sábado, 16 de agosto de 2008


FLÁVIO R. SILVEIRA

Preços apimentados

Carros importados do México não pagam imposto de importação - e o benefício só aumenta o lucro das montadoras



O dólar baixo é a senha: produtos importados vão ficar mais baratos no mercado nacional. Isso, de fato, está acontecendo e, em vários setores, a importação de bens tem sido um antídoto contra pressões inflacionárias.

Somadas a acordos comerciais bilaterais, que reduzem ou até eliminam tarifas de importação de produtos vindos de determinados países, as possibilidades de queda de preço poderiam ser até maiores.

Não é o que acontece, no entanto, na área automobilística. Levantamento feito pela revista Motor Show, especializada no mercado de automóveis, revela que, apesar das isenções desses tributos, veículos fabricados em países com os quais o Brasil mantém acordos dessa natureza continuam tendo, nas concessionárias brasileiras, preços bastante superiores aos praticados nas revendas das nações de origem. O caso mexicano é emblemático.

Mesmo com a isenção total dos 35% de imposto de importação vigorando desde 2002, carros fabricados no México custam aqui entre 44% e 84% a mais que lá, mesmo depois de somados valores referentes a margens de lucro, investimentos em marketing, despesas com tributos internos (como ICMS, IPI, PIS e Cofins), logística e transporte e adaptação às normas técnicas brasileiras (confira tabela).

Assim, o que os deixaria mais acessíveis para o consumidor brasileiro tem sido mais vantajoso para as montadoras.



O estudo, realizado em parceria com a consultoria CSM Worldwide, analisou 11 carros de quatro marcas - Ford, Volkswagen, Nissan e Honda. Depois, repetiu a análise, desta vez com seis modelos de quatro montadoras - Volks, Audi, BMW e Honda - importados de países com os quais o Brasil não possui acordos automotivos.

Os resultados foram bastante diferentes. No segundo caso, os preços praticados no mercado brasileiro permitem um ganho menor aos fabricantes - entre 0,7% e 42%.

"As margens de lucro com os carros mexicanos é fantástica", conclui Paulo Cardamone, diretor do braço brasileiro da CSM Worldwide e responsável pelo Serviço de Previsão de Produção de Veículos na América do Sul.

Com 29 anos de experiência na indústria automotiva, Cardamone afirma que não há uma única razão para que os preços praticados aqui sejam mais altos que os de lá. Em primeiro lugar estaria o próprio mercado, que não exige uma política mais agressiva de redução nas tabelas.

Com os preços dos veículos nacionais e importados de outras regiões mais altos, não interessa às montadoras vender seus modelos mexicanos muito abaixo do valor de seus concorrentes, reduzindo sua margem de lucro.

Em alguns casos, trabalhar com preços menores poderia até mesmo "canibalizar" outros carros da marca produzidos no Brasil, mas de categoria inferior.

"O mercado é equilibrado pelos altos preços internos. Com o preço de um Mille 1.0 no Brasil compra- se um Honda Fit completo nos Estados Unidos", explica.

Parte da explicação pela disparidade dos preços dos automóveis no Brasil e em outros países deve-se, sem dúvida, à taxa de câmbio, que de fato faz com que, convertidos para o dólar, os carros nacionais estejam entre os mais caros do mundo.

Além disso, a indústria automobilística brasileira sofre com os pesados encargos tributários - os impostos sobre produção e comercialização chegam a 35% do valor dos veículos.

Com uma carga menor, alegam as montadoras, haveria uma sensível redução nas tabelas. Procuradas, elas informaram que, em virtude de a composição de preços de seus veículos ser um assunto estratégico e sigiloso, não comentariam o levantamento.

A Ford, através de sua assessoria de imprensa, afirmou que o sedã Fusion - o mais vendido dos mexicanos no Brasil - "exige adequação de itens às normas locais, bem como ao combustível do País" e que "a incidência dos custos de logística e transporte marítimo e terrestre tem forte impacto no preço de um veículo".

As respostas de Volks, Nissan e Honda seguiram pelo mesmo caminho.

CLAUDIA JORDÃO

Decifrando a matemática

Terror dos estudantes, a disciplina começa a ser ensinada de forma lúdica para cair no gosto dos alunos

GOSTO PELOS NÚMEROS O Colégio Ítaca estimula o consumo de literatura sobre matemática no ensino médio É na aula de culinária que os alunos da educação infantil do Pentágono têm o primeiro contato com números e medidas

A simples pronúncia das palavras álgebra, aritmética ou geometria é o suficiente para arrepiar os cabelos de boa parte dos alunos em uma sala de aula. A constatação não é de hoje.

Pelo contrário, geração após geração, a matemática tem lugar cativo no posto de disciplina mais detestada pelos estudantes. E não é só isso. Talvez por ocupar o topo da lista das menos amadas, ela não é assimilada como deveria – fato que também se confirma a cada ano.

De acordo com levantamento do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), divulgado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), os brasileiros obtiveram notas que os colocam na incômoda 53ª posição em matemática, num total de 57 países avaliados.

As provas foram realizadas em 2006 com estudantes de 15 anos e divulgadas no ano passado. Mas, afinal, por que essa disciplina continua sendo tão difícil de aprender – e ensinar – no Brasil?

A professora Suely Druck, presidente da Sociedade Brasileira de Matemática, garante que a aversão por números não é exclusividade do povo brasileiro. “Essa é uma disciplina complexa mesmo”, diz. Segundo Suely, há um problema central na hora de ensinála. “Diferentemente das outras matérias, a matemática é seqüencial.

Ou seja, se o aluno não aprender a somar e a subtrair, não será capaz de multiplicar ou dividir”, diz. E, no dia-a-dia escolar, essa característica se torna traiçoeira.

“Se a criança começa aprendendo mal a matéria, seu desempenho estará condenado pelos próximos anos, porque ela não conseguirá acompanhar e ficará desmotivada”, conclui. Por causa disso, a dirigente defende que professores de primeira a quarta série do ensino fundamental tenham formação específica na disciplina.

Atualmente, no País, eles são formados em pedagogia e o mesmo profissional inicia a criança no mundo das letras, das ciências e dos números.

“Nas viagens que faço, nos quatro cantos do País, é comum ouvir de professores que os estudantes chegam à quinta série detestando matemática”, conta.

No ensino fundamental do Magno, o xadrez é usado para trabalhar o raciocínio (acima). Já os pequenos aprendem fazendo compras

Ex-ministro da Educação no governo Lula, o senador Cristovam Buarque (PDTDF) faz coro. “A matemática precisa ser apresentada à criança quanto antes, por profissionais capacitados e de maneira interessante”, diz.

Na opinião do senador, pais e educadores devem proporcionar o uso de brinquedos educativos a partir de um ano de idade.

“É nessa fase que eles começam a tomar gosto pelas formas geométricas, além de usar a lógica e o raciocínio.” Boa parte das escolas de educação infantil no País já atentou para isso e busca ensinar matemática de maneira diferente na tentativa de desmistificar o bicho-papão.

É o caso do Colégio Pentágono, em São Paulo, que estimula o aluno através de aulas de culinária. Com dois anos de idade, as crianças são convidadas a contar – o número de ovos, por exemplo.

A partir dos quatro, elas vivenciam situações concretas de manipulação de quantidade, associadas ao conceito de números. “Ao medir a farinha a ser usada no biscoito, pão ou bolo, a criança está vivendo na prática a matemática”, diz Gisela Bertipaglia, coordenadora de educação infantil de uma das unidades da escola.

O Colégio Magno, também em São Paulo, desenvolve atividades com o objetivo de ensinar educação financeira para alunos de três a seis anos.

Para praticar os ensinamentos, eles usam dinheiro de mentira e compram produtos de brinquedo na Vila OZ – um espaço que reproduz uma cidade, com mercado, peixaria e floricultura, montado dentro da escola. “Nessa fase, se a criança não observa, ela não entende”, explica Cláudia Tricate, diretora da instituição.

