sábado, 21 de junho de 2008



22 de junho de 2008
N° 15640 - Martha Medeiros


Um homem para combinar com o vestido

Dois filmes em um. É assim que defino o badaladésimo Sex and the City.

Assisti a pouquíssimos episódios da série de tevê, e essa falta de intimidade com as quatro moças me deu um certo distanciamento para analisar o que se passa ali, na tela do cinema, naquela Nova York hiperglamurizada, onde o mundo fashion é um quinto personagem.

Em minha análise de leiga, considero que a primeira parte do filme vai até a cena do casamento de Carrie com Mr. Big. Até ali, vi mais ou menos o que estava preparada para ver: um desfile non-sense de roupas que nenhuma mortal se atreveria a vestir à luz do dia (alguns dos modelitos eu não vestiria nem no escuro, mas como sigo a cartilha do "menos é mais", não sirvo de parâmetro).

Percebi também uma certa histeria feminina, aquele desespero que fica latente quando um grupo de mulheres se encontra para falar de bolsas, sapatos e homens, nessa ordem. Uma confraria de colecionadoras - dos três itens!

Até mesmo a direção do filme, nessa primeira parte, me pareceu mais frenética, ou eu é que estava lenta demais e não consegui acompanhar a rapidez dos acontecimentos e a excitação daquelas quatro.

Então acaba a cena do casamento, e a impressão que dá é que houve uma troca de roteirista - um novo filme começa. Não que se transforme automaticamente num drama existencialista francês.

Segue glamouroso, divertido, mas já não é tão fútil. É como se as quatro tivessem levado um balde de água fria (de certa forma, levaram) e resolvessem parar de pensar como colegiais, dando lugar a questionamentos mais maduros.

Claro, a profundidade é a mesma da série de tevê - água pela canela - mas o filme mostra claramente a confusão que algumas mulheres fazem ao alcançar sua independência: acreditam que o individualismo faz parte do pacote. Não é bem assim.

Trabalhar, ganhar nosso próprio dinheiro, defender nossas idéias, o.k., é imprescindível. Mas estamos tão obcecadas em proteger essa importante conquista que passamos a ter dificuldade em partilhá-la com quem, a priori, não faz parte do nosso time: eles.

Se por um lado é muito bacana ver no filme as quatro personagens cultivando uma amizade saudável, íntima e verdadeira entre elas, por outro soa meio antigo que essa amizade seja a única maneira de elas conseguirem conjugar a primeira pessoa do plural: nós. Nós, mulheres. Nós, as poderosas. Nós com nossos filhos, nossas secretárias e nossos amigos gays.

Na hora de pensar em "nós" em termos de casal, surge a dificuldade do relacionamento. Algumas mulheres encaram os homens como acessórios de luxo. Não pega bem sair de casa sem um homem, assim como não pega bem sair de casa com qualquer roupa. É como se os homens tivessem que combinar com nosso vestido.

Seguimos acreditando que mulher sem homem é uma mulher incompleta, e eles acabaram se transformando, também, num objeto de consumo. Só que estruturar uma relação afetiva requer bem mais do que bom gosto.

De todos os Manolo Blahnik, Prada e Louis Vuitton que fazem parte do elenco de Sex and the City, o que mais curti foi ver as mulheres se darem conta de que, ao abrirem seus closets, não encontrarão um amor prêt-à-porter.

Desaprendemos a dizer "nós" quando tivemos que lutar pelos nossos direitos: maternidade, profissão, sexo livre, tudo isso passou a dizer respeito ao "eu" da mulher, e foi fundamental esse mergulho particular para chegar até aqui.

Agora é hora de reaprendermos a dizer o "nós", não mais como a parte submissa da dupla, e sim como parceiras de um homem que já entendeu o novo mundo em que vive, já nos aceitou como independentes, e que agora nos quer menos controladoras e mais amigas, mais amantes, e por que não dizer, mais despidas.

Gostei, ela sabe das coisas. Um ótimo domingo para todos nós e um excelente início de semana.

Diogo Mainardi

O cimento da tragédia

"É um erro imaginar que se possa combater a criminalidade com a reforma de uns casebres, o Extreme Makeover: Home Edition da Igreja Universal. Se a Nona Brigada de Infantaria Motorizada subisse o morro para desmantelar o tráfico, talvez a barbárie pudesse ser contida"

– O presidente Lula gostou muito, dando a ordem para que fosse executado.

Do que é que Lula gostou tanto assim? Do projeto Cimento Social, do bispo Crivella. Quem declarou isso foi o vice-presidente José Alencar, num ato público, no Rio de Janeiro, menos de três meses atrás.

O bispo Crivella está sendo politicamente responsabilizado pelo que aconteceu na última semana, quando alguns soldados arregimentados pelo projeto Cimento Social se envolveram no assassinato de moradores de um morro carioca.

Mas havia alguém acima dele. Quem? O de sempre: Lula. Segundo José Alencar, o projeto só saiu porque Lula mandou o Ministério das Cidades liberar o dinheiro. E só saiu também porque o presidente mandou o Comando Militar tocar as obras na favela.

O projeto Cimento Social tinha tudo para dar errado. E deu. O cadastro dos moradores cujas casas seriam reformadas foi feito por integrantes da Igreja Universal, do bispo Crivella.

O Ministério das Cidades liberou o dinheiro antes mesmo que o projeto de lei sobre a matéria fosse aprovado. As obras foram usadas como material de propaganda do bispo Crivella, candidato à prefeitura do Rio de Janeiro. O Comando Militar do Leste emitiu um parecer contrário ao projeto, temendo algo parecido com o que de fato ocorreu.

Um documento militar acusou dois assessores do bispo Crivella – chamados de Eduardo de Tal e Gilmar de Tal – de negociar uma trégua com os traficantes do Comando Vermelho, que dominavam o morro. Foi desse projeto que Lula de Tal gostou muito, "dando a ordem para que fosse executado".

Lula loteou a Petrobras e o Banco do Brasil. Agora sabemos que ele deu um passo adiante e loteou também as Forças Armadas. O PRB, do bispo Crivella, aparentemente ficou com a Nona Brigada de Infantaria Motorizada, que ocupou por seis meses seu curral eleitoral.

O Instituto Pereira Passos me forneceu os dados sobre a criminalidade na zona atendida pelos militares, no primeiro trimestre de 2008, comparando-os aos do mesmo período do ano anterior. Aumentaram os roubos.

Aumentaram os furtos. Os assassinatos diminuíram ligeiramente. Para Tarso Genro, a tragédia demonstrou de uma vez por todas que é um erro empregar soldados no combate aos traficantes. Como assim? Quem combateu os traficantes? Os soldados só ajudaram a caiar uns muros e a trocar umas telhas.

O que a tragédia demonstrou foi justamente o contrário: é um erro imaginar que se possa combater a criminalidade com a reforma de uns casebres, o Extreme Makeover: Home Edition da Igreja Universal.

Se a Nona Brigada de Infantaria Motorizada subisse o morro para desmantelar o tráfico, talvez a barbárie pudesse ser contida.

Os soldados entregaram os suspeitos de pertencer ao Comando Vermelho aos assassinos de um bando inimigo, o Ada. Pelo que se soube, o chefe do Ada gostou muito. E deu a ordem para que eles fossem executados.

Ponto de vista: Lya Luft

Ainda se caçam bruxas

"Cair na armadilha do rancor primitivo e da atitude destrutiva torna a vida uma selva onde pessoas honradas são impedidas de executar projetos positivos, e às vezes têm sua vida injustamente aniquilada"

O motorista de táxi de um aeroporto deste Brasil xingava um político, acusado no rádio por ter-se encontrado ali mesmo, dias atrás, com um suspeito de corrupção. "Viu só?", ele vociferava, "viu só?".

Cansada de aeroporto e do assunto – e porque logo antes alguém tinha me dito: "Olha aí o fulano, fotografado ao lado do sicrano, que é suspeito de corrupção! Certamente ele também é..." –, fui curta e direta: "Meu filho, se sua namorada conversar com uma moça desonesta e disserem que por isso ela também é desonesta, você vai gostar?".

Ele olhou sobre o ombro, meio espantado: "Sabe que a senhora tem razão?". Comentei: "Chama-se a isso caça às bruxas". Chegando ao meu destino, não tive tempo de explicar mais.

Na Idade Média, uma tropa de psicopatas autorizados caçava gente com o entusiasmo com que se caçariam animais selvagens.

O maior divertimento era julgar, esfolar vivo e queimar na fogueira, depois de outros inimagináveis sofrimentos. Quem eram as vítimas da Igreja daqueles tempos? Em geral mulheres simples, que lidavam com o que hoje chamaríamos medicina alternativa – a sabedoria popular de suas antepassadas.

Havia também os bruxos, os que diferiam da doutrina religiosa ou da política dominante, contrariavam alguma autoridade, ou, ainda, aqueles cujo vizinho não ia com sua cara. Relatos e atas oficiais desses processos públicos enchem milhares de páginas da época, e nos dão vergonha de ser humanos.

Eu, que em dois livros infantis criei a simpática e marota Bruxa Boa Lilibeth, achava que neste mundo dito moderno nossa falta de limite estava só na má-criação em casa e na escola, na inversão de público e privado, no interesse pelas calcinhas de certas moças (ou na falta delas) e na postura geral de desleixo que se espalha.

Engano meu. Melhoramos, nos civilizamos, cortamos alguns preconceitos. A servidão, ao menos concreta e legal, acabou.

Servidões morais temos muitas. Uma delas é esse impulso primitivo, das cavernas, de destruir, essa ferocidade no julgar e sentenciar, essa vontade de que o outro se dê mal. Parecemos doentes de ansiedade por ver alguém enxovalhado, por baixo, sem remissão. Muito além da lei e da Justiça, queremos sangue – ainda que seja o sangue moral, o sangue da alma.

Sou quase fanática contra os crimes, incluindo a corrupção. Valorizo muitíssimo a lei. Quero o infrator julgado e severamente punido. Apóio todas as justas ações da polícia para proteger a sociedade, isto é, cada um de nós. Mas desgostam-me procedimentos que agridem levianamente, interrogatórios em vez de diálogos, ataques de qualquer ângulo, a execução moral de inocentes na fogueira da opinião pública, mais disposta a ver o mal em tudo.

