sábado, 16 de maio de 2009



Mouse ao alto!

Larápios da internet invadem contas bancárias, vendem produtos que não existem e fazem do Brasil o quarto país do mundo mais contaminado por programas que furtam senhas

Laura Diniz - Montagem sobre fotos de D. Hurst e Imagina Photography/Alamy/Other Images



Aviso aos navegantes: o mar não está para incautos. No oceano em que singra o 1,6 bilhão de usuários da internet, as águas andam tormentosas: como as sereias da mitologia grega, que atraíam para armadilhas os marinheiros seduzidos por seu canto, ladrões aguardam um clique imprudente para invadir contas bancárias, larápios acenam com ofertas tentadoras de produtos que jamais serão entregues e uma infinidade de pragas contagiosas trafega livremente a bordo de e-mails instigantes e arquivos irresistíveis. O resultado disso são números assustadores.

No Brasil, o volume de notificações relacionadas a fraudes, furtos, vírus destruidores, invasões e tentativas de invasão de computador quadruplicou em cinco anos (veja o quadro). No ranking dos crimes eletrônicos que mais crescem, o que atenta contra o patrimônio ocupa o primeiro lugar: só os programas destinados a invadir contas bancárias infectam 195 computadores por hora no país.

Isso significa que a rede virtual é um campo minado e que usá-la para fazer compras ou transações bancárias se tornou um comportamento de risco? Absolutamente, não. Quer dizer apenas que o mundo virtual está mais parecido com o mundo real: em ambos, as ameaças existem. E, em ambos, é preciso se precaver contra elas.

O Brasil é o quarto país mais contaminado por vírus e programas capazes de furtar informações, alterar ou destruir dados dos computadores, segundo relatório divulgado pela Microsoft em abril. Em primeiro lugar estão Sérvia e Montenegro (computados juntos), seguidos por São Tomé e Príncipe e Rússia. Os Estados Unidos, onde o uso da internet é mais disseminado, aparecem no 54º posto. Seriam os brasileiros especialmente ingênuos e desprevenidos?

Pouco familiarizados com a rede é a melhor resposta. Segundo uma pesquisa feita no ano passado pelo Comitê Gestor da Internet, 63% dos 62 milhões de usuários brasileiros não sabem utilizar mecanismos básicos como o de busca – ainda que o nome do mais famoso deles, o Google, seja usado até como verbo ("dar um google": digitar uma palavra no site com o objetivo de encontrar informações relacionadas a ela na rede).

"O conhecimento rudimentar de grande parte dos brasileiros sobre computadores faz com que muitos não tenham a dimensão dos riscos de, por exemplo, abrir e-mails de desconhecidos ou visitar sites não confiá-veis", diz o advogado Spencer Toth Sydow, especialista em direito informático.

Além disso, como a maioria dos usuários não conta com nenhuma orientação na hora de descobrir as possibilidades da rede, o método mais utilizado é o de tentativa e erro. "Isso contribui para que o usuário vá experimentando e clicando sem pensar muito", explica a psicóloga Rosa Maria Farah, responsável pelo Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

O uso disseminado de programas piratas no Brasil é outra agravante. Eles tornam os computadores mais vulneráveis a ataques, já que, ao contrário dos programas legais, não são atualizados pelos fabricantes à medida que os criminosos inventam novas formas de infiltração.

Por fim, ajuda a explicar o grande número de vítimas de golpes virtuais a alavanca que move o mais pedestre dos contos do vigário: o desejo da vítima de levar vantagem. Música gratuita, jogos idem e ofertas de produtos a preços incríveis são alguns dos cantos de sereia largamente usados pelos tapeadores.

Zoriah/Zuma Press

ATAQUE REDIRECIONADO



Depois de promoverem uma explosão de invasões de contas bancárias na década de 90, hackers americanos migraram para o ramo das vendas on-line: "Pague e não receba"

Para o bandido, o negócio do crime virtual é fantástico. "É mais fácil e menos arriscado", resume o delegado Carlos Eduardo Sobral, chefe da Unidade de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal. Segundo o policial, nas últimas cinco grandes operações da PF de combate a fraudes bancárias eletrônicas, cerca de 35% dos presos tinham antecedentes por furto ou roubo. Ou seja, os ladrões do mundo real estão migrando alegremente para o mundo virtual.

E por que não, se o envio maciço de um programa que rouba senhas bancárias pode ser suficiente para arrancar milhares de reais de diversas pessoas ao mesmo tempo? O golpe da falsa página bancária é hoje o mais disseminado no Brasil. Ele é responsável por grande parte dos 130 milhões de reais de prejuízo com fraudes pela internet registrados pelos bancos em 2008.

A preocupação dessas instituições com o crescimento dos ataques pode ser medida pelo volume de dinheiro que elas vêm investindo em segurança digital: em 2008, o gasto chegou a 1,5 bilhão de reais, segundo a Federação Brasileira de Bancos. Já é um quinto do total despendido por ano com a segurança física das agências.

No entanto, se a evolução do crime eletrônico no Brasil seguir a mesma trajetória da americana, os bancos poderão em breve respirar mais tranquilos. Segundo o professor Douglas Salane, diretor do Centro de Estudos de Crimes Cibernéticos da Faculdade John Jay de Justiça Criminal, de Nova York, esse tipo de golpe – que começa com um e-mail enganoso e termina com o furto e uso da senha bancária do usuá-rio – diminuiu muito nos Estados Unidos.

"O motivo é elementar: quanto mais as pessoas aprendem a utilizar a rede, mais difícil fica enganá-las", diz Salane.

De acordo com o Centro de Denúncia de Crime Cibernético (IC3), ligado ao FBI, a polícia federal dos Estados Unidos, golpes bancários pela internet e outros tipos de estelionato eletrônico foram responsáveis por 15% das reclamações em 2001 e apenas 3% em 2008.

Lya Luft

A sordidez humana

"Que lado nosso é esse, feliz diante da desgraça alheia? Quem é esse em nós, que ri quando o outro cai na calçada?"

Ando refletindo sobre nossa capacidade para o mal, a sordidez, a humilhação do outro. A tendência para a morte, não para a vida. Para a destruição, não para a criação. Para a mediocridade confortável, não para a audácia e o fervor que podem ser produtivos.

Para a violência demente, não para a conciliação e a humanidade. E vi que isso daria livros e mais livros: se um santo filósofo disse que o ser humano é um anjo montado num porco, eu diria que o porco é desproporcionalmente grande para tal anjo.

Que lado nosso é esse, feliz diante da desgraça alheia? Quem é esse em nós (eu não consigo fazer isso, mas nem por essa razão sou santa), que ri quando o outro cai na calçada? Quem é esse que aguarda a gafe alheia para se divertir? Ou se o outro é traído pela pessoa amada ainda aumenta o conto, exagera, e espalha isso aos quatro ventos – talvez correndo para consolar falsamente o atingido?

Ilustração Atômica Studio

O que é essa coisa em nós, que dá mais ouvidos ao comentário maligno do que ao elogio, que sofre com o sucesso alheio e corre para cortar a cabeça de qualquer um, sobretudo próximo, que se destacar um pouco que seja da mediocridade geral?

Quem é essa criatura em nós que não tem partido nem conhece lealdade, que ri dos honrados, debocha dos fiéis, mente e inventa para manchar a honra de alguém que está trabalhando pelo bem? Desgostamos tanto do outro que não lhe admitimos a alegria, algum tipo de sucesso ou reconhecimento?

Quantas vezes ouvimos comentários como: "Ah, sim, ele tem uma mulher carinhosa, mas eu já soube que ele continua muito galinha". Ou: "Ela conseguiu um bom emprego, deve estar saindo com o chefe ou um assessor dele". Mais ainda: "O filho deles passou de primeira no vestibular, mas parece que...". Outras pérolas: "Ela é bem bonita, mas quanto preenchimento, Botox e quanta lipo...".

Detestamos o bem do outro. O porco em nós exulta e sufoca o anjo, quando conseguimos despertar sobre alguém suspeitas e desconfianças, lançar alguma calúnia ou requentar calúnias que já estavam esquecidas: mas como pode o outro se dar bem, ver seu trabalho reconhecido, ter admiração e aplauso, quando nos refocilamos na nossa nulidade? Nada disso! Queremos provocar sangue, cheirar fezes, causar medo, queremos a fogueira.

Não todos nem sempre. Mas que em nós espreita esse monstro inimaginável e poderoso, ou simplesmente medíocre e covarde, como é a maioria de nós, ah!, espreita. Afia as unhas, palita os dentes, sacode o comprido rabo, ajeita os chifres, lustra os cascos e, quando pode, dá seu bote.

Ainda que seja um comentário aparentemente simples e inócuo, uma pequena lembrança pérfida, como dizer "Ah! sim, ele é um médico brilhante, um advogado competente, um político honrado, uma empresária capaz, uma boa mulher, mas eu soube que...", e aí se lança o malcheiroso petardo.

Isso vai bem mais longe do que calúnias e maledicências. Reside e se manifesta explicitamente no assassino que se imola para matar dezenas de inocentes num templo, incluindo entre as vítimas mulheres e crianças... e se dirá que é por idealismo, pela fé, porque seu Deus quis assim, porque terá em compensação o paraíso para si e seus descendentes.