A preocupação em preparar o estudante para um convívio menos estressante com a matéria se estende, em algumas escolas, para os ensinos fundamental e médio. No Magno, por exemplo, o xadrez é praticado nas aulas de matemática de primeira a nona série, como forma de melhorar o raciocínio do aluno.

No Colégio Ítaca, também na capital paulista, a professora de matemática Maria Ângela de Camargo concilia a disciplina em si com literatura sobre o assunto na sala de aula do segundo e terceiro ano do ensino médio.

“Nessa época, quando os jovens se preparam para o vestibular e têm que ler e estudar muito, é um desafio inovar”, diz ela. Mas há dez anos a educadora vence a batalha.

“Procuro aproveitar todas as oportunidades que tenho para mostrar que a matemática é sensacional”, diz. Os livros indicados são O diabo dos números (Hanz Magnus Enzensberger), aos alunos do segundo ano, e O último teorema de Fermat (Simon Singh), aos do terceiro.

Se em escolas particulares os professores encontram dificuldades para atrair os alunos e desmistificar a matemática, os problemas crescem em progressão geométrica no ensino público.

Nele, a educação brasileira vive um trinômio perverso: má-formação de professores, baixos salários e péssimas condições de ensino. “

O educador é solitário. Ele ensina sem biblioteca, sem laboratório, sem internet e sem tempo para se reciclar, por causa de sua carga horária pesada”, diz Suely. Na análise de Buarque, há também a contrapartida do estudante. “Criança pobre não se alimenta bem.

Portanto, é mais complicado ainda assimilar a matéria”. Com dificuldades maiores ou menores, essa disciplina cheia de números e símbolos ainda é o bicho papão das salas de aulas, apesar do empenho em torná-la menos assustadora e mais atraente.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008



15 de agosto de 2008
N° 15696 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Um jeito bem antigo

A senhora me detém na rua, sorri, pergunta como eu vou, indaga de pessoas que me são próximas, e a todas essas não faço a menor idéia de quem ela seja.

É tão amável e espontânea, que não me encorajo a dizer que não a reconheço. E então se desenrolam alguns minutos do mais absoluto nonsense. A senhora insiste em sua intimidade, quer saber de A e de B, comenta uma de minhas crônicas, me presenteia com uma confidência, aparentemente sem notar que só lhe respondo por brevíssimos monossílabos.

Por mais estranho que possa parecer, essa não é uma situação incomum comigo. Não digo que aconteça todos os dias. Ocorre no entanto com uma certa freqüência, o que elimina a idéia de uma simples coincidência.

As hipóteses são várias.

A primeiríssima delas é a de que sou um sujeito distraído. Vivo de tal modo no mundo da lua que me perco de minha realidade e circunstância. Sou mais chegado a outros universos.

Enquanto o comum dos mortais pensa em coisas sólidas e presentes, como a cotação do dólar em queda livre, a gangorra da Bolsa de Valores, a escolha dos candidatos a vereador e a prefeito, mergulho em meditações abissais, tipo o terceiro movimento da Nona Sinfonia. Vai daí que me alheio de tudo e de todos.

Segundíssima hipótese. Tenho um raro talento para esquecer faces, nomes e figuras. Enquanto os seres ajuizados, que pagam impostos, votam de dois em dois anos, vacinam-se contra a gripe, cultivam uma memória privilegiada, eu me dedico a um inelutável olvido. Deleto o leão, as eleições, os contratempos da saúde, em benefício de uma doce desmemória, que se estende às criaturas que me rodeiam.

Terceiríssima – e última – hipótese. As damas que sabem tudo a respeito de mim, e eu nada a respeito delas, são simples mensageiras de minha imaginação.

Eu as ouço falar a respeito de mim, e de quem de mim é caro, apenas porque as programei para isso, feito quem digita as teclas de um computador.

Só que nada disso me convence.

Estou mais inclinado a crer que as senhoras e senhoritas que me tratam como a um amigo para sempre reencontrado são em verdade emissárias de um jeito bem antigo de me gostar que eu tinha.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008



13 de agosto de 2008
N° 15694 - MARTHA MEDEIROS


Amor e dor, mas com humor

No último final de semana, assisti ao show Onde Está o Amor?, de Nico Nicolaiewsky, no Theatro São Pedro, que estava merecidamente lotado.

A maioria dos gaúchos só conhece o Nico por causa do vitalício Tangos e Tragédias, mas o trabalho dele vem de antes, do Musical Saracura, que eu curtia nos meus 20 anos de idade – sejam generosos comigo, não faz tanto tempo...

Bom, esse show agora do Nico, além de composições próprias, traz algumas músicas do Saracura (“marcou bobeira/já era”... só quem viveu, lembra) e algumas releituras que são o ponto forte do espetáculo.

Comida, dos Titãs, ganhou um arranjo dramático, reforçado pelo efeito que o diretor José Pedro Goulart conseguiu com a tela cobrindo toda a frente do palco, mostrando cenas de amor e dor em preto e branco – de matar o Gerald Thomas de inveja!

A recriação de Ana Júlia, do Los Hermanos, é engraçada: no início a gente fica com aquela impressão de “onde é que eu já ouvi isso?” e quando entra o refrão, mistério desfeito. Uma pegadinha.

Ainda no quesito diversão, transformar Coração de Luto, do Teixeirinha, num rock metaleiro, fez a platéia inteira sorrir (no colégio, fui colega de aula de duas filhas do Teixeirinha, lembro delas e dos nomes, Gessy e Fátima – essa última era a cara do pai – alguém me dá notícias das duas?).

Mas o mais impressionante é quando Nico, ao piano, toca uma música romântica, linda, lenta, de dilacerar corações, e aos poucos a gente percebe do que se trata e não acredita:

Tô nem aí, da meteórica Luka, da qual nunca mais ouvi falar. Nessas horas é preciso tirar o chapéu: o que era uma musiquinha à-toa, chiclete pra ouvir no rádio durante um verão, virou uma balada sofisticada e elegante.

A gente já viu o Caetano fazer o mesmo com música do Peninha: transformar o brega em chique, o chique em brega. Prova de que nada é definitivo, rótulos não se sustentam.

Bravo, Nico! Bravo, João Pedro! E menção especial pro violino do Hique Gomez, participação afetiva e luxuosa desse espetáculo redondo, moderno, versátil, emocionante e divertido, tudo isso em apenas uma hora e 15 minutos. Qualquer hora ele ressurge na grade da nossa programação cultural, fique de olho e não perca.

Andei percebendo uma movimentação maior de ciclistas durante os dias de semana, em horário comercial, mas não sabia do que se tratava. Agora entendo e aplaudo: é a “Bike-entrega”, serviço similar ao dos motoboys, mas feito de bicicleta.

É um grupo de atletas treinados, uniformizados e equipados com celular, que fazem entrega de documentos, passagens, convites, presentes, cheques etc., sem sobrecarregar o trânsito e a poluição da cidade.

Os bikeboys aceitam encomendas de até dois quilos (levadas em mochilas) e também trabalham aos sábados e domingos, se agendados com antecedência.

Maiores informações pelo site www.bike-entrega.com.br/bikeboys.php

Ótima quarta-feira - Aproveite o Dia Internacional do sofá para namorar e amar.

domingo, 10 de agosto de 2008



10 de agosto de 2008
N° 15690 - MARTHA MEDEIROS


Os novos pais

Um dos vídeos campeões de acesso do You Tube é a palestra realizada em setembro de 2007 por Randy Pausch na Universidade de Carnegy Mellon, em Pittsburgh, EUA. Randy era um professor de informática que recebeu um diagnóstico de câncer no pâncreas e uma sentença desconcertante: teria apenas de três a seis meses de vida.

Com 46 anos e três filhos pequenos, ele transformou essa palestra numa espécie de aula sobre a importância de se realizar sonhos, de viver bem e de se divertir até o último suspiro, e tudo isso virou um livro chamado A Lição Final, best-seller publicado em mais de 30 países, inclusive no Brasil.