Por toda parte no país, ao lado da Justiça e da lei que funcionam, esta parece ser a hora dos cantos escuros da psique humana e da democracia, lá onde lei e Justiça não funcionam direito. Ainda bem que a maioria de nós não é assim.

Naquela mesma viagem, numa palestra, um grupo de jovens questionava a agressividade com que se tratam pessoas em situações como as das mais variadas CPIs, desde o tempo do falecido mensalão. Há interrogatórios violentos, alusões cruéis, ofensas diretas; quebram-se todos os limites da decência em que deviam ocorrer dignamente perguntas e esclarecimentos entre homens dignos.

Os jovens tinham razão na sua perplexidade. Respondi que bastava ler um pouco de história dos povos para ver que não há nada de novo entre nós. Às vezes, como grupos ou como sociedade, adoecemos.

Não é generalizado, não é permanente: por isso podemos acreditar em respeito no convívio público.

Cair na armadilha do rancor primitivo e da atitude destrutiva torna a vida uma selva onde pessoas honradas são impedidas de executar projetos positivos, e às vezes têm sua vida injustamente aniquilada.

É quando as bruxas boas fogem nas suas vassouras, deixando-nos um mundo mais sombrio.

Lya Luft é escritora

Ruth de Aquino, de Pequim

Especial China - A nova superpotência

ÉPOCA foi a Pequim, Xangai e a vilarejos rurais para entender esse país que atrai de empresas a jovens estrangeiros em busca do mundo novo. Nesta reportagem e na série que publicaremos até as Olimpíadas de Pequim, tentaremos desvendar o mistério chinês

Confira a seguir um trecho dessa reportagem que pode ser lida na íntegra na edição da revista Época de 23/junho/2008.

Assinantes têm acesso à íntegra no leia mais no final da página.

CONTRASTE

As gêmeas Huizi (à esq.) e Liangzi, de 18 anos, vivem num campus universitário em Pequim. Huizi se veste assim e pinta cada unha com esmalte de cor diferente. Liangzi foi produzida para lembrar a China antiga. Como todas as jovens urbanas, não querem casar antes dos 30 anosQuando as gêmeas nasceram, há 18 anos, na província de Liaoning, no nordeste chinês, seus pais se sentiram abençoados.

Era como tirar a sorte num país que proíbe mais de um filho. Ter gêmeos era uma forma de driblar legalmente o decreto governamental que criou na China uma geração de 90 milhões de filhos únicos – estudiosos, trabalhadores, competitivos, patriotas e orgulhosos de ser chineses.

Num país de mais de 5 mil anos, regido mais pela superstição que pela religião, os pais deram às filhas os nomes de Chen Huizi e Chen Liangzi. Chen é o sobrenome das gêmeas (na China, o nome de família vem em primeiro lugar). Huizi significa “filha inteligente”, e Liangzi “filha de bom coração”.

Elas tinham 17 meses quando seus pais se divorciaram. O divórcio ainda é um tabu tão forte na China que as duas mentiram para mim num primeiro momento: disseram que o pai havia morrido. Como os jovens do interior, de família pobre com alguma posse, Huizi e Liangzi foram enviadas a Pequim para estudar na universidade. Dormem com mais quatro estudantes.

Não usam celular porque a mãe acha caras as tarifas. São exceção. Há mais de 540 milhões de celulares na China. As gêmeas querem ser aeromoças. “Para aprender etiqueta, saber comer com garfo e faca e voar no céu”, diz Huizi, cinco minutos mais velha que Liangzi. Não sonham casar tão cedo. Acham a vida de casada um tédio.

Sua diversão maior é cantar nos karaokês, numa das centenas de salas fechadas e computadorizadas, em prédios da rede Party World, onde imitam suas cantoras favoritas: a coreana Cai Yan ou a banda S.H.E, de Taiwan.

As duas irmãs acham o presidente, Hu Jintao, e o primeiro-ministro, Wen Jiabao, “boas pessoas, que se preocupam com os pobres e os velhos”. Sabem que a internet é filtrada por dezenas de milhares de censores, mas não se importam. “A internet é proibida”, diz a “filha inteligente”. Elas não têm televisão. Devem assistir às Olimpíadas na TV comum da universidade.

Não imaginavam que os Jogos já custaram ao país US$ 34 bilhões, nem avaliam quanto isso significa, porque recebem 600 iuanes de mesada (US$ 90). Sabem que a festa olímpica vai começar no dia 8 do mês 8 de 2008, porque o número oito tem o som de “prosperidade” no mandarim, idioma chinês.

Encontrei Huizi, a “inteligente”, ao lado de uma escola de wushu, conjunto das artes marciais chinesas, à espera do namorado. Estava vestida como posou para a foto ao lado, um visual pop.

Sua irmã foi produzida num longo de seda vermelho da estilista Gu Lin. Nos trajes, a convivência entre o novo e o antigo na China borbulhante de hoje. O calor era tão intenso em Pequim que cobrou um preço sobre a magreza etérea das moças. Liangzi, a “de bom coração”, desmaiou na sessão de fotos na rua.

Para as gêmeas, que vivem num país onde filmes com sexo, livros políticos e shows de rock americano são proibidos, o Ocidente é sinônimo de “mistério”. Para nós, ocidentais, a China é exatamente o mesmo.

Um mistério. Na China, um carro é registrado a cada seis segundos. Cidades brotam como cogumelos. Arranha-céus sobem como aspargos no horizonte.

A China é um caleidoscópio que confunde, irrita e fascina. Tudo impressiona pela magnitude. São quase 10 milhões de quilômetros quadrados, 1,3 bilhão de habitantes, um quinto da população mundial. São 56 etnias, mas 92% pertencem à etnia Han. O idioma oficial, o mandarim, tem 80 mil caracteres.


21 de junho de 2008
N° 15639 - Nilson Souza


Madrastas

O filme Branca de Neve e os Sete Anões acaba de ser escolhido o primeiro de seu gênero pelo Instituto de Cinema Americano, que divulgou esta semana o ranking das cem melhores obras cinematográficas dos últimos cem anos.

O cinema deu forma, cores e a emoção do movimento a esta que é uma das mais fantásticas histórias infantis de todos os tempos, recolhida pelos irmãos Grimm na memória popular alemã, mas de origem desconhecida.

É uma fábula cheia de mensagens positivas, mas com uma terrível maldição que perdura até hoje: a rotulação das madrastas como pessoas más e invejosas.

Branca de Neve é linda e ingênua, os anões são trabalhadores e simpáticos, o príncipe é valente e generoso, mas o personagem mais marcante da história é mesmo a rainha, com seu espelho mágico, seu ciúme e sua maçã envenenada.

É em torno dela que a trama gira. Na ânsia doentia de ser mais bela do que a enteada, ela se transforma em bruxa e abre a caixa de maldades.

Nenhuma é bem-sucedida, pois até o sono eterno acaba sendo interrompido pelo beijo de Sua Alteza. Mas o estereótipo ficou: madrasta virou sinônimo de mulher má. O Aurelião chega a usar um palavrão para definir o termo: mulher ou mãe descaroável. Credo!

Pois bem, os costumes mudaram e hoje cada família tem uma ou mais madrastas, pois as pessoas casam-se, descasam-se, recasam-se, e as crianças crescem convivendo com homens e mulheres que nem sempre são os seus pais biológicos.

Neste contubérnio moderno, muitas mães emprestadas, certamente a absoluta maioria, desmentem o rótulo, são carinhosas, cuidam bem dos filhos das outras mulheres, amam e se esforçam para serem amadas.

Para driblar o estigma, algumas preferem ser chamadas de tias, de amigas, de qualquer coisa que não lembre a denominação infamante. Ainda que de vez em quando uma ou outra encarne o espírito da bruxa má, são exceções.

Quase todas que conheço fazem o possível para vencer a maldição, dedicam-se de corpo e alma à conquista dos enteados e ficam felizes quando recebem um retorno em carinho e reconhecimento. São umas injustiçadas as madrastas.

Mereciam, no mínimo, que a história fosse reescrita e que o filme festejado recebesse uma continuação, para a qual permito-me imaginar um final feliz. Uma criança beija a bruxa e o feitiço se desfaz: todos nós acordamos e paramos de estigmatizar estas segundas mães.

Ótimo sábado excelente fim de semana especialmente para você.

sexta-feira, 20 de junho de 2008



20 de junho de 2008
N° 15638 - Liberato Vieira da Cunha


As pessoas em geral

Uma leitora, que requer anonimato, e que por isso aqui chamarei de X., me escreve para contar uma fábula. Em sua pequena cidade, que apelidarei de Y., desabou certa vez um ciclone.

Depois que as pessoas em geral trataram de desimpedir as ruas, de abrigar as famílias sem lar no ginásio municipal, de cobrir as casas que tinham perdido o telhado, o boêmio local perguntou o que fariam pela Praça da Matriz.

A Praça da Matriz possuía um roseiral, um chafariz que à noite projetava uma cascata em várias cores, três estátuas de ninfas tombadas pelo vendaval. Tudo aliás estava arrasado pelo vento e pela tormenta.

As pessoas em geral opinaram que aquilo podia esperar, mas o boêmio local, que tratarei de Z., espantosamente sóbrio, argumentou que a Praça da Matriz ocupava um lugar no coração de todos eles e que seria uma vergonha deixá-la assim, humilhada e ofendida.

E com tanta segurança discursou que as pessoas em geral reservaram um fim de semana para repor o roseiral, iluminar a cascata e reerguer as ninfas às suas posições originais.

Foi quando o boêmio local lembrou que a biblioteca, inundada por uma espécie de maremoto, merecia atenção urgente. As partes inferiores das estantes, precisamente onde ficavam as obras históricas, eram as mais maltratadas. As pessoas em geral torceram o nariz para aquele capricho, mas terminaram montando um pelotão de resgate dos livros ameaçados.

O boêmio local recordou então o museu que, como ficava numa ladeira, represara em seus degraus as vagas. Toda a sala que preservava a herança dos primeiros povoadores havia sido alagada. As pessoas em geral acharam um desperdício, mas uma equipe foi destacada para salvar potes, flechas, cachimbos de gerações de índios exterminados.

