sábado, 18 de abril de 2009


Ruth de Aquino

O primeiro amor em Copacabana

Meu primeiro caso de amor e ódio acabou na praia, depois que ele tentou me afogar. Eu tinha 16 anos

Nosso cronista genial Nélson Rodrigues dizia que toda mulher gosta de apanhar. Pensando bem, nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais. E apenas as neuróticas reagem.

Nélson sabia penetrar com humor e ironia na alma dos conflitos de amor. Naqueles tempos, a traição feminina ainda era aceita como justificativa moral para matar. A mulher pertencia socialmente a um homem. Tudo passa, menos a adúltera – outra máxima rodriguiana.

O motivo para assassinar era nobre: lavar a honra. E os crimes eram passionais. Eram crimes “por amor”. E por amor se matava. A edição de ÉPOCA da semana passada deu o nome certo aos fatos.

O motoboy Marcelo Barbosa, de 29 anos, confessou ter matado “por ódio”, com quatro tiros pelas costas, a ex-namorada de 23 anos, morena Marina, recepcionista de academia de ginástica em São Paulo. Ele está preso, aguarda julgamento. Rapazes como Marcelo matam suas ex-namoradas, às vezes adolescentes, por ciúme e rejeição. Uma mulher apanha a cada 15 segundos no Brasil; 50 mil são mortas no mundo a cada ano por companheiros ou ex. São crônicas da morte anunciadas por agressões cotidianas.

Há quase 40 anos, quando os palavrões e o biquíni grávido de Leila Diniz ainda chocavam a sociedade, entendíamos o silêncio das mulheres espancadas e dependentes. Hoje, a gente se pergunta por quê. Se todas as transgressões femininas já foram cometidas, por que elas não se rebelam nos primeiros tapas? Por que se arrependem quando denunciam, retiram a queixa, voltam, acreditam e tornam a levar porrada?

Uma amiga socióloga no Paraná está prestes a concluir um estudo nacional sobre a violência doméstica. Nas entrevistas, ela sente pena, mas também raiva secreta das mulheres, porque os dramas se repetem, não importa a classe social. São anos ou décadas de agressões em casa, que variam apenas de intensidade. Quase um padrão. O homem encrespa o tom da voz, humilha, passa aos palavrões, golpeia primeiro sem machucar muito, depois perde o controle, aí pede desculpas e promete “nunca mais”.

Algumas se libertam. Seriam burras, ingênuas, submissas, masoquistas? Temo sempre mais pelas meninas, como a jovem Eloá, sequestrada e morta aos 15 anos pelo ex-namorado Lindemberg. Porque elas não têm referência nem maturidade. E também porque me lembro de mim aos 16 anos.

Temo sempre pelas meninas. Eu me lembro de mim aos 16 anos. Meu namorado quase me matou afogada. Por ciúme

Meu primeiro namorado quase me matou, por afogamento, na Praia de Copacabana. O namoro já durava dois anos. No início, não notei nada. Num certo dia, ele começou a me interrogar. Aonde você foi? Como estava vestida? Alguém mexeu com você? A que horas chegou em casa?

Eu respondia. Quando me rebelava, ele me apertava o braço. Beliscava. Passou a puxar meus cabelos, que desciam à cintura. Eu não sabia bem como agir. Com ele, descobri a sexualidade e me perguntava se assim era o amor na vida real. Não contava nada a ninguém por vergonha.

Comecei a sentir medo. Ameaçava terminar, mas ele se derramava em desculpas e chorava. Até o dia em que chegou à praia e eu estava no mar, conversando com um amigo surfista, depois da arrebentação.

Ele nadou rápido, era halterofilista, e pude perceber o olhar de ódio antes de ele me aplicar um caldo, sem dar uma palavra, e manter a mão sobre minha cabeça, no fundo do mar, me impedindo de voltar à tona.

Eu engolia água e achei que fosse morrer. Quando ele me soltou e eu subi, chorava engasgada e fui socorrida, levada à areia. Talvez ele quisesse apenas me dar um susto. Eu me assustei para o resto da vida. Ali terminava meu primeiro e único caso de amor e ódio.

Nunca mais um homem me submeteu a interrogatório. Nunca mais namorei um homem ciumento ou agressivo. Dei sorte. Não morri nem me viciei. Pais e mães deveriam sempre conversar com suas filhas e seus filhos antes de suas primeiras investidas amorosas. Explicar que violência não é amor.

A imensa maioria dos homens ama suas mulheres com paixão, carinho e desejo, sem agredi-las. Casos como esses e o da ex-namorada do jornalista Pimenta Neves, morta a tiros, são a exceção, não a regra. Mas é inaceitável o número de crimes. Todos temos de aprender a lidar com o ciúme de modo não violento. Especialmente os homens.


18 de abril de 2009
N° 15943 - CLÁUDIA LAITANO


Velhos sátiros

Carlos Drummond de Andrade deixou três livros inéditos no pequeno escritório da Rua Conselheiro Lafayette, em Ipanema, onde trabalhou durante os últimos 25 anos de sua vida. Poesia Errante ainda não estava finalizado, e Farewell, como o nome entrega, deveria ser a despedida oficial, o último capítulo de uma carreira de mais de 60 anos de inestimáveis serviços prestados à poesia em língua portuguesa.

O terceiro original engavetado, O Amor Natural, era o prazer mais ou menos secreto de Drummond, uma coletânea de poemas eróticos que ele preferiu não publicar em vida. Na pasta de cartolina ordinária em que guardou os originais deste livro nascido para ser póstumo, Drummond colocou o artigo “O” sobre o “A” de amor, sugerindo, marotamente, a auréola sobre a cabeça de um santo.

Quando veio a público, em 1992, cinco anos depois da morte do poeta, O Amor Natural causou o previsível escândalo. São poemas escancaradamente despudorados, uma galeria de partes íntimas e de gestos lúbricos que dificilmente o leitor comum associaria à figura do velho poeta de físico franzino e temperamento discreto.

Entre bocas errantes, línguas inquietas, gritos e gemidos, Drummond celebra o sexo de forma viril e apaixonada, mas o inquietante do livro não é exatamente seu conteúdo erótico explícito, mas o fato de ter sido escrito por um senhor de mais de 70 anos, idade em que se esperam grandes questionamentos sobre o sentido da existência e a proximidade da morte, mas não versos como “Era manhã de setembro e ela me beijava o membro”.

No disco que lançou esta semana, Zii e Zie, Caetano Veloso, 66 anos, também escancara as urgências do desejo na maturidade sem ligar para as conveniências da idade – cantando versos, não exatamente memoráveis, como “Uma menina preta de biquíni amarelo/ Na frente da onda/ Que onda, que onda, que onda que dá/ Que bunda, que bunda!” (A Cor Amarela) ou “Tarado, tarado, tarado/ Tarado ni você” (Tarado Ni Você).

Um mundo, vasto mundo, de acontecimentos separa as gerações de Caetano Veloso e Carlos Drummond de Andrade. O primeiro viveu a juventude nos anos 20 e 30, quando uma nesga de perna entrevista no bonde já era suficiente para abastecer dias e noites de delírios eróticos. O segundo é da turma que inventou o “é proibido proibir” e terminou de desinventar o pecado.

Mas ainda que seus versos desbocados reflitam, inevitavelmente, todas as diferenças entre as duas gerações que dividiram o século 20 ao meio, talvez haja algo em comum nessa necessidade de falar de sexo de forma aparentemente tão abusada ali quando a passagem do tempo começa a impor ao corpo sua inevitável cota de limitações.

Para os mais jovens, a ilusão de que a idade neutraliza o desejo talvez ajude a suportar a ideia da velhice – o que explica, em parte, o desconforto que os velhinhos sacanas provocam, mesmo quando são artistas de talento.

Mas o que Drummond, mais radicalmente, e agora Caetano estão dizendo quando, de cabelos brancos, celebram o sempre renovado deslumbramento por peitos, coxas e bundas é que o sexo pode ser a mais divertida, e contundente, negação da morte – e que a anarquia do desejo, mais do que a esperança, provavelmente é a última que morre.

sexta-feira, 17 de abril de 2009



Sugestões - Lançamentos

- ESTAVA ESCURO E ESTRANHAMENTE CALMO, do designer e escritor alemão Einar Turkowski, é a história ilustrada de um homem misterioso que desambarca em uma ilha e muda sua pacata rotina. Mora numa casa abandonada, onde, todas as noites, surgem peixes pendurados de cabeça para baixo.

Os vizinhos querem descobrir o segredo. A obra recebeu os principais prêmios internacionais de literatura infantil e de ilustração de Bratislava em 2007.O livro tem 24 páginas e custa R$ 39.00. Cosac Naify, telefone (55) 3218-1473.