Randy viveu um pouquinho mais do que o previsto, mas acabou falecendo no último dia 25 de julho. Eu havia recebido o livro, mas ficou esquecido num canto.

Aproveitei para lê-lo agora. A tendência é santificar Randy Pausch, mas, não espalhe, ele me pareceu um sujeito meio esquisito, cheio de manias. Só que a essa altura, isso não tem mais a menor importância.

O que vale é que o objetivo dele ao fazer a palestra e o livro foi deixar uma herança de valores para seus filhos, já que, na idade em que estavam, dificilmente assimilariam alguma coisa numa conversa (todos têm menos de seis anos de idade).

Parece tudo muito óbvio, e é. Qualquer um de nós, nessa situação, trataria de deixar cartas, gravar vídeos caseiros, tirar fotos e promover aventuras que se tornassem inesquecíveis para nossos filhos. Por exemplo, em seus últimos meses de vida, Randy levou-os para mergulhar com golfinhos. Acertou na mosca.

Passeios originais não costumam mesmo sair da nossa lembrança: percorrer trilhas em montanhas, acender fogueiras gigantes, dormir em cavernas. Minhas memórias de infância estão quase todas ligadas a viagens com meus pais, ainda que nunca tenhamos dormido em cavernas.

A intenção de Randy era que seus filhos se sentissem muito amados, pois tendo certeza disso, eles lidariam com a orfandade paterna sem tanto trauma. O que me faz pensar: e os pais que estão vendendo saúde, têm se dedicado também? Pois salve! Hoje em dia, a relação pai e filho mudou demais, e para melhor.

Os homens até parecem estar com os dias contados, tamanha é a consciência que possuem da sua importância para a formação saudável dos filhos. Há uma quantidade enorme de pais quarentões que não precisam de nenhum estímulo extra (ou mórbido) para manifestar amor. Chegam a ser quase exagerados.

Eu não sou muito fã de exageros, mas antes isso do que a indiferença, o cansaço ou a falta de jeito para a paternidade. Essa nova geração de crianças que têm pais extremamente carinhosos e participativos será poupada de muitas neuras.

Sentir-se amado na infância não é uma questão meramente circunstancial: é o que vai nortear nossas escolhas e atitudes, é o que vai estimular nossa segurança ou dar vazão às nossas carências. Sentir-se amado é o legítimo “biotônico fontoura” da auto-estima.

Randy, no livro, agradece por ter tido alguns meses para preparar sua saída de cena. Poderia ser pior: morrer num acidente ou num infarto fulminante, sem chance de despedida. Corajoso, ele, porque a maioria de nós, se pudesse, escolheria um pá-pum - fui.

De qualquer maneira, a contragosto, todos iremos. Então fica essa lição que é óbvia, sim, mas nem por isso desimportante: enquanto estivermos por aqui, é bom não perdermos nenhuma oportunidade de dar o nosso recado. Ao vivo, de preferência.


MEU PAI

Existem pessoas que precisariam
sobreviver além da eternidade
e não deveriam obedecer a regra
de que a vida é uma passagem.
Poderiam ser como o sol, a lua,
o mar que nunca desaparecem
ou mudam de lugar.

Existem pessoas que possuem a alma tão pura,
tão grande e impregnada de tanta ternura
que não poderiam jamais sofrer ou morrer
para evitar que a vida de muitos viesse a escurecer.

Existem pessoas com cheiro de orvalho
e que não são simples caminhos,
são grandes atalhos.
Existem pessoas com um brilho extraordinário,
pessoas semelhantes as primaveras,
com flores coloridas e muito belas.

Existem pessoas que, apesar da aparência
de um cristal,
possuem uma imensa força espiritual
e uma garra sobrenatural.

Existem pessoas que são dia
porque possuem uma ousadia
em se tratando de viver
e nunca se parecerão com a noite
que insiste em escurecer.

Existem pessoas que são como um
presente que nunca
terminamos de desembrulhar deixando,
assim, na nossa mente
um toque de surpresa que jamais
vai acabar.

Existem pessoas infinitamente diferentes,
existe nesse mundo muita gente
que deveria se espelhar
no tipo de pessoa que acabei
de mencionar.

Mas...
pessoas especiais não nascem toda hora,
não vivem e simplesmente vão embora,
elas nos marcam de forma tão poderosa,
que a vida, mesmo depois delas,
ainda é saborosa.

Existe na minha vida uma pessoa especial
apesar do seu jeito parecer tão normal.
Essa pessoa é meu depósito de carinho,
é o meu herói, é o meu velhinho,
é o Pai que Deus colocou no meu caminho.

Feliz Dia Dos Pais!!!

Silvana Duboc


PAI - o Carinho Inesquecível
Por Vera Linden

Eu era a flor dele,
Logo, meu beija-flor era ele.
E me dizia:
Seu vinho único, eu sempre seria

Ao abrir minha janela
Via um lindo jardim, por ela.
Por ele foi desenhado e criado,
Por ele, meu Pai amado.

Juntos plantávamos flores,
Rosas, cravinas de todas as cores.
Também fizemos um pomar,
Que ele me ensinou a cuidar.

Aprendi a amar flores e frutas.
A não reparar em palavras brutas.
Penso nele e sinto sua ternura,
Sua maneira de ver a vida, tão pura.

Na noite fria de inverno,
Me socorria o seu afeto paterno.
Me cobria com cobertores e carinho,
Fazia de seu amor,um acolhedor ninho.

Me sentia tão protegida,
Sua atenção era minha guarida.
Pai, penso em ti a todo momento.
E isto, me livra de tanto tormento.

O que uma menina precisa ?
O maior tesouro que ela visa,
É esta força poderosa e invisível,
Que vem de um coração de pai, sensível.

Para mim, como inestimável lembrança,
Ele deixou a verdade e a esperança,
De que é possível nos homens acreditar,
Quem alguém bom, eu iria encontrar.

A mim mesma ser fiel,
E como o perfume das flores de mel
Ser doce,simples, amiga e generosa.
Para o meu homem, uma mulher carinhosa.

Verei sempre a ternura do seu olhar,
Dois lindos olhos azuis a me observar.
A me energizar, fortaleza invisível.
Meu amado Pai, carinho inesquecível!

O maior presente que um pai pode dar a uma filha, é ensiná-la a ver o mundo com compreensão e generosidade e que nem todos os homens são maus e através dele, de sua atenção, de seu afeto, saber distinguir e apreciar um homem honesto e bom de verdade.

sábado, 9 de agosto de 2008


Marcos Todeschini - Paulo Pereira

Trabalho - Saudosos do escritório

Depois de conquistarem a regalia de trabalhar em casa, eles se viram solitários – e buscam compartilhar salas

Uma secretária só
Eles trabalham em diferentes empresas, mas dividem tudo

Trabalhar em casa era um sonho acalentado por funcionários de algumas das maiores multinacionais na década passada. Com o surgimento da internet, parte delas aderiu ao home office, modalidade que deu àquelas pessoas, pela primeira vez, a alternativa de executar tarefas longe do escritório.

Nos Estados Unidos, 10 milhões de empregados passaram a cumprir parte do expediente em casa. No Brasil, foram 4 milhões.

Depois de uma década levando uma vida que eles próprios definiam como "mais livre" e "menos entediante", a novidade é que uma parcela começa a dar inesperados sinais de nostalgia em relação aos tempos de escritório.

É o que explica o fato de algo como 10% desses brasileiros terem saído em busca de uma alternativa. Eles estão alugando salas em espaços povoados por centenas de pessoas.

Lembra o passado, mas com uma diferença fundamental: essas pessoas permanecem fora das empresas para as quais trabalham. A experiência é relatada com grande entusiasmo por profissionais como o engenheiro Cledson Sakurai, 36 anos, desde 2002 numa multinacional francesa na área de tecnologia.

Ele trocou o silêncio do home office por um desses escritórios abarrotados de gente. "Trabalhar sem ninguém ao lado pode se tornar solitário e improdutivo."