O boêmio local não descansou.

Evocou as perdas do Arquivo Público, do Cemitério, do Solar da Condessa, do Coral dos Meninos, da Orquestra de Violões, do Clube de Xadrez.

Sustentou que, como todos se tinham dado as mãos na adversidade, era hora de se mostrarem mais solidários e renunciarem a pequenos egoísmos. Só que, a essa altura, as pessoas em geral começaram a achar que ele estava muito saliente e o trancafiaram dentro de uma garrafa.

Neste dia/noite quando começa o inverno, chove nesta Porto e que por isso não está nada alegre. Mesmo assim, uma ótima sexta-feira e um excelente fim de semana.

sábado, 14 de junho de 2008



15 de junho de 2008
N° 15633 - Martha Medeiros


Dentro da mala

Viajar de avião já teve seu encantamento, hoje é um incômodo. Fila no check in, controle de bagagem, detector de metais, espera na sala de embarque e o indefectível aviso de que o vôo sairá com atraso.

Depois ficar enlatado dentro da aeronave mal podendo se mexer, rezar para que um jatinho não colida com a gente, que o controlador de vôo não esteja cansado e, por fim, ter que aguardar sua mala surgir na esteira, e ela sempre será a última a aparecer.

Se aparecer.

Na última vez que saí do país, viajei com uma mala, digamos, bem nutrida. Fiquei fora 15 dias e levei um pedacinho da minha vida comigo. Passei por todas as etapas da chatice de voar e quando chegou a hora da esteira, adivinhe: extravio.

Nenhuma notícia da bagagem. A recomendação que recebi da companhia aérea: "Vá para seu hotel e quando localizarmos sua mala, a entregaremos lá. No máximo até amanhã ela aparece".

Numa cidade estranha, em outro país, eu me encontrava apenas com a roupa do corpo e meus documentos. Nada mais. "No máximo até amanhã" era uma infinidade de tempo, isso na hipótese de ela reaparecer mesmo. E se a mala tivesse sido desviada para a Namíbia e de lá nunca mais voltasse?

Eis uma experiência para avaliar seu apego às coisas que realmente importam. Claro que você vai lembrar daquele vestido que talvez nunca mais veja ou do sapato que usou só uma vez, mas isso tem mesmo tanto valor? Eu sentia falta era da minha escova de dentes.

E de uma foto que eu havia levado das minhas filhas, e que era a minha preferida. E de um anel que joalheiro nenhum daria um níquel, mas que pra mim valia como se fosse um diamante da Tiffany. O anel havia sido da minha avó.

E meu secador de cabelos. E meu creme depilatório. E meus batons. "No máximo até amanhã" eu teria virado uma mulher das selvas.

Dentro da mala estava meu diário de viagens, onde já havia relatado os primeiros dias transcorridos, além das dicas de lugares sugeridos pelos amigos e observações que, de cabeça, não conseguiria recuperar. Dentro da mala, também, a máquina fotográfica já com um monte de fotos armazenadas.

Uma farmácia em qualquer esquina resolve as necessidades práticas mais urgentes, mas e aquilo que não se substitui? Como, por exemplo, uma echarpe que foi comprada há anos num mercado de rua e que, dito assim, parece um trapo, mas que é uma peça de estimação com história na minha vida.

É nestas horas que a gente pensa: ok, são coisas materiais, tudo se repõe ou se esquece. Mas às vezes elas não estão apenas na categoria do material, e sim do emocional. Não se repõe nem se esquece.

Eu já sentia saudades de tudo isso e, mesmo podendo comprar qualquer jeans e camiseta para seguir viagem, me sentia desconfortavelmente nua.

À noite, a mala estava no hall do hotel, devolvida intacta. Reouve o anel da minha avó, meu diário de viagens, a máquina fotográfica e a echarpe. Tudo parte da memória, que, no final das contas, é o que mais tememos perder pelo caminho.

Ótimo domingo excelente final de semana.

Diogo Mainardi

Dois estalos — e virei Newton

"Além de cobrar 1 220 448 reais, Teixeira se atribuía a seguinte vitória: ‘Tivemos êxito integral na defesa jurídica dos interesses do grupo, livrando-o, até o momento, da sucessão das dívidas trabalhistas da Varig’"

Me deu um estalo durante o depoimento de Denise Abreu no Senado. Se eu fosse Newton, teria descoberto a lei da gravidade. Eu sou o Newton do lulismo. Cada um tem o Newton que merece. Estou para Newton assim como o lulismo está para as leis.

Acompanhe. Denise Abreu declarou que foi convocada por Dilma Rousseff dezenove dias depois de ser empossada na Anac. Isso significa que o encontro ocorreu precisamente em 8 de abril de 2006. Dilma Rousseff teria falado sobre a necessidade de criar um plano emergencial para atender os passageiros da Varig, porque o fim da empresa era iminente. Vinte dias mais tarde, Denise Abreu foi novamente convocada ao Palácio do Planalto.

O tom de Dilma Rousseff era outro. Segundo Denise Abreu, ela agora fazia de tudo para agilizar a venda da Varig aos sócios arrebanhados pelo fundo americano Matlin Patterson. Foi nesse momento do depoimento que me deu o estalo: o que aconteceu entre os dias 8 e 28 de abril?

Qual foi o fator que pode ter determinado o novo rumo do negócio? Quem teria persuadido o Palácio do Planalto a mudar de idéia, de uma hora para a outra? O que teria induzido a Casa Civil a pressionar a Anac no sentido de ignorar a suspeita de que os compradores da Varig eram apenas testas-de-ferro do fundo americano?

A resposta à primeira pergunta foi moleza. Fiz dois telefonemas e descobri que o fato mais marcante ocorrido no período entre 8 e 28 de abril de 2006 foi a entrada em cena de Roberto Teixeira.

Para ser mais exato, ele apresentou sua proposta de honorários aos sócios do fundo americano em 15 de abril. Foi imediatamente contratado. Falta descobrir o seguinte: ele se reuniu com Dilma Rousseff naqueles dias? Mais importante: ele se reuniu com Lula?

Durante o depoimento de Denise Abreu, me deu um segundo estalo. Dois estalos no mesmo dia podem ser considerados um feito histórico. E o segundo estalo foi ainda melhor do que o primeiro, porque corroborado por um documento inédito.

Os compradores da Varig foram isentados do pagamento das dívidas fiscais e trabalhistas da companhia aérea. Esse é um dos aspectos mais nebulosos do negócio.

No interrogatório a Denise Abreu, os senadores lulistas insistiram que o procurador-geral da Fazenda e o juiz encarregado do caso decidiram a matéria com total autonomia, baseados em argumentos puramente técnicos, sem nenhuma interferência política.

Meu estalo me levou a perguntar qual havia sido o papel de Roberto Teixeira nessa história. Fiz mais dois telefonemas e descobri um documento assinado pelo próprio Roberto Teixeira, datado de 24 de janeiro de 2008.

Além de cobrar 1.220.448 reais dos sócios da Matlin Patterson, ele se atribuía a seguinte vitória: "Tivemos êxito integral na defesa jurídica dos interesses do grupo, livrando-o, até o momento, da sucessão das dívidas trabalhistas da Varig, que a muitos pareceria impossível".

Alguns dos principais escritórios de advocacia do Brasil, como Pinheiro Neto e Machado Meyer, foram consultados sobre o assunto. A todos eles pareceu impossível livrar a Varig das dívidas.

O compadre de Lula dispunha de outros meios. Segundo seu cliente Marco Antonio Audi, Roberto Teixeira tinha "trânsito privilegiado" nos órgãos federais. A ele, tudo podia parecer possível.

Ponto de vista: Stephen Kanitz

São Paulo vai parar

"Se você está parado no trânsito e na vida, lute para que nossos administradores públicos ocupem os postos para os quais foram treinados"

A cidade de São Paulo vai parar definitivamente em 2012, por congestionamento terminal, e boa parte do Brasil parará como conseqüência. Isso porque São Paulo é o centro administrativo do Brasil. Mais de 50% das 1 000 maiores empresas deste país têm a sede localizada na capital paulista.

Os administradores dessas empresas, em vez de planejar a produção do país, fazer orçamentos para investimentos futuros, programar a distribuição e a logística, controlar e minimizar os custos, intervir aqui e ali, estarão parados no trânsito. Se usarem o celular, serão multados.

Ilustração Atômica Studio

Infelizmente, nossa elite, o governo, os empresários e os intelectuais não sabem disso e não percebem o perigo. Muitos agem até contra os administradores.

Os seguidores de Adam Smith acham que os administradores em nada contribuem para a riqueza das nações. Eles acreditam que produtos chegam a nosso lar na hora certa, na quantidade certa, ao custo certo graças à "mão invisível" do seu deus "mercado".

Outros acadêmicos, como Joseph Schumpeter e John Maynard Keynes, acham que o crescimento depende do "espírito animal" dos empresários e empreendedores com boas idéias, e não dos administradores que as fazem acontecer. Uma afronta a todo administrador.

Se você também pensa assim, leia A Mão Visível: a Revolução Gerencial nos Negócios Americanos, de Alfred Chandler, escrito em 1977, nunca traduzido para o português. Chandler refuta Adam Smith, Joseph Schumpeter e a ingenuidade dos neoliberais.

Alfred P. Sloan Jr., o administrador da GM, e Henry Ford já em 1917 perceberam que o "mercado" não conseguiria produzir as 4 000 peças diferentes do automóvel na quantidade certa, com a qualidade necessária, nem, menos ainda, entregá-las na hora certa.

Foram os primeiros a rejeitar essa idolatria do mercado da Escola de Chicago e criaram estruturas e empresas complexas para produzir tudo internamente, com a qualidade e o cronograma necessários. Se dependessem do "mercado", nenhum veículo sairia funcionando.

O problema deste país é justamente esse. Administradores públicos treinados nas melhores escolas do Brasil são sistematicamente preteridos para cargos de ministros, cargos de confiança e postos de comando. Toda semana o governo recebe 96 milhões de reais de impostos dos 8 000 carros novos que entram em circulação na cidade de São Paulo.

Mesmo assim, estradas não são construídas. Isso porque falta a "mão visível do administrador público", preterido governo após governo por políticos e acadêmicos nem sempre com a experiência em planejamento e gestão adequada.