- AMAZÔNIA - 20° ANDAR - DE IPANEMA AO TOPO DO MUDO, UMA JORNADA NA TRILHA DE CHICO MENDES, do escritor e jornalista Guilherme Fiúza, narra, em tom de livro-reportagem, a história da estilista Bia e do empresário José Augusto, que largam tudo no Rio e vão para o interior do Acre. São muitas, muitas aventuras. 272 páginas, R$ 42,00. Editora Record, telefone 21-2585-2000.

- A VOZ DO POSTE, de Moacyr Scliar, autor de quase cem livros, narra a trajetória de Josias, filho mais velho de Samuel e Raquel, na imaginária Santiago do Oeste. Os pais o queriam médico. Ele quis ser locutor de rádio. O vizinho dono de rádio ajudou-o a criar A Voz do Poste, serviço de altofalantes pendurados nos postes da praça. Josias precisava conquistar o ouvinte mais importante, seu pai. 120 páginas, Editora Rocco, telefone 21-3525-2000.

- DAS VIAGENS DO JUCA PELA NATUREZA, da fotógrafa e escritora Amélia Toledo, mostra, através da ficção, as pedras, suas histórias e suas estranhas relações com os seres humanos. As fotografias em cores de pedras e animais dão relevo à obra, que foi fruto de patrocínio da F/Nazca e apoios da Galeria Nara Roesler e município de São Paulo. 120 páginas, R$ 35,00. Iluminuras, telefone 11-3031-6161.

E VERSOS

Um poema agora

Quem sabe um poema agora
que as ilusões últimas aconteceram
que os sonhos foram enterrados
com o luto abrasador dos anos
e que no horizonte uma luz aponta
algo tão inédito
que o coração infla e a mente vibra.
Quem sabe dizer do futuro
agora que o passado encerra
e tornar a construir castelos
de estrutura mais sólida
e de portas e janelas abertas
ao ar tépido da aurora.
Quem sabe um poema esperançoso
agora que da tristeza fez-se a história
e de conquistas pequenas
de passo em passo a vitória.
Quem sabe um poema colorido outrora.

*Magda Loguercio Carvalho, em Noite Alta, Editora Movimento, telefone 3232-0071

Uma ótima sexta-feira e um excelente fim de semana

quarta-feira, 15 de abril de 2009



15 de abril de 2009
N° 15939 - MARTHA MEDEIROS


Adriano, o imperador

Se eu já entendia pouco de futebol quando frequentava os estádios, hoje entendo menos ainda. Sigo torcedora do Inter e da Seleção, mas me peça para dizer o nome de 10 jogadores brasileiros que estejam na ativa e eu vou me resumir aos inevitáveis Ronaldinhos e a mais alguns poucos.

Adriano não entraria nesse “alguns poucos”. Não lembrava da sua existência até ler a respeito da sua decisão de dar um tempo para os campos: o craque resolveu repensar sua vida, enquanto retoma velhos hábitos, como andar de chinelo de dedos e ficar de prosa com os amigos que deixou na Vila Cruzeiro, lugar onde se criou.

A notícia de sua temporária desistência tem sido acompanhada por um inevitável “aí tem”. Especula-se sobre uso de drogas, depressão, baladas, mesmo o jogador afirmando que não é nada disso. Pode ser que aí tenha ou que não tenha: só ele conhece seus motivos secretos, e talvez nem sejam secretos – vamos supor que ele esteja sendo sincero.

É muito difícil a opinião pública acreditar que alguém que conseguiu realizar um sonho que outras milhões de pessoas também sonharam (e não alcançaram) de repente desista de tudo sem explicações mais bombásticas do que um simples “não quero mais”.

Adriano, que era um moleque de periferia, começou a jogar bola e através dela ganhou notoriedade e muito dinheiro. Rompeu fronteiras, foi viver na Europa e teve o mulherio a seus pés, como acontece com qualquer celebridade do esporte.

O mesmo pode acontecer com um ator amador que desponta para o estrelato depois de uma novela, ou com um cantor que vivia no morro e ganhou fama internacional, ou com uma garota que não era ninguém e hoje é modelo e vive num dúplex em Manhattan.

A gente sabe que uns poucos eleitos realizam seu conto de fadas. O que não costuma acontecer é o eleito se sentir oprimido por essa nova vida – ou ele se adapta naturalmente ou se adapta na marra, mas largar o osso, nem pensar.

“Quero ser o Adriano de antes”, disse o jogador em entrevista coletiva. E todo mundo lhe apontou o dedo como se ali houvesse um farsante. É obrigatório seguir em frente, é proibido dar meia-volta.

Ainda mais quando o “antes” é totalmente desglamorizado, quando o “antes” é um lugar sem fotógrafos, quando o “antes” é superpovoado por gente que sonha justamente em sair dali. Como Adriano se atreveu a buscar outro caminho para a felicidade que não o do sucesso?

Para alguns, viver no Exterior sem amigos e sem referências culturais é um suplício que não vale as mordomias que se recebe em troca. Não é comum, mas qualquer pessoa tem o direito de achar enfadonho viver sob holofotes e ter seu desempenho julgado o tempo todo, e em função disso questionar o rumo que sua vida está tomando.

Qualquer Adriano ou José ou Maria que ganhe um salário milionário e tenha passe livre para as benesses da vida pode não ver encanto nisso. Recusar oportunidades de crescimento não parece uma atitude esperta, mas não deixa de ser interessante testemunhar alguém desdenhando a glória numa época em que a glória passou a ser uma obsessão coletiva.

segunda-feira, 13 de abril de 2009



13 de abril de 2009
N° 15937 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Assim falou Hemingway

A.E. Hotchner, autor da melhor biografia de Hemingway em seus anos finais, torna a desembarcar na língua portuguesa. Desta vez o leitor é presenteado com A Boa Vida segundo Hemingway, uma edição da Larrousse que reúne as melhores citações do autor de Por quem os Sinos Dobram. Aqui vai uma amostra do livro:

O amor é infinitamente mais duradouro que o ódio.

A coragem é uma questão de consciência de uma pessoa, e não tem qualquer compromisso com a avaliação dos outros.

Não sei distinguir entre judeus e não-judeus, pois não consigo distinguir um judeu de qualquer outra pessoa.

A disciplina é muito mais desejável do que a inspiração.

Não pretendo ser um crítico de arte. Tudo o que quero é olhar para os quadros, satisfazer-me com eles e aprender com eles.

É tudo tão lindo nesta luz indistinta. Degas poderia ter pintado e usado a luz de modo que as coisas resultariam mais verdadeiras do que nós as vemos agora. Esta é a função do artista.

Para poder escrever sobre a vida, primeiro você deve vivê-la.

Durante um longo tempo, tentei simplesmente escrever o melhor que podia. Algumas vezes tenho sorte, e escrevo melhor do que posso.

Bebe-se para ter prazer, não para escapar de algo.

O homem deve conseguir livrar-se de sua culpa, ou então desistir de ser homem.

A melhor munição contra as mentiras é a verdade, mas não há munição alguma contra as fofocas.

A coisa mais rara que existe é encontrar felicidade entre as pessoas inteligentes.

Nunca joguei na roleta sem que eu abandonasse o jogo quando estava ganhando muito.

Todas as coisas verdadeiramente perversas começam a partir da inocência.

O homem não é feito para a derrota. Um homem pode ser destruído, mas não derrotado.

Uma excelente segunda-feira e uma ótima semana para você.

sábado, 11 de abril de 2009



12 de abril de 2009
N° 15936 - MARTHA MEDEIROS


Cresça e divirta-se

Tenho viajado bastante para acompanhar algumas pré-estreias do filme Divã, baseado no meu livro homônimo. Delícia de tarefa, ainda mais quando a gente gosta de verdade do trabalho realizado, e esse filme realmente ficou enxuto, delicado e emocionante. Além disso, ainda consegue me provocar.

A personagem Mercedes (vivida pela incrível Lilia Cabral) está fazendo análise e leva pro consultório muitos questionamentos sobre sua vida. Até que, passado um tempo, finalmente relaxa e se dá conta de que não há outra saída a não ser conviver com suas irrealizações. Diante disso, o analista sugere alta, no que ela rebate: Alta? Logo agora que estou me divertindo?.

Eu tinha esquecido dessa parte do livro, e quando vi no filme, me pareceu tão cristalino: um dos sintomas do amadurecimento é justamente o resgate da nossa jovialidade, só que não a jovialidade do corpo, que isso só se consegue até certo ponto, mas a jovialidade do espírito, tão mais prioritária.

Você é adulto mesmo? Então pare de reclamar, pare de buscar o impossível, pare de exigir perfeição de si mesmo, pare de querer encontrar lógica pra tudo, pare de contabilizar prós e contras, pare de julgar os outros, pare de tentar manter sua vida sob rígido controle. Simplesmente, divirta-se.