É o que acontece tanto no ladrão de tênis quanto no violador de meninas, e no rapaz drogado (ou não) que, para roubar 20 reais ou um celular, mata uma jovem grávida ou um estudante mal saído da adolescência, liquida a pauladas um casal de velhinhos, invade casas e extermina famílias inteiras que dormem.

A sordidez e a morte cochilam em nós, e nem todos conseguem domesticar isso. Ninguém me diga que o criminoso agiu apenas movido pelas circunstâncias, de resto é uma boa pessoa. Ninguém me diga que o caluniador é um bom pai, um filho amoroso, um profissional honesto, e apenas exala seu mortal veneno porque busca a verdade.

Ninguém me diga que somos bonzinhos, e só por acaso lançamos o tiro fatal, feito de aço ou expresso em palavras. Ele nasce desse traço de perversão e sordidez que anima o porco, violento ou covarde, e faz chorar o anjo dentro de nós.

Lya Luft é escritora

Reportagem: Mariana Lucena; Edição: Luís Antônio Giron

A volta do Pequeno Príncipe

Livro inédito de Saint-Exupéry revela a paixão do escritor por uma mulher casada no último ano de sua vida e mostra que o escritor tinha muito em comum com seu personagem mais famoso

A volta

"Contos de fadas são a única verdade da vida", diz o escritor Saint-Exupéry

Enquanto o mundo lembrava em mais 80 milhões de exemplares - e em 160 línguas - o amor entre o principezinho de um planeta distante e a sua rosa, uma outra paixão que perpassava esta história ficou esquecida. Recentemente essa história foi contada em O amor do Pequeno Príncipe.

O livro é uma compilação de cartas enviadas pelo autor de O Pequeno Príncipe, Saint-Exupéry, e uma mulher por quem se apaixonou logo antes de morrer. O episódio só se tornou público em novembro de 2007, por ocasião da venda de diversos documentos do autor que faziam parte da coleção do Museu de Cartas e Manuscritos, em Paris.

As cartas que o escritor e aviador escreveu à sua amada mostram que muito havia em comum entre o autor e seu personagem. As comparações são feitas pelo próprio Exupéry, que assina suas mensagens ilustradas como O Pequeno Príncipe. A correspondência revela um homem que, assim como seu personagem, é sensível, reflexivo e um pouco deprimido quando está distante do objeto de seu amor.

Dela pouco se sabe. Tudo o que se pôde ter certeza a respeito de sua identidade é que era uma jovem de 23 anos, nascida no leste da França, casada e oficial da Cruz Vermelha. Exupéry a conheceu no trem, em março de 1943, quando ia da cidade de Oran a Argel, na Argélia, a serviço da aeronáutica francesa. Foi amor à primeira vista. Os documentos sugerem que, de então até sua morte, eles mantiveram um relacionamento. Mas indicam também que esta foi uma paixão que o fez sofrer.

Em um dos trechos do livro ele até a acusa de matar o Pequeno Príncipe. "Não há Pequeno Príncipe hoje e não haverá nunca mais. O Pequeno Príncipe morreu. Ou então tornou-se muito cético". Hoje as palavras parecem proféticas.

Poucos dias depois, em 31 de julho de 1944, o escritor desapareceu a bordo de seu avião no Mediterrâneo. Nunca pôde ver o Pequeno Príncipe publicado em seu país Natal... nem ver sua amada misteriosa novamente.

O livro saiu do acervo museu francês e foi direto para a lista de best-sellers. No Brasil, estava entre os mais vendidos já na primeira semana. O segredo desta volta de sucesso do Pequeno Príncipe (se é que algum dia ele chegou a partir) é o talento inexplicável de Saint-Exupéry, que transbordou de paixão cada linha de sua obra.

Um escritor que sabia muito bem uma lição importante que registrou neste novo livro: "Os contos de fada são assim. Uma manhã, a gente acorda e diz: 'era só um conto de fadas...' E a gente sorri de si mesmo. Mas, no fundo, não estamos sorrindo. Sabemos muito bem que os contos de fadas são a única verdade da vida."

Título: O amor do Pequeno Príncipe - Cartas a uma desconhecida
Autor: Antoine de Saint-Exupéry
Preço: R$ 24,90


16 de maio de 2009
N° 15971 - NILSON SOUZA


A mensagem

O Papa depositou no Muro das Lamentações, em Israel, uma mensagem para Deus. Em tempos de internet, o sistema de comunicação escolhido pode parecer um tanto arcaico, mas ninguém duvida de que a mensagem tenha chegado ao destinatário.

Foi, na verdade, uma carta aberta, uma espécie de prestação de contas da visita do Sumo Pontífice a Jerusalém e um pedido de paz não apenas para a Terra Santa, mas para toda a humanidade.

Tudo muito apropriado, mas o gesto, fartamente documentado pelos jornais, me despertou uma curiosidade: que língua teria utilizado o Papa para se comunicar com Deus?

Cheguei a pensar que ele tivesse escrito o seu texto em latim, que é a língua oficial do Vaticano. Também supus que ele pudesse ter redigido em alemão, seu idioma natal. Ou até em aramaico, que era a língua falada por Jesus.

Mas não: fui pesquisar e descobri que Bento XVI escreveu a sua mensagem em inglês. Isso mesmo, o texto impresso num papel com o símbolo do Vaticano começava com uma saudação respeitosa, na inconfundível língua de Shakespeare: “God of all the ages...”

Inglês? Aqui embaixo, tudo bem. Afinal, esta língua virou o esperanto moderno, quem não sabe pelo menos arranhar algumas palavras acaba ficando fora do mercado. Está em todo lugar, nas vitrines das lojas, na música, no cinema e nos manuais de instrução de qualquer equipamento eletrônico.

Mas já terá virado língua oficial no céu também? Será que a prova do Juízo Final terá, ao menos, tradução simultânea?

Tenho um amigo tão antiamericano, que é bem capaz de trocar o seu passaporte para um lugar mais quente se souber que os anjos se comunicam apenas em inglês. Em compensação, fiz o meu próprio teste com uma colega de trabalho e recebi uma resposta inspirada. Perguntei-lhe que língua utilizaria para falar com Deus.

– A língua do coração! – me respondeu de bate-pronto.

Como estou no embalo das perguntas, aqui vai outra: Qual é a profissão mais estressante? Já pensei algumas vezes que poderia ser a minha, pois jornalista funciona como uma espécie de para-choque de más notícias.

Também não é a de policial, controlador de voo ou motorista de ônibus, que enfrenta trânsito ensandecido com aquela campainha no ouvido o tempo todo.

Minha amiga psicóloga me informa que recente pesquisa da organização para a qual trabalha apresentou uma resposta surpreendente para a questão: padres e freiras sentem-se mais pressionados do que profissionais de atividades reconhecidamente angustiantes. Diante da revelação, não resisti:

– Também, com um patrão perfeccionista, que não tira o olho deles nunca.

quarta-feira, 13 de maio de 2009



13 de maio de 2009
N° 15968 - MARTHA MEDEIROS


A arte de recusar um original

Não há como negar que um livro com este título, A Arte de Recusar um Original, chama a atenção. Ainda mais se você faz parte do meio literário e conhece bem o monstro chamado “Não” que acompanha o início de carreira de todo escritor.

O livro traz um apanhado de cartas fictícias escritas por editores que fecham as portas para um estreante. Cada editor com seu estilo: tem o agressivo, o conciso, o paranoico, o maternal, o sarcástico, o psicanalítico...

O problema do livro é que ele começa engraçado, mas a piada logo se esgota e a leitura fica enfadonha, até porque algumas cartas são constrangedoramente simplórias. De qualquer forma, é uma boa ideia editorial e o autor, Camilien Roy, não é estreante, então não deve ter tido dificuldade em publicar essa obra.

Eu já tive a fantasia de trabalhar em uma editora para promover a carreira de talentos desconhecidos, mas, hoje, nem que me pagassem. Mesmo não sendo uma profissional desse ramo, recebo uma quantidade considerável de textos para avaliar, e é um transtorno.

Claro que fico honrada por me julgarem capaz de dar um empurrãozinho, mas é um transtorno, e explico por quê:

1) eu não posso fazer nada pelos textos bons que chegam, a não ser incentivar a pessoa a continuar escrevendo;

2) eu não tenho coragem de dizer “desista” para a maioria de textos ruins que recebo, e acabo enrolando;

3) eu posso muito bem estar enganada quando penso que um texto é ruim – não esqueçamos que Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, foi recusado várias vezes, só para dar um exemplo entre tantos talentos que não foram inicialmente reconhecidos; 4) eu já escrevi textos fracos e estou aqui, não estou?

Meu editor não vai me perdoar, mas vou entregá-lo assim mesmo: meus primeiros poemas, lá nos distantes anos 80, coloquei à disposição da gaúcha L&PM. Os versos ficaram mofando numa gaveta por mais de um ano, até que me foram devolvidos – o que já é uma vitória, poderiam ter sido incinerados. Aí resolvi mostrá-los para uma editora de São Paulo, a maior do país na época, e acabei sendo lançada pela mesma coleção que publicava Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar, Chacal, Cacaso e Caio Fernando Abreu.