O modelo de escritórios compartilhados, nos quais atuam pessoas das mais diversas empresas e áreas, popularizou-se nos Estados Unidos de três anos para cá, quando firmas especializadas no aluguel de salas comerciais perceberam estar diante de um novo fenômeno.

Pessoas que haviam conquistado o direito de trabalhar em casa começavam a se queixar do isolamento e de certa falta de infra-estrutura.

Em pesquisas, esses profissionais diziam sentir saudade da secretária e da velha sala de reuniões ("tratar de negócios em casa nunca deu certo"). Mas não queriam voltar à vigilância dos chefes. Os novos escritórios suprem tais demandas – e têm se revelado ainda ambientes favoráveis à produtividade tão almejada pelas empresas.

É por isso que algumas delas, as mesmas que haviam liberado seus funcionários para trabalhar em casa, patrocinam sua estada nas salas compartilhadas. Lincoln Brasil, diretor da Silva Rosa, consultoria na área de tecnologia, diz que, há dois anos, banca o aluguel de empregados nessas salas.

"Eles passaram a organizar melhor o tempo e a respeitar mais os prazos." Houve também um ganho financeiro para a empresa. "Enxugamos a estrutura fixa e, com isso, cortamos 85% dos gastos."

Lailson Santos

Eles pagam a conta

Lincoln e Marcos Sakamoto: suas empresas alugam salas para quem prefere trabalhar lá

Existem quase 1 000 escritórios do gênero nos Estados Unidos. No Brasil, não passam de uma centena – mas o modelo tende a se popularizar por duas razões.

Primeiro, muitas empresas começam a incentivar a permanência em tais estruturas, a exemplo do que fez o Google, nos Estados Unidos.

O segundo motivo é uma particularidade brasileira: o número de pessoas que trabalham por conta própria aumenta. Só nos últimos cinco anos, cresceu 22%. Esses profissionais também já procuram os escritórios compartilhados – impulsionados pelo preço (algo como 1 000 reais por mês) e pela chance de ampliar a rede de contatos.

Foi um "colega de espaço" que apresentou o publicitário João Paulo Filomeno, 28 anos, a um de seus melhores clientes. "Em casa, teria perdido um ótimo contrato", diz ele.

Para os donos dos escritórios, o negócio também se revela lucrativo. A maioria já vivia do aluguel de salas comerciais nos moldes tradicionais: um inquilino só e nenhum serviço adicional.

O processo de adaptação ao novo modelo, que inclui tornar o ambiente wi-fi e comprar equipamentos para salas de reuniões, é simples e barato. O investimento tem bom retorno.

"Com mais gente pagando pelo mesmo espaço, a margem de lucro do meu negócio subiu 50%", diz Daniel Corrales, sócio da Private Office, maior empresa especializada em salas compartilhadas do país.

Ao apostar na nova fórmula, ele e os outros contam com a atração daquelas pessoas para quem a possibilidade de trabalhar de pijama já não tem a mesma graça.

Stephen Kanitz

Por uma sociedade justa e eficiente

Que sociedade é mais justa, aquela que valoriza as boas intenções e o esforço ou aquela que valoriza os resultados? Uma boa pergunta para começar a discutir no retorno às aulas

Ilustração Atômica Studio

No primeiro ano de faculdade aprendi um truque que muito me auxiliou na hora de obter notas melhores. Descobri que, numa prova na qual cai um tema que você não estudou, que o pegou de surpresa, sobre um assunto de que você não sabe absolutamente nada, o melhor é não entregá-la em branco, que seria a coisa mais lógica e correta a fazer.

Nessas horas, escreva sempre alguma coisa, preencha o papel com abobrinhas, pois, quanto maior o número de páginas, melhor.

Isso porque existem dois tipos de professor no Brasil: um deles é formado pelos que corrigem de acordo com o que é certo e errado. São geralmente professores de engenharia, produção, direito, matemática, recursos humanos e administração.

Escrever que dois mais dois podem ser três ou doze, dependendo "da interpretação lógica do seu contexto histórico desconstruído das forças inerentes", não comove esse tipo de professor. Ele dá nota dependendo do resultado, e fim de papo.

Mas, para a minha alegria, e agora também para a sua, existe outro tipo de professor, mais humano e mais socialmente engajado, que dá nota segundo o critério de esforço despendido pelo aluno e não apenas pelo resultado.

Se você escreveu dez páginas e disse coisas interessantes, mesmo que não pertinentes ao tema, ficou as duas horas da prova até o fim, mostrou esforço, ganhará uns pontinhos, digamos uma nota 3 ou até um 3,5.

O que pode ser a sua salvação. Na próxima prova você só precisará tirar um 6,5 para compensar, e não uma impossível nota 10. Se você estudar um mínimo e usar esse truque, vai tirar um 5.

Uma vez formados, os alunos desse tipo de professor são muito fáceis de identificar. Seus textos são permeados de abobrinhas e mais abobrinhas, cheios de platitudes e chavões. Defendem que a renda deve ser distribuída pelo esforço, e não pelo resultado, e que toda criança que compete deve ganhar uma medalha.

Defendem que todo professor de universidade deve ganhar o mesmo salário, independentemente da qualidade das aulas, e que a solução para a educação é mais e mais verbas do governo, sem nenhuma avaliação de desempenho.

Esses dois tipos de professor obviamente não se bicam. É a famosa briga da turma da filosofia contra a turma da engenharia. São as duas grandes visões políticas do mundo, é a diferença entre administração pública e privada.

O que é mais justo, remunerar pelo esforço de cada um ou pelos resultados alcançados? O que é mais correto, remunerar pela obediência e cumprimento de horário ou pelas realizações efetivas com que cada um contribuiu para a sociedade?

Como o Brasil ainda não resolveu essa questão, não podemos discutir o próximo passo, que são as injustiças da opção feita. É justo só remunerar pelo resultado? É justo remunerar somente pelo esforço?

Podemos até escolher um meio-termo, mas qual será a ênfase que daremos na educação dos nossos filhos e na avaliação de nossos trabalhadores? Ao esforço ou ao resultado?

Quem tentou ser útil à sociedade mas fracassou teria direito a uma "renda mínima"? É justo dar 3,5 àqueles cujo esforço foi justamente enganar seus professores e o "sistema"? Não seria justo dar-lhes um sonoro zero? Precisamos optar por uma sociedade justa ou por uma sociedade eficiente, ou podemos ter ambas?

Como aluno, eu tive de me esforçar muito mais para as provas daqueles professores carrascos, que avaliavam resultados, do que para as provas dos professores mais bonzinhos. Quero agradecer publicamente aos professores "carrascos" pela postura ética que adotaram, apesar das nossas amargas críticas na época.

Agora entendo por que tantos de nossos cientistas e professores pertencem à Academia de Letras, por que somos o último país do mundo em termos de patentes, por que tantos brasileiros recebem sem contribuir absolutamente nada para a sociedade e por que nossos políticos falam e falam e não realizam nada.

Que sociedade é mais justa, aquela que valoriza as boas intenções e o esforço ou aquela que valoriza os resultados? Uma boa pergunta para começar a discutir no retorno às aulas.

Stephen Kanitz é administrador - www.kanitz.com.br

MAURO HALFELD

O que fazer quando a Bolsa está em queda

é professor, consultor de investimentos, comentarista da rádio CBN e escreve semanalmente em ÉPOCA.

Para enviar uma pergunta, acesse a coluna em www.epoca.com.br/halfeldPor que quem investe em ações costuma comprar na alta e vender na baixa? Porque pouca gente aceita ser solitária.

É difícil manter uma estratégia que vai na contramão do mercado – comprar pechinchas quando os amigos e os parentes estão vendendo e vender quando todo mundo está indo às compras. Mas quem tiver sangue-frio e convicção em relação a sua estratégia e desprendimento para enfrentar o barulho da multidão provavelmente vai colher bons resultados.

Eu nunca tinha investido em ações até novembro do ano passado. Seguindo a sugestão de um colega de trabalho, apliquei em um fundo de ações do meu banco pensando em complementar minha aposentadoria.

