral, inclusive o dossiê dos sanguessugas.

– Psiu. Psiu. PSIU. Como é o pastel da padaria Cirandinha?

Lula está perto da aposentadoria. Eu já consigo imaginá-lo daqui a alguns anos, em sua cobertura no ABC paulista, num dia qualquer. Acorda. Liga a TV. Desliga a TV. Chega a pedicure. Come dois pratos de estrogonofe.

Demite a empregada doméstica. Desmonta o aparelho de ar condicionado. É incapaz de remontá-lo. Dá os retoques finais em seu tratado sobre o atomismo de Demócrito. Compra uma grelha antiaderente por telefone. Come dois pratos de nhoque.

Mergulha de trampolim em sua piscina cheia de moedinhas. Demite o motorista. Chega Delúbio Soares. Despede-se de Delúbio Soares. Olha o que acontece nos apartamentos vizinhos com um telescópio. Dorme no sofá.

Apesar de Lula estar chegando ao fim, ainda dá para transformar a última fase de seu mandato em algo proveitoso. Se a imprensa o atazanar e se o Ministério Público perseguir os abusos de seu governo, talvez seu sucessor seja um tantinho mais contido.

É uma hipótese remota, mas é uma hipótese. Lula está perto da aposentadoria. E eu estou perto de me aposentar dele. Quando tudo acabar, quero comprar uma grelha antiaderente por telefone.

Ponto de vista: Claudio de Moura Castro

Salário de professor

"A experiência dos estados mais bem-sucedidos mostra que consertar a educação requer muito mais do que jogar dinheiro no sistema"

Segundo afirmativa corrente, os professores da educação básica ganham pouco, por isso a educação é ruim. Como tenho a infeliz sina de acreditar na ciência, para mim isso é assunto de contar e medir.

Ganhar pouco ou muito é uma questão relativa (como se viu pelas discussões sobre salários de deputados e juízes). Portanto, só tem sentido a comparação com categorias equivalentes. Com Gustavo Ioschpe, fiz uma revisão de duas pesquisas meticulosas, cotejando o salário dos professores com o de outros grupos profissionais na América Latina.

Os resultados colidem com os mitos. Em confronto com pessoas de educação equivalente, os professores não ganham menos.

Calculando-se os salários-hora, aumenta a superioridade salarial dos mestres, inclusive dos brasileiros. Ou seja, não se pode dizer que os professores ganham mal, considerando a remuneração de profissionais com igual escolaridade.

Há significativas variações, de estado para estado, sendo alguns professores realmente mal pagos. Mas, como a educação é ruim na média, faz sentido comparar salários de professores, também na média.

Atômica Studio

Outro estudo interessante nos é dado por uma pesquisa recente de Samuel Pessoa, na qual o autor confronta os salários do sistema privado com os do sistema público.

Em contraste com as conversas de botequim, em média os salários do setor privado são ligeiramente inferiores, apesar da ampla superioridade no desempenho dos seus alunos. Mais um abalo sísmico nos castelos da imaginação.

Outra maneira de ver o assunto é perguntar se a salários maiores corresponde um ensino de qualidade superior. Filosofar não resolve. Faz mais sentido calcular os coeficientes de correlação.

No caso, esses números medem a probabilidade de que salários mais altos dos professores ocorram nos sistemas estaduais com melhor educação – medida por um índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb) mais elevado.

Foram tomadas várias definições de salário: do ensino médio, do fundamental, salário-hora, com e sem gratificação e, também, o orçamento estadual para a educação (per capita).

Os resultados são sempre os mesmos, quaisquer que sejam as definições. Não há nenhuma associação entre salário alto e educação boa.

Os estados com desempenho superior no ensino tanto podem pagar bem como mal. Por exemplo, Alagoas e Amazonas pagam muito e têm desempenho fraco. Minas e Santa Catarina pagam pouco e estão no topo da lista do Ideb.

Só há uma conclusão possível da análise de tais números: a má qualidade do nosso ensino não pode ser explicada pelos salários dos professores. Não se trata de metafísica nem de imponderáveis.

Quem discordar dessa afirmativa que trate de demonstrar que os números estão errados. Mas, remexendo outros números, podemos encontrar algumas pistas intrigantes.

Pesquisa recente indicou que 80% dos professores da rede pública estavam insatisfeitos e com sua auto-estima chamuscada. Já em uma pesquisa com escolas privadas de todo o Brasil, verifiquei que 80% dos professores estavam satisfeitos.

Ou seja, com níveis salariais parecidos, as escolas privadas – não apenas as de elite – atraem melhores professores e os mantêm contentes. Não há dados confiáveis, mas parece que os professores estão também contentes nas públicas bem lideradas.

Se essas idéias fazem sentido, os sistemas públicos ganhariam em qualidade se conseguissem criar um ambiente mais positivo e estimulante para os seus professores. Como a escola tem a cara do diretor, a sua escolha irresponsável arruína o ensino. Onde isso ocorre, os professores se sentem desvalorizados e manipulados pela burocracia.

Os mais graves pepinos estão no clientelismo do governo local. A politicagem passa na frente das preocupações com a qualidade. A carreira do magistério é leniente com malandros e incompetentes. É a "incompetência ignorada, a competência não reconhecida".

No fim das contas, a experiência dos estados mais bem-sucedidos mostra que consertar a educação requer muito mais do que jogar dinheiro no sistema.

Claudio de Moura Castro é economista - (Claudio&Moura&Castro@cmcastro.com.br)

08/02/2008 - 20:14 | Edição nº 508

Um atirador dentro da lei

Mesmo depois de ter cometido o crime, Thales foi efetivado como promotor: foram 16 votos a favor e 15 contra

POLÊMICA
O promotor Thales, entre seus advogados. O caso é delicado e divide o meio jurídico

Há duas maneiras de matar alguém e não ir para a cadeia: quando fica comprovada a legítima defesa ou quando a Justiça falha. Se o réu confesso é promotor, conta com algumas benesses, como fórum especial, porte de arma e salário integral. Pelo menos enquanto não for condenado. É o caso de Thales Ferri Schoedl, de 29 anos.

O jovem promotor admite ter matado a tiros o jogador de basquete Diego Modanez, de 20 anos, no balneário Riviera de São Lourenço, em 2004.

Mas sempre alegou ter disparado 11 tiros em legítima defesa. Como promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE), a função de Thales é fiscalizar o cumprimento das leis. Seu cargo permite que ele ande armado, mesmo em momentos de lazer.

Os tiros disparados por Thales teriam se diluído no cenário da violência entre jovens caso ele tivesse outra profissão. Por ser promotor, Thales colocou em jogo a imagem pública da Justiça brasileira. Se Thales for inocentado, seria por “corporativismo”? Se for condenado, seria em decorrência do clamor popular contra o corporativismo na Justiça?