Não que seja fácil. Enquanto que um corpo sarado se obtém com exercício, musculação, dieta e discernimento quanto aos hábitos cotidianos, a leveza de espírito requer justamente o contrário: a liberação das correntes. A aventura do não-domínio.

Permitir-se o erro. Não se sacrificar em demasia, já que estamos todos caminhando rumo a um mesmo destino, que não é nada espetacular. É preciso perceber a hora de tirar o pé do acelerador, afinal, quem quer cruzar a linha de chegada? Mil vezes curtir a travessia.

Dia desses recebi o e-mail de uma mulher revoltada, baixo-astral, carente de frescor, e fiquei imaginando como deve ser difícil viver sem abstração e sem ver graça na vida, enclausurada na dor. Ela não estava me xingando pessoalmente, e sim manifestando sua contrariedade em relação ao universo, apenas isso: odiava o mundo. Não a conheço, pode sofrer de depressão, ter um problema sério, sei lá.

Mas há pessoas que apresentam quadro depressivo e ainda assim não perdem o humor nem que queiram: tiveram a sorte de nascer com esse refinado instinto de sobrevivência.

Dores, cada um tem as suas. Mas o que nos faz cultivá-las por décadas? Creio que nos apegamos com desespero a elas por não ter o que colocar no lugar, caso a dor se vá. E então se fica ruminando, alimentando a própria “má sorte”, num processo de vitimização que chega ao nível do absurdo. Por que fazemos isso conosco?

Amadurecer talvez seja descobrir que sofrer algumas perdas é inevitável, mas que não precisamos nos agarrar à dor para justificar nossa existência.

Boa noite a você leitor(a) deste blogger. Que o coelhinho seja generoso com você e possa trazer-lhe tudo o que esperas e realizar, senão todos, parte dos seus sonhos.


Daqui eu não saio
Carolina Romanini - Eduardo Marques/Tempo Editorial

Uma geração de jovens que já trabalham e ganham seu dinheiro mas resistem à ideia de deixar a casa dos pais estabelece um novo padrão de comportamento



Relação de cumplicidade
Os gêmeos Roberto, advogado, e Mônica, analista de RH, de 31 anos, com os pais, Ricardo e Denise: os namorados sempre foram bem-vindos na casa. "Não vejo sentido em morar só", diz Roberto

O natural que os jovens, assim que começam a trabalhar e a ganhar o próprio dinheiro, sonhem em deixar a casa dos pais. Conquistar a independência, ter o seu canto, receber os amigos e namorados na hora que quiser – tudo isso faz parte do rito de passagem para a fase da vida em que a noção de responsabilidade adquire um significado mais amplo.

Essa ordem natural das coisas vem sendo desafiada por muitos adultos jovens. Embora já trabalhem, eles preferem permanecer na casa da família – e nem sequer têm planos de morar sozinhos.

São os chamados jovens cangurus, uma analogia com os mamíferos da Austrália que andam de carona na bolsa abdominal da mãe. Segundo o instituto de pesquisas LatinPanel, de São Paulo, há hoje no Brasil 3,3 milhões de famílias das classes média e alta com filhos cangurus. Isso equivale a 7% das famílias do país.

A maioria deles se encontra na faixa dos 25 a 30 anos, mas, entre os já quase quarentões, 15% ainda moram com os pais (veja o quadro abaixo). Quando se considera que até meados do século XX as mulheres – e muitos homens – só deixavam a casa paterna para casar, surge a questão: terá havido um retrocesso na independência conquistada pelos jovens? Não é bem assim. Os jovens cangurus têm boas razões para ficar em casa.
Foto Will & Deni Mcintyre/Latinstock



O primeiro motivo que desestimula os jovens de conquistar o próprio espaço é que eles desfrutam em casa toda a liberdade que desejam. Filhos cangurus quase sempre têm pais liberais, que respeitam sua individualidade e não entram em conflito com eles – desde que o respeito seja mútuo, é claro.

A família do engenheiro Ricardo Saporiti e de sua mulher, Denise, advogada, de Florianópolis, se encaixa nesse modelo. Seus filhos, os gêmeos Roberto e Mônica, de 31 anos, são formados, pós-graduados e independentes do ponto de vista financeiro.

Ele é advogado e ela, analista de RH. Nenhum dos dois pensa em sair de casa. Explica Mônica: "Quando pesamos os prós e os contras para ficar em casa, só vemos prós. Nunca tivemos problema em trazer os amigos para cá. Os namorados também sempre foram bem-vindos, e, quando éramos adolescentes, meus pais não brigavam se quiséssemos tomar uma cerveja".

Diz Roberto: "Não vejo sentido em sair daqui para morar sozinho, na mesma cidade que meus pais. Só quando casar". O psiquiatra Içami Tiba, autor de vários livros sobre o comportamento dos jovens, avalia que a cumplicidade está na base da relação entre jovens cangurus e seus pais. "Essa nova relação familiar só é possível quando os pais deixam de ver os filhos como subordinados a eles e se tornam seus companheiros", diz Tiba.

A liberdade que os jovens cangurus têm na casa dos pais leva ao segundo motivo citado por eles para não deixá-la – a manutenção do padrão de vida que desfrutam. Roupa lavada, empregada doméstica à disposição e comida na mesa são alguns dos luxos dos quais teriam de abrir mão.

"Sair de casa só quando eu tiver condições de manter o meu padrão de vida ou melhorá-lo", diz Mariane Ferraresi, especialista em marketing de 26 anos, de São Paulo. Ela já pensou em dividir um apartamento alugado com uma prima, mas voltou atrás. Seus pais, Rivail Ferraresi, empresário, e Miriam Miguel, assistente de vendas, deram apoio total à sua decisão.

Enquanto continua na casa dos pais, Mariane investe em uma nova carreira como chef de cozinha. Ela aproveita o dinheiro que sobra no fim do mês para comprar livros de culinária, utensílios de cozinha e ingredientes para testar receitas. "Se eu tivesse escolhido morar fora, provavelmente não teria me permitido o luxo de investir nessa nova carreira", explica.

Fotos Lailson Santos


Aposta nas panelas

A especialista em marketing Mariane, de 26 anos, com os pais, Rivail e Miriam: o dinheiro que sobra do salário é investido na carreira de chef de cozinha. "Se eu tivesse escolhido morar fora, não conseguiria me dar a esse luxo", ela diz

O terceiro motivo que leva os jovens cangurus a permanecer na casa dos pais é a possibilidade de usar o próprio dinheiro no aperfeiçoamento de sua formação acadêmica. A competitividade do mercado, em todas as áreas, exige que os jovens tenham um currículo cada vez mais atraente.

Além disso, os empregadores fazem questão de experiência anterior na área – que geralmente é adquirida em trabalhos mal remunerados. "É mais fácil investir em qualificação profissional sem preocupações com o aluguel e tudo o que envolve a manutenção de uma casa", diz o publicitário paulista André Grilo, de 37 anos.

Com remuneração suficiente para deixar a casa dos pais desde que concluiu a faculdade, em 1997, André preferiu investir o dinheiro em um ano de intercâmbio em Londres e seis cursos de especialização. Há quatro anos, montou sua própria agência de publicidade e, se tudo correr como planeja, antes de completar 40 anos terá guardado quantia suficiente para sair de casa.

A permanência de jovens adultos que já trabalham na casa dos pais é comum em muitos países. Na Itália, esse tipo de conduta é uma tradição. Os italianos chamam esses personagens de bamboccioni, ou crianças grandes – é voz corrente no país que as mães estimulam a permanência em casa pela afetuosidade exuberante que demonstram com relação aos filhos. Já os japoneses são menos simpáticos ao se referir aos jovens cangurus.

Eles são chamados de solteiros parasitas. "Em países como o Brasil, a Itália e o Japão, a demora para sair de casa é típica de uma geração que posterga a adolescência, o casamento e a paternidade, quando não desiste de vez dos filhos", disse a VEJA a psicóloga Barbara Hofer, da Universidade de Middlebury, em Vermont, nos Estados Unidos, que estuda o fenômeno há quatro anos.



Verba extra para estudar

O publicitário André Grilo, de 37 anos, já tem um negócio próprio, mas não se muda da casa onde cresceu. "Só assim consegui bancar um intercâmbio em Londres e seis cursos de especialização", ele diz

Nos Estados Unidos, os jovens cangurus são chamados de filhos bumerangues e têm um perfil diferente. Pelos costumes americanos, ao ingressarem na faculdade, os jovens saem de casa e vão morar em repúblicas de estudante ou no próprio câmpus. Depois de formados, espera-se que eles logo arrumem emprego na área em que se especializaram e não voltem mais para a casa dos pais.

Essa tradição é interrompida quando o nível de desemprego nos Estados Unidos se eleva. Foi o que aconteceu em 2003, quando mais da metade dos recém-formados americanos retomou o caminho de casa. "Com a crise econômica atual, espera-se um número recorde de estudantes que não conseguirão emprego ao se formar e terão de voltar a morar com os pais", prevê a psicóloga Barbara Hofer.