Já perdi mais de 20% de meu capital e não estou suportando ver o extrato da conta. O dinheiro não pára de evaporar e estou cada vez mais ansioso. O que devo fazer? – Paulo Henrique

Ganhar dinheiro no mercado de ações é uma tarefa para os fortes de coração. É preciso estar emocionalmente preparado para enfrentar as adversidades. Convém também manter certo desprezo pelo senso comum e ter frieza para não se arrepender antes da hora e juntar-se à multidão aos primeiros sinais de prejuízos.

Para quem se angustia com o vaivém do mercado e com as perdas registradas nos momentos de queda das cotações, a alternativa é andar junto com a multidão, mas bem pertinho da porta, para pular fora no primeiro sinal de pânico.

O problema é que você pode acabar saindo na hora errada, atraído por falsos boatos. Pior ainda, pode demorar a ouvir o alarme de incêndio e acabar morrendo pisoteado pelo resto do mercado.

Para fugir desse dilema, o ideal, Paulo, é manter a calma e procurar agir de forma coerente com seus objetivos financeiros de longo prazo. Mais cedo ou mais tarde, a razão acaba por voltar ao mercado. Aí, os mais nervosos pagarão a conta pelo desespero.

No mercado acionário, é preciso estar preparado emocionalmente para enfrentar as adversidades

Meu noivo quer que eu assine um acordo pré-nupcial, mas, sinceramente, fiquei meio ofendida. A família dele tem uma situação financeira melhor que a minha e me senti sendo excluída de uma parte da vida dele. O que devo fazer? – Fernanda

Em vez de você ficar ofendida, procure pensar nos benefícios que um acordo pré-nupcial pode trazer para seu casamento.

A transparência, a sinceridade e a confiança contribuem para reforçar a união do casal e, na falta delas, podem até levar à separação. Discutir questões financeiras antes de se casar é um excelente primeiro passo para uma relação dar certo.

Essa conversa, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, é muito saudável. Vai ajudar você e seu noivo a se preparar para enfrentar a vida a dois. Ninguém faz uma sociedade sem saber quais são os planos do sócio. No casamento, não deve ser diferente.

Por isso, encare o acordo pré-nupcial como uma grande oportunidade de saber quais são as ambições e os projetos de seu noivo e de expor suas idéias.

Pensem em como vocês vão fazer para realizar juntos esses planos e aproveitem para programar os investimentos para o futuro.

O acordo pré-nupcial é recomendado para quem já tem um bom patrimônio pessoal antes do casamento ou para quem tem empresas, filhos ou obrigações financeiras de uma relação anterior.

As pessoas que têm dívidas antes do casamento ou a expectativa de receber uma herança também devem pensar seriamente em fazer esse pacto.

Embora não seja nada romântico, ele é uma forma de os noivos se prepararem para o caso de separação ou morte de um dos cônjuges.

Recomendo que vocês busquem a orientação de um advogado para que tudo saia de acordo com a legislação. Desejo felicidades ao casal e uma excelente vida a dois!


09 de agosto de 2008
N° 15689 - NILSON SOUZA


Almas capturadas

Depois que a Celia Ribeiro me fez algumas observações filosóficas sobre fotografias, passei a olhar os retratos do tempo com um misto de curiosidade e espanto. Garantiu-me a nossa especialista em boas maneiras que as posições e os semblantes das pessoas na hora do clic são reveladores de seus sentimentos.

Um olhar oblíquo congelado para a eternidade, a proximidade ou o distanciamento, uma simples mão no ombro, tudo isso pode significar maior ou menor afeto de um personagem para o outro.

Numa foto de família, por exemplo, um bom intérprete de fisionomias é capaz de dizer quem é o filho favorito, qual é o estágio de relacionamento entre o casal, quem é amigo verdadeiro, quem está feliz com o momento e quem sorri apenas porque o fotógrafo mandou dizer xis.

Achei o tema fascinante. Nunca tinha observado fotografias com este olhar quase psicanalítico, embora já tenha percebido verdadeiras confissões no rosto de pessoas flagradas pela máquina.

Alguém já escreveu que o retrato é um texto visual, que registra não apenas o momento, mas também a história passada e as ambições futuras dos retratados. Pode ser. Porém o que mais me impressiona é essa sua capacidade de escancarar sentimentos.

Faz sentido: o rosto de uma pessoa normalmente expressa coragem, sofrimento, medo, paixão, alegria e tristeza. O rosto é o espelho da alma. Um retrato, portanto, nada mais é do que uma alma capturada.

Claro que as pessoas também posam para fotografias. A quantidade de expressões forçadas na hora da foto é infindável. Certamente fotografias desse tipo são menos reveladoras.

Quando a nossa colunista de elegância comentou sobre os sentimentos dos personagens fotografados, estava se referindo a retratos antigos, especialmente de parentes que se juntam para registrar alguma passagem da vida familiar.

Às vezes, a gente mesmo se vê numa foto e não tem certeza do que estava pensando ou sentindo naquele momento. Mas há situações em que não fica qualquer dúvida.

Tenho uma fotografia de quando tinha três ou quatro anos de idade, na qual apareço rindo muito, com um braço erguido e uma laranja na mão.

A câmera, não tenho dúvida, flagrou minha alma infantil num instante de felicidade plena, que nunca mais se repetiu. Por uma razão singela: eu estava no colo de meu pai.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008



08 de agosto de 2008
N° 15688 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Das melhores lembranças

Há sempre uma tempestade em minhas melhores lembranças.

Esta noite choveu muito, as janelas tremiam como navios avariados, eu quase podia ver as árvores encurvadas, a água batia nas vidraças com uma fúria de naufrágio e no entanto eu sonhei.

Sonhei meio desperto com uma ilha cercada de todos os vendavais – e isso me punha extremamente calmo, a salvo de correntes marinhas e baixios e arrecifes, e adormeci tão profundamente que quando acordei me sentia descansado de todas as minhas exaustões.

Ventava. Há sempre um vento em minhas melhores lembranças.

Aquele era um vento de agosto, capaz de girar pessoas e animais e coisas, apto a revolver pensamentos secretos e interditos, e me atirar em uma elipse sem âncora nem fundamento. E contudo eu me percebia tranqüilo, como um menino que acaba de descobrir o significado do universo.

E então desceu um sol trêmulo de inverno.

Há algo de estranho com o sol de inverno. Ele torna translúcidos os seres e as espécies e, enquanto olhava a transparência de minha circunstância, lembrei que há sempre um sol de inverno em minhas melhores lembranças. Nessa, tudo se revestia de uma nitidez inaugural, feito eu acabasse de inventar a aurora.

E aí entardeceu. Há sempre um entardecer em minhas melhores lembranças.

E se revestiram os tons do dia de um caleidoscópio de cores, e se incendiou o sol no horizonte, e eu me perguntei onde estava a estrela Vésper. Mas Vésper se ocultava – e eu tive de me distrair com uma miríade de outros astros e neles encontrei um reflexo de teu olhar azul.

Foi nesse momento que anoiteceu. Foi nesse instante que a treva se fez luz.

Foi nesse segundo que tu me surgiste nua e a chuva voltou a cair e eu adormeci em teu corpo como um guerreiro imerso em suas melhores lembranças.

Ótima sexta-feira e um excelente fim de semana

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

06 de agosto de 2008
N° 15685 - MARTHA MEDEIROS


A vírgula

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) completou cem anos em abril e aproveitou para lançar uma campanha muito útil a todos os brasileiros, não só aos jornalistas. Ela defende o uso correto da vírgula.

Todas as pessoas alfabetizadas escrevem. Escrevem e-mails, bilhetes, cartões, teses, contratos, receitas, blogs e mais um sem-fim de palavras.

Algumas escrevem para si mesmas, e, nesse caso, até dá para perdoar um certo relaxamento, mas a maioria escreve para ser lida por outro alguém, e quem faz isso ambiciona ser compreendido. Então. O uso correto da vírgula é crucial para alcançar esse objetivo.