O destino de Thales tornou-se mais róseo na tarde de quarta-feira 29 de agosto de 2007, em São Paulo. O jogo virou a seu favor. Foi quando o MPE decidiu que ele seria efetivado no cargo, mesmo após o crime. Quando matou Diego, Thales cumpria o “estágio probatório” – período de dois anos em que promotores iniciantes são avaliados.

Ao fim do estágio, em decisão apertada, com 16 votos a favor e 15 contra, o Ministério Público decidiu estabilizar o promotor em seus quadros. Foram invalidados dois pareceres negativos, do Conselho Superior do Ministério Público, que pediam sua exoneração.

Mesmo depois de ter cometido o crime, Thales foi efetivado como promotor: foram 16 votos a favor e 15 contra
A partir da decisão de agosto do ano passado, Thales passaria a dormir mais tranqüilamente. Ele já não teria de enfrentar o júri popular de Bertioga, município do litoral paulista onde fica o balneário Riviera de São Lourenço.

Ele voltaria a trabalhar, a receber um salário de R$ 10.500 (corrigidos em janeiro para R$ 18.009,75) e a portar uma arma. Quando um promotor comete um crime, ele é julgado num foro especial do Tribunal de Justiça, formado pelos 25 desembargadores mais experientes do Estado. Quando matou, Thales ainda não tinha a certeza desse benefício. Passou automaticamente a ter.

Na tarde em que Thales foi efetivado, faixas com as frases “Justiça para o crime da Riviera” e “Pela expulsão do promotor” eram exibidas em frente ao prédio do Ministério Público de São Paulo.

“Pena que eu não vim com nariz de palhaço”, disse Sônia, mãe de Diego Modanez ao saber da vitória de Thales. “Estão colocando a arma de volta na mão dele para tirar a vida de outros filhos. É um absurdo”, disse Fábio Pira, pai do rapaz assassinado.

A decisão, polêmica, deu início a um novo debate no meio jurídico. “Muitos promotores em estágio probatório já perderam o cargo por problemas menores”, diz Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo.

Ele cita o caso de uma mulher que deixou de ser efetivada apenas por ter-se divorciado durante esse período. Outro suposto desvio de conduta que impediu a efetivação na promotoria foi um atentado leve ao pudor: o candidato foi flagrado nadando nu. “Thales foi armado à praia, e isso já é motivo suficiente. Acho que foi uma decisão equivocada”, afirma Serrano.

REVOLTA
Os pais de Diego, Sônia e Fábio, hoje vivem em São Carlos, São Paulo, e não aceitam que Thales esteja impune

O procurador-geral do Ministério Público de São Paulo, Rodrigo Pinho, já havia declarado que Thales não tinha condições de seguir na carreira.

Pinho teve de se retratar perante os colegas por ter sugerido que houve corporativismo na decisão de manter Thales no MPE. Procurado pela reportagem de ÉPOCA, o procurador-geral disse que não fala sobre o caso.

Depois de efetivar Thales, o MPE decidiu que ele assumiria a posição de segundo promotor na comarca de Jales, uma cidade de 40 mil habitantes a 585 quilômetros da capital paulista. Só precisava comparecer ao fórum da pequena cidade e começar a trabalhar. Mas isso nunca aconteceu. Até hoje ele não assumiu o posto que lhe fora designado.

A notícia de que Thales Ferri Schoedl substituiria o promotor Herivelto de Almeida espalhou-se por Jales com prodigiosa velocidade. Quando alguém se lembrou de que o pai de Diego Modanez, Fábio Pira, havia jogado basquete pelo time da cidade, entre 1994 e 1995, um sentimento de indignação tomou conta das ruas.

As três rádios davam a notícia sem parar. Elas convocavam os habitantes a firmar um abaixo-assinado repudiando a nomeação do promotor. Moema Passos da Silva, uma aposentada de 72 anos, foi uma das primeiras a articular a reação.

Em pouco tempo, centenas de moradores se dirigiram à Praça dos Jacarés, ponto de encontro da cidade, para assinar o documento. O texto de quatro parágrafos termina assim: “A presença de Thales causará um sentimento de desconforto e intranqüilidade aos cidadãos e famílias de bem”.

Além de Moema, que apareceu em rede nacional de TV como guardiã do abaixo-assinado, o ex-vereador Carlos Cardoso ajudou a espalhar o texto. Cardosão, como é conhecido, tornou-se próximo da família de Diego porque seu filho morou com os Modanez durante seis meses enquanto jogava basquete com Diego. “Não vamos aceitar calados.”

Embora imbuídos de uma atitude legítima, Cardosão e Moema encontraram resistência. Um dos juristas da cidade teria dito ao ex-vereador: “Deixa quieto. O cara vem para trabalhar”. Ressabiado, Cardosão ligou para o filho, que é advogado. “Protestar é um direito da população”, disse o rapaz. Anos antes, ele havia jogado basquete com Diego.

No dia 31 de agosto de 2007, o governador José Serra esteve em Jales para inaugurar uma faculdade de Tecnologia. Era o auge da polêmica, e o governador emitiu sua opinião em público: “Fiquei profundamente triste com essa decisão (da Justiça, de enviar o promotor a Jales). Quero dizer que sou solidário com a indignação da população de Jales a respeito desse assunto”.

A população de Jales, São Paulo, se mobilizou e impediu a ida do promotor para a cidade onde a vítima viveu com os pais
Aos 26 anos, tudo parecia dar certo para Thales Ferri Schoedl. Em um concurso difícil, desbancara mais de 8 mil candidatos para conseguir a vaga de promotor de justiça. Tinha uma namorada bonita e ganhava bem. Seus superiores avaliavam seu trabalho como bom ou ótimo.

Mas ele temia represálias porque aceitara processos polêmicos que envolviam grupos de extermínio e policiais militares. Por isso, fez cursos de manuseio de armas e passou a carregar uma pistola calibre 38. No dia em que sua vida mudou para sempre, Thales não foi trabalhar.

Dirigiu por várias horas, de Iguape, no litoral sul de São Paulo, onde cumpria o estágio probatório, até a Riviera de São Lourenço, onde sua família tem uma casa de veraneio. Iria se encontrar com Mariana Uzores Batoleti, de 19 anos, sua namorada.

Testemunhas da acusação afirmam que Thales havia tentado falar com ela a noite toda, sem sucesso. O celular da moça estaria desligado. Ele chegou à Riviera por volta das 3 horas da madrugada. Passou em casa, onde havia um churrasco. Mariana também não estava lá.

A relação entre Thales e sua namorada é um dos pilares da acusação. Segundo o advogado Pedro Lazarini, Mariana provocava Thales em público. Um dos depoimentos mais explosivos é o do dono de uma boate que Thales freqüentava na Riviera, chamada Los Gringos. Jacques Bonhomme, que conhece o promotor desde que ele era adolescente, afirmou em juízo que Mariana “é uma menina que põe fogo em Thales”.

Jacques disse ainda que o promotor se envolvera em dois “bate-bocas” na casa noturna e quase brigara com outros rapazes porque Mariana reclamou do assédio deles.