Foi só então que a L&PM me piscou o olho, estendeu a mão e hoje temos uma parceria de mais de 20 anos, com 11 livros meus no seu catálogo. Mas, no início, o monstro do “não” fez as honras da casa. Normal.

Hoje, além dos blogs que servem como meio de divulgação, existe uma coisa bacanésima chamada oficinas de literatura, onde o candidato a escritor exercita seu dom (caso o tenha) e recebe dicas preciosas de autores como Assis Brasil, Charles Kiefer, Cintia Moscovich e Fabricio Carpinejar, entre outros.

É um início muito mais seguro do que ficar enviando original para editoras que talvez nem tenham tempo para ler seu trabalho ou então para colunistas que não entendem nada de nada, e podem acabar cometendo o deslize de não reconhecer que você, vá saber, pode vir a ser um Proust.

Aproveite o Dia Internacional do Sofá. Namore. Um ótimo dia a você.

terça-feira, 12 de maio de 2009



12 de maio de 2009
N° 15967 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


De sons e de cores

Por alguma misteriosa razão – que talvez tenha a ver com o saldo bancário da família –, em Cachoeira não possuíamos discos. Tínhamos um imenso rádio Telefunken que de dia multiplicava mal as emissoras de Porto Alegre e à noite reproduzia, de um jeito que só posso chamar de cristalino, as estações de Buenos Aires.

Quando nos mudamos para Porto Alegre, e o estado das finanças domésticas tornou-se ligeiramente melhor, compramos na Casa Victor um toca-discos que se transformou no centro de nossas atenções. Meus pais tinham enfim o seu Bach, o seu Beethoven e o seu Brahms.

Nós, as crianças, tínhamos de Lupicínio Rodrigues a Ari Barroso – sem esquecer aquela cantora esfuziante que nos conquistou desde a primeira audição: Maria do Carmo Miranda da Cunha, ou, mais docemente, Carmen Miranda.

Mas então a roda do consumo começou a girar mais rápido – e, não tardou, foi introduzida na casa a nossa primeira eletrola. Era um avanço e tanto, a começar pelo lado estético. Uma eletrola era um móvel de linhas clássicas, concebido para combinar com o sofá e as poltronas da sala de estar.

Mas havia ainda o ângulo técnico. Por motivos que minha vã filosofia não alcança, o som era puríssimo, quem sabe pela afinação das agulhas, quem sabe pela potência do jogo de alto-falantes, milagre de encher um palco.

Meus pais se foram, surgiu o hi-fi, mas nós já estávamos mais interessados em outro prodígio da tecnologia – e que à época atendia pelo nome de televisão. Havia um tio que era comandante da Varig. Era uma pessoa terna, compassiva – e aliás não encontro outras palavras para descrevê-lo senão como um homem bom.

No princípio, nos trouxe aparelhos em preto-e-branco. Depois descobriu em Nova York um plástico que transmitia as imagens em cor – ou pelo menos dava a impressão disso.

E aí desembarcou aqui, avassaladora, a TV ao vivo e a cores. Não a festejei. Pois, muito mais do que seu milagre, restava em minha memória a lembrança dos discos de vinil da primeira eletrola e a do plástico que inventava a primeira ilusão da cor.

Uma ótima terça-feira - Aproveite o dia ainda que com chuva que está sendo super desejada por todo o Estado.

segunda-feira, 11 de maio de 2009


Martha Medeiros

I N T I M I D A D E S

Houve um tempo, crianças, em que a gente não falava de sexo como quem fala de um pedaço de torta. Ninguém dizia Fulano comeu Beltrana, assim, com essa vulgaridade. Nada disso. Fulano tinha dormido com ela. Era este o verbo. O que os dois tinham feito antes de dormir, ou ao acordar, ficava subentendido. A informação era esta, dormiram juntos, ponto.

Mesmo que eles não tivessem pregado o olho nem por um instante. Lembrei desta expressão ao assistir Encontros e Desencontros.

No filme, Bill Murray e Scarlett Johansson fazem o papel de dois americanos que hospedam-se no mesmo hotel em Tóquio e têm em comum a insônia e o estranhamento: estão perdidos no fuso horário, na cultura, no idioma, e precisando com urgência encontrar a si mesmos. Cruzam-se no bar.

Gostam-se. Ajudam-se. E acabam dormindo juntos. Dormindo mesmo. Zzzzzzzzzzz.
A cena mostra ambos deitados na mesma cama, vestidos, conversando, quando começam a apagar lentamente, vencidos pelo cansaço.

Antes de sucumbir ao mundo dos sonhos, ele ainda tem o impulso de tocar nela, que está ao seu lado, em posição fetal. Pousa, então, a mão no pé dela, que está descalço. E assim ficam os dois, de olhos fechados, capturados pelo sono, numa intimidade raramente mostrada no cinema.

Hoje, se você perguntar para qualquer pré-adolescente o que significa se divertir, ele dirá que é beijar muito. Fazer campeonato de quem pega mais. Beijar quatro, sete, treze.

Quebram o próprio recorde e voltam pra casa sentindo um vazio estúpido, porque continuam sem a menor idéia do que seja um encontro de verdade, reconhecer-se em outra pessoa, amar alguém instintivamente, sem planejamento.

Estão todos perdidos em Tóquio. Intimidade é coisa rara e prescinde de instruções. As revistas podem até fazer testes do tipo: “descubra se vocês são íntimos, marque um xis na resposta certa”, mas nem perca seu tempo, a intimidade não se presta a fórmulas, não está relacionada a tempo de convívio, é muito mais uma comunhão instantânea e inexplicável.

Intimidade é você se sentir tão à vontade com outra pessoa como se estivesse sozinho. É não precisar contemporizar, atuar, seduzir. É conseguir ir pra cama sem escovar os dentes, é esquecer de fechar as janelas, é compartilhar com alguém um estado de inconsciência.

Dormir juntos é muito mais íntimo que sexo!!!

sábado, 9 de maio de 2009



A arte de ser avó
Rachel de Queiróz

Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as sua compensações - todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.

Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.

Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças?

Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.

E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é “devolvido”.

E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.

Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto…

No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do neto. Não importa que ela hipocritamente, ensine a criança a lhe dar beijos e a lhe chamar de “vovozinha” e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo.

Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.

Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, “não ralha nunca”. Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia.

Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina.

Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com as cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem querer - e ser acreditado!

Fazer má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna…

Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!

E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz “Vó”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.

Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino - involuntariamente! - bateu com a bola nele.

Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém” se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um simples boneco que custou caro.

Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague.


10 de maio de 2009
N° 15965 - MARTHA MEDEIROS


Carta ao Rafael

Rafael, teu irmão nasceu cerca de quatro anos atrás, no finalzinho do mês de julho. Na época eu aproveitei que logo em seguida seria Dia dos Pais e escrevi uma carta pública ao João Pedro, aqui nesse mesmo jornal, homenageando não só o teu, mas o meu irmão também – teu pai. Agora você, meu segundo sobrinho, nasce colado ao dia das mães, e imagina se vou te privar de recepção semelhante.

Bem-vindo, Rafa. O mundo é legal, desde que a gente saiba lidar com suas contradições. Tem muita beleza e miséria, dias de sol e temporal, pessoas que dizem sim e que dizem não, e muitos gremistas e colorados infiltrados dentro da tua família. Mesmo assim, não pense que você vai ter opção. Não se deixe enganar pelas roupinhas azuis, essa não será sua cor preferida.

Desde que você saiu da barriga, está escutando votos de saúde e felicidade (mesmo que, por enquanto, tudo não passe de um barulho incompreensível e que você já esteja com saudade do silêncio uterino). Pois saiba que são votos clichês, mas os clichês são sábios: saúde e felicidade é tudo o que você precisa nessa vida. Só que tem que dar uma mãozinha.

Então, pratique esportes, se alimente bem e não fume: a saúde já estará 50% garantida, o resto é sorte. Quanto à felicidade, o jeito é tentar fazer boas escolhas. Como fazê-las? Ninguém sabe ao certo, mas ser íntegro e não se deixar levar por vaidades e preconceitos promove uma certa paz de espírito. Ser feliz não é muito difícil, basta não ficar obcecado com esse assunto e tratar de viver. Quem pensa demais, não vive.

Não brigue muito com seu irmão, ele será seu melhor amigo, mesmo que você não acredite nisso quando ele não quiser emprestar alguns brinquedos – o carro dele, por exemplo.

Você vai ser louco, apaixonado, babão por sua mãe. É natural. Mas não deixe que suas namoradas percebam.

Cada vez mais o dinheiro controla os desejos. É importante ganhá-lo, porque sem independência não somos donos de nós mesmos, mas para ganhá-lo você não precisa perder nada: nem escrúpulos, nem caráter, ou você estará se deixando comprar. Não se deixe controlar por ele. Pelo dinheiro, digo, porque pelos desejos você não só pode como deve se render. Mas não seja um heartbreaker profissional, a mulher da sua vida pode lhe escapar das mãos.

Ia esquecendo: estude inglês.

Uma vida sem arte é uma vida árida, sem transcendência, um convite à mediocridade. Então desfrute de muita música e cinema, e quando suas garotas tentarem lhe arrastar para um teatro, vá sem reclamar, há 30% de chance de você gostar. Importante: se alguém disser que ler é chato, mande se entender comigo.