Embora os costumes no Brasil sejam diferentes, é bem provável que esse efeito colateral da crise também se abata sobre o país, multiplicando a quantidade de jovens cangurus.


Claudio de Moura Castro claudio&moura&castro@cmcastro.com.br

Embromação a distância?

"No seu conjunto, as avaliações não deixam dúvidas: é possível aprender a distância"

Novidade incerta? Mais um conto do vigário? Ilustres filósofos e distinguidos educadores torcem o nariz para o ensino a distância (EAD).

Logo após a criação dos selos de correio, os novidadeiros correram a inventar um ensino por correspondência. Isso foi na Inglaterra, em meados do século XIX. No limiar do século XX, os Estados Unidos já ofereciam cursos superiores pelo correio. Na década de 30, três quartos dos engenheiros russos foram formados assim. Ou seja, novo não é.

Ilustração Atômica Studio

EAD significa que alunos e professores estão espacialmente separados – pelo menos boa parte do tempo. O modo como vão se comunicar as duas partes depende da tecnologia existente. No começo, era só por correio. Depois apareceu o rádio – com enorme eficácia e baixíssimo custo. Mais tarde veio a TV, área em que Brasil e México são líderes mundiais (com o Telecurso e a Telesecundaria).

Com a internet, EAD vira e-learning, oferecendo, em tempo real, a possibilidade de ida e volta da comunicação. Na prática, a tecnologia nova se soma à velha, não a substitui: bons programas usam livros, o venerando correio, TV e internet. Quando possíveis, os encontros presenciais são altamente produtivos, como é o caso do nosso ensino superior que adota centros de recepção, com apoio de professores "ao vivo" para os alunos.

Há embromação, como seria esperado. Há apostilas digitalizadas vendidas como cursos de nomes pomposos. Mas e daí? Que área escapa dos vigaristas? Vemos no EAD até cuidados inexistentes no ensino presencial, como a exigência de provas presenciais e fiscalização dos postos de recepção organizada (nos cursos superiores).

Nos cursos curtos, não há esse problema. Mas, no caso dos longos, o calcanhar de aquiles do EAD é a dificuldade de manter a motivação dos alunos. Evitar o abandono é uma luta ingente. Na prática, exige pessoas mais maduras e mais disciplinadas, pois são quatro anos estudando sozinhas.

As telessalas, que reúnem os alunos com um monitor, têm o papel fundamental de criar um grupo solidário e dar ritmo aos estudos. E, se o patrão paga a conta, cai a deserção, pois abandonar o curso atrapalha a carreira. Também estimula a persistência se o diploma abre portas para empregos e traz benefícios tangíveis – o que explica o sucesso do Telecurso.

Mas falta perguntar: funciona? Prestam os resultados? Felizmente, houve muita avaliação. Vejamos dois exemplos bem diferentes. Na década de 70, com Lúcia Guaranys, avaliei os típicos cursos de radiotécnico e outros, anunciados nas mídias populares.

Para os que conseguiam se graduar, os resultados eram espetaculares. Em média, os alunos levavam menos de um ano para recuperar os gastos com o curso. Em um mestrado de engenharia elétrica de Stanford, foi feito um vídeo que era, em seguida, apresentado para engenheiros da HP. Uma pesquisa mostrou que, no final do curso, os engenheiros da HP tiravam notas melhores do que os alunos presenciais. Os efeitos do Telecurso são também muito sólidos.

Para os que se escandalizam com a qualidade do nosso ensino superior, sua versão EAD é ainda mais nefanda. Contudo, o Enade (o novo Provão) trouxe novidades interessantes. Em metade dos cursos avaliados, os programas a distância mostram resultados melhores do que os presenciais! Por quê?

Sabe-se que a aprendizagem "ativa" (em que o aluno lê, escreve, busca, responde) é superior à "passiva" (em que o aluno apenas ouve o professor). Na prática, em boa parte das nossas faculdades, estudar é apenas passar vinte horas por semana ouvindo o professor ou cochilando.

Mas isso não é possível no EAD. Para preencher o tempo legalmente estipulado, o aluno tem de ler, fazer exercícios, buscar informações etc. Portanto, mesmo nos cursos sem maiores distinções, o EAD acaba sendo uma aprendizagem interativa, com todas as vantagens que decorrem daí.

No seu conjunto, as avaliações não deixam dúvidas: é possível aprender a distância. Cada vez mais, o presencial se combina com segmentos a distância, com o uso da internet, e-learning, vídeos do tipo YouTube e até com o prosaico celular. A educação presencial bolorenta está sendo ameaçada pelas múltiplas combinações do presencial com tecnologia e distância.

Claudio de Moura Castro é economista

Cristiane Segatto

A pílula do esquecimento

Cientistas tentam apagar más lembranças. Isso é bom ou ruim?

Todos nós temos pelo menos uma lembrança que gostaríamos de esquecer. Eu tenho duas. Adoraria tomar uma pílula e tirar de vez da minha cabeça a cena do raio que quase me fulminou há 16 anos, enquanto eu fazia uma reportagem no Parque de Ibitipoca, em Minas Gerais.

Até hoje me lembro da força que me levantou do chão e me atirou para frente. Revejo a faísca que correu pelo chão e sinto o cheiro de enxofre que ficou no ar. A descarga elétrica fez meu cérebro sofrer. Durante alguns minutos não conseguia sentir o lado direito do meu corpo. Sobrevivi. Meus neurônios ainda funcionam. A lembrança ficou.

O outro evento que gostaria de apagar foi igualmente marcante. É a do bando de traficantes que me atacou na Favela de Heliópolis, em São Paulo, em 2000, enquanto eu fazia uma reportagem de saúde. Fui ameaçada com um revólver, levei chutes nas pernas e coronhadas na cabeça. Estava grávida de sete meses. Eu e minha filha sobrevivemos. De novo, a péssima lembrança ficou.

Memórias traumáticas são o foco de investigação de cientistas comandados pelo neurocientista Todd C. Sacktor, da State University of New York. Quando ocorre um evento traumático, ele é registrado por várias células do cérebro que funcionam em cadeia. Segundo Sacktor, a comunicação entre elas parece ser feita por uma substância chamada de PKMzeta. As células funcionam em rede como se fossem um grupo de testemunhas de um terremoto devastador.

Sacktor faz parte de um consórcio de cientistas interessados na possibilidade de “editar” memórias. Em testes com animais, uma equipe do Weizmann Institute of Science, em Israel, diz ter conseguido interferir no funcionamento da substância PKMzeta.

Eles teriam alcançado esse feito ao injetar no cérebro dos animais uma única dose de uma droga experimental (identificada pela sigla ZIP). Segundo eles, a droga fez com que ratos esquecessem a repugnância que haviam desenvolvido pelo sabor de um alimento que os deixou doente três meses antes.

As pesquisas estão só começando. Ainda vai demorar muito tempo até que uma pílula como essa esteja disponível para uso humano – se é que um dia vai estar. Mas esse tipo de pesquisa abre espaço para longos debates.

“A possibilidade de editar memórias provoca enormes discussões éticas”, disse o neurobiologista Steven E. Hyman ao jornal The New York Times. Hyman acredita que uma droga como essa seria muito útil porque ajudaria uma pessoa a amenizar memórias traumáticas. “Por outro lado, também poderia ser usada para aliviar a consciência do mau comportamento e até de crimes”, diz.

O debate sobre a “edição” de memórias é a base do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, estrelado por Jim Carrey. Joel, o personagem vivido pelo ator, recorre a uma clínica neurológica para tirar da cabeça a namorada, Clementine (Kate Winslet). Por meio de imagens de ressonância magnética e objetos que o fazem lembrar da moça, os médicos localizam no cérebro o ponto exato onde reside a memória indesejada e destroem neurônios, apagando as lembranças.

Por enquanto, a limpeza radical de arquivos mentais só existe no cinema. Mas as pesquisas sobre a "pílula do esquecimento" ainda vão dar muito o que falar. Se uma pessoa nada mais é do que o conjunto de suas memórias, seria ético receitar uma pílula capaz de apagar lembranças? Caso um remédio como esse estivesse disponível no fatídico 11 de setembro, o destino dos americanos, do Iraque e do mundo teria sido diferente?