Segundo Jacques, ela se apresentava como “a namorada do promotor”. Meses depois da noite do crime, o casal terminou o namoro. No depoimento de um policial militar que patrulhava a portaria da Los Gringos, Thales é retratado como “boca dura”, briguento e alguém que vivia se envolvendo em confusões. Segundo o PM, Thales manuseava a pistola automática em público e fazia valer sua posição.

Naquela noite, Mariana havia ido até a boate Los Gringos. Sem Thales. O promotor só a encontraria mais tarde, perto de um local onde acontecia um luau com mais de mil pessoas. Juntos, os dois atravessaram uma praça rotatória em direção ao carro de Thales. Havia ali duas viaturas da Polícia Militar e duas da vigilância particular do condomínio.

Centenas de jovens ouviam som ao redor de carros estacionados. Eram 4 horas. Alguém se dirigiu a Mariana. “Gostosa”, teria dito. Thales diz ter exigido respeito. Testemunhas afirmam que o casal começou a brigar. Foi quando Diego Modanez e Felipe de Souza se aproximaram.

A partir desse momento, as versões diferem. De acordo com a defesa, os dois jogadores de basquete, com mais de 2 metros de altura, estavam entre os que haviam faltado com o respeito. Teriam desafiado Thales. A acusação afirma que Diego e Felipe somente pediram calma ao casal. Thales teria sacado sua arma e se identificado como promotor de justiça. Diego e Felipe se afastaram.

“Guarda essa m...”, teria gritado Mariana. Um grupo de dez rapazes então começou a gritar: “Você é ‘promoter’ de balada! Sua arma é de brinquedo!”. A defesa diz que Diego e Felipe se destacavam à frente da turma. Segundo a acusação, Diego e Felipe, de costas, se afastaram da confusão. Foi então que Thales teria dado tiros de advertência, para o chão e para o alto. A perícia balística não encontrou nenhum projétil no solo.

REAÇÃO
A aposentada Moema, em Jales, com uma das faixas usadas nos protestos

Depois dos primeiros tiros, Thales foi acuado e perseguido. Uma testemunha afirma ter ouvido gritos de “Mata, mata!”. Para a acusação, Diego e Felipe tentaram segurar o braço de Thales para evitar que ele atirasse. Os advogados de Thales dizem que ele só atirou, em legítima defesa, quando foi encurralado e depois que Felipe agarrou seu braço.

Um laudo da perícia mostra ferimentos no braço direito de Thales, Rodrigo Bretas Marzagão. A acusação afirma que ele atirou de cima para baixo, quando as vítimas já estavam caídas.

“Na verdade, foi o Felipe quem provocou tudo”, diz o advogado de Thales. “Tomou um tiro na perna, não parou; outro no braço, continou avançando.” No desfecho, Diego e Felipe se contorciam, caídos no chão. Felipe fora alvejado quatro vezes: nos braços, na perna e no peito. Diego, atingido por duas balas, no braço e do lado direito do peito, morreu por ter perdido muito sangue. No total, Thales disparou 11 tiros.

A acusação afirma ter o testemunho de um dos guardas do condomínio, segundo o qual Thales teria apontado sua arma, ainda com uma bala, para o rosto do vigia antes de fugir de carro. Mariana entrou numa ambulância dizendo-se parente de Diego.

Thales foi preso na casa dos pais, já de manhã. “Era um garoto apavorado”, disse Alberto Corazza, diretor do Departamento de Polícia Judicial da região de Santos.

Às 5 horas daquela manhã, o telefone tocou na casa de Sônia e Fábio Pira, em São Carlos, no interior paulista. Ficaram sabendo que o filho Diego estava no hospital.

Hoje, o casal diz que só consegue dormir à base de tranqüilizantes. Sobre a mesa da sala, uma pilha manuseada de jornais e revistas sobre o caso. Quando foi a Jales participar de uma moção de repúdio à nomeação de Thales votada pela Câmara Municipal da cidade, Sônia ficou surpresa. “Todo mundo queria me tocar”, disse ela sobre a solidariedade que recebeu.

Quem conviveu com Diego diz que ele era incapaz de brigar. “Podem procurar alguma história ruim”, diz dona Sônia. “Se tivesse, alguém já teria encontrado e transformado em prova contra meu filho.” Sobre Thales, ela diz simplesmente: “É um monstro. Gostaria de olhar dentro dos olhos dele.

Quero que ele me peça perdão pessoalmente”. Fábio, o pai, sente que lhe falta um pedaço. “Antes, eu colocava a mão aqui e sentia meu peito. Agora, a mão atravessa.” Bruno, irmão de Diego, que deveria se apresentar à seleção brasileira juvenil de basquete logo depois da morte do irmão, perdeu dois anos da vida para a depressão. Hoje, está nos Estados Unidos. Jogando basquete.

No dia 3 de setembro de 2007, o procurador Nicolao Dino pediu a suspensão temporária da decisão de efetivar o promotor na carreira.

Foi a primeira vez, desde sua criação, em 2004, que o Conselho Nacional do Ministério Público interferiu numa decisão estadual de concessão de cargo vitalício a um promotor. Seu caso ilustra o choque entre duas instituições: o Conselho Nacional do Ministério Público e o Tribunal de Justiça de São Paulo.

Apesar do status de promotor de Thales estar suspenso pelo Conselho, o processo criminal contra ele continua correndo no Tribunal de Justiça. Caso o Conselho decida expulsá-lo, o julgamento que corre em São Paulo perderá a validade – Thales será então submetido ao júri popular de Bertioga. Se isso acontecer, a decisão final caberá ao Superior Tribunal de Justiça, os guardiões da Constituição Nacional.

A qualquer momento, o Tribunal de São Paulo pode convocar o julgamento. O processo já está sendo lido pelos revisores. Os conselheiros de Brasília estão perto de chegar a um consenso sobre a carreira do promotor.

Enquanto isso, Thales faz pós-graduação. Tem sonhos. Mesmo sem trabalhar há três anos, ganha R$ 18.000 por mês. E diz que, “graças a Deus”, tem recebido solidariedade de muitas pessoas. No dia 21 de maio, festejará 30 anos.

5 perguntas para Thales Schoedl
O promotor afirma ter agido em legítima defesa, diz que atirou contra a vontade e conta como essa decisão afetou sua vida
Você se arrepende do que fez?
Posso lhe dizer que, embora tenha convicção de que agi em legítima defesa e que minha conduta salvou a minha vida, eu lamento muito o que aconteceu.

O que você gostaria que as pessoas soubessem sobre o caso e que, em sua opinião, ainda não sabem?
Que os disparos não ocorreram porque mexeram com a minha namorada, mas sim porque, após esse fato, aquele grupo de pessoas, incentivado por uma multidão que gritava para me matar, correu atrás de mim, iniciou as agressões e tentou tomar a minha arma, momento em que fui obrigado a atirar, contra a minha vontade, para salvar a minha vida. Tudo isso está no processo, relatado por várias testemunhas.