Em vez de mais impostos, mais taxas de pedágio, mais dias de proibição para circulação de veículos – as soluções apresentadas até agora –, administradores públicos teriam sugerido e feito o seguinte:

1. Investido boa parte dos 25 bilhões de reais de ICMS e IPI pagos anualmente pela indústria automobilística em estradas, sistemas viários e metrô.

2. Investido a totalidade dos 12 bilhões arrecadados pelo IPVA em ruas, estradas e transporte público. Impostos que permitiriam construir 20 000 quilômetros de estradas por ano.

3. Proibido estacionamento privado em vias públicas, especialmente de caçambas de entulho, um inaceitável uso privado de espaço público.

4. Permitido aos táxis esperar em qualquer ponto, em vez de voltar vazios ao ponto original.

5. Eliminado o rodízio. Oito por cento dos carros de São Paulo são velhos, mantidos por famílias abastadas para ser usados como o "carro do rodízio", que vive quebrando e congestionando o trânsito.

6. Instalado semáforos com contagem regressiva, para alertar o motorista distraído da frente.

Proibir estacionamento em vias públicas requer planejamento. Gastam-se quatro anos para construir estacionamentos verticais em cada esquina, dobrando o fluxo trafegável da cidade. Não é uma lei que possa vigorar no dia seguinte.

Se você está parado no trânsito e na vida, lute para que nossos administradores públicos ocupem os postos para os quais foram treinados.

Pergunte-lhes que outras soluções eles oferecem para nossos problemas. Entreviste-os, se você é um jornalista progressista preocupado com o marasmo da gestão pública em geral.

Eles são os profissionais mais treinados e preparados que temos para planejar o futuro deste país.

Stephen Kanitz é administrador (www.kanitz.com.br)

Por MÔNICA TARANTINO Ilustrações: FERNANDO BRUM

A nova arma contra o stress

Psicólogos ensinam uma moderna maneira de superar os traumas e desgastes do dia-a-dia - e ainda aprender com eles

De vez em quando, uma idéia contagia o mundo. Na área da psicologia e da psiquiatria, o mais recente conceito a virar moda é o da resiliência.

Nos últimos cinco anos, ele passou a fazer parte do vocabulário de universidades, serviços de apoio governamentais, hospitais e empresas.

O fenômeno é especialmente intenso nos Estados Unidos e no Canadá, mas está ocorrendo também em países como a França, a Alemanha e a Noruega, onde já existem centros de estudo e instituições dedicadas ao tema. Mas o que o termo pode acrescentar às nossas vidas? Muito. E o que ele significa?

É a mais nova arma usada para ajudar os indivíduos a suportar melhor as pressões da vida moderna. Sejam elas de grandes dimensões, como as perdas de emprego, sejam as pequenas, aquelas provocadas por aborrecimentos no trânsito, no cinema, em casa com a empregada doméstica ou com um vizinho.

Na verdade, resiliência é um conceito oriundo da física, que define a capacidade de um objeto retomar a sua forma original depois de sofrer um impacto. Como a bola de futebol depois do chute.

O que os especialistas estão fazendo é se apropriar da idéia para se referir à capacidade que uma pessoa tem de reestruturar sua vida após um impacto adverso de qualquer natureza, como explicou à ISTOÉ a cientista Anne Borge, do Instituto de Psicologia da Universidade de Oslo, na Noruega, uma das mais respeitadas autoridades nesse campo.

Resiliência significa o bom desenvolvimento em contextos significativamente desfavoráveis. É o reconhecimento de que existe uma grande variação nas respostas das pessoas a esses tipos de situações. Alguns sucumbem ao menor stress, enquanto outros lidam com sucesso com as mais terríveis experiências", disse.

No Brasil, o conceito começa a ganhar espaço. Na última semana, o Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP) anunciou a criação de grupos de resiliência com duração de três meses para pessoas que anseiam por uma maneira de enfrentar com menos sofrimento as agruras do dia-a-dia. Desde então, os telefones do Instituto de Psiquiatria não pararam mais de tocar.

A média é de 50 ligações por dia de interessados. À frente do projeto está o psiquiatra Elko Perissinotti, que desde janeiro ministra treinamentos semanais de resiliência a pacientes de síndrome do pânico, transtorno bipolar, fobia social e transtornos obsessivos-compulsivos, entre outros distúrbios.

"Essas pessoas se sentem muito fragilizadas. Muitas vezes, nem sequer conseguem dizer não por medo da rejeição. Dou a elas recursos para manejar melhor o cotidiano", situa o psiquiatra.

Com a ajuda de técnicas de psicodrama, durante esses encontros os participantes recriam as cenas problemáticas para que a platéia as discuta e proponha outros desfechos.

A receptividade à idéia de estender esse treinamento a indivíduos sem nenhum transtorno surpreendeu o psiquiatra. "Não esperava tanta gente", diz.

A perspectiva de sair com menos arranhões e até com saldo positivo dos impasses comuns na vida doméstica e profissional é sedutora.

As empresas sabem disso e têm investido nos cursos para aumentar o grau de resiliência dos funcionários, que, segundo uma pesquisa feita pela International Stress Management Association no Brasil (Isma-BR), é baixo.

No levantamento realizado pela entidade em três Estados brasileiros com 1.635 pessoas, apenas 227 delas reuniam as características que definem um ser resiliente. "Estamos falando da capacidade de a pessoa suportar o stress e superá-lo.

Ela cresce emocionalmente interpretando os problemas como desafios, resolvendo conflitos com criatividade e sendo flexível para se adaptar às situações", diz a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da entidade. Nos cursos que organiza nas empresas, ela mostra como essa competência pode ser desenvolvida.

"Os estudos revelam que ter boa auto-estima, objetivos claros em diversas áreas da vida, espiritualidade e fé e boas redes de apoio, como laços afetivos e familiares sólidos e verdadeiros torna as pessoas mais resilientes", explica. Mas não se deve confundir resiliência com conformismo.

Na prática, o esforço para fazer florescer a resiliência se confunde um pouco com as técnicas de controle do stress e outras aplicadas para lidar com situações complexas (chamadas de coping). "O controle do stress remete a métodos para lidar com a sobrecarga - entre eles fazer esporte ou meditação.

Já o coping refere-se às estratégias de enfrentamento que uma pessoa usa para suportar uma situação adversa. Diante da doença, pode rezar ou ir ao médico.

A resiliência está relacionada a esses aspectos, mas considera fatores internos e externos", explica o médico e psicoterapeuta João Figueiró, de São Paulo, pesquisador do HC/SP que estuda o tema.

O sentido da resiliência, para alguns especialistas, é ainda mais profundo e está conectado com os primeiros estudos sobre o assunto. No final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, os psicólogos começaram a estudar as características de pessoas que não tinham sucumbido aos terríveis sofrimentos dos campos de concentração nazistas.

Por que elas resistiram e outras não? O mesmo se via em crianças que conseguiam Fimanter o desenvolvimento normal, apesar da perda dos pais ou de terem sofrido traumas, como o assédio sexual. A princípio, pensava-se que possuíam algum tipo de invulnerabilidade, mas com o tempo as descobertas mostraram outras razões.

"Hoje sabemos que há fatores de proteção que podem ser estimulados desde a infância. Um deles é a sensação de ser amado", diz a psicóloga Sandra Cabral Baron, da Universidade Federal Fluminense e coordenadora da rede Resiliência, projeto que combina várias formas de expressão artística, como dança, pintura e música, para fortalecer a criançada em situação de risco nas favelas cariocas.

Na opinião da norueguesa Anne, de fato essas redes de apoio social, como organizações de bairro, entidades de jovens e até rodas de samba, têm um papel central na construção dessa capacidade.

A psicóloga Sandra segue a linha de ação do neuropsiquiatra francês Boris Cyrulnik, que tem viajado pelo mundo aplicando suas idéias sobre resiliência em países vitimados por catástrofes, como a Tailândia, atingida pelo tsunami, e a Bósnia, depois da guerra.

Autor de cinco livros, dois deles traduzidos para dez idiomas, Cyrulnik é o protagonista de uma grande polêmica no campo da psicologia. Ele contesta a idéia de que pessoas que passaram por grandes traumas ou carências terão seu desenvolvimento limitado para sempre.

"A nossa história não é nosso destino", afirma. Cyrulnik defende que é possível sobreviver criativamente aos traumas e redescobrir a alegria de viver, desde que a pessoa tenha experimentado na infância uma boa relação afetiva.

Por sua força, as teorias da resiliência são um campo novo e vasto que tem se mostrado extremamente importante em face das turbulências do mundo concontemporâneo.

Elas têm sido cada vez mais aplicadas no atendimento a populações vulneráveis e castigadas por guerras e desastres naturais.

Nas intervenções feitas nesses locais, os pesquisadores têm compreendido melhor os mecanismos que fazem uma pessoa e até uma cidade inteira responder de maneira positiva e criativa a uma catástrofe.

Algumas dessas constatações foram tema de debate em abril deste ano, durante uma conferência que reuniu em Estocolmo, na Suécia, intelectuais de vários campos do conhecimento, como ecologistas, especialistas em ética, psicologia e sociologia. "Temos olhado apenas para as adversidades.

Mas a existência de sociedades que se desenvolvem melhor do que outras, mesmo com problemas semelhantes, mostra que o ser humano tem recursos de autocorreção.

E que eles nos dão a esperança de achar caminhos para melhorar os métodos de prevenção e proteção da saúde e bem-estar humanos", afirma.


14 de junho de 2008
N° 15632 - Nilson Souza


Alienígenas

O primeiro frio de junho me fez espirrar, e me lembrei imediatamente daqueles índios isolados que apontavam suas flechas para o avião da Funai, nas imagens divulgadas ao mundo no mês passado.

Eram dois homens inteiramente pintados de vermelho e uma mulher coberta de tinta preta, eles aparentemente preparados para se defender da invasão alienígena e ela aparentemente apenas curiosa, pois não portava arma nem parecia tão assustada com a visão da máquina voadora.

Por que me lembrei deles? Ora, porque os especialistas vivem dizendo que um simples resfriado desses que nos atingem a cada inverno seria suficiente para dizimar tribos inteiras que nunca tiveram contato com as doenças do homem branco.