Lembro (e esta lembrança faço questão de não apagar!!!) de ter conversado sobre isso há alguns anos com o neurocientista Iván Izquierdo, professor da PUC do Rio Grande do Sul. Argentino naturalizado brasileiro, Izquierdo é reconhecido no mundo todo como um dos mais ativos pesquisadores da memória. Tem mais de 600 artigos publicados em revistas científicas. Perguntei a ele se as vítimas do 11 de setembro deveriam tomar a "pílula do esquecimento" caso ela existisse. Ele respondeu:

"Acho que não. Os americanos não devem apagar essa memória. Precisam se lembrar de que foram atacados. Não é desejável que os cidadãos se lembrem daquilo o tempo todo. Se fosse assim, a sociedade ficaria brutalizada. Mas é preciso aprender a atribuir a cada lembrança seu real valor. Existem tratamentos que ajudam a calibrar o peso das memórias e guardá-las assim".

Relembrar um pensamento de Izquierdo é um privilégio. Pensando bem, acho que ele tem razão. Já não quero apagar minhas duas experiências traumáticas. Preciso delas para ter certeza de que enfrentei o pior e sobrevivi. E para me lembrar todos os dias de que a sorte nunca me abandonou.

E você? Gostaria de apagar más lembranças? Tomaria a "pílula do esquecimento" se ela estivesse disponível?

quarta-feira, 8 de abril de 2009



08 de abril de 2009
N° 15932 - MARTHA MEDEIROS


Bíceps mal utilizados

Aconteceu nas recentes férias de verão. Estávamos eu e minhas filhas dentro do carro, estacionadas num mirador de frente para o mar, esperando o sol se pôr bem na nossa frente, enquanto apreciávamos os veleiros e ouvíamos bossa nova, ou seja, só faltava entrar o logotipo de algum cartão de crédito dizendo que certas coisas não tem preço e blablablá.

Conversa vai, conversa vem, estacionou ao lado do nosso carro um outro carro. Era um casal que, pelo visto, também curtia um drive-in natureba. Ele eu não consegui ver direito, mas ela era inesquecível: uma loira estonteante de blusa bem decotada e exibindo uns 50 centímetros de bíceps. Normal. Travestis também curtem uma cena de cartão-postal.

Estávamos, assim, todos numa boa compartilhando a despedida da tarde, quando a loira abriu o vidro do carro, colocou o bração pra fora e jogou um saco enorme de salgadinho no chão. Fechou o vidro e continuou a apreciar a natureza que ela ajudava um pouquinho a destruir. Não tive dúvida: desci do carro, juntei o pacote, bati na janela e perguntei com o meu melhor sorriso: isso é seu?

Minhas filhas ficaram tensas, achando que meu gesto poderia parecer um ato de preconceito. Não, meninas. Travesti, padre, matador profissional, guarda noturno de zoológico, garota fantástica, goleador do Milan, diretor de escola de samba, não importa quem seja: um mínimo de consciência se exige. Há menos de 10 metros havia uma lixeira.

Se a moça não queria desfilar seus bíceps para o povo, que pedisse para o seu acompanhante levar a embalagem vazia ao lugar que lhe era destinado, ou então que esperasse chegar em casa para se desfazer dos restos mortais do seu lanche, mas largar a dois metros do mar é provocação.

Pois bem. Ela abriu a janela do carro bufando. Minhas filhas acertaram na mosca, a moça não gostou nadinha da minha intervenção. O que eu estava pensando, que era melhor do que ela? Resmungou qualquer coisa e fechou o vidro sem querer mais assunto, dando-se o direito de ser porca, afinal, não estamos numa democracia?

Segui com o pacote na mão e levei-o eu mesma até o lixo. Era o que eu deveria ter feito desde o início, mas são raros os momentos em que me descontrolo, e um deles é quando vejo alguém jogar uma garrafa plástica, uma carteira de cigarros ou qualquer outra embalagem no chão.

Tendo oportunidade, vou até a pessoa e devolvo com educação e eufemismo: tome, você deixou cair.

Se a criatura tiver um mínimo de noção sobre cidadania, vai pegar seu lixo de volta e não repetirá a bobagem que fez. Mas a arrogância é tanta que não há eufemismo que dê jeito. Preconceito tenho é contra grossura – não a dos bíceps, que até aprecio muito, mas de atitude.

Aproveite o dia - Uma óitma quarta-feira Santa

terça-feira, 7 de abril de 2009


Clarice Lispector

Das vantagens de ser bobo

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir, tocar no mundo.

O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo, estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas.

O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo parece nunca ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco.

Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era que o aparelho estava tão estragado que o concerto seria caríssimo: mais vale comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar,e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.

O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu. Aviso: não confundir bobos com burros.

Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação, os bobos ganham a vida.

Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie.

Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas! Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca.

É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

segunda-feira, 6 de abril de 2009



06 de abril de 2009
N° 15930 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Dos prazeres proibidos

Àmedida que avanças pela idade madura – essa que te tortura dos 40 aos 60 e adjacências – percebes que todos os prazeres vão ficando proibidos. Estava eu num dos bares do circuito da Padre Chagas, sitiado por essa humanidade feliz que ainda fuma, que ainda encara um chope com ou sem colarinho, não desdenha um scotch on the rocks, quando ergui o olhar do reles café expresso, da humilhante água mineral, e vi que me fitava uma deusa.

Era alta, refinada, bem produzida, capaz de esgotar em dois minutos uma edição inteira da Vogue, com aquele corpo perfeito, aqueles traços sublimes em edição de luxo, aquela mínima corrente dourada coroando um tornozelo de gazela. Essa rainha me examinou resplendente pelo espaço de nove segundos, aproximou-se magnífica da mesa e perguntou:

– O senhor é o doutor Genésio?

Sou um cavalheiro honesto e cultivo um maldito apreço pela verdade, de jeito que confessei, com um sufoco na garganta, uma dor asfixiante na alma, que não, que não era o doutor Genésio.

– Ah – disse a visão. E me virou as costas e me oprimiu os sonhos e foi procurar o tal doutor Genésio no lado oposto do bar.

Senti na mesma hora que devia ter falado à deusa:

– Sim, eu sou o doutor Genésio e você deve ser a recepcionista mandada pela Companhia. Como é o seu nome? Mildred? Mildred, me faça um favor, divida uma taça de Clicquot comigo. Soube agora que o meu Rolls está com uma pane no isqueiro e vai se atrasar. Há um bom restaurante nesta cidade, Mildred? Que tal jantarmos juntos?

Mas não falei nada disso. Ela desapareceu no lado oposto do bar e não vi sequer mais rastro de sua corrente dourada.

Tomei o último gole de água mineral. Estava morna. Tinha sabor de Emulsão de Scott, um drinque que suponho desconhecido de quem tenha menos de 40 e imagine que 60 era aproximadamente a quilometragem de Matusalém, ao passar desta para melhor, engasgado com um café expresso.

Ótima segunda-feira e uma excelente semana santa

sábado, 4 de abril de 2009



05 de abril de 2009
N° 15929 - MARTHA MEDEIROS


Baderna cerebral

Sobre o que mesmo que eu ia escrever? Vou lembrar, só um pouquinho. Calma... Calminha... Espere um instante...

Lembrei. Quero escrever sobre uma piada que cada dia se propaga mais entre as rodas de amigos. Pessoas trocam as palavras, esquecem nomes, se perdem no meio das frases e, pra se justificar, dizem: é o “alemão” se manifestando. Alemão é o apelido do Alzheimer, e quá quá quá, todos acham a maior graça da brincadeira, mas eu já não estou achando graça nenhuma.

Outro dia assisti na tevê a uma entrevista de um neurologista que dizia, entre outras coisas, que as mulheres têm uma memória melhor do que a dos homens. Estou em apuros. Comentei com uma amiga que está na hora de eu fazer uma vasculhagem cerebral, marcar meia-dúzia de tomografias e enfrentar o diagnóstico, seja ele qual for.

Ela comentou que sente vontade de fazer o mesmo, mas que não tem coragem, porque é certo que algum curto-circuito será detectado: não é possível tanto esquecimento, tanto branco, tanto abobamento. Acontece com ela, acontece comigo, e com você aposto que também, ou você não lembra?

Alzheimer é doença séria, mas, que me conste, ainda não virou epidemia. O que vem sucedendo com todas (to-das!) as pessoas com quem converso é, provavelmente, uma reação espontânea a esse ritmo vertinginoso da vida e a esse turbilhão de informações que já não conseguimos processar. É um chute meu, óbvio.

Meu diploma é de comunicadora, não de médica. Mas creio que o motivo passa por aí: nosso cérebro está sendo massacrado por uma avalanche de nomes, números, datas, rostos, fatos, cenas, frases, fotos, e isso só pode acabar em pane.

Coisa da idade? Então me explique o fenômeno que relato a seguir. Semana passada, minha filha de 17 anos disse o seguinte: “Ontem a gente vai dormir na casa da Gabriela, mãe”. Ontem vocês irão aonde, minha filha?

Ela caiu na gargalhada. “Putz, quis dizer amanhã! Amanhã a gente vai dormir na casa da...”. 17 escassos aninhos e uma overdose de horas de navegação no mundo alucinógeno do MSN, MySpace, YouTube, Orkut e grande elenco. Só pode ser efeito colateral da informática, ou ela também já entrou pra turma das desvairadas?