De que forma a repercussão pública do caso mudou sua vida?
Eu estou terminando um curso de pós-graduação, mas tem sido muito difícil não poder realizar o trabalho que eu amo, na Promotoria de Justiça. Claro que por conta da repercussão do caso eu tenho receio de freqüentar lugares públicos, mas graças a Deus eu só tenho recebido solidariedade das pessoas, pois hoje muita gente conhece a realidade dos fatos, de acordo com o que consta no processo.

Existe algum conflito em ser promotor depois de ter matado em legítima defesa?
Não penso em outra profissão. Ser promotor de justiça sempre foi o meu sonho, e eu lutei muito por isso. Como eu já disse, é a profissão que eu amo. Não vejo problemas em um promotor de justiça que agiu em legítima defesa continuar atuando, mesmo porque legítima defesa não é crime e pode acontecer com qualquer pessoa.

Você fez cursos para manejar armas de fogo? Teve de usar a arma antes?
Sim, fiz dois cursos, um no Exército e outro no Barro Branco, promovido pela APMP, mas nunca havia utilizado minha arma de fogo em outra situação.

Fotos: Alex Silva/AE, Pisco Del Gaiso/ÉPOCA (2)


09 de fevereiro de 2008
N° 15505 - Paulo Sant'ana


O boato salvador

Vire um boateiro. Reúna a sua família ou cada um dos integrantes da sua família e espalhe o boato: você vai ser doador de órgãos.

Depois, com cada amigo que você vai se encontrar, incuta o boato: você vai ser doador de órgãos.

A seguir, espalhe o boato entre os seus vizinhos. E no bar da esquina e com qualquer pessoa conhecida com que você se encontrar no shopping: insista que você vai ser doador de órgãos.

E no seu ambiente de serviço não tenha outro assunto: você vai ser doador de órgãos, espalhe o boato em todos os corredores e andares da sua repartição ou da sua empresa.

O fenômeno seguinte é o segundo estágio do boato: os seus vizinhos, os seus amigos, os seus colegas de repartição ou de empresa vão transmitir o boato entre si.

Até que o boato vá atingir, agora por outras vozes, a sua família. E não se importe que o boato se espalhe por toda a cidade: centenas de pessoas atingidas pelo boato se contaminarão com ele e decidirão também serem doadores de órgãos.

E a sua família se sentirá orgulhosa de que você vai não só doar os órgãos, como contagiará os outros a fazê-lo também.

É que não adianta você ser doador de órgãos e sua família não saber. Porque só sua família, caso você morra, pode doar os seus órgãos, a sua vontade anteriormente manifestada não terá validade se sua família não autorizar esse ato sublime de doar os seus órgãos.

Então espalhe o boato imediatamente. A vida de milhares de pessoas que necessitam dramaticamente de transplante de órgãos para viver depende desse boato.

Mãos à obra! Ou melhor, lábios e garganta ao boato! Já e agora!

A Santa Casa, por exemplo, se orgulha de ter transposto este ano o número 2.000 em transplantes.

No dia 31 de julho passado, a Santa Casa já tinha realizado 2.068 transplantes, compreendendo rim, fígado, córnea, pulmão, coração, medula óssea, válvulas cardíacas e conjugados de rins e pâncreas.

E esses milagres se multiplicam também pelo Instituto de Cardiologia, pelo Clínicas e pelo Hospital da PUC.

Graças principalmente à solidariedade dos gaúchos que doam seus órgãos, que se atiram à esse de transmitir vida aos aflitos que estão na fila dos transplantes, à espera ansiosa de que o boato de que você vai ser doador se espalhe e se constitua em sua salvação.

Porque não adianta só você saber que é doador. É indispensável que sua família autorize a doação dos seus órgãos, caso contrário nada feito quando você morre.

A doação, pois, deixou de ser uma decisão intimista, um fulgor onanista, é preciso contagiar os outros com essa esplêndida notícia, tecnicamente os outros é que vão carimbar a sua intenção sagrada de ver os órgãos retirados de seu corpo e redundar em vida estuante para os receptores.

Como pregava São Francisco, é dando que recebemos.

O que você está fazendo que não espalha logo o seu magnífico boato?

Viva a vida!

Crônica publicada em 11/08/2001

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008



jcimenti@zaz.com.br
8/2/2008


Aliança sinistra, crime misterioso em Southampton


O crítico de arte Jeremy Grove foi encontrado morto, sem vestígios de agressão corporal, mas com indescritível expressão de horror no rosto, num cômodo isolado de sua fabulosa mansão em Southampton, Long Island, Estados Unidos.

O tronco da vítima estava queimado por dentro e desabado para dentro de si mesmo. No quarto, sem qualquer sinal de arrombamento, um intolerável cheiro de enxofre e a marca calcinada de um casco no assoalho. Presença do diabo?

A morte do morador mais ilustre da cidade não parece ter sido causada por um criminoso comum, e as investigações iniciam-se sem identificação da arma do crime. Assim começa a narrativa de As marcas diabólicas, romance escrito por Douglas Preston e Lincoln Child, autores de mais de trinta best-sellers nos Estados Unidos.

O protagonista de história é o destemido agente do FBI Aloysius Pendergast. Ao lado dos policiais Vincent D´Agosta e Laura Hayward, mesmo sem a autorização oficial do FBI, mas com o apoio dos detetives, Pendergast sai em busca de explicações para o assassinato de características diabólicas.

O suposto pacto demoníaco leva as investigações, rapidamente, das coberturas de Nova Iorque e das abastadas propriedades de Long Island, para obscuros castelos localizados no interior da Itália. Um prato cheio para a imprensa sensacionalista e para os profetas do fim do mundo de Nova Iorque.

Em um dos castelos italianos, há trinta anos, quatro estudantes norte-americanos selaram seu destino quando fizeram um pacto impronunciável. Quando ofereceu sua alma a Lúcifer, Jeremy Grove e seus três jovens amigos teriam assinado sua própria sentença de morte.

Enquanto as investigações prosseguem nos Estados Unidos e na Itália, Laura Hayward enfrenta uma multidão de fanáticos religiosos acampados no Central Park, ameaçando a paz e a ordem da cidade, liderados pelo reverendo Wayne P. Buck.

Os fanáticos, motivados por reportagens de imprensa marrom, acham que a visita do diabo revela, de modo inegável, que se aproxima o fim dos tempos.

Mas os investigadores descobrem, entre muitas aventuras arriscadas, interesses nada sobrenaturais em relação ao assassinato brutal. Uma nefasta rede criminosa internacional, tão assustadora e surpreendente como satanás, estaria envolvida no estranho caso.