De minha parte, os irmãos selvagens podem ficar tranqüilos: não tenho a mínima vontade de pisar naquele fim de mundo cercado de verde, num ponto qualquer entre o Acre e o Peru.

Mas aquela imagem mexeu comigo. Não pude deixar de pensar que o avião dos pesquisadores deve ter assustado mais aquelas criaturas do que as caravelas européias no século 16. Com uma diferença abissal: os portugueses e os espanhóis não vieram para tirar fotografias dos nossos bisavós nativos.

Vieram para levar suas riquezas, para tomar-lhes as terras, para corromper suas vidas e para inocular a culpa e o pecado em suas almas ingênuas.

Agora, também aparentemente, somos alienígenas menos gananciosos. Por enquanto, num primeiro sobrevôo, nos contentamos com essas imagens digitais que capturam aquele mundo estranho no interior da Floresta Amazônica e o transportam quase que instantaneamente para a primeira página dos nossos jornais.

A cena causa duplo espanto: eles, com os corações aos pulos e o arco retesado, apontando flechas do passado para os nossos olhos; e nós, perplexos com a descoberta ancestral e com a existência de vida inteligente sem telefone celular, computador e televisão, mas acreditando que podemos vencer aquelas armas precárias com um simples espirro.

Alienígena é sempre o outro. E no entanto somos tão iguais nos nossos sentimentos, nos nossos assombros e nos nossos temores.

Aposto como no cair da noite, depois de tirar o medo da cabeça e o urucum do corpo, um daqueles grandalhões imberbes deve ter comentado baixinho para os companheiros de refeição, lá na língua deles, o mesmo que todos dissemos quando vimos as fotografias: - Que coisa!

segunda-feira, 9 de junho de 2008



09 de junho de 2008
N° 15627 - Kledir Ramil


Música e sexo

Música é que nem sexo. Dá pra fazer sozinho, mas se tiver parceria é muito melhor. A vantagem da música é que pode ser praticada em público, sem que ninguém ache isso esquisito.

Tanto uma coisa como a outra envolvem paixão e sensibilidade. Para se conseguir uma boa performance é preciso habilidade manual e emoção à flor da pele. Durante a atuação, dependendo do estilo, é possível que os corpos comecem a sacudir descontroladamente e ao final é comum que se escutem gritos e elogios.

O objetivo imediato das duas atividades é o mesmo: o prazer, o deleite, o entretenimento. A música é uma arte efêmera, precisa ser gravada para que as pessoas lembrem dela em sua plenitude.

O sexo também é uma arte fugaz e fica registrado apenas na nossa memória afetiva, já que não inventaram um CD pra isso. A prática sexual pode levar as pessoas ao paraíso.

Através da música é mais difícil chegar lá, mesmo que o arranjo use glissandos de harpa e badalar de sinos. O sexo também costuma dar frutos a médio prazo. Uma espécie de corrente sem fim, com gente saindo de dentro de gente.

A música pode ser praticada sem camisinha, mas em certos ambientes é recomendável o uso de casaca. O sexo, ao contrário, fica melhor se você estiver despido.

Para quem quer estudar, existem cursos nos quais se ensina harmonia, solfejo, regras e estruturas musicais. Já o sexo, não tem partitura. Você tem que improvisar. Não há escola. A única forma de aprender é com professor particular.

A música já entrou na era digital, circula pela rede em formato mp3. No caso do sexo, ainda estamos aguardando uma forma efetiva de compartilhamento online, que não fique só no voyeurismo. As novas telas com sensibilidade ao toque são um primeiro passo.

É possível praticar sexo escutando música, mas é difícil fazer música com alguém falando gracinhas no seu ouvido.

Para apresentar canções, além da boca, você vai precisar de alguns instrumentos. Para fazer amor, depende das suas preferências.

Em geral, quem trabalha com música recebe pagamento por direitos autorais. Quem é profissional do sexo, também. A diferença é que não há burocracia. Parafraseando Luis Fernando Veríssimo: o sexo, graças a Deus, não é organizado pelo Ecad.

Ótima Segunda-feira e uma excelente semana para todos nós. - Parabéns aos aniversariantes de ontem, de hoje e de amanhã

sábado, 7 de junho de 2008



08 de junho de 2008
N° 15626 - Martha Medeiros


Absolvendo o amor

Duas historinhas que envolvem o amor.

A primeira: uma mulher namora um príncipe encantado por três meses e então descobre que ele não é príncipe coisa nenhuma, e sim um bobalhão que não soube equalizar as diferenças e sumiu no mundo sem se despedir. Mais um, segundo ela. São todos assim, os homens. Ela resmunga: "não dá mesmo para acreditar no amor".

Peraí. Por que o amor tem que levar a culpa desses desencontros? Que a princesa não acredite mais no Pedro, no Paulo ou no Pafúncio, vá lá, mas responsabilizar o amor pelo fim de uma relação e a partir daí não querer mais se envolver com ninguém é preguiça de continuar tentando. Não foi o amor que caiu fora. Aliás, ele talvez nem tenha entrado nessa história.

Quando entra, é para contribuir, para apimentar, para fazer feliz. Se o relacionamento não dá certo, ou dá certo por um determinado tempo e depois acaba, o amor merece um aperto de mãos, um muito obrigada e até a próxima.

Fique com o cartão dele, você vai chamá-lo de novo, vai precisar de seus serviços, esteja certa. Dispense namorados, mas não dispense o amor, porque este estará sempre a postos. Viver sem amor por uns tempos é normal.

Viver sem amor pra sempre é azar ou incompetência. Só não pode ser uma escolha, nunca. Escolher não amar é suicídio simbólico, é não ter razão pra existir. Não adianta querer compensar com amor pelos amigos, filhos e cachorros, não é com eles que você fica de mãos dadas no cinema.

Segunda história. Uma mulher ama profundamente um homem e é por ele amada da mesma forma, os dois dormem embolados e se gostam de uma maneira quase indecente, de tão certo que dá a relação.

Tudo funciona como um relógio que ora atrasa, ora adianta, mas não pára, um tic-tac excitante que ela não divulga para as amigas, não espalha, adivinhe por quê: culpa.

Morre de culpa desse amor que funciona, desse amor que é desacreditado em matérias de jornal e em pesquisas, desse amor que deram como morto e enterrado, mas que na casa dela vive cheio de gás e que ameaça ser eterno. Culpa, a pobre mulher sente, e mais: sente medo. Nem sabe de quê, mas sente.

Medo de não merecê-lo, medo de perdê-lo, medo do dia seguinte, medo das estatísticas, medo dos exemplos das outras mulheres, daquela mulher lá do início do texto, por exemplo, que se iludiu com mais um bobalhão que desapareceu sem deixar rastro - ou bobalhona foi ela, nunca se sabe.

Mas o fato é que terminou o amor da mulher lá do início do texto, enquanto que essa mulher de fim de texto, essa criatura feliz e apaixonada, é ao mesmo tempo infeliz e temerosa porque teve a sorte de ser premiada com aquilo que tanta gente busca e pouco encontra: o tal amor como se sonha.

Uma mulher infeliz por ter amor de menos, outra infeliz por ter amor demais, e o amor injustamente crucificado por ambas.

Coitado do amor, é sempre acusado de provocar dor, quando deveria ser reverenciado simplesmente por ter acontecido em nossa vida, mesmo que sua passagem tenha sido breve. E se não foi, se permaneceu em nossa vida, aí é o luxo supremo.

Qualquer amor - até aqueles que a gente inventa - merece nossa total indulgência, porque quem costuma estragar tudo, caríssimos, não é ele, somos nós.

Um excelente domingo e um ótimo início de semana.
Goles de juventude

O resveratrol, encontrado no vinho tinto, retarda o envelhecimento, segundo uma pesquisa americana

Anna Paula Buchalla - Pedro Rubens

Nenhuma bebida atrai tanto a atenção da medicina quanto o vinho tinto. Seu consumo está associado a uma série de benefícios à saúde.

A mais recente descoberta sobre a bebida estende seus efeitos ao aumento da expectativa de vida – ao menos em ratos. Isso graças ao resveratrol, substância com propriedades antioxidantes e antiinflamatórias encontrada na casca e nas sementes das uvas vermelhas.

O estudo, feito por pesquisadores da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, e publicado na revista científica PLoS One, revelou que não são necessárias doses altas de resveratrol para que a substância tenha ação antienvelhecimento.

"Em baixas quantidades e consumido a partir dos 40 anos, já é possível obter os benefícios antiidade", diz um dos autores do trabalho, o brasileiro Tomas Prolla. O processo pelo qual o resveratrol retarda o envelhecimento se dá pelos mesmos mecanismos da restrição calórica.

Vários trabalhos (também em animais) já provaram que uma redução de 20% a 30% nas calorias consumidas diariamente aumenta em até 40% a longevidade – sem os efeitos mais perniciosos do envelhecimento.

Em ambos os casos, há uma alteração num conjunto de centenas de genes envolvidos na degradação celular.

A aposta da medicina no resveratrol é alta. Na semana passada, a gigante do setor farmacêutico GlaxoSmithKline pagou 720 milhões de dólares pelo laboratório Sirtris, que desenvolve medicamentos baseados em moléculas análogas à do resveratrol.

O fundador do Sirtris, o médico David Sinclair, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, descobriu que o resveratrol também age em outra frente antiidade: estimula a produção e o funcionamento de uma família de enzimas conhecidas como sirtuínas, que agem como guardiãs das células.

Em quantidades elevadas, essas enzimas tornam-se mais eficientes no reparo do DNA e, assim, prolongam a vida das células.

Beber vinho faz bem, mas, quando se fala em doses moderadas, não cabem aí subjetividades. O ideal são poucos copos por semana para todo mundo. "O consumo excessivo da bebida neutraliza seus benefícios. Adquire-se peso e, na pior das hipóteses, cirrose", diz o cardiologista Daniel Magnoni.