No entanto, o critério para “uso correto” continua sendo, para muitos, o da respiração. As pessoas escrevem como se estivessem conversando, e se imaginam que fariam uma pausa dramática num determinado momento, pronto: decidem que ali cabe uma vírgula.

Entendo. Eu, às vezes, faço a mesma coisa. Por exemplo, deu vontade de não colocar entre vírgulas o “às vezes” que acabei de escrever.

Preferiria ter escrito: “Eu às vezes faço a mesma coisa”, porque eu, normalmente, falaria essa frase de forma veloz, e não pausada. Mas a vida não é tão simples. Salvo algumas licenças poéticas, é preciso seguir à risca os mandamentos da vírgula.

Não me pergunte quais são, não sei, sempre escrevi por instinto, mas a ABI sabe e resolveu entrar nessa campanha dando exemplos muito práticos, que transcrevo abaixo.

“A vírgula pode ser uma pausa... ou não:

Não, espere.
Não espere.

Ela pode sumir com seu dinheiro:

23,4%
2,34%

Pode ser autoritária:

Aceito, obrigado.
Aceito obrigado.

Pode criar heróis:

Isso só, ele resolve.
Isso só ele resolve.

E vilões:

Esse, Juiz, é corrupto.
Esse Juiz é corrupto.

Ela pode ser a solução:

Vamos perder, nada foi resolvido.
Vamos perder nada, foi resolvido.

A vírgula muda uma opinião:

Não queremos saber.
Não, queremos saber.

A campanha termina dizendo que a vírgula muda tudo. Dou outro exemplo. Dia desses, um moço mandou um e-mail para um programa de rádio que começava assim: “Eu como colono...”

O radialista ficou injuriado, que pouca-vergonha era aquela? A vírgula que faltou poderia ter evitado o mico. “Eu, como colono, gostaria de...”. Pois é. Pequeninha, mas salva até reputações.

Ótima quarta-feira - Aproveite o Dia Internacional do sofá

domingo, 3 de agosto de 2008



03 de agosto de 2008
N° 15682 - MARTHA MEDEIROS


QUANDO DEUS APARECE

Tenho amigas de fé. Muitas. Uma delas, que é como uma irmã, me escreveu um e-mail me contando a maravilha que foi o recital do pianista Nelson Freire no Theatro São Pedro, recentemente. Ela escreveu: Nessas horas Deus aparece.

Fiquei com essa frase retumbando na minha cabeça. Deus não está em promoção, se exibindo por aí. Ele escolhe, dentro do mais rigoroso critério, os momentos de aparecer pra gente.

Não sendo visível aos olhos, ele dá preferência à sensibilidade como via de acesso a nós. Eu não sou uma católica praticante e ritualística - não vou à missa. Mas valorizo essas aparições como se fosse a chegada de uma visita ilustre, que me dá sossego à alma.

Quando Deus aparece pra você?

Pra mim, ele aparece sempre através da música, e nem precisa ser um Nelson Freire. Pode ser uma música popular, pode ser algo que toque no rádio, mas que me chega no momento exato em que preciso estar reconciliada comigo mesma. De forma inesperada, a música me transcende.

Deus me aparece nos livros, em parágrafos em que não acredito que possam ter sido escritos por um ser mundano: foram escritos por um ser mais que humano.

Deus me aparece - muito! - quando estou em frente ao mar. Tivemos um papo longo, cerca de um mês atrás, quando havia somente as ondas entre mim e ele. A gente se entende em meio ao azul, que seria a cor de Deus, se ele tivesse uma.

Deus me aparece - e não considere isso uma heresia - na hora do sexo, desde que feito com quem se ama. É completamente diferente do sexo casual, do sexo como válvula de escape. Diferente, preste atenção. Não quer dizer que qualquer sexo não seja bom.

Nesse exato instante em que escrevo, estou escutando My Sweet Lord cantado não pelo George Harrison (que Deus o tenha), mas por Billy Preston (que Deus o tenha também) e posso assegurar: a letra é um animado bate-papo com Ele, ritmado pelo rock’n’roll. Aleluia.

Deus aparece quando choro. Quando a fragilidade é tanta que parece que não vou conseguir me reerguer. Quando uma amiga me liga de um país distante e demonstra estar mais perto do que o vizinho do andar de cima.

Deus aparece no sorriso do meu sobrinho e no abraço espontâneo das minhas filhas. E nas preocupações da minha mãe, que mãe é sempre um atestado da presença desse cara. E quando eu o chamo de cara e ele não se aborrece, aí tenho certeza de que ele está mesmo comigo.

ótimo domingo e um excelente início de semana.

sábado, 2 de agosto de 2008


Diogo Mainardi

A guerra acabou

"Em matéria de sangue, o Iraque está normal. Proporcionalmente, nos últimos dois meses, matou-se menos no Iraque do que no Rio de Janeiro. Doeu? Doeu. Caiu do sofá estrebuchando? Estrebuchando e babando"

A guerra no Iraque acabou. Só que ninguém parece ter notado. O Iraque se tornou O Deserto dos Tártaros dos americanos. Isso mesmo: Dino Buzzati. No romance, os soldados italianos, entrincheirados num forte, preparam-se para o ataque do inimigo.

O ataque nunca acontece. Passam-se décadas e mais décadas. Aos 54 anos, o protagonista finalmente adoece e morre. Sem jamais ter abandonado o forte. Sem jamais ter combatido os tártaros.

Como é que alguém pode afirmar com tanta certeza que a guerra no Iraque acabou? Pelo número de fatalidades. Em julho deste ano, morreram apenas treze soldados americanos, oito dos quais em combate e os outros por causas acidentais ou naturais, como o protagonista de O Deserto dos Tártaros.

Compare com a mortandade do mesmo período do ano passado. Em julho de 2007, morreram 79 soldados americanos – seis vezes mais. O inimigo sumiu.

Uma queda semelhante ocorreu entre os civis iraquianos. Em julho de 2007, de acordo com o site independente Iraq Coalition Casualty Count, foram mortos 1 690 iraquianos.

A imprensa repetia todos os dias que o Iraque já mergulhara numa guerra civil, e que a estratégia dos Estados Unidos de aumentar o número de tropas fracassara tragicamente. De lá para cá, tudo mudou. Em julho de 2008, foram assassinados somente 402 iraquianos. A maioria em atentados de mulheres-bomba.

Pode-se argumentar que uma guerra é mais do que uma simples contabilidade macabra. Mas trata-se de um argumento fajuto. Uma guerra é isso mesmo: sangue. De um lado e do outro.

E, em matéria de sangue, o Iraque está normal. Aliás, esse foi o termo usado, na semana passada, pelo comandante militar dos Estados Unidos, o general David Petraeus: normal.

Agora, prepare-se para passar mal e cair do sofá estrebuchando: proporcionalmente, nos últimos dois meses, matou-se menos no Iraque do que no Rio de Janeiro. Doeu? Doeu. Caiu do sofá estrebuchando? Estrebuchando e babando.

A campanha presidencial americana, como o forte de Dino Buzzati, também reflete um distanciamento amalucado da realidade. A plataforma dos candidatos para a guerra no Iraque baseou-se no cenário de um ano atrás. Barack Obama apostou numa derrota americana e prometeu fugir em disparada.

John McCain apostou numa batalha longa e sangrenta, perfeita para alguém com seu passado militar. O que nenhum dos dois podia imaginar é que a guerra acabaria com tanta rapidez.

O primeiro-ministro Nuri al-Maliki, que era ridicularizado por todos, agora controla o país. Os soldados iraquianos, que se rendiam em massa aos insurgentes, acabam de iniciar a quinta campanha militar dos últimos meses, em Diyala. Os terroristas da Al Qaeda foram dizimados.

Os milicianos de Al Sadr se entregaram. Ao contrário do que dizia Barack Obama, os Estados Unidos derrotaram os tártaros. Ao contrário do que dizia John McCain, seus soldados já podem se preparar para a retirada.

Ainda está estrebuchando e babando?