Enfim, a narrativa ágil, repleta de magia negra, espionagem internacional, extremismo religioso e outros detalhes sedutores mostra bem por que o sucesso dos autores de tantos romances não é mera obra do acaso. 572 páginas, R$ 64,00. Tradução de Pinheiro de Lemos, Editora Rocco, telefone 21-3525-2000

Ótima sexta-feira e um excelente fim de semana para todos nós.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008



07 de fevereiro de 2008
N° 15503 - Nilson Souza


Balão mágico

Visitei São Domingos do Sul no feriadão, sem precisar passar por nenhuma das estradas de poeira vermelha que ligam aquele simpático município do Noroeste do Estado à civilização.

Não fui pelo caminho da Serra, que tanto aprecio, passando por São Vendelino, Bento, Veranópolis, Nova Prata e Paraí. Nem peguei a Estrada da Produção, como fiz tantas outras vezes, batendo ponto em Lajeado, Arroio do Meio, Encantado, Guaporé, Serafina Corrêa e Casca. Fui pelo ar.

Voei no balão mágico do Google Earth - este fantástico instrumento da informática que mistura mapas e fotografias, possibilitando ao viajante virtual excursionar por qualquer parte do mundo sem levantar de sua cadeira.

Meu colega de trabalho Fernando Gomes, com quem compartilho a ligação afetiva de sermos ambos casados com mulheres daquela remota localidade, foi quem me sugeriu a viagem.

Custei a acreditar que os satélites já tivessem fotografado aquela paisagem que tão bem conheço, composta por campos e estradas, plantações de soja, milho e fumo, granjas e chiqueiros, silos metálicos e casas de madeira equipadas com chaminés.

Só de lembrar, sinto o cheiro inconfundível da fumaça dos fogões operando a toda lenha nas manhãs de inverno.

Pois tudo isso estava ao alcance de alguns cliques. Subi ao espaço como Gagarin e mergulhei suavemente na direção do planeta azul, olhos fixos no sul do Brasil.

Na medida em que o solo ia se aproximando na tela do meu computador, fui identificando os nomes familiares das cidades da minha terra, até que me detive no ponto indicado - a luzinha tênue de São Domingos do Sul, onde certa noite vislumbrei a mais bela lua cheia do universo.

Sobrevoei os telhados sem tocá-los, pairando sobre as ruas de pedra, a praça central, a igreja, o campo de futebol e, por fim, sobre a casa simples que já me abrigou por lá tantas vezes.

Nunca imaginei que faria uma viagem dessas, nas asas seguras da tecnologia. Me fez lembrar a primeira - e única - vez que viajei de helicóptero, chacoalhando de Porto Alegre a Pelotas para fazer a cobertura jornalística de uma inundação na Zona Sul do Estado. Naquela ocasião, tremi mais de medo do que de emoção.

Agora voei sem correr risco algum, mas não pude deixar de me emocionar ao ver tão perto e tão nitidamente um lugar que amo, suas plantações e arvoredos, suas ruas estreitas e suas casas com jardins caprichosamente cuidados pelos descendentes de imigrantes italianos e poloneses que lá se fixaram.

Faltou vê-los, ouvir o inconfundível sotaque de suas vozes, cumprimentá-los, abraçá-los. Mas, numa época de estradas cheias, deu para atenuar a saudade.

Como continuo viajando o wirelles tem se comportado maravilhosamente, espero que continue assim. Uma ótima quinta-feira para todos nós.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008



05 de fevereiro de 2008
N° 15501 - Liberato Vieira da Cunha


Uma freira no bar

Logo que comecei no jornalismo me mandaram entrevistar um expoente das artes. Foi uma conversa agradável, mas dela lembro uma única frase. À saída, fui apresentado à sua vasta pinacoteca e meu anfitrião deteve-se ante um desenho.

Dizem que é de Rembrandt; comprei em Amsterdã logo depois da II Guerra, de um vendedor de rua, por 50 dólares.

Desde então a minúscula tela freqüenta meus sonhos. É bom, volta e meia, dar corda à imaginação, já que a realidade, neste país e no mundo, se revela de momento pouco inspiradora.

Você está folheando, distraído, a edição de Os Lusíadas que herdou de seu bisavô. E então tropeça numa página marcada por um velho pedaço de envelope. E de repente percebe que o gasto selo que o decora é nada menos do que um Olho de Boi de 1843.

Você está se livrando de uns papéis que encontrou na gaveta oculta da cômoda que arrematou num Brique. E aí cai em suas mãos uma carcomida partitura, ao pé da qual se lê a assinatura de um certo Ludwig van Beethoven.

Você colide com uma arca, no porão da casa que lhe tocou no testamento de sua tia Viridiana. Por mera curiosidade, examina o conteúdo e dá com uma silente caixa de música. Mas logo escuta uma sinfonia: a dos 37 perfis do Rei Luís XIV, esculpidos em moedas de puríssimo ouro.

Não sei o Rembrandt. Os vendedores de rua de Amsterdã não te entregam um Rembrandt por 50 dólares, ainda que em ásperos tempos. Mas o Olho de Boi, o autógrafo de Beethoven, os ducados do Rei Sol te converteriam instantaneamente num eleito da fortuna.

Todas essas são fantasias improváveis.

Uma vez porém me vi face a face com um tesouro incalculável. Estava hospedado, naturalmente que a convite, no Atlantic, de Hamburgo. Havia senhores de casaca e de cartola no passeio fronteiro à recepção, que abriam a porta de teu táxi e te protegiam da neve. À noite, no bar, cavalheiros e damas, trajados de smokings e de vestidos longos, dançavam na pista de sândalo, ao som de um Steinway.

A certa altura, no entanto, surgia naquele ambiente ostentoso, uma sóror descalça, que suplicava ao distinto público uns trocados para o asilo que mantinha. Indiferente ao frio, aos olhares altivos, recolhia migalhas e tornava aos ventos glaciais do Alster. Até hoje me pergunto se haverá no universo fortuna maior que a de sua fé, sua solidariedade e seu coração.

Uma excelente terça-feira gorda para todo mundo.

domingo, 3 de fevereiro de 2008


DANUZA LEÃO

O Carnaval ideal

Serão quatro dias inteiros sem fazer nada, e sem celular, que delícia; e ler vários livros ao mesmo tempo

A MELHOR época para curtir o Rio é durante o Carnaval. Mais do que pelos desfiles, pelos blocos de rua; apenas -apenas?- para desfrutar da cidade numa relativa paz.

É uma delícia; muitos cariocas viajam, os turistas só querem saber de samba, e até mesmo os assaltantes costumam dar uma trégua: param de trabalhar e se dedicam apenas à folia.

O resultado é uma cidade tranqüila, com praias vazias, restaurantes idem e cinemas sem fila, pois quem passa as noites em claro e sambando precisa dormir, até porque no dia seguinte a festa continua.

Não há nada melhor do que uma cidade com todos os confortos da modernidade, mas sem um só dos problemas das grandes.