Os benefícios atribuídos ao vinho

Antienvelhecimento

O resveratrol é uma substância encontrada na casca da uva vermelha. O estudo mais recente indica que ela atua em um conjunto de genes associados ao envelhecimento. A substância retarda o processo de envelhecimento de vários tecidos, como o cerebral, o muscular e o cardíaco, em especial

Combate às doenças cardiovasculares

O resveratrol aumenta o HDL, o bom colesterol, e diminui o LDL, o colesterol ruim. Além disso, a substância é um potente vasodilatador que, ao relaxar as artérias, melhora a circulação sanguínea

Prevenção do câncer

Estudos em animais indicam que o resveratrol, por seus poderes antioxidantes, ao combater a ação dos radicais livres, preservaria as células de lesões que podem levar ao câncer

Combate a dores articulares

Atribui-se aos polifenóis, grupo do qual o resveratrol faz parte, capacidade analgésica – sobretudo em pacientes vítimas de artrite. A analgesia, ainda que baixa como mostram os estudos, deve-se às características antiinflamatórias da substância

Prevenção da doença de Alzheimer

O resveratrol, sugerem os estudos em neurologia, evitaria o depósito no cérebro das placas de proteína tóxicas, que levam os neurônios à morte


Diogo Mainardi
Portas escancaradas

"A Varig tinha um buraco de 7,9 bilhões de reais. Alguns dos maiores escritórios de advocacia do Brasil responderam que a própria Varig teria de arcar com a dívida.

Os empresários reunidos em torno de Roberto Teixeira sentiram-se amparados para apostar no contrário. Teixeira tinha o poder de escancarar as portas do governo. Ele fazia chover"

"Olhe Lula. Ele comemora a compra da Varig pela Gol. Olhe os donos da Gol. Eles também comemoram. Olhe essa figura de terno cinza. Quem é ele? Roberto Teixeira? O representante da Varig é Roberto Teixeira? Lula aceita ser visto ao seu lado, sem o menor constrangimento?"

Fiz esse comentário numa coluna do ano passado. A figura de terno cinza, Roberto Teixeira, acabou me processando. Eu sou o homem dos processos.

Falo mais com a Dra. Wardi, minha advogada, do que com minha mulher. Nesta semana, os desembargadores do Rio de Janeiro julgaram outro processo contra mim: o de Franklin Martins. Ele perdeu. Eu ganhei. Por unanimidade: 3 a 0.

Dez anos atrás, um relatório do Conselho de Ética do PT acusou Roberto Teixeira de fazer negócios nebulosos com prefeituras petistas, abusando "de sua amizade com Lula".

Na última quarta-feira, Denise Abreu mostrou que nada mudou de lá para cá. De acordo com ela, Dilma Rousseff pressionou a Anac a fim de facilitar a compra da Varig pelos empresários representados por Roberto Teixeira.

Outros membros da Anac confirmaram seu relato. Leur Lomanto declarou: "Os advogados da Varig informavam algo ao Palácio do Planalto, mas a realidade era outra". Quais eram esses advogados com acesso direto ao Palácio do Planalto? Roberto Teixeira e sua filha Valeska.

Quando foi leiloada, a Varig tinha um buraco de 7,9 bilhões de reais. A pergunta era: quem herdaria o passivo? Alguns dos maiores escritórios de advocacia do Brasil foram consultados sobre o assunto e responderam que a própria Varig teria de arcar com a dívida.

Só os empresários reunidos em torno de Roberto Teixeira se sentiram suficientemente amparados para apostar no contrário. Um deles, Marco Antonio Audi, afirmou que Roberto Teixeira tinha o poder de escancarar as portas do governo. Mais do que isso: ele fazia chover.

Os maiores credores da Varig eram estatais, como a Infraero e o INSS. Roberto Teixeira, segundo Marco Antonio Audi, simplesmente escancarou as portas dos gabinetes dos ministros encarregados dessas áreas, conduzindo-o ao encontro de Waldir Pires, da Defesa, e de Luiz Marinho, do Trabalho.

Em julho de 2006, os empresários representados por Roberto Teixeira finalmente con-seguiram arrematar a Varig. Pelo preço mínimo.

Lula os recebeu no dia seguinte, escancarando as portas do Palácio do Planalto, sem o menor constrangimento. Roberto Teixeira compareceu com as duas filhas, Larissa e Valeska, e com o genro, Cristiano.

Ele fez chover? Que sei lá eu. Só sei que, algumas semanas depois, seria dada a largada da campanha presidencial. E, nessas horas, é sempre bom ter gente cheia de dinheiro por perto, comemorando o fechamento de um negócio.

Ótimo sábado, excelente fim de semana.

Lya Luft é escritora - Ponto de vista: Lya Luft

Honrar pai e mãe

"Pais bonzinhos são tão danosos quanto pais indiferentes: o amor não se compra com presentes, nem fingindo não saber, desviando o olhar quando ele devia estar vigilante"

Se as relações familiares não fossem intrinsecamente complicadas, não existiria o mandamento "Honrarás pai e mãe". Comentário de grande sabedoria.

Assunto inesgotável. Como educar, como cuidar neste mundo maravilhoso e tresloucado, com tanta sedução e tanta informação – um mundo no qual, sobretudo na juventude, nem sempre há o necessário discernimento para escolher bem?

Saber distinguir o melhor do pior, ser capaz de observar e argumentar, são o melhor legado que família e escola podem dar.

Na família, fica abaixo só do afeto e da segurança emocional. Na escola, importa mais do que o acúmulo de informações e o espaço das brincadeiras, num sistema que aprendeu erroneamente que se deve ensinar como se o aluno não tivesse de aprender.

Fora disso, meus caros, não há salvação. Isso e professores supervalorizados e bem pagos, escola para todos – não mais milhões de crianças e jovens em casas cujo pátio é barro misturado a esgoto, ou na rua, com o crack e a prostituição.

Um ensino que dê muito e exija bastante: ou caímos na farra e no despreparo para a vida, que inclui graves decisões pessoais e um mercado de trabalho cruel.

Bem antes da escola vem o fundamental, o ambiente em casa, que marca o indivíduo pelo resto de sua jornada. Se esse ambiente for positivo, amoroso, a criança acreditará que amor e harmonia são possíveis, que ela pode ter e construir isso, e fará nesse sentido suas futuras escolhas pessoais.

Se o clima for de ressentimento, frieza, mágoas ocultas e desejos negativos, o chão por onde o indivíduo vai caminhar será esburacado. Mais irá tropeçar, mais irá quebrar a cara e escolher para si mesmo o pior.

Dificuldades familiares não têm a ver só com o natural conflito de gerações, mas também com a atitude geral dos pais. Eles têm entre si uma relação de lealdade, carinho, alegria?

São realmente interessados, tentam assumir suas responsabilidades grandes e difíceis? Foi-se o patriarcado, em que havia regras rígidas. Eu não quereria estar na pele dos infratores de então, os filhos que ousavam discordar.

Em lugar da anterior rigidez e distância, estabeleceu-se a alegre bagunça, com mais demonstrações de afeto, mais liberdade, mais respeito pelas individualidades – muitas vezes com resultados dramáticos. Lembro a frase que já escrevi nesta coluna, do psicólogo que me revelou: "A maior parte dos jovens perturbados que atendo não tem em casa pai e mãe, tem um gatão e uma gatinha".

Talvez tenham uma mãe que não troca cabeleireiro e academia por horas de afeto com os filhos, ou um pai que corre atrás do dinheiro necessário para manter a família acima de suas possibilidades, por ilusão sua ou desejo de status de uma mulher frívola.

Crianças de 11 anos freqüentam festinhas em que rola o inenarrável: onde estão pai e mãe? Adolescentezinhos rodam de madrugada pelas ruas, dirigindo bêbados ou drogados: onde estão pai e mãe?

Quase crianças passam fins de semana em casas de serra e praia reais ou fictícios, com adultos irresponsáveis ou só entre outras crianças, transando precocemente, drogando-se, engravidando, semeando infelicidade, culpa, desorientação pela vida afora. Onde estão os pais?

Ter filho é talvez a maior fonte de alegria, mas também é ser responsável, ah sim! Nisso sou rigorosa e pouco simpática, eu sei. Esse é o dilema fundamental numa sociedade que prega a liberalidade, o "divirta-se", o "cada um na sua", como num pré-apocalipse.

Mais grave ainda num momento em que a honradez de figuras públicas (que deveriam ser nossos guias e modelos) é quase uma extravagância.

Pais bonzinhos são tão danosos quanto pais indiferentes: o amor não se compra com presentes, nem permitindo tudo, nem fingindo não saber ou não querendo saber, muito menos desviando o olhar quando ele devia estar vigilante.

Quem ama cuida: velho princípio inegável, incontornável e imortal, tantas vezes violado.

Guilherme Evelyn

"Queriam me fritar"

A ex-diretora da Anac afirma que se sentiu abandonada pelo Palácio do Planalto

Denise Abreu se diz uma mulher "forte e aguerrida". "Nunca fui pau mandado de ninguém. É incompatível com a minha personalidade.

Aos 46 anos, espero me manter desse jeito", disse ela, ao conversar com ÉPOCA na última quarta-feira no escritório do seu assessor de imprensa, Carlos Brickmann, em São Paulo.

Ela recebeu a reportagem da revista depois de uma série de entrevistas para a televisão em que confirmou as suas denúncias de pressão da Casa Civil sobre a Anac no caso da transferência acionária da VarigLog.

Encarou as câmeras de TV, munida de uma caixinha de maquiagem e trajada com um tailleur preto com detalhes em branco, apropriado para os momentos graves.

Na conversa com ÉPOCA, Denise fumou vários cigarros. Mas só se exaltou ao interromper a entrevista para assistir à longa reportagem de oito minutos, apresentada pelo Jornal Nacional da TV Globo, sobre a repercussão de suas declarações.

Ficou indignada com as declarações do advogado Roberto Teixeira de que teria sumido com papéis do processo e soltou um comentário irado ao ver a imagem da ministra Dilma Rousseff. "Essa aí me triturou", disse.

SOBRE OS MOTIVOS DO DEPOIMENTO

"É muito difícil sair de um cargo injustiçado. Isso não faz parte do meu currículo. Nunca deixei um cargo por causa de processo, nunca. Eu não tenho sangue de barata. Revolvi dar esse entrevista para recomeçar a minha vida profissional com honra. Quero voltar a ser advogada e a ser consultora jurídica.