Tédio é para os sem inspiração. O mundo oferece estradas, passeatas, eleições, aeroportos, ondas, montanhas, campeonatos, vestibulares, desafios, churrascos, festivais, feriadões, roubadas, gargalhadas, madrugadas e declarações de amor.

É assim mesmo, tudo misturado e barulhento. A saudade do silêncio uterino vai lhe surpreender muitas outras vezes. Busque esse silêncio dentro de você.

Então é isso, Rafa, seja corajoso e grato: nascer é um privilégio concedido a poucos, ainda que sejamos bilhões. Não desperdice a chance e esteja consciente de duas coisas: que sem alegria não vale a pena, e que Rafa é um apelido do qual você não escapa.


VAI RENDER MENOS

Herança da indexação, o rendimento da poupança é fixado em lei. A queda na taxa de juros tornou esse anacronismo insustentável

Benedito Sverberi - Fotos Marcos d’Paula/AE

ECONOMIA POPULAR


Fila para depósitos em 1982: hoje, 93% das cadernetas têm saldo inferior a 5 000 reais

Resquício dos tempos de inflação descontrolada e indexação, o rendimento da caderneta de poupança é tabelado por lei. A ideia foi proteger o poupador dos mirabolantes planos heterodoxos que, com uma frequência assustadora, infernizavam a vida dos brasileiros. Funcionou.

A poupança tornou-se uma instituição nacional. Mexer nela dá pavor a qualquer governante. Esse é o medo que agora assola o Planalto. Há ali uma luta intensa entre a necessidade econômica de reduzir o rendimento da caderneta e o pânico de passar à história como mais um governo a solapar o suado dinheirinho do poupador.

Como se chegou a esse dilema? O drama tem vários ingredientes. Vive-se hoje no Brasil em novo ambiente econômico. A inflação está sob controle, a heterodoxia morreu e não existe mais a indexação automática de preços e salários. Além do mais, a taxa básica de juros chegou ao nível mais baixo da história.

Paradoxalmente, isso tem tudo a ver com o pânico do governo. A caderneta compete com o Tesouro pela poupança do brasileiro. A remuneração oferecida pelo Tesouro é baseada na taxa básica de juros. Se ela cai, a remuneração do investimento nos fundos de renda fixa tende a diminuir. Por outro lado, protegida por lei, a caderneta continua remunerando o poupador tão bem ou melhor que os títulos do Tesouro.

O problema é que o governo precisa captar recursos com a venda dos títulos. É assim que ele financia sua dívida sem emitir dinheiro e produzir inflação. Por isso a equipe econômica tem de encontrar uma maneira palatável de tornar os fundos lastreados nos títulos da dívida pública mais atraentes que a poupança. Mas como fazer isso sem produzir uma crise política?

A melhor ideia do governo até agora é fazer com que a caderneta se transforme em uma aplicação direcionada apenas aos pequenos poupadores. Uma das propostas em discussão é passar a cobrar imposto de renda dos grandes investidores, mantendo a isenção apenas para os pequenos.

Pela nova fórmula, continuariam isentas as aplicações de até 5 000 reais – que já respondem por 93% do total. O economista Sérgio Vale, da MB Associados, lamenta que não se busque uma reforma mais profunda: "O método de cálculo do rendimento da poupança é mais uma das jabuticabas nacionais. Só existe no Brasil".


Claudio de Moura Castro claudio&moura&castro@cmcastro.com.br

Uma Mona áspera

"Na educação, apesar dos resmungos de alguns, muito pode ser feito sem que sejam necessários recursos extravagantes"

A Mona Lisa resplandece no Museu do Louvre. Sua xará, Mona Mourshed, assina pesquisas na famosa empresa de consultoria McKinsey. Com seu sorriso enigmático, a primeira Mona é suave, é lisa. Já a segunda é áspera, pelo impacto dos seus estudos.

Seu ensaio sobre educação ("Como os sistemas escolares de melhor desempenho chegaram lá") é um admirável sumário dos resultados de centenas de trabalhos que se acumulam nos últimos anos. Embora seja voltado para países desenvolvidos, suas apresentações no Brasil tiveram grande repercussão.

Ilustração Atômica Studio

Vejam que situação curiosa. Lendo o ensaio, não discordo de nada. Mas temo que tenha causado mais mal do que bem nas terras tupiniquins. Como assim? Um remédio potente precisa ser receitado com muito cuidado e para o paciente certo. A poção de Mona não serve para o Brasil. Isso porque o tema do primeiro capítulo polariza toda a mensagem: "A qualidade de um sistema de educação não pode exceder a qualidade de seus professores".

Nas discussões das quais tive notícia, o debate não foi além desse capítulo. Considerando que a educação da maioria dos estados americanos não está à altura da sua extraordinária riqueza, Mona lembra que seus futuros professores provêm do terço mais fraco dos graduados de suas high schools. Em contraste, Coreia e Finlândia recrutam os melhores graduados e têm ótimos resultados. Para quem já tentou quase tudo, falta atrair excelentes professores.

Quando esse resultado aterrissa no Brasil, registramos que a grande maioria dos nossos professores é também recrutada entre os mais fracos do ensino médio – além de receber péssima formação. Porém, não há dinheiro para pagar salários muito mais elevados. Mesmo que o fizéssemos, seriam trinta anos para renovar o quadro, já que eles são estáveis. Tal diagnóstico é uma bomba atômica de pessimismo.

Estamos condenados, pois o ensaio começa com o epitáfio: bom ensino só com excelentes professores. Mas vejam o segundo capítulo: "A única maneira de melhorar os resultados é melhorar a instrução". Contradiz o primeiro! Ou seja, com os mesmos professores é possível obter muito mais. De fato, traz conselhos para tornar mais produtivos os professores existentes. O problema é que essa mensagem ficou obliterada pelo impacto derrotista do início.

Lemos no segundo capítulo: "O papel da escola é assegurar que quando o professor entra na sala de aula tenha todos os materiais disponíveis, junto com o conhecimento e a vontade de melhorar o ensino". É preciso ajudar o professor a empregar as práticas apropriadas, motivá-lo e fazer com que conheça suas deficiências. Igualmente proveitoso é selecionar para a direção da escola os professores mais entusiasmados, criativos e com capacidade de liderar.

É necessário ter programas explícitos e livros excelentes. A formação dos novatos se completa dentro da sala de aula, sob a supervisão de mestres experientes que sabem manejar a classe e usar os materiais de ensino.

De fato, é possível fazer bastante em pouco tempo. Em alguns municípios de Minas Gerais, entre 2007 e 2008, os testes de alfabetização (na 2ª série) mostraram uma queda substancial na proporção de alunos com desempenho baixo ou intermediário (ou seja, que não aprenderam a ler). Há casos espetaculares.

Em Ouro Branco, por exemplo, uma escola baixou de 42% para 10%. Em Maravilhas, de 43% para 1%, e em Itabirito, de 23% para 0%. Isso aconteceu em municípios participantes do sistema de gestão da Fundação Pitágoras – sem trocar professores! Colocando todos a remar na mesma direção, definindo e dando foco às prioridades, todos colaboram para identificar os problemas, resolvê-los e valorizar os sucessos. Gestão é isso.

Essa é a leitura correta do ensaio de Mona. Não adianta sonhar com professores finlandeses e ser engolfado pelo pessimismo. Na educação, apesar dos resmungos de alguns, muito pode ser feito sem que sejam necessários recursos extravagantes. De fato, como mostra o artigo, gastar muito não assegura boa educação.

Se houver a "Grande Reforma da Educação Brasileira", será o somatório dos ínfimos gestos que corrigem erros do passado e introduzem práticas eficazes. Será fruto da insistência obsessiva em melhorar o "feijão com arroz" da sala de aula, ano após ano. Na tradução zen, "todo dia melhorar um pouco, todo dia fazer um pouquinho melhor".

Claudio de Moura Castro é economista


De onde vem a inteligência

Os cientistas começam a desvendar os fatores que tornam o cérebro mais eficiente. O que podemos esperar dessas descobertas
Marcela Buscato. Com Ana Aranha e Rafael Pereira

O ENIGMA DO GÊNIO

Amostras do cérebro do físico Albert Einstein conservadas para pesquisa. Há 54 anos, os cientistas tentam decifrar as origens de uma mente brilhante O americano Thomas Harvey disse ter se sentido sortudo ao deparar com o corpo do físico Albert Einstein em cima da mesa de autópsias do Hospital de Princeton, nos Estados Unidos.

Não se tratava apenas da empolgação de um patologista – esses detetives da medicina que a cada nova necropsia procuram pelas causas de uma morte. Naquela manhã de 18 de abril de 1955, sete horas depois de Einstein morrer, aos 76 anos, em decorrência de um aneurisma abdominal, Harvey vislumbrou a possibilidade de uma descoberta histórica.

Sem a autorização em vida de Einstein ou de sua família, ele abriu o crânio de seu “paciente” mais ilustre. Sugou o liquor do cérebro pelo nariz e com uma das mãos envolveu o bolo de massa cinzenta que revolucionara a ciência ao redefinir os conceitos de espaço e tempo. Harvey cortou as fibras que o prendiam ao corpo e o suspendeu. Acreditava que o cérebro de 1,2 quilo em suas mãos – mais leve que o da média da população – responderia à pergunta que já desafiava pensadores 400 anos antes de Cristo. Qual é a essência da inteligência?