Poucos carros nas ruas, pouca gente nas calçadas; é só olhar no jornal para saber hora e local da saída dos blocos e ir para o lado oposto -e a pé. Nem pensar em sair de carro, nesses dias se pode andar nas ruas com tranquilidade, e até usar um anelzinho, sem medo de assalto.

Serão quatro dias inteiros sem fazer nada, e sem celular, que delícia; poder passar a agenda de telefones a limpo e ler vários livros ao mesmo tempo, sabendo que o telefone não vai tocar, é bom demais.

Praia até o meio-dia, depois um almocinho num restaurante da orla, à tarde um soninho leve, e à noite todos os filmes escolhidos no capricho, para escapar das escolas de samba. Para usufruir desse imenso prazer, deve-se ligar a TV, ver a primeira escola desfilar, a segunda, e só aí, aliviado, começar a sessão de cinema.

Lá pelas 3h da manhã, vale ligar a TV mais uma vez, se atordoar com a animação das escolas, e aí exercer seu sagrado direito de escolha, isto é, desligar a máquina e dormir o sono dos justos, sabendo que amanhã é feriado, terça e quarta também, e que se está longe desse insensato mundo. Oh, felicidade.

Mas é bom se preparar; pode acontecer de, às 7h da noite de hoje, dar uma aflição e uma vontade louca de ir ver o desfile. Se isso acontecer, ligue para aquela amiga que trabalha no camarote de uma cervejaria e peça uma camiseta pelo amor de Deus.

Ela resolve: amigas são para essas coisas também. Aí é só botar um tênis, uma flor no cabelo, exagerar na maquiagem e ir para a avenida, sem nem lembrar que tenha cogitado, por um só momento, ficar longe da festa.

E se alguém ousar te cobrar uma certa coerência -afinal, você não disse que não queria nem ouvir falar de samba?-, responda que faz parte dos direitos do homem mudar de opinião, sobretudo quando se está falando de Carnaval.

E vá, e caia na folia, e torça por sua escola, e se prepare para o desfile de amanhã, que você também vai assistir, claro; e se o seu patrão for tão insensível que queira que você trabalhe na Quarta-Feira de Cinzas, mande alguém ligar amanhã cedo dizendo que na quarta vai acordar com febre, porque nada será mais importante nesse dia do que acompanhar o julgamento das escolas.

Seu coração vai parar a cada nota 10 (10, nota 10) que sua escola receber, e se ela não ganhar é claro que a culpa foi dos juízes desonestos, mas não há de ser nada. Porque no próximo sábado vai ser o desfile das campeãs, e quem sabe ainda dá tempo para desfilar?

Não se pode confiar em quem sempre gostou de Carnaval e diz que mudou, que agora só quer paz e sossego; um ex-carnavalesco é coisa que não existe -eu, pelo menos, não conheço.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 2 de fevereiro de 2008


Diogo Mainardi

Fantasioso? Sórdido?

"No Natal de 2007, recebi de presente um documento sobre a Telecom Italia. Ele confirma integralmente uma reportagem que VEJA publicou dois anos atrás. Na verdade, a história é ainda mais enlameada"

No Natal de 2005, recebi documentos sobre um pagamento de 3,25 milhões de reais da Telecom Italia a Naji Nahas. Tudo ali era suspeito. Um: o pagamento fora efetuado em dinheiro vivo.

Dois: o carro-forte entregara o dinheiro na sede da Telecom Italia, em vez de entregá-lo diretamente a Naji Nahas. Três: Naji Nahas faturara 263.000 reais a mais do que o previsto em seu contrato de consultoria.

Passei toda a papelada a VEJA, que publicou uma reportagem sobre o assunto, seguindo o rastro daqueles 3,25 milhões de reais. A reportagem, baseada em fontes da própria Telecom Italia, dizia que o dinheiro fora entregue a um diretor da empresa, Ludgero Pattaro.

Ele o enfiara numa maleta e, acompanhado por guarda-costas, encaminhara-se ao hotel Renaissance, onde o repassara a um destinatário de identidade desconhecida. Numa coluna publicada ao lado da reportagem, contei os bastidores do acordo secreto entre a Telecom Italia e o lulismo, sugerindo que aquele dinheiro teria sido usado para azeitar o relacionamento da empresa com o poder político.

O presidente da Telecom Italia, Giorgio Della Seta, classificou as denúncias de VEJA como "absurdas, fantasiosas e sórdidas". Ele afirmou ignorar o que Ludgero Pattaro fazia no hotel Renaissance com uma maleta cheia de dinheiro.

Naji Nahas também contestou a reportagem, declarando ter recebido regularmente em seu escritório o valor de 3,25 milhões de reais. O caso parecia morto. Eu parecia absurdo, fantasioso e sórdido.

No Natal de 2007, ocorreu uma reviravolta. Recebi de presente mais um documento. Ele consta do inquérito da magistratura milanesa contra a Telecom Italia e confirma integralmente o que VEJA publicou dois anos atrás.

Trata-se de um depoimento de Marco Girardi, diretor financeiro da Telecom Italia no Brasil, realizado no dia 11 de novembro passado. Ele confessou o seguinte:

• Giorgio Della Seta, aquele das denúncias "absurdas, fantasiosas e sórdidas", amigo de Lula e de Marta Suplicy, mandou-o preparar um pacote com 1,3 milhão de dólares em dinheiro vivo.

• Um carro-forte fez a entrega de 3,25 milhões de reais na sede da Telecom Italia. Ali mesmo, um cambista trocou os reais por dólares.

• Os dólares foram entregues a Ludgero Pattaro, assessor direto de Giorgio Della Seta. Ele acondicionou o dinheiro em pacotes de diferentes valores, enfiou-o numa maleta e dirigiu-se ao hotel Renaissance, repassando-o a algumas pessoas que Marco Girardi nunca vira.

• Alguns dias depois, Giorgio Della Seta mandou o diretor financeiro entregar mais 406.000 reais a Ludgero Pattaro, para um pagamento análogo.

Mas a história é ainda mais enlameada. Outro diretor da Telecom Italia, Marco Bonera, admitiu em juízo ter transportado 300.000 dólares a Brasília, para recompensar um grupo de deputados federais. A leitura da confissão de Marco Girardi mostra que aqueles 300 000 dólares, adiantados pela Pirelli como "despesas de viagem", fazem parte da transação com Naji Nahas.

Até 2006, a Telecom Italia foi a grande aliada do lulismo na batalha pelo espólio da Brasil Telecom. Um espólio que está para ser cedido à Telemar, por meio de um decreto presidencial.

Ludgero Pattaro, o homem da maleta cheia de dólares, é candidato a uma das vagas no conselho consultivo da Anatel, que analisará o negócio. Absurdo? Fantasioso? Sórdido? Sim, tudo isso.

Ponto de vista: Lya Luft

Cotas: o justo e o injusto

"A idéia das cotas reforça conceitos nefastos:

o de que negros são menos capazes e precisam de um empurrão e o de que a escola pública é péssima e não tem salvação"

O medo do diferente causa conflitos por toda parte, em circunstâncias as mais variadas. Alguns são embates espantosos, outros são mal-entendidos sutis, mas em tudo existe sofrimento, maldade explícita ou silenciosa perfídia, mágoa, frustração e injustiça.