Pode ser apenas mal de família. É uma hipótese, porém tenho reparado que é mal não só da minha, mas de todas as famílias do planeta Terra. O que é que está me escapando?

Afora muitas palavras difíceis e também as fáceis, muitos verbos complicados e também os de uso contínuo, muitos nomes desconhecidos e também os de parentes em primeiro grau, nomes de cidades distantes e o da cidade em que me encontro agora – Porto o que, mesmo? – o que está me escapando é uma explicação decente.

O que é que está acontecendo com a gente?

Benedito Sverberi

NOS TRILHOS DO AVANÇO

Estudo inédito revela o grau de desenvolvimento dos estados brasileiros – e mostra quais souberam tirar proveito do crescimento nos últimos anos

O crescimento econômico não traz automaticamente o avanço no bem-estar de uma sociedade. O desenvolvimento de fato só ocorre quando há melhoria também em fatores de qualidade de vida, tais como a educação, a saúde e a segurança. Indicadores econômicos isolados, portanto, não são suficientes para aferir o estágio de avanço social.

Pois foi com o intuito de avaliar de maneira mais precisa o grau de desenvolvimento dos estados brasileiros que um grupo da FGV Projetos, unidade de negócios da Fundação Getulio Vargas, acaba de elaborar o Indicador de Desenvolvimento Socioeconômico (IDSE).

Trata-se de um índice feito a partir de 36 variáveis sociais e econômicas, capaz de cotejar com apuro o nível de bem-estar nas 27 unidades da federação. O retrato exibido pelo estudo é alentador: praticamente todos os estados conseguiram progredir nos últimos anos, beneficiando-se da retomada no crescimento e do aprimoramento das políticas sociais. Mas os indicadores mostram que os avanços ainda são tímidos em algumas regiões.

O IDSE é bem mais completo e preciso que o famoso IDH (índice de desenvolvimento humano), divulgado pela Organização das Nações Unidas, que pondera apenas três fatores: renda, expectativa de vida e educação. Pela metodologia usada agora pela FGV, o estado mais avançado do país é São Paulo, que levou nota máxima (IDSE igual a 100). Quer dizer, então, que os paulistas teriam a sensação de morar na Escandinávia? Não é bem assim.

Na verdade, essa nota indica apenas que, numa escala de zero a 100, São Paulo está no topo do ranking de desenvolvimento socioeconômico brasileiro. Os números de São Paulo servem de referência para analisar os demais estados. Na lanterninha aparece o Piauí, que teve avanço modesto nos sete anos abrangidos pelo estudo – de 2001 a 2007, período para o qual existem todos os dados necessários à análise.

Leo Caldas/Titular

REDE DE PROTEÇÃO A diarista Kátia Monteiro Matos, 32 anos, e seus filhos, na periferia de Fortaleza, Ceará: a ajuda do Bolsa Família contribui para complementar a renda e elevar o poder de compra da família

Há duas maneiras de olhar para o trabalho dos pesquisadores. A primeira delas se resume a observar a fotografia – ou seja, examinando o quadro atual do ranking do desenvolvimento, que coloca São Paulo no topo, seguido pelo Distrito Federal. A segunda maneira de analisar o trabalho da FGV é "assistindo ao filme" – isto é, examinando a evolução ocorrida em sete anos. Por esse critério, fica evidente que alguns estados conseguiram obter resultados mais expressivos que os demais.

O destaque, aqui, cabe ao Tocantins. Em 2001, o estado era um dos menos desenvolvidos do país, num patamar semelhante ao de Alagoas, base do ex-presidente Fernando Collor. Agora, ainda que siga como um dos mais atrasados, o Tocantins ao menos conseguiu se distanciar um pouco dos retardatários.

O avanço tocantinense foi impulsionado, em primeiro lugar, pelo agronegócio, que tem na região uma de suas últimas fronteiras de expansão. Mas isso, apenas, não explica o progresso. O Tocantins, um estado jovem (foi criado em 1988, após a divisão de Goiás), nasceu sem passivos carregados de seu passado.

Menos endividado que os demais, o seu governo possui caixa para investir em infraestrutura e em projetos sociais, o que ajudou a reduzir o seu atraso. Por fim, o Tocantins tem atraído grandes investimentos, tanto públicos (como a Ferrovia Norte-Sul) como privados (frigoríficos e processadores de soja).

Outro estado que conseguiu bons resultados foi a Bahia. Seu interior se beneficiou do agronegócio, especialmente das culturas de soja e de algodão. Mas a economia baiana é mais diversificada, e contou com os motores de seu polo industrial de Camaçari e da indústria petrolífera.

O estado, porém, ainda está longe da visão idílica que muitas vezes cantam seus (inúmeros) poetas: só 60% do lixo é coletado, e a rede de esgoto não chega a metade das residências. Na sequência, o que mais melhorou foi o Maranhão, apesar de ser o segundo estado mais subdesenvolvido. Assim como o Ceará, ele viu sua pobreza cair por causa dos programas sociais, como o Bolsa Família.

O Maranhão, terra do ex-presidente da República José Sarney, atual presidente do Senado, obteve avanços também no saneamento básico, graças à expansão de água encanada nas cidades do interior e à construção de duas estações de tratamento de esgoto (as primeiras do estado). Entretanto, o progresso é tímido: as estações operam com apenas 10% da capacidade e tratam o esgoto de 15% da capital, São Luís – o centro histórico é o único bairro atendido por completo.

O resultado mais negativo, contudo, se encontra no Amapá, atual reduto eleitoral de Sarney. Foi o único a regredir. O estado partiu de um IDSE de 65,2 pontos em 2001 (semelhante ao de Minas Gerais) e recuou para 60,4 pontos. O Amapá deu marcha a ré em praticamente todos os indicadores.

Em um país no qual os políticos ainda resistem a fazer análises objetivas e isentas de como usar melhor o dinheiro dos contribuintes, o estudo da FGV Projetos poderá se transformar em um instrumento de acompanhamento da eficácia das políticas públicas. Para o coordenador da pesquisa, Fernando Blumenschein, isso ocorrerá porque será possível fazer uma comparação dos resultados.

"O índice poderá ser usado para selecionar os investimentos públicos em cada região. Sem um bom parâmetro de mensuração de resultados, o debate e a formulação de políticas ficam muito retóricos. Isso poderá começar a mudar", afirmou. "A pesquisa também poderá ajudar a própria população a cobrar as promessas dos governantes."

Com reportagem de Cíntia Borsato

Lya Luft

A crise que estamos esquecendo

"Todos os indivíduos, não importa a conta bancária, profissão ou cor dos olhos, podem reverter esta outra crise: a do desrespeito geral que provoca violência física
ou grosseria verbal em casa, no trabalho, no trânsito"

O tema do momento é a crise financeira global. Eu aqui falo de outra, que atinge a todos nós, mas especialmente jovens e crianças: a violência contra professores e a grosseria no convívio em casa. Duas pontas da nossa sociedade se unem para produzir isso: falta de autoridade amorosa dos pais (e professores) e péssimo exemplo de autoridades e figuras públicas.

Pais não sabem como resolver a má-criação dos pequenos e a insolência dos maiores. Crianças xingam os adultos, chutam a babá, a psicóloga, a pediatra. Adolescentes chegam de tromba junto do carro em que os aguardam pai ou mãe: entram sem olhar aquele que nem vira o rosto para eles.

Cumprimento, sorriso, beijo? Nem pensar. Como será esse convívio na intimidade? Como funciona a comunicação entre pais e filhos? Nunca será idílica, isso é normal: crescer é também contestar. Mas poderíamos mudar as regras desse jogo: junto com afeto, deveriam vir regras, punições e recompensas.

Que tal um pouco de carinho e respeito, de parte a parte? Para serem respeitados, pai e mãe devem impor alguma autoridade, fundamento da segurança dos filhos neste mundo difícil, marcando seus futuros relacionamentos pessoais e profissionais. Mal-amados, mal-ensinados, jovens abrem caminho às cotoveladas e aos pontapés.

Ilustração Atômica Studio

Mal pagos e pouco valorizados, professores se encolhem, permitindo abusos inimagináveis alguns anos atrás. Uma adolescente empurra a professora, que bate a cabeça na parede e sofre uma concussão. Um menininho chama a professora de "vadia", em aula.

Professores levam xingações de pais e alunos, além de agressões físicas, cuspidas, facadas, empurrões. Cresce o número de mestres que desistem da profissão: pudera. Em escolas e universidades, estudantes falam alto, usam o celular, entram e saem da sala enquanto alguém trabalha para o bem desses que o tratam como um funcionário subalterno.