Cinco décadas depois do dia de sorte de Harvey, o cérebro de Einstein – dividido em 240 finas fatias – flutua em dois potes de vidro no Centro Médico de Princeton. Durante todos esses anos, Harvey dedicou-se a enviar alguns desses pedaços a vários especialistas. Caberia a eles investigar o cérebro de um gênio e divulgar para o mundo a receita de tanta inteligência. Alguns deles arriscaram publicar seus achados.

O primeiro: a região encarregada da habilidade matemática, chamada lobo parietal, era 15% maior no cérebro de Einstein. A segunda conclusão: as circunvoluções, aquelas dobras que dão uma aparência rugosa ao cérebro, eram distribuídas em um padrão que aproximava os neurônios, facilitando a transmissão de estímulos nervosos. A terceira descoberta: os neurônios eram mais bem alimentados. Einstein tinha uma proporção maior de células fornecedoras de nutrientes em seu cérebro.

O cérebro é como uma estrada. Em algumas pessoas, asfaltada. Em outras vezes, feita de paralelepípedos

Foram constatações curiosas, sem dúvida. Mas pouco revelaram sobre o segredo da genialidade. Como garantir que as particularidades encontradas no cérebro de Einstein foram responsáveis por sua inteligência fora do comum? Há poucos cérebros tão geniais quanto o dele – e um número muito menor chega às mãos dos pesquisadores.

Sem base de comparação, não há como provar cientificamente que um cérebro com as mesmas características faria de alguém um gênio. Um fim triste para o bem mais precioso de Einstein e para o ato ousado de Harvey – que morreu em 2007, aos 94 anos, dizendo-se cansado da responsabilidade de ser o guardião de um cérebro tão privilegiado.

Os cientistas de hoje podem não contar com uma matéria-prima nobre como essa, mas ironicamente estão mais perto de revelar a essência da inteligência do que Harvey jamais esteve. Eles têm acesso direto a algo que confere brilho a um cérebro: as modernas técnicas de ressonância magnética. Essas técnicas, desenvolvidas na última década, colorem as regiões ativadas durante a realização de cada tarefa. E mostram a intrincada rede de interações que produz a inteligência.

O psicólogo americano Richard Haier, da Universidade da Califórnia em Irvine, conseguiu descrever a rota de um pensamento dentro do cérebro usando as imagens obtidas nesse novo tipo de estudo (confira a ilustração). “Os diferentes níveis de inteligência estão relacionados a quão bem as informações percorrem esse caminho”, afirma Haier.

“Em algumas pessoas, elas podem pegar atalhos ou viajar a uma velocidade maior.” É como se o cérebro fosse uma estrada. Em algumas pessoas, ela seria cheia de ramificações, pavimentadas com asfalto da melhor qualidade. Em outras, o pensamento andaria por uma trilha longa, feita com paralelepípedos.

No mundo da neurociência, o asfalto corresponde a um maior número de conexões entre os neurônios, mais substâncias químicas para transportar as informações pelo cérebro e mais vasos sanguíneos para levar alimentos e oxigênio para as células nervosas. Os paralelepípedos correspondem a cérebros em que esses fatores aparecem alterados, acarretando um desempenho pior.

Uma série de estudos publicados nos últimos dois meses colocou à prova a teoria da estrada. E comprovou que aspectos como rota e qualidade do asfalto fazem a diferença. O neuropsicólogo alemão Jan Willem Koten, da Universidade Aachen, mostrou que as pessoas usam estratégias mentais diversas para executar a mesma tarefa. E que algumas dessas táticas são, de fato, mais eficazes: se traduzem em pensamentos velozes e certeiros.

No estudo, os voluntários que usavam áreas do cérebro encarregadas do processamento visual e espacial para decorar uma sequência de dígitos tinham mais facilidade para lembrá-la que as pessoas que empregavam uma região ligada à linguagem. Paul Thompson, um neurologista da Universidade da Califórnia, descobriu que a qualidade do revestimento dos neurônios está diretamente ligada ao nível de inteligência.

Quanto mais grossa a camada de mielina, um tipo de gordura que reveste os neurônios, mais rapidamente a informação é transmitida entre as células nervosas. Na Universidade McGill, no Canadá, os cientistas constataram que crianças e adolescentes com algumas áreas do cérebro mais espessas tinham um desempenho melhor em testes de inteligência. Elas teriam um maior número de conexões entre os neurônios.

Agora, os pesquisadores estão começando a investigar o que está por trás dessas diferenças. O que faz com que algumas pessoas usem estratégias mentais mais sofisticadas que outras? Ou tenham um revestimento mais espesso de mielina? Ou mais conexões cerebrais? A resposta está escrita no genoma, a sequência de códigos químicos que tornam cada pessoa tão única. Essas variações na rede neural seriam determinadas pelos genes.

Isso significa que a inteligência é em boa parte transmitida dos pais para os filhos. Em seu estudo, Koten, da Universidade Aachen, descobriu que gêmeos idênticos, que compartilham os mesmos genes, têm mais chances de usar a mesma tática mental para decorar a sequência de números do que seus outros irmãos, que compartilham em média 50% dos genes.

Outra pesquisa da Universidade da Califórnia mostrou que as regiões cerebrais que controlam as habilidades de linguagem e leitura são iguais em gêmeos idênticos. E alguns levantamentos sugerem que filhos adotivos costumam desenvolver um Q.I. (quociente intelectual) mais próximo ao dos pais biológicos, com quem não mantiveram contato, que ao dos pais adotivos, com quem convivem.

Esses indícios de hereditariedade e a criação de novos métodos para analisar milhares de sequências de DNA simultaneamente desencadearam uma busca pelos genes da inteligência. Os geneticistas já anunciaram a descoberta de pelo menos cinco. Sem dúvida, um avanço.

Mas também uma amostra de quão difícil é determinar as causas da inteligência. Entre todos os genes descobertos, nenhum tem uma influência arrebatadora sobre o desempenho intelectual. “É provável que existam muitos genes que interfiram no desempenho, cada um com uma influência pequena”, afirma o psicólogo americano Robert Plomin, do King’s College London.

Em suas pesquisas, Plomin confirmou esses caprichos da genética. Ele empreendeu a maior busca já feita por genes da inteligência. Analisou o DNA de 7 mil crianças, usando uma técnica que procura por até 500 mil marcadores genéticos de uma só vez. E o gene mais influente que conseguiu encontrar, o IGF2R, determinava uma variação de apenas 0,4% na pontuação de testes de inteligência. Na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, uma equipe de pesquisadores diz ter descoberto um gene, o CHRM2, com influência maior.

A diferença de Q.I. entre uma pessoa que tenha todas as versões do gene que influenciem negativamente as habilidades cognitivas e alguém que carregue as mutações com influência positiva poderia chegar a 20 pontos. Os cientistas americanos afirmam que é muito difícil comprovar estatisticamente esse dado porque há poucos casos conhecidos de pessoas com essas configurações genéticas extremas.

Entender o papel exato desses genes é outro desafio. Eles parecem ter outras funções além de influenciar na habilidade de raciocínio. O caso mais intrigante é dos genes DARP-32 e DTNBP1. Eles são encontrados em pessoas com esquizofrenia, um transtorno psiquiátrico caracterizado por alucinações, e, por isso, são associados à doença.

Estudos recentes sugerem que eles também podem ter alguma ação sobre a inteligência. Portadores de uma versão específica do DARP-32 processariam de forma mais eficiente as informações no córtex pré-frontal, o que melhoraria o desempenho intelectual. Já as pessoas com uma mutação específica no DTNBP1 teriam dificuldades de raciocínio. Ainda não se sabe por quê.

Ao mesmo tempo que avançam as descobertas sobre a influência da genética, também avançam os estudos sobre o papel do meio ambiente na formação da inteligência. “O nível de inteligência de uma pessoa é resultado da interação entre genes e fatores ambientais”, afirma o psicólogo Ian Deary, diretor do Centro de Epidemiologia Cognitiva da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Até beber leite materno pode ser decisivo.

Pesquisadores britânicos sugerem que, em crianças com determinada versão do gene FADS2, a amamentação pode elevar o Q.I. em até 7 pontos. Esse gene estaria relacionado à transformação de nutrientes da gordura do leite importantes para o desenvolvimento do cérebro.


09 de maio de 2009
N° 15964 - NILSON SOUZA


A indignação de Prates

Rola na internet, em ritmo viral, como gostam de dizer os iniciados, o vídeo do comentário que o colega Luiz Carlos Prates fez sobre a farra das passagens aéreas no Congresso Nacional. Prates é colunista do Diário Catarinense e comentarista da RBS TV em Florianópolis desde a década de 80, quando resolveu atravessar o Mampituba para ficar por lá.

Mas é gaúcho, narrava e comentava futebol por aqui no início de sua carreira. Eu mesmo, quando também era cronista esportivo, tive a oportunidade de cobrir uma Copa do Mundo junto com ele, na Argentina. Sempre foi uma figura polêmica, de opiniões fortes, sem freios na língua e com muita coragem para expressar suas ideias e sua visão do mundo.