Ilustração Atômica Studio

Cresci numa cidadezinha onde as pessoas (as famílias, sobretudo) se dividiam entre católicos e protestantes.

Muita dor nasceu disso. Casamentos foram proibidos, convívios prejudicados, vidas podadas. Hoje, essa diferença nem entra em cogitação quando se formam pares amorosos ou círculos de amigos.

Mas, como o mundo anda em círculos ou elipses, neste momento, neste nosso país, muito se fala em uma questão que estimula tristemente a diferença racial e social: as cotas de ingresso em universidades para estudantes negros e/ou saídos de escolas públicas.

O tema libera muita verborragia populista e burra, produz frustração e hostilidade. Instiga o preconceito racial e social.

Todas as "bondades" dirigidas aos integrantes de alguma minoria, seja de gênero, raça ou condição social, realçam o fato de que eles estão em desvantagem, precisam desse destaque especial porque, devido a algum fator que pode ser de raça, gênero, escolaridade ou outros, não estão no desejado patamar de autonomia e valorização. Que pena.

Nas universidades inicia-se a batalha pelas cotas. Alunos que se saíram bem no vestibular – só quem já teve filhos e netos nessa situação conhece o sacrifício, a disciplina, o estudo e os gastos implicados nisso – são rejeitados em troca de quem se saiu menos bem mas é de origem africana ou vem de escola pública.

E os outros? Os pobres brancos, os remediados de origem portuguesa, italiana, polonesa, alemã, ou o que for, cujos pais lutaram duramente para lhes dar casa, saúde, educação?

A idéia das cotas reforça dois conceitos nefastos: o de que negros são menos capazes, e por isso precisam desse empurrão, e o de que a escola pública é péssima e não tem salvação. É uma idéia esquisita, mal pensada e mal executada.

Teremos agora famílias brancas e pobres para as quais perderá o sentido lutar para que seus filhos tenham boa escolaridade e consigam entrar numa universidade, porque o lugar deles será concedido a outro. Mais uma vez, relega-se o estudo a qualquer coisa de menor importância.

Lembro-me da fase, há talvez vinte anos ou mais, em que filhos de agricultores que quisessem entrar nas faculdades de agronomia (e veterinária?) ali chegavam através de cotas, pela chamada "lei do boi". Constatou-se, porém, que verdadeiros filhos de agricultores eram em número reduzido.

Os beneficiados eram em geral filhos de pais ricos, donos de algum sítio próximo, que com esse recurso acabaram ocupando o lugar de alunos que mereciam, pelo esforço, aplicação, estudo e nota, aquela oportunidade.

Muita injustiça assim se cometeu, até que os pais, entrando na Justiça, conseguiram por liminares que seus filhos recebessem o lugar que lhes era devido por direito. Finalmente a lei do boi foi para o brejo.

Nem todos os envolvidos nessa nova lei discriminatória e injusta são responsáveis por esse desmando. Os alunos beneficiados têm todo o direito de reivindicar uma possibilidade que se lhes oferece.

Mas o triste é serem massa de manobra para um populismo interesseiro, vítimas de desinformação e de uma visão estreita, que os deixa em má posição.

Não entram na universidade por mérito pessoal e pelo apoio da família, mas pelo que o governo, melancolicamente, considera deficiência: a raça ou a escola de onde vieram – esta, aliás, oferecida pelo próprio governo.

Lamento essa trapalhada que prejudica a todos: os que são oficialmente considerados menos capacitados, e por isso recebem o pirulito do favorecimento, e os que ficam chupando o dedo da frustração, não importando os anos de estudo, a batalha dos pais e seu mérito pessoal. Meus pêsames, mais uma vez, à educação brasileira.

Lya Luft é escritora

CIÊNCIA DO AMOR

Por que nós amamos

A ciência descobre quais são as reações do organismo que fazem as pessoas se apaixonarem e levar o romance adiante

Por MÔNICA TARANTINO

TESTE Um beijo, como este da cena do filme Modelos, entre Lee Bowman e Rita Hayworth, ajuda a saber se o toque dará prazer

Como descrever um legítimo ataque de paixão? Há quem sinta a mente embaralhada, a boca seca, palpitações e até uma estranha perda momentânea da coordenação motora.

Na prática, render-se às emoções da paixão a ponto de protagonizar cenas ridículas, como a de ficar parado diante do amado sem concatenar uma única frase com começo, meio e fim, faz parte do anedotário de cada um de nós.

A novidade é que, mais recentemente, a paixão virou tópico de grande interesse da neurociência, um ramo do estudo científico que se dedica a decifrar como o cérebro funciona.

Os cientistas estão se esforçando para explicar, por exemplo, os processos que desencadeiam uma revolução bioquímica no organismo de homens e mulheres a partir de um simples olhar e quais as diferenças entre a paixão e o amor.

O que se quer é entender por que amamos, como amamos e quais as repercussões que esse sentimento apresenta para a mente e o corpo.

Uma das primeiras respostas obtidas é a de que amamos para garantir a sobrevivência da nossa espécie. O que é surpreendente é a sofisticação da qual o corpo lança mão para que esse objetivo seja atingido.

Uma das teorias mais fascinantes elaboradas sobre o assunto é a que afirma que os sentidos – visão, olfato, paladar, tato e audição – agem em conjunto para rastrear no alvo sinais químicos para selecionar se ele tem características compatíveis para garantir a diversidade necessária à continuidade do ser humano.

“As pessoas sempre perguntam por que uma menina linda fica com o feioso em vez do bonitão.

Eis aí uma pista sobre as escolhas”, explica Ricardo Monezi, professor de uma disciplina chamada fisiologia da afetividade, ministrada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo.

O que o estudioso quer dizer é que muito antes de se encantar com um rosto bonito ou uma boa conversa, ele ou ela foram estimulados por outros fatores sem saber.

O cheiro é um deles. Não se trata de ser atraído pelo perfume da moda, mas por um conjunto de moléculas exaladas pela pele chamadas feromônios.

Essas substâncias despertam reações de atração ou de rejeição, dependendo de cada um. Ou seja, o mesmo cheiro funciona como um ímã para um e como um repelente para outro.

Estudo mostrou que mulheres com vozes consideradas atraentes são as que possuem cintura fina e quadris largos

Não se sabe o que determina essas diferenças nas respostas ao mesmo estímulo, embora a ciência se empenhe em descobrir a resposta. Um dos investigadores desse mistério é o cientista Charles Wysocki, do Monell Chemical Senses Center, nos EUA.

Em entrevista à ISTOÉ, ele disse acreditar na possibilidade de a aprendizagem ou as experiências de cada pessoa influenciarem a preferência de um odor corporal em relação a outro. “As expectativas de prazer ou aquelas mantidas em relação à reprodução também podem desempenhar um papel importante nesse processo”, disse o cientista.