Onde aprenderam isso, se não, em primeira instância, em casa? O que aconteceu conosco? Que trogloditas somos – e produzimos –, que maltrapilhos emocionais estamos nos tornando, como preparamos a nova geração para a vida real, que não é benevolente nem dobra sua espinha aos nossos gritos? Obviamente não é assim por toda parte, nem os pais e mestres são responsáveis por tudo isso, mas é urgente parar para pensar.

Na outra ponta, temos o espetáculo deprimente dos escândalos públicos e da impunidade reinante. Um Senado que não tem lugar para seus milhares de funcionários usarem computador ao mesmo tempo, e nem sabia quantos diretores tinha: 180 ou trinta? Autoridades que incitam ao preconceito racial e ao ódio de classes?

Governos bons são caluniados, os piores são prestigiados. Não cedemos ao adversário nem o bem que ele faz: que importa o bem, se queremos o poder? Guerra civil nas ruas, escolas e hospitais precários, instituições moralmente falidas, famílias desorientadas, moradias sub-humanas, prisões onde não criaríamos porcos.

Que profunda e triste impressão, sobretudo nos mais simples e desinformados e naqueles que ainda estão em formação. Jovens e adultos reagem a isso com agressividade ou alienação em todos os níveis de relacionamento. O tema "violência em casa e na escola" começa a ser tratado em congressos, seminários, entre psicólogos e educadores. Não vi ainda ações eficazes.

Sem moralismo (diferente de moralidade) nem discursos pomposos ou populistas, pode-se mudar uma situação que se alastra – ou vamos adoecer disso que nos enoja. Quase todos os países foram responsáveis pela gravíssima crise financeira mundial.

Todos os indivíduos, não importa a conta bancária, profissão ou cor dos olhos, podem reverter esta outra crise: a do desrespeito geral que provoca violência física ou grosseria verbal em casa, no trabalho, no trânsito.

Cada um de nós pode escolher entre ignorar e transformar. Melhor promover a sério e urgentemente uma nova moralidade, ou fingimos nada ver, e nos abancamos em definitivo na pocilga.

Lya Luft é escritora


Quer cair em tentação? Deixe de lado os arrependimentos

Uma pesquisa feita com universitários americanos mostrou que para realmente aproveitar o prazer de comer um doce ou gastar dinheiro com uma roupa, as pessoas têm que encontrar um bom motivo racional. Sem ele, pode ser que sintam apenas culpa.
Thaís Ferreira

Vai cair em tentação? Arrume um bom motivo para não se arrepender depois.Se você acha que precisa de uma boa razão para se entregar a um prazer consumista, seja uma viagem ou uma trufa de chocolate, e não se sentir culpado depois, você está enganado.

Uma pesquisa da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, publicada recentemente, sugere que não é necessário esperar um dia de trabalho exaustivo ou o fim de um namoro para se entregar a um desejo. O que você precisa ter é uma consciência tranquila.

Isso porque, segundo o resultado da pesquisa, as sensações são passageiras e não ficam registradas na memória tão bem como os pensamentos. “Depois de ter se entregado a um prazer consumista, as pessoas reconstroem suas memórias e essa reconstrução é mais dirigida pelas suas expectativas do que pela experiência real de consumo”, disse Norbert Schwarz, professor da Universidade de Michigan e autor do estudo.

Ou seja, se antes de nos deliciarmos com um chocolate muito calórico pensarmos que vamos nos sentir culpados, é essa sensação que vamos carregar em nossa consciência, ainda que tenhamos verdadeiramente nos deliciado com o doce.

O estudo analisou as expectativas e as lembranças posteriores de 176 universitários em três situações de consumo: sem nenhum motivo, como uma recompensa por um esforço e como um consolo por uma má experiência. O resultado foi que os jovens consumidores tinham expectativas mais negativas da experiência e esperavam se arrepender quando não tinham motivos para se permitir um luxo ou quando aquilo era visto como um consolo do que quando ao consumir como uma recompensa.

Ao serem questionados depois do consumo, as memórias da "tentação" eram compatíveis com os pensamentos que as pessoas haviam tido antes de ceder a um "luxo".

A pesquisa também mostrou que quando alguém quer se presentear com uma recompensa, os produtos fúteis são mais procurados porque estão ligados ao prazer imediato e individual. Por isso, elas preferem uma viagem de cruzeiro ou uma massagem a gastar dinheiro pagando uma dívida ou com um produto realmente útil, diz o estudo.

Um segundo grupo, com 184 universitários de 20 e 21 anos, dividido igualmente entre homens e mulheres, também foi acompanhado pelos pesquisadores. Depois de uma prova difícil, os homens preferiram ir tomar um drinque em um bar ou comer em um bom restaurante.

As mulheres escolheram, na maioria das vezes, se deliciar com brownies e sorvetes ou fazer uma massagem relaxante. No geral, os jovens disseram que não costumam se entregar a esse tipo de prazer sem uma boa razão devido às condições financeiras e porque eles associam esses consumos à culpa e ao arrependimento.

“Quando as pessoas se entregam a um consumo luxuoso e desnecessário elas sentem prazer, mesmo achando que vão sentir culpa depois. Mas essa expectativa negativa as desencoraja e elas podem não aproveitar de fato as atividades que iriam realmente aproveitar”, diz Schwarz. Ele explica que o sentimento de culpa pode estar associado à moral da sociedade.

“Fizemos o estudo nos Estados Unidos, onde a ética protestante prevalece e prega que o prazer deve ser merecido por meio do trabalho duro. Então, as pessoas sentem culpa quando não têm uma boa razão para consumir, mas não acham que se sentirão culpadas se tiverem um bom motivo para ceder”.

Em tempos de recessão econômica, Schwarz lembra que é preciso ter cautela na hora de se entregar às tentações. “Gastar dinheiro é muito pior quando você tem pouco dinheiro porque a sensação de culpa é ainda maior ", afirma o pesquisador. "É sempre mais sábio ficar dentro do orçamento. As pessoas devem pensar duas vezes antes de aumentar suas dívidas”.

O que ele aconselha então como uma recompensa prazerosa, no lugar do consumo? “Um passeio ou um bom papo com os amigos é tão saudável e prazeroso quanto cair em uma tentação consumista”. Mas o estudo conclui : “se você que cair em tentação, é melhor ter uma boa razão para realmente aproveitar”.


04 de abril de 2009
N° 15928 - A CENA MÉDICA | MOACYR SCLIAR


Falando da doença

Temos basicamente duas linguagens: aquela que falamos ou escrevemos e com a qual expressamos pensamentos, sentimentos, opiniões, e que serve basicamente para a comunicação entre pessoas; e a linguagem do corpo, que se traduz por sintomas e sinais: uma dor, uma febre, uma tumoração. Médicos são treinados para traduzir a linguagem da comunicação em linguagem do corpo. Assim, quando uma pessoa diz: “

Qualquer esforço me dá falta de ar, tenho de dormir com travesseiro alto”, o profissional “ouve” o coração dizendo que já não tem força para bombear o sangue, e que este, acumulando-se nos pulmões, está gerando dispneia, ou seja, falta de ar.

Significa isto que a narrativa da doença tem importância secundária? De modo algum. O paciente não é apenas o seu coração doente, ou o seu rim doente, ou o seu pâncreas doente. É uma pessoa, com uma história, com laços afetivos, com contexto cultural, e tudo isto aparece naquilo que a pessoa conta.

A Universidade de Columbia, em Nova York, tem um programa chamado Narrativa na Medicina, cujo objetivo é estudar as histórias que os pacientes contam, recorrendo para isto inclusive ao conhecimento que a literatura pode fornecer sobre a arte e a técnica da narrativa.

Ao longo do tempo multiplicaram-se as obras em que pacientes, por vezes famosos, contam a história de seus problemas. Aliás, posso dar um exemplo pessoal: minha estreia neste caderno deu-se através de um texto, Voltando à Vida, em que eu narrava a penosa experiência resultante de um grave acidente.

Agora, surge um novo e interessante relato: em Saga Lusa a cantora e compositora gaúcha Adriana Calcanhotto descreve os efeitos psicológicos de uma bad trip resultante de uma mistura de remédios contra a gripe e cortisona durante uma turnê realizada em Portugal. Adriana teve agitação, alucinações, pesadelos, crises de choro, mas narra estes eventos com um humor irônico que neutraliza o pavor que deve ter sentido.

E o fato de ter alguém a quem narrar – o leitor – certamente deve ter ajudado a artista, pessoa inteligente e culta, a elaborar o que com ela se passou. E notem, estamos falando de uma intoxicação medicamentosa eventual.

Falar sobre doença, escrever sobre doença: isto ajuda muito, do ponto de vista emocional. E está sendo facilitado pelos vários meios de divulgação agora ao alcance das pessoas. Este caderno Vida apresenta o blog que será iniciado pelo Raul Ferreira, da RBS TV, em zerohora.com.