Confesso que nem sempre concordo com suas opiniões, algumas delas um tanto, digamos, impetuosas para o meu gosto. Assusto-me cada vez que ele dá um murro na mesa para não deixar dúvidas de que está indignado. Mas, neste caso dos parlamentares que pagavam viagens de parentes, amigos e amantes com o dinheiro do contribuinte, Prates interpretou perfeitamente o sentimento dos brasileiros.

Seu comentário é um primor de repulsa a um fato realmente repulsivo. Ele disse exatamente o que as pessoas queriam ouvir e muito do que elas próprias gostariam de dizer. O xingamento final, acompanhado de um tapa na bancada, é quase histriônico, mas adequado para a situação: “Safados!”.

Já recebi várias mensagens com o comentário de Prates no YouTube (http://www.youtube.com/watch?v=8-gfYN61WRM). Quando as pessoas repassam um vídeo ou um texto para amigos, parentes e até para desconhecidos, estão querendo dizer que aquele conteúdo vale a pena ser visto.

Mais do que isso: estão rubricando aquele recado, dizendo que ele contém algo de seus próprios pensamentos, de sua própria vontade, de seu desejo de agir. Potencializadas pela internet, as palavras de Prates se multiplicam de tal maneira, que parecem estar se transformando na reação coletiva exigida em sua incendiária manifestação.

Uma vez passei constrangimento por causa de Prates. Quando a delegação da Itália chegou à Argentina para disputar a Copa, foi precedida por um grupo folclórico chamado Gli Sbandieratori Di Arezzo, que se apresentava com bandeiras coloridas numa rua de Buenos Aires.

Prates, entusiasmado e impetuoso como sempre, colocou na minha mão uma máquina fotográfica e saltou para o meio dos dançarinos. Tive que segui-lo, para não perder a imagem que, espero, ele tenha guardado de lembrança entre as suas fotos de viagem. Assim como vou guardar o vídeo deste seu comentário ensandecido de justa indignação.

quarta-feira, 6 de maio de 2009



06 de maio de 2009
N° 15961 - MARTHA MEDEIROS


Marias-gasolina

Você já deve ter visto este comercial de tevê: um cara bonitão, acompanhado da namorada, para seu carro no sinal vermelho. Ao lado, está parado um outro carro, bem mais bacana.

Enquanto o sinal não abre, o homem do primeiro carro fica apreciando o design do carro vizinho. De repente, o vidro da janela desse outro carro se abre e quem está lá dentro? A namorada do primeiro homem, que saiu de fininho e transferiu seu amor para o dono do automóvel mais possante. E viva a frivolidade.

Nem sei a razão de tocar nesse assunto, porque certas coisas são culturais e não mudam: carro e mulher são indissociáveis. Nas corridas de Fórmula-1, é obrigatório gatonas de shortinhos circulando pelos boxes. Nas feiras de produtos automotores: mulher, mulher, mulher. E oficina mecânica sem pôster da Playboy não é digna de confiança.

Tenho um amigo em São Paulo que escreve umas crônicas maneiras para o site Itodas, o Eduardo Haak. Semana passada, ele falou sobre uma amiga que quase desmaiou quando um pretendente a namorado foi buscá-la de kombi. Reconheço, kombi, além de chinelagem, é risco de vida. Mas isso descredibiliza o candidato na hora?

A maioria da mulherada responderia: sim!!!

Admito que eu não ficaria nem um pouco extasiada em pegar carona numa lata-velha onde houvesse um monte de penduricalho no espelho retrovisor e um adesivo gigante dizendo “Jesus te ama”, mas isso está na categoria do bom ou mau gosto. Pode-se cometer esse tipo de atentado até numa Ferrari.

Óbvio que beleza e modernidade me cativam. Mas não me alienam. É muito provinciano escolher um homem pelo carro que ele tem. Na Europa, onde não há essa fissura automobilística que herdamos dos americanos, diversos ótimos partidos circulam de bicicleta e no transporte coletivo. Ah, mas em Paris é charmoso...

Não sei qual o meu problema, mas nunca atraí homens com bólidos espetaculares. Fazendo um distante flashback, me vejo andando de ônibus, de opala, de maverick, de pointer, todos em estado terminal, com falência múltipla dos órgãos. Em compensação, seus donos sobreviveram às suas charangas e hoje estão em melhor situação do que muito magal “veloz e furioso”.

Esta crônica não é para achincalhar os proprietários de cherokees e mitsubishis, era só o que faltava. Saúdo-os! Mas que sirva para alertar uma certa classe de mulher: não é o carro que faz o homem.

Não que eu pouco me importe com o assunto: dirijo um simpático EcoSport que só me traz alegrias. Sendo dona de um carro que me satisfaz, o carro dos outros não precisa me servir de acessório. Eu sei quem eu sou. Não preciso provar meu status através de veículos alheios.

Infelizmente, estou falando para as paredes. As mulheres são radicais em relação a determinados assuntos. Mas pensem, garotas: vocês realmente gostariam de ser escolhidas pela grife das suas bolsas? Pela quantidade de consoantes dos seus sobrenomes?

Eu não lembro a marca do carro que é anunciado naquele comercial (mentira, lembro, mas não vou dar essa colher), só sei que aquela biscate não me representa. E espero sinceramente que a você também não.

Ótima quarta-feira - Aproveite o dia.

terça-feira, 5 de maio de 2009



05 de maio de 2009
N° 15960 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


As páginas de um livro

Somos um país de 95 milhões de leitores – e dois terços deles vêm da escola. A revelação é de uma reportagem de Carlos André Moreira e Paulo Germano, publicada há poucos dias em Zero Hora. Baseado na pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, o texto ensina que, por melhor que seja a escola, uma criança só continuará a ler por encantamento – e não por obrigação – se encontrar apoio no ambiente familiar.

Comigo aconteceu o contrário: o lar veio antes da escola. Cresci numa casa em que o livro era artigo de primeira necessidade. Por toda parte havia volumes abertos, enormes prateleiras em que se perfilavam lombadas de todos os calibres e – numa época em que a televisão era uma remota novidade americana – meus pais reuniam amigos à noite para ouvir música e comentar o que estavam lendo.

Muito antes de eu aprender a combinar uma letra com outra, ganhava livros de presente e primeiro ouvia minha mãe contar suas histórias e após tentava reinventá-las decifrando aqueles caracteres misteriosos. Só depois disso a escola foi o caminho natural.

Em outras palavras, não foram os professores que despertaram meu amor pelos livros. Eu já o levava de casa. Creio que foi esse o maior presente que me deram. Em aniversários, Páscoa, Natal, ninguém precisava me perguntar o que eu gostaria de receber. Meus irmãos e eu dizíamos que simplesmente livros.

É uma excelente notícia a de que hoje são as escolas que despertam o apreço pela leitura. Mas essa notícia será melhor ainda quando o apego começar em cada lar. Pois essa é uma missão indelegável dos pais.

Já contei aqui que estive na inauguração da primeira Feira do Livro de Porto Alegre, no distante ano da graça de 1955. Eu era um guri de 10 anos e percorri aquelas tímidas barracas com um olhar de deslumbramento.

Meu pai foi o orador da solenidade, no lado de cá da Praça da Alfândega, e creio que o discurso que fez, dizendo que não há democracia sem cultura, foi o melhor de sua vida.

Eram palavras que eu recordava a cada vez que ele chegava em casa e me estendia a mais bela das dádivas: a das páginas de um livro.


05 de maio de 2009
N° 15960 - CLÁUDIO MORENO


As derradeiras palavras

Para um grego antigo, as derradeiras palavras que alguém pronunciava eram as mais importantes de toda sua vida. Em Troia, o guerreiro agonizante, suspenso por um breve instante entre o mundo humano e o divino, era ouvido com respeito por amigos e inimigos, pois sua fala tinha a autoridade de quem já entrevia o outro lado.

Homero, por exemplo, fez a lança de Aquiles atravessar o pescoço de Heitor sem atingir sua traqueia, a fim de que ainda pudesse dizer alguma coisa antes que a alma deixasse seu corpo.

O que aconteceu com Ulisses nunca mais se repetiu. Quando sua mãe morreu, ele estava tão longe que sequer pôde ser informado; há dez anos tinha deixado sua amada Ítaca para se juntar aos exércitos gregos, e desde então nunca mais tinha recebido notícias de casa.

Quando a guerra terminou, na sua longa viagem de volta, entre os muitos perigos que enfrentou, teve de descer ao mundo dos mortos para consultar Tirésias, o adivinho, sobre o seu futuro e o de sua família - e lá, no meio das sombras, avistou, aturdido, o espírito de Anticleia, que ele julgava ainda viva. Ela se aproximou, carinhosa, feliz de encontrar o filho assim, tão forte e saudável; Ulisses, contendo as lágrimas, quis saber que doença a tinha arrebatado.

“Não foi doença, querido. Senti falta demais de tua ternura e de tua vivacidade, e me deixei morrer. Volta logo para casa, que teu pai, tua mulher e teu filho te esperam ansiosamente”. Apesar da tristeza, Ulisses saiu dali agradecido aos deuses por terem permitido aquele encontro milagroso, sem o qual nunca teria colhido as últimas palavras da mãe e a bênção de seu olhar.