Aprendi com o meu pai, que é um homem forte, que um nome limpo é a coisa mais importante que você tem na vida. Fiz isso agora porque, depois que eu saí da Anac, eu tive necessidade de uma reconstrução pessoal sob o ponto de vista emocional muito grande. Eu tive depressão.

Eu tive problemas muito sérios de saúde. Em dezembro, eu extraí a vesícula com 93 pedras. Eu não tinha nada na vesícula até tudo isso acontecer. Se quiserem tirar fotos dos cortes, não tem problema nenhum. Tem atestado " (nesse momento da entrevista, ela levantou a blusa para exibir os cortes)

SOBRE O DOSSIÊ FALSO E O ALERTA DADO POR ERENICE GUERRA

"Quando estava no período de chamamento da CPI (CPI do Apagão Aéreo) e eu ficava na Anac até duas horas de manhã para ler documentos e me preparar, eu fui chamada pela Erenice na Casa Civil.

Ela disse que queria saber como eu estava emocionalmente, se eu tinha intenção de renunciar à Anac e, em passant, disse que tinha uma história de contas no exterior. Não dei a menor importância para o que estava sendo dito.

Para mim, isso não era denúncia. Tudo aquilo passou como mais uma fofoca. E eu respondi a ela: renunciar para quê? Vou assinar um atestado de culpa de coisas que eu não fiz?

Saí da Anac no dia 24 de agosto (de 2007). Em outubro, recebi anonimamente na casa da minha mãe, em São Paulo, um dossiê com folhas de uma movimentação bancária no Uruguai em meu nome, do Velloso (Jorge Velloso, ex-diretor) e do Anchieta Hélcias (dirigente do Sindicato Nacionald as Empresas Aéreas).

Peguei aquilo e pedi imediatamente ao meu criminalista (o advogado Roberto Podval) para levar aquilo na Polícia Federal e descobrir quem elaborou esse dossiê.

A PF disse que aquele documento não é fidedigno e entregou tudo à Polícia Civil de São Paulo para instaurar um inquérito e investigar três crimes cometidos contra mim: calúnia, tentativa de extorsão e crime contra a honra. Isso está na delegacia de Butantã, em São Paulo.

Contratei um advogado no Uruguai, passei uma procuração consularizada. O advogado foi aos estabelecimentos bancários, foi ao endereço que foi dado como meu domicílio, o banco fez todas as pesquisas e disse que tudo era falso. Tenho certeza de que não tenho essas contas.

Não sou duas Denises e continuo querendo saber quem é o autor do dossiê. Só sei que o dossiê traz um período da minha vida, circunscrita de agosto a novembro de 2006, exatamente o mesmo período em que a Anac estava autorizando a autorização de funcionamento jurídico da Varig"

SOBRE A ERENICE GUERRA

"Essa é realmente uma mulher muito poderosa"

SOBRE COMO ELA TERIA SIDO FRITADA PELO GOVERNO E FORÇADA A RENUNCIAR À ANA C

"Fui indiciada no relatório final da CPI do Senado preparado pelo senador João Pedro (PT-AM). Ele fez um substitutivo ao relatório do senador Demóstenes (Demóstenes Torres, do DEM de Goiás) e retirou todos os nomes da Infraero, sem exceção, que tinham processos no TCU com irregularidades em obras no montante de R$ 500 milhões.

Estranhamente, deixou dois nomes como indiciados: o de uma era denunciante do esquema de corrupção na Infraero, e o meu. Me indiciaram com base em nada. O J. Carlos (ex-presidente da Infraero) tinha denunciado que eu tinha feito um suposto lobby para tirar carga de Guarulhos para Ribeirão Preto. Depois, o J. Carlos se retratou e esse processo foi até arquivado.

Ali, eu percebi então que todo o aparato do governo e do PT estavam articulando a minha saída da Anac. O governo tirou Deus e o mundo do relatório da CPI e deixou o meu, contra o qual não havia nenhuma denúncia de corrupção. Não retirou porque não quiseram, e não quiseram porque queriam me fritar".

SOBRE A PRESSÃO DA CASA CIVIL NO EPISÓDIO DA VARIGLOG

"Entre abril e junho de 2006, os diretores da Anac foram chamados para uma reunião na Casa Civil com a ministra Dilma e a Erenice. Éramos eu, Milton Zuanazzi, Leur Lomanto e Jorge Velloso.

Ali, então aparece essa acusação de que nós estaríamos fazendo essas exigências (a comprovação da origem do capital e de renda dos compradores para a transferência do capital ) porque não queríamos que a Varig tivesse outro destino, outra solução.

Ela dividiu o colegiado em dois. Dois eram lobistas da Gol, que eram o Milton e o Leur, e dois cuidavam dos interesses da TAM, eu e o Jorge Velloso. Uma vez a Varig falida, a Tam e a Gol se locupletariam, passando a fazer a jus às rotas que seriam deixadas pela Varig.

Nessa mesma reunião, a ministra disse que essas duas exigências eram dois obstáculos burocráticos, tanto do vista legal, porque não estavam previstos na lei da Anac, quanto do ponto de vista fático. Era uma bobagem imaginar que nesse país todos os empresários tinham imposto de renda e compatível com aquilo que é aportado na empresa.

Com relação à origem de capital, também era uma bobagem porque poderia haver um contrato de gaveta e ninguém tomaria conhecimento dele. Eu respondi: está mantido o ofício, está mantida a exigência, porque havia sido uma decisão do colegiado.

E eu disse a ela que eu queria que aquela denúncia de favorecimento ao duopólio fosse provada, porque achava isso gravíssimo e ela tinha que investigar.

Ela disse que não tinha que provar nada, que ela só estava relatando que existia essa denúncia lá dentro do Palácio do Planalto. A reunião terminou como todas as reuniões na Casa Civil terminavam. Ela dizia que estava encerrado o assunto, tinha outras coisas a fazer. Ela ia para a sala dela e nós íamos embora"

SOBRE O PARECER DO PROCURADOR DA ANAC E A REUNIÃO DO DIA 23 DE JUNHO DE 2006

"No dia 23 de junho, o Milton (Zuanazzi) anunciou para os diretores que tinha de colocar o caso da Variglog na pauta de votação. Nem eu, nem o Leur, nem o Velloso havíamos chamado reunião nenhuma. O que fizemos os três?

Perguntamos: tem todos os pareceres técnicos prontos? Não estavam prontos. Foram chamadas as equipes para a conclusão dos pareceres. Nenhum foi conclusivo.

Eu, da minha parte, tinha uma representação do escritório Teixeira Martins contra mim no Ministério da Defesa -apesar de só ter um mês e meio de Anac. Tinha também uma ação judicial para derrubar os dois requisitos, no qual fui citada nominalmente.

Eu não poderia votar, porque me tornava impedida. Não sei se o Milton ligou para eles, não sei se a Erenice ligou para eles. Em duas horas, não havia mais representação e eles tinham retirado a ação judicial. A matéria deixou de ser subjudice e eu não estava mais impedida de votar.

Aí, eu, que já tinha sido desqualificada em todos os argumentos na Casa Civil, digo que é preciso pedir um parecer à procuradoria-geral da Anac por causa da dúvida em relação aos requisitos.

Aí, foi pedido o parecer ao procurador-geral da Anac (João Elídio), que estava internado. Eu não sei o que acontece que ele 'desinternou'. Entre a saída do hospital e a chegada ao Ministério da Defesa, ele relatou para mim que havia sido chamado à Casa Civil pela dra. Erenice.

Na ante-sala do quarto andar do Ministério da Defesa, desde as 9 horas, estavam a Valeska Teixeira (filho do Roberto Teixeira) e o Cristiano Martins (genro). Eu dizia: gente, como vamos discutir tudo isso, com uma advogada na porta, escutando tudo o que a gente está discutindo.

Não havia nem como debater entre nós essa matéria. Mudamos até de sala por conta disso para preservar um pouquinho a privacidade.

Eu disse ao Milton que ia embora para a minha casa. Não posso relatar o que aconteceu ntre as 19h e as 23h, porque eu não estava no Ministério da Defesa e queria que o parecer do procurador-geral fosse feito com independência absoluta. Às 11h da noite, o Milton disse que o parecer estava pronto e o procurador não manteve a posição quando elaboramos o ofício com as duas exigências.

O parecer estava dado por um especialista da Advocacia-Geral da União, que tinha independência para dar seus pareceres, e não havia o que contestar. Votamos com base no parecer e a transferência acionária foi acionada. Nós três (Denise, Leur e Velloso) saímos de lá convencidos de que tinha acabado essa história da Variglog.

Nenhum dos três sabíamos, naquele momento, que eles iriam comprar a Varig em leilão judicial. Eu lhe assevero que não houve nenhum comentário de que eles iriam comprar a Varig e, era por causa disso, que aquela correria estava ocorrendo."

RELAÇÃO DA ANAC COM A CASA CIVIL E O GOVERNO

"A Dilma fazia muitas perguntas, via Erenice, para mim em decorrência de que eu era a diretora que mais ficava na agência. Ela tinha até uma certa consideração pelas minhas opiniões nesse setor.

Mas havia um monitoramento e uma ingerência indevido sobre a Anac. Sob o ponto de vista da legalidade, não é correto que haja uma mistura entre os interesses políticos do poder executivo com a agência reguladora que deveria ter autonomia, orçamento, condições, estrutura e independência técnica para regular o setor e garantir o bom atendimento dos passageiros.

O fato de a Casa Civil convocar para uma reunião não impede que uma outra autoridade compareça. O problema surge quando você vai a uma reunião, é sabatinado e ficam contestando todas as suas posições, porque já existe uma pré-definição governamental e porque determinado tema tem que desembocar em determinada decisão.

Esta é a diferença. Nunca fomos tratados como autoridade. Sempre fomos tratados como tarefeiros. Tem uma tarefa, tem que ser feita"

SOBRE A RELAÇÃO COM JOSÉ DIRCEU

"Há muito tempo, não tenho falado com ele (mas ao ser perguntada por José Dirceu, quer saber o que saiu no blog do ex-ministro sobre o seu depoimento.

É informada pela assessora de imprensa de que não havia saído uma única linha de comentário). A última vez que eu estive com ele foi na comemoração do aniversário dele em Brasília. A namorada dele, Evanise, me convidou. Foi a primeira vez que eu reapareci em público e desde então nunca mais falei com Zé Dirceu.