Ele nos contará sobre sua experiência de ex-fumante e sobre sua luta contra o câncer. Importante para o Raul, importante para todos os que lerem. Partilhar narrativas é partilhar a nossa condição humana.


04 de abril de 2009
N° 15928 - CLÁUDIA LAITANO


Covers

Porto Alegre aplaudiu de pé o homem que já foi considerado o sujeito mais azarado do mundo. Pete Best, o cara que perdeu o emprego de baterista dos Beatles quando a banda estava a uma nota do sucesso planetário, fez uma participação especial no show da banda argentina The Beats no último fim de semana.

Embalada pela fama de ser a melhor banda cover dos Beatles em atividade, The Beats costuma atrair um público animado e numeroso a seus shows – não só os beatlemaníacos de primeira hora, mas filhos, netos e agregados também.

A possibilidade de ver no palco um quase-beatle de verdade atiçou ainda mais os fãs, ávidos por um fiapo da aura dos ídolos ainda impregnada no homem que perdeu a vaga, e a fama, para Ringo Starr.

Entre constrangido e bonachão, Best contou passagens de duas temporadas de shows em Hamburgo, com John, Paul e George, em 1960 e em 1961, fez piadas sem graça sobre o empresário Brian Epstein, supostamente responsável pela sua substituição, e até tocou um pouquinho de bateria também.

Shakespeare poderia ter escrito uma tragédia sobre uma vida como essa: um homem que chega até o umbral da glória, limpa os sapatos no seu tapete, coloca a mão na maçaneta, mas, um instante apenas antes do passo definitivo, é catapultado rumo ao semi-anonimato de uma nota de rodapé dos livros de história.

Lá estava ele, um herói trágico tentando fazer piada com os desvios do próprio destino, diante de uma plateia dividida entre a compaixão e a admiração por aqueles dois anos de ensaio para a fama que não veio. Pete Best não foi o que poderia ter sido – mas quem de nós não pensa isso sobre si mesmo de vez em quando.

Enquanto Pete Best é um quase-beatle de verdade sem fama nem glória, The Beats são beatles de mentira com sua parcela de fama e público assegurada. Imitando a banda mais famosa do mundo, os argentinos levam ao paroxismo a obsessão pela cópia: gravam nos mesmos estúdios, recuperam no porão de uma gravadora os instrumentos originais, emulam figurinos, cortes de cabelo, timbres de voz.

Cada acorde executado no palco soa exatamente como nos álbuns dos Beatles, e mesmo assim eles gravam seus próprios discos – por motivos que, confesso, me escapam.

Houve uma época em que imitar um grande artista era o caminho para tornar-se também um mestre.Copiar era uma forma de aperfeiçoar-se na técnica, e a originalidade (ou falta de) não definia o valor artístico de uma obra – até a Renascença, uma banda cover perfeita poderia ter um prestígio semelhante ao da banda original.

Hoje se acredita que somos nós, os espectadores, que atribuímos o valor que uma obra tem – baseados não apenas no gosto pessoal, mas no que sabemos sobre a obra (o que dizem os críticos, os especialistas, o mercado), no lugar em que estão (em um museu ou em uma estação de metrô) e no que nossa época e nosso grupo social nos levam a acreditar (a respeito, por exemplo, de valores como a originalidade).

Para a sensibilidade dos nossos dias, uma banda que imita outra sempre será uma atração menor – por mais perfeita que soe tecnicamente. O cover é uma espécie de faz-de-conta de adultos, a encenação de uma experiência musical marcante.

E quanto mais obstinadamente igual, mais confunde nossa sensibilidade: se a fidelidade ao original nos conforta, a previsibilidade quase mecânica e a ausência de espaço para a criação nos conduzem não a uma verdadeira experiência estética, mas a uma espécie de museu de cera das emoções que, um dia, o original nos despertou.

quarta-feira, 1 de abril de 2009



01 de abril de 2009
N° 15925 - MARTHA MEDEIROS


As hermafroditas

Estive recentemente no Rio participando de uma conversa na Casa do Saber, um centro cultural que promove cursos sobre temas variados, e fui inquirida pelo dono do lugar: ele queria saber como eu via o desempenho das mulheres na política, especialmente das gaúchas Dilma Rousseff e Yeda Crusius, e se eu ficaria feliz em ver uma mulher na presidência do país.

Eu respondi a ele que política não é assunto que eu domine (nem esse, nem nenhum), e que sendo homem ou mulher, pra mim, tanto fazia, assim como tanto faz se for gremista ou colorado, gay ou hétero, carnívoro ou macrobiótico, desde que trabalhe pelo bem da população e seja uma criatura honesta e com projetos realizáveis.

Creio que não era a resposta que ele queria, mas eu não estava a fim de polemizar. Na hora fiquei pensando em como as mulheres são mais cobradas do que os homens quando ocupam uma liderança política ou empresarial. Por um lado, elas não podem fraquejar de jeito nenhum, sob risco de serem consideradas delicadas demais para ocupar um cargo que sempre foi deles, os ogros.

Por outro, se forem duronas, correm o risco de sofrerem críticas justamente por serem “mais macho que muito homem”, como dizia uma música da Rita Lee. A verdade é que mulher na política ainda é considerado um fenômeno sobrenatural e exige-se dela nada menos do que hermafroditismo.

Por coincidência, dias depois estava assistindo à peça Aquela Mulher, com Marília Gabriela desempenhando um papel livremente inspirado em Hillary Clinton, no hipotético dia em que ela estaria tomando posse da presidência dos Estados Unidos.

O texto discute traições conjugais e as perdas que a passagem do tempo acarreta, mas o monólogo se inicia falando da relação da mulher com o poder, especialmente do caso de Hillary, que hoje está mais na vitrine do que o marido e pode mesmo vir a ser presidente um dia.

A peça começa com a personagem sozinha em seu quarto, comentando que dentro de poucas horas será o homem mais importante do planeta. “O homem!”, ela repete, insinuando que a mulher mais importante do planeta nunca seria tão importante assim. E diz mais: que sua ascensão política nada mais é do que uma vingança por seu marido a ter traído com “aquela gorduchinha”.

Ficção à parte, fiquei pensando até onde as mulheres estão galgando degraus por idealismo ou por revanchismo. Até onde nossa necessidade de poder é um desejo genuíno ou uma desforra. Talvez todas as mulheres se sintam um pouco traídas por terem demorado tanto a usufruir de uma vida pública, mas vencer para “dar o troco” nunca me pareceu um bom motivo.

Sempre que tentamos provar algo para os outros, corremos o risco de ficarmos histriônicas e de perder o foco. Se, ao contrário, temos vocação natural para a liderança e para a administração, aí não haverá preocupação em demonstrar se existe um jeito masculino ou feminino de governar: será de um jeito próprio, à prova de rótulos.

Continuo achando que um homem ou uma mulher no governo, tanto faz, desde que haja governo – de si mesmo, pra começar.

domingo, 29 de março de 2009


CARLOS HEITOR CONY

Amada mia

RIO DE JANEIRO - Não estou atualizado nem me preocupo com isso. Mas volta e meia leio e ouço depoimentos nostálgicos de eras anteriores ao dilúvio e aos dinossauros. Outro dia, tomei conhecimento de repertório brega que serviu de trilha musical para gerações que, como naquela canção infantil, deram adeus e foram embora.

Meto minha colher no mingau e lembro "Amada mia", cantada por Dick Haymes, mas lançada na versão "Amado mio", por Rita Hayworth, num filme que garantia nunca ter havido mulher como Gilda. "Amada mia, love me forever" e que este "forever" comece nesta noite. Era letal.

O núcleo da breguice era o repertório das churrascarias e dos inferninhos nos subsolos de Copacabana, onde, para desespero de minha mãe, que me queria padre, iniciei uma felizmente interrompida carreira de pianista da madrugada.

Nas churrascarias, o "hit" preferencial era "Babalu", o grito sensual da magia negra; nos inferninhos, não se resistia a "Perfídia", que Ingrid Bergman e Humphrey Bogart dançaram naquela cena do cabaré de Paris -recordamos "As Time Goes By" e esquecemos que, no final de tudo, depois de Casablanca, eles só teriam Paris para sempre.

Havia as estradas vicinais de efeito igualmente fulminante, Pablo Neruda com sua canção desesperada, tão curto o amor, tão largo o esquecimento, Vinicius de Moraes com seu soneto da fidelidade, chupado de Henri de Régnier (1864-1936), o amor que seja infinito enquanto dure.

Não conheço os equivalentes atuais para pintar o clima devastador que encerrava os prolegômenos e iniciava os finalmentes. Roberto Carlos parece que ainda funciona ao longo dos trilhos da Central do Brasil e da antiga Leopoldina Railway. Não ando por aquelas bandas -desconfio que esteja perdendo alguma coisa boa.