Fora da mitologia, o romano, povo prático, adquiriu o curioso (e assustador) hábito de usar o testamento para fixar as derradeiras palavras dirigidas aos que ficavam. Além de dispor de seus bens, o testador aproveitava a oportunidade para revelar seus verdadeiros sentimentos para com as outras pessoas, familiares ou não.

A leitura era pública e atraía um grande número de curiosos; como se pode imaginar, esses julgamentos póstumos podiam fazer ou destruir reputações, pois supunha-se que o autor, agora já fora de alcance, não mais teria a necessidade de esconder o que pensava. “Os romanos”, disse um grego rabugento, “só dizem a verdade depois que morrem”.

Alguns defendiam esse estranho costume como a preocupação legítima de um povo que, conhecendo muito bem a fragilidade da vida, procurava, pelo testamento, assegurar-se de que os outros haveriam de ouvir o que ele tinha a dizer. Um filósofo irônico como Diógenes, no entanto, batendo o pó das sandálias, não deixaria de fazer a pergunta que até uma criança faria:

“Por que não disseram tudo isso antes que fosse tarde demais?”

domingo, 3 de maio de 2009


Thomaz Favaro

Memória é o que não vai faltar

O disco holográfico, desenvolvido pela GE, armazena 500 gigabytes e custa, proporcionalmente, menos que um disco blu-ray

Algumas tecnologias surgem na hora certa para causar uma revolução. Outras são revolucionárias, mas aparecem na hora errada e não causam tanta sensação. Qual será o caso do disco holográfico, uma nova tecnologia de armazenamento digital de dados anunciada pela General Electric na semana passada?

De tamanho convencional, o produto tem capacidade para armazenar 500 gigabytes de informação, o equivalente a 100 DVDs – o que é um desempenho sensacional. Quando foram lançados, o CD, em 1982, e o DVD, em 1995, mudaram tudo o que se conhecia nessa área.
O primeiro armazenava 200 vezes mais dados que a tecnologia antecessora e representou uma revolução na indústria fonográfica. O segundo ultrapassou a marca dos gigabytes, permitindo a gravação de filmes inteiros numa única mídia. Já com o blu-ray, lançado há seis anos, foi diferente. Apesar de aumentar a capacidade de armazenamento, tornou-se apenas mais uma alternativa entre outras tantas.

"A nova tecnologia holográfica terá de competir também com outras formas de armazenamento, como HDs externos, pen drives e o cloud computing, a estocagem de dados em servidores gigantes e remotos acessados pela internet", diz Waldemar Schuster, analista da International Data Corporation (IDC), instituto especializado em tecnologia.

O nome da tecnologia faz alusão à possibilidade de aproveitar todas as três dimensões do disco para arquivar dados. Ao contrário das mídias ópticas, nas quais os dados são "escritos" numa fina camada de metal, toda a espessura do disco holográfico é composta de um material fotossensível, capaz de armazenar informações.

Há outras pesquisas com armazenagem holográfica em andamento. Uma empresa americana anunciou neste ano planos de introduzir um sistema que usará máquinas de 18 000 dólares e discos igualmente caros. A GE tomou um caminho diferente.

Reduziu a qualidade do holograma para baratear o produto e atingir um público mais amplo. A tecnologia ainda está em fase de laboratório e precisa ser adaptada para a produção em massa. "Nosso objetivo é, com pequenos ajustes, dobrar a capacidade de armazenamento até a data de lançamento do produto, em 2012", disse a VEJA o americano Brian Lawrence, chefe do programa de armazenamento holográfico da GE.

O preço por gigabyte do disco holográfico é estimado em 10 centavos de dólar, contra 50 centavos do Blu-ray. Essa pode ser uma vantagem competitiva. Estima-se que três quartos dos gastos com tecnologia da informação de uma empresa vão para a ampliação da capacidade de armazenamento de dados.

Baratear o custo é uma necessidade crucial para estúdios de cinema, redes de TV e hospitais. Se o disco holográfico conseguir reduzir parte desses gastos, talvez consiga, afinal de contas, desencadear sua própria revolução tecnológica.


Lya Luft

Esse poço tem fundo?

"É frágil uma democracia na qual pobres e ricos, jovens e velhos, reagem com um dar de ombros quando se fala nesses desmandos, nesses abusos,
nessas verdadeiras loucuras – as que sabemos e as piores, que ainda ignoramos"

Houve um tempo em que se ensinava às crianças que, se a gente furasse um poço dias e dias e anos e anos a fio, chegaríamos ao Japão (ou era China que diziam?) e estaríamos no meio de crianças orientais de olhos puxados e costumes muito diferentes. Menina de cidade do interior, só conheci a maravilhosa cultura oriental muitos anos depois.

Adulta, descobri que a vida tem outros poços, nem todos divertidos. Um deles agora se afunda como se não tivesse chão: o poço dos escândalos nossos de cada dia, o poço da nossa desolação e dos nossos enganos. Percebo que, a pior das situações, raras pessoas ainda se dão ao trabalho de se preocupar de verdade. A maioria, talvez para suportar tantos desencantos, dá de ombros dizendo que é isso mesmo, as coisas são assim, no Brasil é assim, no mundo inteiro está ficando assim, e afinal "não tem problema".

Ilustração Atômica Studio

Propriedades produtivas são invadidas sob proteção não se sabe de quem: ninguém parece fazer nada. Congressistas e senadores fazem farras inimagináveis quando ainda acreditávamos neles: não tem problema. Mensaleiros continuam sendo processados, mas não sei que tenham perdido a honra, ou vivam execrados. Agora, no Supremo Tribunal do país, ministros batem boca diante de telespectadores atônitos: parece que perdemos o último baluarte da nossa esperança.

Mas fiquem tranquilos, não tem problema.

Não devemos nos espantar com a generalizada quebra de autoridade. Tudo numa boa, por aqui é assim. Sem stress, que dá rugas, sem exageros, que a gente vira um chato.

Que povo estamos nos tornando? Ignoramos essas circunstâncias, que agora não são apenas corrupção escancarada e impune, mas falta de compostura de quem era a última instância de nossa vida problemática, derradeira inspiração para a desorientada juventude nossa. Mas não ignoramos por sermos ignorantes, e sim porque nos dizem que está tudo numa boa, e não adianta reclamar.

A gente se acomoda, se distrai, olha para o outro lado, porque a capacidade de reagir nos foi lentamente, subliminarmente, retirada. Não por sermos um povo acomodado ou superficial, mas mergulhado num estado geral de desinteresse – e isso contagia feito uma nova doença, uma gripe de derrotados nem sempre suínos. Algo negativo e sombrio perpassa este país, e nem os trios elétricos nem zabumbas nem carnavais ou belas danças típicas do interior conseguem disfarçar.

É frágil uma democracia na qual pobres e ricos, jovens e velhos, reagem com um dar de ombros quando se fala nesses desmandos, nesses abusos, nessas verdadeiras loucuras – as que sabemos e as piores, que ainda ignoramos.

(Pois, quanto à chamada farra das passagens, dizem os que sabem das coisas que o pior vai permanecer oculto, não por último para preservar, em alguns casos, a solidez da santa família brasileira.) A gente ou sabe ou imagina, e comenta como se fosse engraçado: quem ainda acredita nos políticos? Quem ainda tem fé nas instituições?

Olhe só o que está acontecendo por aí, e nem é de hoje. Nem vai se corrigir, ao contrário: cada vez aparece algo mais sério, mais sinistro, objeto de reais ou falsas investigações tantas vezes desfocadas e ineficientes, ou aparentemente rigorosas. Sentimos uma lufada de otimismo, agora, sim, a coisa vai endireitar... mas logo se desfaz diante do comentário que vem do alto: tudo resolvido, não tem problema.

Tem problema. Tem muito problema. Não é normal, não é assim o Brasil, não são assim os brasileiros. A falta de autoridade de tantos líderes contamina feito uma gosma escura, uma doença maligna corroendo a decência neste país, tirando-nos discernimento e capacidade de julgar.

Fingimos não saber, fingimos nem ligar. Aos mais simples, como às crianças e jovenzinhos, é repetido que está tudo bem, tudo em ordem. "Não tem problema." Assim, descrentes e céticos, protegem-se com um precoce cinismo, que afinal é um jeito (pobre) de sobreviver na selva moral.

Lya Luft é escritora


Mudanças climáticas são piores do que se pensava

Novos estudos mostram que as previsões catastróficas feitas pelo Painel da ONU em 2007 eram tímidas. A situação é mais grave
Marcela Buscato

DESMANCHE

Cientista observa blocos de gelo em processo de derretimento na Antártica. Na última década, o degelo aumentou em 75%, segundo dados revisados



Representantes da Itália e da Suíça sentaram-se à mesa de negociações para solucionar um problema que pensavam ter resolvido há quase 70 anos: onde começa e termina cada país. Em 1941, quando as fronteiras foram formalizadas, pareceu uma boa ideia usar como marco as geleiras dos cumes dos Alpes, um cartão-postal da Europa. Elas representavam uma referência atemporal. Mas, com o aquecimento global, parte da neve derreteu. E sumiu com a divisão entre os países.