Há casos nos quais os feromônios provocam reações mais ou menos homogêneas. Foi o que revelou um trabalho publicado no ano passado, coordenado pela cientista Donatella Marazzitti, da Universidade de Pisa, na Itália.

A pesquisa mostrou que a soma das gorjetas recebidas por dançarinas de strip-tease sofria uma generosa elevação no período da ovulação (quando um óvulo maduro sai do ovário e segue pelas trompas até o útero. Se não for fecundado nesse percurso, será eliminado na menstruação).

A explicação é que provavelmente os feromônios exalados durante esses dias tornem os homens mais protetores e ciumentos.

Outra fonte de insumos para a paixão mais influente do que se imagina é a voz. O cientista Gordon Gallup, da Universidade de Albany, nos Estados Unidos, recentemente fez descobertas interessantes.

Ele pediu a um grupo de voluntários para classificar como atraente ou pouco atraente mais de uma centena de vozes gravadas.

As donas de vozes consideradas mais sedutoras eram mulheres que tinham cintura fina e quadris largos, justamente as formas associadas a um maior potencial de atração sexual.

Além disso, as mais votadas estavam em plena fase ovulatória, o que leva a supor que há uma silenciosa conspiração do organismo feminino para atrair parceiros exatamente no período em que o corpo está pronto para conceber um filho.

“O mero som de uma voz pode dar pistas sobre o potencial reprodutivo dessa pessoa”, disse Gallup à ISTOÉ. Mas isso ninguém consegue perceber no plano consciente.



Com o tempo, o corpo fabrica compostos que dão sensação de segurança e calma

A partir do momento em que a ligação se estabelece, o cérebro dos apaixonados inicia um processo desenhado para que a conexão se fortaleça. Diversas regiões são ativadas e substâncias liberadas (leia quadro).

Depois, se tudo segue como mandam os genes – e o coração, obviamente –, os especialistas acreditam que após cerca de 18 a 30 meses, o corpo já não responde com tanta euforia às doses mais elevadas de serotonina que ocorrem durante a paixão.

Após esse período, tanto faz se a união está dando certo ou não, a serotonina volta aos níveis normais e não há mais alimento extra para os neurônios que se utilizam dela para fomentar a paixão.

Outra possibilidade é o casal querer seguir em frente. Nesse caso, a serotonina é substituída pela dopamina, ligada a sensações de segurança e estabilidade.

Além disso, outros hormônios começam a agir com mais intensidade e quantidade. No homem, um deles é a vasopressina, ligado à paternidade. Na mulher, sobe a ocitocina, associada ao relaxamento e à formação de vínculos.

Tudo isso contribui para o surgimento de laços estáveis, favoráveis à criação de uma família. Se por algum motivo um desses mecanismos falhar, sempre há o alento de que uma nova paixão pode aparecer quando menos se espera.


02 de fevereiro de 2008
N° 15498 - CLÁUDIA LAITANO


Viva o biquíni

Às vésperas da festa nacional dos corpos sarados, um dos assuntos desta semana, vejam só, foi o direito de usar biquíni GG. A pequena polêmica de verão começou com uma idéia de mau gosto e cresceu ao longo dos últimos dias com comentários em blogs e sites de variedades.

O ponto de partida foi a capa de uma revista de fofocas que estampava duas fotos de praia.

De um lado, a cantora Preta Gil, 33 anos, baixinha, gordinha, mãe de um garoto de 13 anos. Do outro a apresentadora Sabrina Sato, 27 anos, sem filhos, malhada e turbinada. A intenção, não exatamente sutil, era explicitada com dois carimbos: "não vou" e "vou", respectivamente.

Quando olhei a capa da revista, lembrei de um episódio curioso que aconteceu comigo há alguns anos. Estava atravessando a rua meio distraída, ou apressada, ou os dois, e por pouco não fui atropelada.

O motorista se assustou - e como voltar e me atropelar direito talvez causasse alguns problemas, preferiu uma vingança mais ardilosa. Colocou a cabeça para fora da janela e gritou, para toda a rua ouvir: "Além de cega é feia!".

Como Preta Gil - e a grande maioria das mulheres - mantenho com minha auto-estima uma relação de altos, baixos e médios. Isso significa acordar um dia ou outro sentindo-se um desastre, noutros simplesmente opaca e, de vez em quando - ainda bem - linda e colocada.

Mas ouvir um anônimo bobalhão me chamando de feia no meio da rua teve exatamente o efeito planejado. Fiquei chocada, paralisada, a um passo de chorar como uma menina que perdeu a boneca.

Tudo isso por mais ou menos 30 segundos - o tempo de juntar a auto-estima do chão e terminar de atravessar a rua.

Moral da história: é muito fácil atingir a auto-estima de uma mulher a respeito de sua aparência. Tão fácil que beira a covardia. Isso porque todas as críticas sobre forma, tamanho e embalagem que possam ser feitas passam antes pela nossa cabeça, sem que ninguém precise gritar impropérios no meio da rua.

Minha reação ao ver a capa da revista, portanto, foi de imediata empatia com a mulher comum, a moça sem corpo malhado que vai à praia de biquíni e estende sua esteira ao lado de uma menina de corpo perfeito sem necessariamente sentir-se inferior.

Porque fazer isso é sempre uma vitória - diante das próprias inseguranças, antes de mais nada, mas também diante de convenções que parecem verdade absoluta quando são apenas determinações culturais.

Cultura é o caldo em que estamos mergulhados sem nem nos darmos conta, é o que nos induz a tomar decisões que nos parecem obrigatórias - até que alguém comece a fazer diferente.

Por estranho que pareça, ir ou não à praia de biquíni nem sempre é uma decisão individual, que se toma em casa calmamente diante do espelho.

Uma jovem mulher dos anos 70 tinha uma relação com o corpo, nós temos outra. Européias, japonesas, americanas encaram a beleza - e a ausência de - de formas diferentes.

Ou seja: a época e o lugar contam mais do que os quilos extras na hora de decidir o que queremos ou não usar na praia. Preta Gil pode não ser padrão de beleza em nenhuma praia do mundo nos dias de hoje, mas ter ou não ter liberdade para exibir um corpo imperfeito é, sim, cultural e portanto questionável.

Talvez o biquíni da Preta Gil seja uma bandeira de liberdade, como foi a sunga de crochê do Fernando Gabeira ou o barrigão de fora de Leila Diniz. Mudanças de costumes acontecem o tempo todo, e em todos lugares - inclusive na praia. Longa vida ao biquíni GG.

A professora de inglês Lígia Beskow de Freitas escreve para corrigir o título da coluna da semana passada, Smoking/No Smoking:

"O correto seria Smoking or NON-smoking, já que são adjetivos; o segundo recebe o prefixo NON". Obrigada, professora, essa eu não erro mais!