Lya Luft

Sobre o meu pai Arthur

"Seu olho verde faiscava de brabeza ou transbordava de afeto. O rumor de seu passo no corredor botava o meu mundo em ordem. Sua risada era aberta e franca, seu abraço era cálido, sua alegria, generosa"

Nesta coluna homenageio meu pai Arthur, que morreu quando eu tinha 35 anos, e de quem, 35 depois, ainda recordo todos os dias, pelo seu legado de carinho, justiça, integridade e proteção, que até agora me dá força quando preciso dela (preciso muitas vezes).

As propagandas em torno do Dia dos Pais, se irritam pela comercialização (para quem deseja isso) em torno do afeto, servem de lembrete a quem anda esquecido do seu pai.

Então tenho lembrado com mais intensidade do meu, que era severo e terno. Seu olho verde faiscava de brabeza ou transbordava de afeto. O rumor de seu passo no corredor botava o meu mundo em ordem.

Sua risada era aberta e franca, seu abraço era cálido, sua alegria, generosa. Tinha momentos de melancolia, em que fitava um ponto distante longo tempo sem falar. Seu amor pela família foi talvez seu traço mais marcante.

Ensinou-me o nome das árvores do jardim e os cuidados com elas, para que dessem frutas doces. Transmitiu-me a noção do sagrado das coisas e das pessoas. Gostava de tranqüilidade, meu pai Arthur. Recusou sistematicamente os convites para deixar nossa pequena cidade e assumir cargos importantes.

Era atento e compreensivo, ajudou fugitivos da II Guerra, levava cobertores ou remédio aos pobres, aconselhava amigos e desconhecidos que vinham lhe pedir orientação.

Lembro-me do que relatou alguém que o procurou em casa, e ele, interrogado sobre sua vasta biblioteca, apontou os livros e disse com simplicidade: "Eles são meus amigos".

Ilustração Atômica Studio

Era também exigente, meu pai Arthur. Aborrecia-se com meu boletim invariavelmente medíocre, porque eu não gostava de estudar: queria ficar em casa, lendo em meu quarto ou debaixo de alguma árvore, e achava as regras de disciplina da escola antes cômicas do que respeitáveis. Além de negligente na escola, em casa não conseguia ser a menina prendada que minha mãe desejava.

Não podia competir com suas sobrinhas ou filhas de amigas, num tempo em que ser prendada era importante (para mim, era bobagem): meus bordados saíam tortos, minha incapacidade de arrumar a cama era patética, meu horror à cozinha era vergonhoso, eu respondia mal à minha mãe, ou lhe mostrava a língua.

Era um desastre, e me sentia assim. Quando as queixas de mãe e professores se tornaram excessivas, ele me pôs num internato.

"Para o seu bem", ele disse. Não esqueço a dor daquele dia e dos outros, nem a minha gratidão quando, dois meses depois, em uma visita, anunciei que se ele não me tirasse dali eu morreria, e ele me levou para casa. Por essa, e tantas outras coisas, dediquei-lhe especialmente um de meus livros, dizendo:

"A meu pai Arthur, para quem eu não era só uma criança: eu era uma pessoa". Ainda falo com ele, recorro a ele em minhas aflições, pedindo que, como fez em vida, me ajude em minhas trapalhadas. (Não sei como, mas ele ajuda.)

Nele, antecipando o Dia dos Pais que se aproxima, homenageio todos os pais que não vão ter o carinho dos filhos pequenos ou adultos, nem um telefonema alegre, nem um almoço ruidoso, nem mesmo um recado.

Homenageio os pais que ficarão sozinhos fingindo que não faz mal, que filho é assim mesmo, que a vida é assim. Não é assim.

Em meu pai Arthur, homenageio os pais que não puderam estar sempre junto de seus filhos porque, longe, precisavam garantir o seu sustento; que foram relegados quando não tinham mais dinheiro ou saúde; criticados quando quiseram buscar alguma felicidade; ou que, sem entender, foram declarados dispensáveis e desimportantes.

Não posso esquecer aqui aqueles pais que perderam um filho ou filha, na dor que não se cura com nada. Mas penso também nos pais alegres, nos pais carinhosos, nos pais protetores, parceiros, guerreiros, nos pais que têm sorte, e que nesse dia especial receberão abraços,

telefonemas, torpedos, churrascos, conversas, sorrisos ou mesmo um bilhete em letra infantil – como aqueles que tantas vezes, na minha distante infância, deixei no bolso do paletó ou no prato do café-da-manhã de meu pai Arthur.

Lya Luft é escritora

CAMILA PATI

Só para mulheres

Cansadas do assédio masculino, mexicanas têm agora ônibus exclusivos na capital do país



SOSSEGO Em ônibus onde homem não entra as mexicanas viajam sentadas e até lêem

Com 22 milhões de habitantes, ônibus e metrô lotados são comuns na Cidade do México, uma das cinco metrópoles mais populosas do mundo.

Lá, as mexicanas ainda têm de lidar com uma situação conhecida de muitas brasileiras: o assédio sexual durante as viagens. Por isso, desde o início do ano, a cidade oferece 65 ônibus reservados apenas às mulheres.

Ali homem não entra e sem eles a tranqüilidade reina, segundo as mexicanas. Apesar de representar só 5% da rede e de o tempo de espera nos pontos ser de 30 minutos, a iniciativa foi bem recebida. A idéia partiu de uma mulher que já sofreu na pele os abusos nos transportes públicos.

A mexicana Ariadna Montiel, 33 anos, que hoje é a responsável pelo controle das redes de ônibus da capital, conta que nunca vestia saias, quando sabia que ia usar ônibus ou metrô, na época em que ainda freqüentava a faculdade de arquitetura.

A proposta de ônibus exclusivos é nova, mas vagões especiais para mulheres e crianças no metrô, em horários de pico, já existem na Cidade do México há dez anos.

Outros países como Japão, Índia, Taiwan, Filipinas e Egito também oferecem o serviço. No Brasil, no Rio de Janeiro, uma lei estadual de 2006 obriga as empresas de metrô e trens a disponibilizarem vagões exclusivos para as mulheres, em dias úteis, das 6h às 9h e das 17h às 20h.

Em cada composição, há um carro identificado com um adesivo com o símbolo feminino. A SuperVia, concessionária dos trens no Rio, orienta os homens a não embarcarem nesses vagões nos momentos de pico.

“Enfrentar transportes superlotados já é um desconforto em si, e não precisa ser somado ao constrangimento e à humilhação causados por indivíduos que se aproveitam deste fato para ultrapassar os limites e abusar das mulheres”, justifica Jorge Picciani, deputado estadual pelo PMDB.

Em São Paulo, a prática do assédio sexual levou a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) a testar vagões exclusivamente femininos na década de 90.

Eles existiram no metrô e nos trens da CPTM entre outubro de 1995 e setembro de 1997 e foram implantados depois que um homem ejaculou em uma mulher dentro de um vagão.

A proposta não vingou porque a CPTM alegou que não poderia ferir o artigo 5o da Constituição, que estabelece igualdade de direitos entre os cidadãos, e alguns casais também reclamaram.

Hoje, na capital, existem apenas vagões reservados, nas estações mais cheias – nos horários de pico da manhã e noite –, para gestantes, idosos, portadores de deficiência física e pessoas com crianças de até cinco anos.



PIONEIRO O Rio oferece vagões reservados para as mulheres só em horário de pico


02 de agosto de 2008
N° 15681 - NILSON SOUZA


VIDAS ESPECIAIS

Terminei de ler Caso Perdido, um romance do jornalista e escritor Carl Hiaasen, autor de Strip-Tease, que deu origem ao filme com Demi Moore. O colega norte-americano escreve fácil, usa bem os diálogos e narra fatos de modo tão irreverente que às vezes chega a parecer meio debochado.

A gente passa voando pelas quase 400 páginas da história, uma investigação jornalístico-policial recheada de aventuras. Mas o que mais me chamou a atenção foi o ofício do personagem central - um redator de obituários.

Jack Tagger é um jornalista que foi rebaixado à condição de obituarista por ter falado mal do magnata que controla o grupo proprietário do jornal.