Italianos e suíços resolveram o problema pacificamente: vão usar como parâmetro as rochas expostas pela ausência da neve. Mas o contratempo diplomático mostrou que os impactos mais drásticos das mudanças climáticas já estão acontecendo. E, de acordo com uma nova leva de pesquisas, mais rápido do que se previa.

Estudos recentes mostram que a velocidade do aquecimento global está acelerada se comparada ao que previram há apenas dois anos os cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), a cúpula internacional reunida pelas Nações Unidas para estudar o fenômeno.

As novas pesquisas reúnem dados mais recentes que os compilados no último relatório do IPCC, que em geral datam de 2005. Além de atuais, os últimos estudos são mais precisos porque os pesquisadores conseguiram analisar uma escala maior de tempo, o que confere exatidão à detecção de tendências. “Já estamos no pior cenário previsto pelo IPCC”, afirma a oceanógrafa americana Katherine Richardson, pesquisadora da Universidade de Copenhague, na Dinamarca.

“A situação é até pior que o estimado no caso do degelo do Ártico e da elevação do nível do mar.” (Leia a entrevista) Em março, Katherine e cientistas de vários países se reuniram em Copenhague para dar esse recado ao mundo. Foi a forma que eles encontraram para alertar os políticos que se encontrarão em dezembro, também em Copenhague, para votar um novo acordo para cortar emissões.

Ao lado do biólogo americano Christopher Field, da Instituição Carnegie para Ciência, em Washington, e do climatologista James Hansen, do Instituto Goddard da Nasa, a agência espacial americana, Katherine é uma das cientistas mais ativas no alerta sobre o aquecimento global.

Field estuda como as plantas e os ecossistemas responderão ao aumento da temperatura e tem declarado que o mundo está diante de um futuro climático além de qualquer previsão pessimista. Hansen, que desde a década de 1980 faz advertências sobre o aquecimento global, diz que a sociedade tem menos de uma década para frear as mudanças climáticas se não quiser viver em um planeta irreconhecível.

A maioria dos pesquisadores é mais reticente. Eles temem que afirmações catastróficas desestimulem as mudanças necessárias para diminuir as emissões. Um segundo motivo é o rigor científico. Como qualquer investigação científica, suas medições e análises carregam um grau de incerteza. Para não dar declarações exageradas, muitos pesquisadores acabam não enfatizando o suficiente suas conclusões.

“Sinto-me decepcionado em como demoramos para convencer a sociedade de que o aquecimento global é uma ameaça real”, diz o glaciologista americano Robert Bindschadler, pesquisador da Nasa que há 25 anos estuda o continente antártico. “A maior parte dos cientistas está perplexa com a eficiência dos céticos em destacar as incertezas de nossas pesquisas.”

Apesar da cautela dos cientistas, as evidências reunidas nos últimos quatro anos não deixam dúvidas da escalada das mudanças climáticas. E elas devem integrar o próximo relatório do IPCC, em 2014.

“Algumas consequências do aquecimento já são irreversíveis, como a expansão da área tropical no planeta”, afirma o meteorologista alemão Thomas Reichler, pesquisador da Universidade de Utah, nos Estados Unidos. Reichler diz que em Salt Lake City, onde mora, o verão já está mais seco e as chuvas devem diminuir pelo menos 10% nos próximos anos. É uma previsão preocupante para uma região desértica. “Nossas ações hoje é que ditarão quão ruim a situação vai ficar no futuro.”

Segundo os cientistas, não estamos fazendo o que poderíamos para diminuir a emissão de gás carbônico, o principal responsável pelo aquecimento global. Desde a Revolução Industrial, no século XVIII, nós o emitimos em atividades como a queima de petróleo e carvão para gerar energia.

Ele esquenta o planeta, porque forma uma camada de gás na atmosfera que retém o calor do Sol. Agora que sabemos disso, deveríamos diminuir as emissões. Em vez disso, elas estão aumentando. E em um ritmo que resultaria no pior cenário antecipado pelo IPCC: o planeta ficaria 6,4 graus célsius mais quente antes do fim do século.

O trabalho de um consórcio internacional de cientistas, o Global Carbon Project, mostrou que só entre 2000 e 2004 o crescimento anual das emissões triplicou, de 1,1% por ano nos anos 1990 para 3%. A industrialização de países como China e Índia, com base na queima de carvão, seria a principal causa desse aumento. Em 2004, os países em desenvolvimento teriam contribuído com 73% do aumento das emissões globais.

O cenário mais otimista previsto pelo relatório do IPCC (um acréscimo de “apenas” 2 graus na temperatura) já é considerado improvável. O Hadley Center, no Reino Unido, referência internacional em modelos climáticos, refez suas previsões no ano passado e sugeriu um futuro ainda mais quente. Mesmo que as emissões caiam 3% ao ano a partir de 2010, a temperatura aumentaria no mínimo 2,9 graus em 2100. No ritmo atual, seriam 7,1 graus a mais.

O impacto seria avassalador. Nas contas do IPCC, 4 graus a mais fariam com que o nível do mar subisse até 59 centímetros. Seria o suficiente para desabrigar 313 milhões de pessoas, cerca de 5% da população mundial. Hoje, essa previsão é considerada conservadora demais. Os cientistas já dão como certa uma elevação do nível do mar em 1 metro até 2100. Cerca de 600 milhões de pessoas ficariam desabrigadas.

Segundo estudos, 5% do fundo congelado do Oceano Ártico já começou a liberar metano


A revisão das projeções foi provocada por novas análises do comportamento do oceano nos últimos milhares de anos. E por novos dados que mostram a aceleração do derretimento da Antártica. Pesquisadores da Universidade da Califórnia constataram que, entre 1996 e 2006, o degelo na Antártica aumentou 75%.

A parte mais vulnerável é o oeste do continente. Lá, os cientistas observam a aceleração do derretimento de grandes geleiras como a Pine Island, que mede 250 quilômetros de comprimento. “Geleiras como essa podem derreter em uma questão de séculos”, diz Bindschadler, da Nasa. “Isso elevaria o nível do mar em 5 metros.”


03 de maio de 2009
N° 15958 - MARTHA MEDEIROS


Morrer em vida é fatal

Nunca esqueci de uma senhora que, ao responder por quanto tempo pretendia trabalhar, respondeu com toda a convicção: “Até os 100 anos”. O repórter, provocador, insistiu: “E depois?”. “Ué, depois vou aproveitar a vida”.

É de se comemorar que as pessoas aparentem ter menos idade do que realmente têm e que mantenham a vitalidade e o bom humor intactos – os dois grandes elixires da juventude. No entanto, cedo ou tarde (cada vez mais tarde, aleluia), envelheceremos todos. Não escondo que isso me amedronta um pouco. Ainda não cheguei perto da terceira idade, mas chegarei, e às vezes me angustio por antecipação com a dor inevitável de um dia ter que contrapor meu eu de dentro com meu eu de fora.

Rugas, tudo bem. Velhice não é isso, conheço gente enrugada que está saindo da faculdade. A velhice tem armadilhas bem mais elaboradas do que vincos em torno dos olhos.

Ela pressupõe uma desaceleração gradativa: descer escadas de forma mais cautelosa, ser traída pela memória com mais regularidade, ter o corpo mais flácido, menos frescor nos gestos, os órgãos internos não respondendo com tanta presteza, o fôlego faltando por causa de uma ladeira à toa, ainda que isso nem sempre se cumpra: há muitos homens e mulheres que além de um ótimo aspecto, mantêm uma saúde de pugilista. A comparação com os pugilistas não é de todo absurda: é de briga mesmo que estamos falando. A briga contra o olhar do outro.

Muitos se queixam da pior das invisibilidades: “Não me olham mais com desejo”. Ouvi uma mulher belíssima dizer isso num programa de tevê, e eu pensei: não pode ser por causa da embalagem, que é tão charmosa. Deve estar lhe faltando ousadia, agilidade de pensamento, a mesma gana de viver que tinha aos 30 ou 40. Ela deve estar se boicotando de alguma forma, porque só cuidar da embalagem não adianta, o produto interno é que precisa seguir na validade.

Quem viu o filme Fatal deve lembrar do professor sessentão, vivido por Ben Kingsley, que se apaixona por uma linda e jovem aluna (Penélope Cruz) e passa a ter com ela um envolvimento que lhe serve como tubo de oxigênio e ao mesmo tempo o faz confrontar-se com a própria finitude. No livro que deu origem ao filme (O Animal Agonizante, de Philip Roth), há uma frase que resume essa comovente ansiedade de vida: “Nada se aquieta, por mais que a gente envelheça”.

Essa é a ardileza da passagem do tempo: ela não te sossega por dentro da mesma forma que te desgasta por fora. O corpo decai com mais ligeireza que o espírito, que, ao contrário, costuma rejuvenescer quando a maturidade se estabelece.

Como compensar as perdas inevitáveis que a idade traz? Usando a cabeça: em vez de lutarmos para não envelhecer, devemos lutar para não emburrecer. Seguir trabalhando, viajando, lendo, se relacionando, se interessando e se renovando. Porque se emburrecermos, aí sim, não restará mais nada.