Nunca tivemos um relacionamento íntimo. Ele foi meu colega de faculdade. Nunca tinha trabalhado com ele ou o PT, antes do governo Lula; Nunca fui militante do PT.

Quando trabalhei para o governo do PDSB em São Paulo, era vista pelos petistas como tucano. Quando fui trabalhar para o governo Lula, fiquei vista pelos tucanos como petista. Sempre fiquei nesse limbo.

Eu sou bem amiga da Evanise. A Evanise me ligou, quando esteve em São Paulo no casamento da Eleonora Mendes Caldeira(a socialite, casada com o empresário Ivo Rosset).

Nem atendi ao telefone exatamente porque já estava preparando a entrevista para o Estadão e sabia que iriam fazer uma tentativa de conectar meu nome ao do José Dirceu. José Dirceu nunca me pediu nada na Anac. Ele me conhece e me conhece bem “

SOBRE ROBERTO TEIXEIRA, ADVOGADO E AMIGO DE LULA

"Não conheço o Roberto Teixeira. A Valeska (filha do Roberto) tem uma postura truculenta, que exerce uma pressão psicológica sobre pessoas mais fragilizadas.

Ela entrou na minha sala no Rio de Janeiro e já chegou naquela atitude de sabe quem sou eu? Eu sou a afilhada do presidente da República e amiga do José Dirceu. Eu respondi: que bom para a sua relação pessoal ter esse trânsito e essa relação. Isso não muda nada essa minha decisão.

Teve também o episódio do Rio de Janeiro da convocação de distribuição de rotas da Varig para o exterior. Foi feita uma plenária. Na abertura da reunião, o Cristiano (marido de Valeska) disse que eu estava desacatando uma decisão judicial e chegou acompanhado de um oficial de Justiça e força policial.

Dizem que eles queriam comprovar uma desobediência da ordem do juiz por minha parte e me ver presa. Eles queriam o congelamento das rotas por três anos. A gente estava distribuindo rotas, com parecer da Secretaria do Direito Econômico.

Eles achavam que eu era a dona da Anac, mas ela não tem dono. A Anac é do Estado brasileiro".


07 de junho de 2008
N° 15625 - Nilson Souza


Olhando para as estrelas

Meu repórter interno acordou quando aquela doce senhora começou a contar sua vida de oito décadas. Então ela me disse que veio quase menina do interior do Estado para cursar Educação Física na Capital. Interrompi, curioso:

- A senhora praticava algum esporte?

Ela exprimiu uma negativa sorridente, seus olhos claros adquiriam um brilho ainda mais intenso e sussurrou como se fosse uma confissão:

- Eu queria ser bailarina. Adorava dançar.

Aquele olhar brilhante me voltou à memória esta semana, quando assisti a uma fulminante reportagem de televisão. Mostrava um grupo de bailarinas cegas apresentando-se diante de artistas norte-americanos que vieram fazer um show em nosso país. Questionada pela repórter, uma menininha de seis ou sete anos explicou com era fácil dançar:

- A gente só tem que andar na ponta dos pés e olhar para as estrelas.

A menina é uma das alunas da Associação de Ballet e Artes para Cegos Fernanda Bianchini, de São Paulo, que oferece aulas gratuitas de balé clássico, sapateado, dança de salão, capoeira, danças folclóricas e teatro para jovens carentes, todas deficientes visuais. A professora, que é bailarina e terapeuta, inventou um método de ensino pelo toque.

Parecia impossível que alguém aprendesse a dançar sem ver um movimento semelhante. Mas o que é impossível para quem está determinado a superar limites e limitações? A mestra conta que o aprendizado foi dela:

- No início, não foi fácil, mas a força de vontade em aprender algo novo foi tão grande, que eu nunca tive que ensinar duas vezes o mesmo passo, pois as alunas jamais esqueciam.

Na reportagem a que assisti, os norte-americanos foram às lágrimas - e os telespectadores também - quando uma das garotas acompanhou com as mãos o movimento de um bailarino profissional e logo em seguida executou a mesma coreografia, sem erros.

Processava-se, naquele instante mágico, o milagre da dança, desta fusão perfeita entre o corpo e a alma, que fez a velha senhora voltar ao seu tempo de menina quando recordou o seu sonho nunca realizado.

Que estranho poder tem a dança! Como mexe com os sentimentos e com a imaginação!

Foi uma outra jovem cega, com palavras simples, que legendou aquele instante especial da transformação do toque em ritmo:

- O importante é sentir. Ver, a gente imagina.

sexta-feira, 6 de junho de 2008



06 de junho de 2008
N° 15624 - Liberato Vieira da Cunha


As esquinas da Duque

O que eu fiz na tarde de 24 de agosto de 1984? Olhei para o mundo exterior à Redação de Zero Hora e vi aquela neve caindo sobre Porto Alegre e decorando com efêmeros ornatos os cabelos longos de uma bela garota que passava.

Numa manhã do mesmo ano, mas no começo de abril, descerrei as cortinas da janela do hotel em Steamboat Springs, que é uma aldeia que fica no alto das Montanhas Rochosas, e percebi que o universo se eclipsara, engolido por uma branca avalanche.

No final de novembro de 1991, vi neve três vezes no decorrer de uma mesma viagem. Primeiro foi em Hamburgo, e lá estava a cidade imersa num alvo pavê, que encobria os prédios, as calçadas, mas não as largas avenidas, desobstruídas por umas máquinas que lembravam Gregor Samsa em sua metamorfose.

Depois, num entardecer em Leipzig, onde o avião tinha aterrissado porque o aeroporto de Dresden submergira numa tempestade (tive de tomar um trem, felizmente com ótima calefação, para chegar a meu destino).

E ainda em Munique, onde o ar congelava até a voz das pessoas e a scort alemã, por sinal uma condessa, me sussurrou que na noite anterior os termômetros haviam descido a muitos graus abaixo de zero.

Corta para fevereiro de 1996. Eu havia decolado de Málaga, onde o clima era brandamente mediterrâneo, e ao baixar em Paris me senti em outra dimensão. Nevava - e creio que as pessoas, os parques, os edifícios nunca foram mais lindos do que naquele momento.

Conheci mais neves, mas calo sobre elas, ou esta crônica vai virar um boletim meteorológico. A neve só pousou sobre este texto porque no último sábado vivi uma experiência única.

Tendo de sair cedo de casa, e ouvido no rádio que o outono reinante levava mais jeito de inverno, me agasalhei e enfrentei a Rua Duque. Ao primeiro passo fora de casa, senti saudade do sobretudo.

A cada esquina, a cada vez que as ladeiras abriam o sinal para os ventos do Guaíba, se inaugurava a próxima Era Glacial. Um sopro gélido imobilizava os seres e as coisas.

Foi quando pensei: não precisamos de neve. Bastam-nos os vendavais das esquinas e escadarias da Rua Duque.

Excelente sexta-feira e um ótimo fim de semana para todos nós, ainda que com chuva por aqui, neste outono que já está indo embora.

quarta-feira, 4 de junho de 2008



04 de junho de 2008
N° 15622 - Martha Medeiros


O terrorismo tabagista

Em fevereiro de 2009, as embalagens de cigarro vão ficar ainda mais terroristas do que já são: foram divulgadas as novas fotos que serão publicadas nas carteiras.

É o supra-sumo do trash: um feto jogado num cinzeiro, um tórax aberto mostrando um coração infartado, um pé gangrenado, um menino observando o pai morrer, um corpo abandonado num necrotério e outras imagens que o Zé do Caixão adoraria estampar numa camiseta.

É importante que se restrinja o fumo em locais públicos e que se proíba a propaganda que glamoriza o cigarro. Muita gente morre por causa de doenças provocadas pelo tabagismo.

É um assunto de saúde pública. Mas essas embalagens, francamente. Os fumantes já sofrem uma patrulha incansável, não podem fumar em lugar algum e são rejeitados pela sociedade. Não precisam de mais esse constrangimento.

Não faz muito, os estúdios de Hanna Barbera foram pressionados a reformular alguns episódios antigos de seus desenhos animados. Não sei se chegou a acontecer, mas havia uma exigência de que todas as cenas em que Tom e Jerry aparecessem fumando fossem manipuladas a fim de que se desse um sumiço no cigarro.

O fato de Tom e Jerry torturarem um ao outro com crueldade nunca incomodou ninguém, mas fumar, que mau exemplo! Radicalismo, chama-se isso.

Ninguém deveria começar a fumar. Com as informações que se tem hoje, acender o primeiro cigarro é burrice. Mas ninguém precisa humilhar aqueles que têm nesse hábito um prazer.

Se a pessoa obedece às regras do bom convívio social (fuma longe dos outros), que seja deixado em paz: é um adulto e fez sua escolha. Acho imprescindível tentar despertar a consciência dos fumantes, mas sem histeria.

Sei que algumas pessoas são xiitas contra o cigarro e aplaudirão as embalagens apelativas. Outras acreditam que qualquer restrição é hipócrita, uma vez que ninguém impede a indústria tabagista de seguir fabricando o produto, e há ainda a questão do álcool, que segue sendo abertamente estimulado, apenas com a advertência de se beber com moderação.

Não há nada mais difícil do que encontrar o tal senso comum.

Reconheço a boa intenção do Ministério da Saúde, mas as novas embalagens de cigarro já viraram até piada (tem homem entrando em tabacaria e pedindo para trocar o maço da impotência sexual pelo maço do enfisema).

Claro que fumar é uma asneira, mas também não é pecado, não é crime. Os fumantes se privam em viagens, elevadores, cinemas, shoppings, restaurantes, não fumam nem na casa dos amigos, só com permissão, e numa área aberta.

Estão fazendo a parte deles, respeitando os não-fumantes e seguindo as imposições da lei. Nunca se rebelaram contra esse cerco, são até afáveis com quem lhes pressiona. E ainda assim a gente vai continuar infernizando os coitados? Não sou fumante, mas me solidarizo: é dificílimo parar de fumar.

É preciso procurar ajuda, estar realmente predisposto ou ter passado por algum susto real. As fotos nas embalagens servem apenas para xaropear.

Excelente quarta-feira, especialmente a você que vem aqui todos os dias, seja de que país for.