Ele tem algumas manias, a mais curiosa delas é questionar a idade das pessoas e compará-la com a que tinham personalidades desaparecidas. Você diz que tem 28 anos e ele lasca:

- Com essa idade morreu Jimi Hendrix!

Mas sua maior curiosidade é descobrir com quantos anos morreu seu próprio pai, que ele não chegou a conhecer, para ter certeza de que ultrapassará a barreira da herança genética. Bom, mas deixo a neurose de Jack Tagger para quem se dispuser a ler o romance de Hiaasen.

Quero aproveitar o gancho do livro para comentar essa intrigante área do jornalismo, que é a seção de obituários. Ao contrário do que ocorre no jornal da ficção, no nosso meio ninguém é rebaixado a escrever sobre este tema tão delicado. Pelo contrário, é um espaço que serve de escola para jovens repórteres.

Ao encarar o desafio de transformar em notícia interessante o passamento de pessoas comuns, eles e elas aprendem a investigar, a questionar as fontes, a produzir pequenas biografias e, o mais importante, a tratar a morte com dignidade.

- Não é difícil, as pessoas sempre têm boa vontade para passar as informações e deixar o registro de seus familiares - me garante a colega Sabrina, que tem 21 anos e escreve diariamente sobre o fim da vida.

Digo-lhe que sou seu leitor. Não por morbidez, mas porque é um dos poucos espaços do jornal onde só se encontra gente boa. Nas páginas policiais predomina o crime. Na política e na economia, não é muito diferente.

Até nas páginas esportivas a gente tem deparado com paixões exacerbadas e violência. Já a seção dos sempre-lembrados é só otimismo.

As pessoas são especiais, um deixou a imagem de melhor jogador de bocha do bairro, outra era a mais hábil doceira, aquele deixou tantos filhos e netos, que não se pode contar, o jovem que partiu subitamente tinha os pendores esportivos de um campeão. Nunca li um epitáfio desfavorável.

O obituário, na verdade, não noticia a derradeira viagem das pessoas. Informa sobre a saudade instalada no coração dos que ficam.

Um excelente sábado e um ótimo fim de semana - Agosto segue seu curso até quando setembro vier.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008



01 de agosto de 2008
N° 15680 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


O POEMA DO COTIDIANO

A crônica é um espaço por onde o jornal respira. Já não sei se essa frase é minha, ou se tomei emprestada de alguém. Do que não duvido é de sua profunda verdade.

Houve um atentado? Caiu o ministério? Perpetrou-se um crime hediondo? Armou-se uma catástrofe? A Bolsa entrou em queda livre? De tudo isso nos dão exata notícia as editorias de Mundo, de Política, de Polícia, de Geral, de Economia.

Mas se um pássaro azul pousar aqui em minha sacada, as pessoas só terão conhecimento se eu contar neste canto de página.

Saberão mais: que o pássaro era de uma espécie desconhecida, que me olhou desconfiado, que a princípio recusou, arisco, a água e o alpiste que lhe servi, que depois agradeceu minha gentileza interpretando uma ária inédita, que ao fim voou para céus infinitos, por onde jamais baterá meu inquieto coração.

Sentiram a importância da crônica? Atentados eclodem, ministérios implodem, crimes ocorrem, catástrofes explodem, Bolsas depenam os investidores, mas tudo isso é parte da civilização que escolhemos.

O que é único, e belo e inimitável é a canção do pássaro azul, é o seu vôo por regiões submersas do universo.

Bem diante da minha casa há uma paineira que me dá a honra de sua companhia. Por esta época do ano, desnuda-se, já não é uma árvore, é toda ela uma escultura gris, composta por um artista anônimo.

Carros, ônibus, pessoas passam por sua vizinhança sem percebê-la e no entanto isso não a faz menos imponente nem lhe retira a majestade que o inverno acentua. É meu privilégio notá-la e contar de seu discreto charme aos que lêem este texto.

As andorinhas tinham desaparecido em junho. Temperaturas muito baixas as exilaram para climas mais amenos. Pois hoje tive a alegria de revê-las de volta aos céus destes jardins e parques que me circundam.

O tempo não anda ainda camarada, mas elas revoam sobre os telhados, como para avisar que há um trecho de primavera no horizonte, ainda encoberto pelas nuvens, mas pronto a desvendar-se quando setembro vier.

Já tive andorinhas hóspedes de minha morada. Por sucessivos setembros escolheram um pequeno depósito de quinquilharias, com saída para a rua, para aquecer e alimentar sua prole.

Ninguém deu por elas, salvo este cronista, que ainda não desaprendeu de que pode haver poesia nas coisas mais simples.

Pois a crônica é isso: um retalho do cotidiano sob a forma de um oculto poema.

Ótima sexta-feira, excelente fim de semana para todos nós e que agosto que hoje inicia seja super produtivo e possa realizar senão todos, alguns dos nossos sonhos.

quarta-feira, 30 de julho de 2008



30 de julho de 2008
N° 15678 - Martha Medeiros


O travesseiro

Eu estava na sala de embarque quando reparei naquele homem sisudo. Estava de terno escuro, gravata escura e tinha o semblante muito sério. Viajava sozinho. Não era um turista, percebia-se que iria voar a negócios. Segurava uma pasta executiva 007 numa mão. Na outra, um travesseiro.

Eu não conseguia tirar os olhos daquele travesseiro. Com fronha. Ela era branca com nuvenzinhas azuis. Um objeto íntimo nas mãos de um provável empresário que iria dormir num flat ou num quarto de hotel e que não colocaria sua cabecinha em nenhum outro travesseiro que não fosse o seu.

Comecei a entender melhor a expressão "vôo doméstico".

Tempos atrás, andar de avião era uma coisa chique. As pessoas se arrumavam bem, colocavam seu melhor casaco e não conseguiam disfarçar uma certa emoção (frisson seria a palavra apropriada). Mesmo sem querer, sentia-se no ar um quase esnobismo.

Definitivamente, não era uma galera de rodoviária. Estavam num aeroporto, um lugar onde tudo era límpido, elegante, iluminado e levemente erótico, a começar pela voz que saía dos alto-falantes anunciando a chegada e partida de outros eleitos.

Hoje uma voz anuncia, com certo tédio, que o embarque que seria efetuado no portão 6 será efetuado no portão 13 por causa do remanejamento das aeronaves, e que haverá um atraso de duas horas por falta de tripulação, e ninguém reclama, porque já tivemos dias piores (se bem que os dias piores podem voltar com a greve dos aeroviários).

Hoje vale tudo: viajar de chinelo, barriga de fora e travesseiro na mão. A questão do travesseiro é instigante, porque é sabido que tem gente que não consegue mesmo dormir longe do seu.

E há apegos ainda mais radicais. Uma vez, ouvi uma moça perguntando a outra por que ela levava uma mala tão gigantesca para passar apenas um final de semana fora. Resposta: porque ali dentro estavam seu travesseiro e seu edredom.

O edredom era de estimação também.

Eu sei que são inúmeros os afeiçoados ao próprio travesseiro. É como a menina que não viaja sem sua boneca, o menino que não sai de casa sem levar seu carrinho: são objetos que nos dão a sensação de que não estamos partindo totalmente.

Podemos estar sem pai nem mãe nesse mundão de Deus, mas trazemos algo do nosso lar. É um conforto mais espiritual que material.

Já eu acredito que viajar é sempre uma aventura e que devemos estar preparados para as surpresas que virão, incluindo o travesseiro do alheio, que pode não ser o ideal para nossa coluna torta. Mas há quem não aceite que vida é risco.

O fato é que já vi gente com as mais diversas e corriqueiras bagagens de mão: térmica, cuia, raquete, violão, Bíblia, berimbau, cachorrinho, crianças, mas chegar ao aeroporto pela manhã com o travesseiro ainda quente e com a fronha babada é, no mínimo, um ato de extrema personalidade. Bem que fazem. Dormem feito anjos.

Embora São Pedro continue de mal com a gente que tenhamos todos uma ótima quarta-feira.